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SEGMENTAR OU RECORTAR? * "Olivo pode valer pelo muito que ole no deveu eaber”, G, Ross! Eni Pulcinelt Orlandi UNICAMP, Introdueio Esse trabalho, aceitando 0 fato de que 6 fugidio o limite entre © dizer € 0 ndo-dizer, aceita também o risco de ser antes uma sugestfo para se refletir acerca de certos aspectos dos estudos de linguagem do ‘que uma demonstracio cientifica de um ponto de vista. Freitas essas consideracdes inicais, gostariamos de afirmar a ne- cessidade de uma reflexio critica sobre uma forma de deslize que se es- tabelece em uma ou outra teoria da linguagem no tratamento dos fend- ‘menos lingiisticos. Por causa desse delize, mesmo quando se critica uma teoria da linguagem, é possivel estarem-se reproduzindo seus pres- supostos ao se operar com os fatos. A nivel critico se recusa a teoria, ‘mas essa mesma teoria é reabsorvida a nivel de andlise. Isso pode ser observado em relagdo a distingSes como TOpi- 0 @ Comentério, ou em relagdo a0 uso geral de conceitos como Texto Discurso, Em um caso - 0 de Tépico e Comentério - eu perguntaria se ‘do se esté segmentando como se segmenta Sujeito e Predicado, ainda que soba "luz" da pragmética, (7) Texto apresentado no V Encontro Nacional de Lingofstica, PUC, Rio de Janeiro, 1981, com 0 titulo "Linguagem e Histria: 8 questo dos sentidos”. Neste versBo imtroduzimes algumas precisdes que julgamos esclarecedoras, Principalmente para 2 definicso ca nocSo oe recorte e para 0 questions: mento da natureza do conceite de ltaraliade No eso de conceitos como Texto ¢ Discurso, o que se pode \depreender ¢ que so conceitos que pretendem instituir um diferente ‘dominio tedrico - 0 da andlise de discurso - mas acabam sendo uma ex: tensio de conceitos do dominio da lingivstica da frase. 0 fato de ter escolhido, como referéncia para a critica, nogbes ‘como Tépico e Comentério, ou Texto, tem a funglo de ilustrar 0 que ‘chamei de compromisso ideolégico com as teorias. A escolha poderia ter recaido sobre outras hogSes, outros fendmenos lingiisticos. Esses que escolhi2, no entanto, permitem falar da natureza das unidades (da segmentacdo) e da abrangéncia da andiise. Procurarei observar, através da reflexdo critica sobre essas no- ‘es, as modificagbes possiveis trazidas pela andlise de discurso, e suas conseqiiéncias. ois Processos: a Polissemia e a Parétrase ‘Algumas consideragSes que estdo na base das reflexes que pro expor tém sua origem na definicio de Foco (Comentério) dde Sgell (1979). Segundo esta definicéo, hd no discurso informagdes ‘novas que se apdiam em conhecimentos anteriores partilhados pelos ‘agentes do discurso. De forma ge mos dizer que os textos que trabalham ‘com a distingo dado/novo (t6pico e foco) fundam-se no conceito de informacéo. Para citar apenas um exempio, basta lembrarmos Hal- liday (1970) que, considerando 0 texto como unidade basica da lin- ‘guagem em uso, distingue, na organizacdo textual, a estrutura teméti- © € 2 de intormacio onde insere 0 novo (elemento obrigat6rio) © 0 ‘dado (0 ponto de contato entre o saber de um @ outro interlocutor). Para esse autor, sem 0 novo no hi informacdo e a funglo textual exi- {9 que a nove informacio saja gramaticalmente explicita. Hé um principio tedrico da andlise de discurso que desioca @ importéncie atribuida & nogdo de informagdo e que abre espaco para 0 ‘conceito de polissemia, isto 6, para a consideraggo da multiplicidade de sentidos de que ¢ capaz de se revestir qualquer ato de linguagem, qual- ‘quer unidade da linguagem em uso, Esse principio diz que mais do que transmissSo de informa: #0, 0 discurso ¢ efeito de sentidos entre locutores (Pécheux, 1969). Por outro lado, e de acordo com esse mesmo princ\pio, jd ‘do se considera a linguagem, de forma unilateral, ou como produtora (e 0 mundo € dado) ou como produto (e ela propria ¢ dada). A li ‘guagem passa a ser considerada no momento de sua existéncia como ‘al, ou seje, como discurso. Dessa forma ela pode ser observada na dind- ‘mica de seu funcionamento, em que se procuram determinar os proces- 10 sos de sua constituigso e que so de natureza sdcio-historica. / Entre esses process, cistinguimos dois que sf0 fundamentais para linguager: (a. A polissemia (0 novo, o diferente): que ¢ 0 processo de ins- teuraco da multiplcidade de sentidor; ». A pardfrase (o mesmo, o dado): que é 0 processo pelo qual brocura-se mantero sentido igual sb diferentes formas Através da articulagdo que existe entre esses dois process, podemos distinguir 0 que, em geral, se chama de ciatividade ede pro: dutividede De um lado, temos a reteragdo de procestos jf ristalizados ppelas instituigdes, em que se toma a linguagem como produto & mantém o dizivel no espaco do que jé esté instituido: a pardfrase. A > ‘isso chamo produtividade. Relagdo do homem com a instituigéo, com 2 ei, como sistem, Mas ao lado da pardfrase hd um outro processo: a polsser A polissemia € 0 processo que, na linguagem, permite a criatividade. € 2 atestagdo da relagSo entre o homem e o mundo. A tensio entre esses brocesss instala 0 conflito entre o legitimo (o produto intituconaliza- do) e 0 que tom de se legitimer. A critividade insteure 0 diferente, na medida em que © uso, para romper © processo de producdo dominante de sentidos € na tensdo com o contexto histérico - social, pode criar novas forms, produzir novos sentidos. Pode entio realizar uma ruptu- ta, um deslocamento, em relacéo ao dizivel. a Um estudo da linguagem que dé conta da relagdo entre esses processot deve voltar para a reflexio sobre o uso @ incorporar a no- ‘fo de interlocugo. E um estudo capaz de observar 0 processo de ten ‘so constante da linguagem com o que ela poderia ser. [A pardfrate € considerada, na lingistica, como a matriz do sentido. A polistemia, por sua vez, pode ser vista como a fonte do san- 10, a prépria condicko de existéncia da linguegem, uma vez que a ba- ‘se da signiticagao estd na multiplicidade de sentidos. De tode forma, esses dois process slo igualmente deter nantes para o funcionamento da linguagem. (Os modelos que lovam em conta 2 dimensfo social podem atin- sir a modulagfo da linguagem que se apreseta ora em sua expansio, ‘ora em sua contenggo. A polissemia (expansdo) é regulada por sua rela- 0 com a pardfrase (contencgo), ou melhor, polissemia e pardfrase se limitam reciprocamente. E, a meu ver, of madelos que lidam com essa ‘modulasio sfo os que, 20 levarem em conta o social, fazem o percurso dba linguagem em sua prética: 0: modelos que s80 de natureza pragma " ca, 08 funcionalistas e os de andlise de discurso. // ‘Quando tratamos do problema do “novo” e do “dado” em lin- gUfstica, a distineio dos modelos que fazem o percurso linguagem-so- cledade em relacio aos que fazem seu percurso transitado entre lin- ‘Quagem-pensamento vem a tona necessar . Como exemplo, podemos tomar 0 novo que é gerado, na Gramética Transformacic nal, a partir das regras recursivas: € um novo que deriva da producéo de um nimero infinito de frases. Por outro lado, nos diferentes modelos funcionalistas e nos de ‘andlise de discurso no hé garantias de que se esteja utilizando 0 mesmo. conceito de novo, Daf, a meu ver, @ necessidade de se distinguir criativi- dade e produtividade, referindo-se a relagdo entre o processo parafrésti- co € © polissémico. A tendéncie, na lingifstica, tem sido a de se olhar a linguagem ‘através de um de seus processos: 0 paratréstico. A polissemia tem ficado por conta da retdrica e da poétics, Ou da lingtiistica hist6rica, que ob- serva @ multiplicidade de sentidos na perspectiva do tempo. A natureza do conhecimento e 0 conceito de informagdo © “dado (ou t6pico), na definigdo citada mais acima (Soall, 1975), refere-se a “conhecimentos anteriores partilhados pelos agentes do discurso”. linguagem © os seus agentes, segundo o que pude observer (Orlandi 1878), no se dio conta de que os conhecimentos néo so pertilhados ‘pelos agentes do discurso. Esses conhecimentos s8o socialmente distri- bburdos pois 0s agentes do discurso podem ocupar posigées dif ‘mesmo polémicas, dentro de formagbes discursvas distintas, Quando & natureze desse conceito, podemos distinguir entre ‘saber (que ¢ concsito de conteido técnico) ¢ conhecimento (que & do dominio tedrico). Dessa forma podemos delimitar melhor conceito de informacgo nove, Levando-se em conta 0 lugar social dos interlocutores, pode- mos afirmar que o falante “sabe a sua lingua mas no tem 0 “conhe- ‘cimento” completo do seu dizer: © que diz tem relagdo com o lugar, i 10 6, com as condieées de producio de seu discurso, com a dindmica de interacdo que se estabelece, com outros discursos jé produzidos ou ‘que poderiam ser produzidos. Quer dizer, a0 considerarmos 0 sujeito falante dentro da ordem social na qual ele vive, devemos reconhecer ‘que ele no tem © dominio de sua fala. Mas ainda, como hé uma ilusSo ‘que € constitutive do sujeito - isto 6, a iluséo de que ele & 2 fonte do sentido do que diz quando na verdade retoma sentidos préexistentes 12 (Pécheux, 1975) - 0 dizer do sujeito ¢, por condicio, constituido mes- ‘mo por aquilo que 0 sujeito no conhece mas esté presente em seus dis- curso. Por outro lado & importante se considerar a dindmica da inter- locugdo, pois, quando se fala em lugar social, a tendéncia & pensar-se 0 sujeito totalmente determinado, @ priori, pela sua posigSo na ordem so- cial, Essa é, a meu ver, uma interpretagdo mecanicista da relaco do su- jeito com seu lugar social. Para mim, essa relacSo é tensa, isto 6, hd con- ‘tradigéo na constituicso do sujeito. Nao fosse assim e no haveria sen- tido em falar-se em polissemia.. Enfim, partir da consideracio social dos interlocutores, po- demos dizer que os conhecimentos podem ser “comuns” mas no sf0 “iguais”. Hé desigualdade na distribuigéo de conhecimentos, no hé partiha. Essa desigualdede ¢ jogada na interlocueio. As posigdes dife- Tentes dos sujeitos no discurso se representam, entre outros fatos, pela relagdo entre explicito e implicito. Essa relago néo se baseia na parti ha de conhecimentos; 20 contrério, 0 jogo entre explicito e implicito E que instaura aquilo que se pode considerar como, conhecimento atri- bbu‘do por/a um ou outro interlocutor. ‘A informacéo nova, que € gramaticaimente explicita e quer vela a intengio de comunicarso do locutor, fea circunscrta équilo qu ro linglistioo, & factual e mensurdvel. No entanto, 0 que interessa, se peensarmos os discurso, € @ possibilidade dos miltiplos sentidos e nfo a informaggo (nova ou dada). " 'Nio € 36 a intenco que conta, os sujitos estfo numa ordem social com a totalidade da qual se comunicam e isto constitui o proces: 0 de signiticagdo. (© novo, nessa perspectiva, no ¢ exclusividade do foco nem precisa ter um lugar em um segmento da linguagem. E intervalar. Eo resultado de uma situacSo discursiva, margem de enunciados efetive- ‘mente realizado. Esta margem, este intervelo, nfo é um vazio, 60 espa- {0 ocupado pelo social, Eteito de sentido, Multipliidade. O texto e os recortes:a Linguagem como Incompletude Pois bem, ¢ ainda essa mesma nopio de informagio - factual € rmensurdvel ~ que vejo presente nas consideragies sobre Tépico e Co- rmentério quando so fala sobre a delimitago do tépico (em relagéo as suas marcas sintéticas, seménticas) e sobre o encadeamento do discurso (em que se coloca 0 tépico em relagdo com aquilo que é retomado ou repetido). E nesse sentido que, embora tais consideragées sejam criticas a teoria da sintaxe, a mantém presente na andlise sob a forma do seq- ‘mental, do informativo, 13 A ultrapassagem desse nivel segmental, caudatério do distribu- cionalismo, se faz, do meu ponto de vista, pela nocio de texto, quando se define texto como unidade de signiticer#0, ou melhor, enquanto ‘processo de significacio em que entram os elementos do contexto situa- ional. Ressaltando-se que 0 texto 6 a unidade que se define como tal ‘em seu uso/E unidade pragmatica, definida no processo de interagdo entre falante e ouvinte, Em termos da operacionalizagao dos conceites, a nogo de texto ¢ nuclear. Através dessa nocZo, entendida como unidade dif te, em natureza, de soma de frases -e como conceito que acolhe o pro ‘e350 de interogo pela (e na) linguagem «nos instalemos no dominio da significagao como multiplicidede (polissemia,efeito de sentidos) e néo como informagao cuje organizacSo deriva do carater linear atribuido 4 linguager. ‘Duas passagens se fazer: em termos de operacio, a passagem a segmentopio para o recorte; em fermos de unidades, a passager da {frase pars 0 texto. Conseqiientemente, deixamot 6 dominio da disti- ‘buigdo de segmentos e passamos para a relacio de partes com o todo, complicads relagéo de unidedes, onde a nogdo de diterenca ganha ou tras atribuigdes. 0 recorte é uma unidade discursive, Por unidade discursiva en- tendemés fregmentos correlacionados de linguageme-situagdo. Assim, ‘um recorte é um fragmento da situagio discursva, Rewsaltemos, entéo, que o recorte distingue-se do segmento Porque o segmento ¢, simplosmente, ume unidede ou da frase ou do sintagma, etc. No caso da segmentacdo, 0 lingiista @ relagao entre ‘unidades dispostas linearmente. A hierarquizagdo dos nives de anise, neste caso, se faz mecanicamente, O que nfo é 0 caso, quando se trata dos recortes, jf que nifo hd uma passagem automitica entre at unidados {05 recortes) ¢ 0 todo que elas constituem. Acrescente'se, ainda, que o principio segundo o qual se efetua © recorte varia segundo 0s tipos de discurso, segundo a configuracdo ‘as condigSes de producéo, e mesmo 0 objetivo e o alcance da andlise. Feitasexsas reflexdes podemos dizer que o texto ¢ 0 todo em ‘que se organizam os recortes Esse todo tem compromisso com as tas condigdes de producgo, com a situago discursiva, Pretendemos que 2 idéia de recorte remeta & de polisemia e no 4 de informacéo. Os recortes slo feitos na (e pela) stuagfo de inte- locucdo, af compreedido um contexto (de interlocucao) menos imedia- 10:0 do ideologia Assim, no hd porque reproduzir modelos que segmentam ao 4 estilo de modelos formais (S-V-O ou S-P ou SN-SV). As retomades © repetigSes pouco tém a ver com esse esquema. Essa maneira de tratar 0 ‘6pico seria a que sobrepde esquemas de t6pico e comentirio a esque- mas de sujeito e predicado mas nBo os ultrapassa. E a sintaxe, se se fala rela a ossas alturas, no pode ser uma sintaxe horizontal, linear, que ‘tem as caracteristicas da frase. Ela 6 sintaxe de texto, segundo a defini- fo de texto que propusemos acima, Dessa forma, & preciso determinar, através dos recortes, Corno as relagGes textuais si0 representadas, © essa representagio ndo serd, cortamente, uma extensfo da sintaxe da frase. Aqui, sem davida, merece mencio @ posigo de Eunice Pon- tes (1980) que se coloca “no limiar entre a sintaxe e 0 discurso”. Para . & preciso néo se ignorar a fungo da construco do tépico no dis- ‘curso. Observando-se 0 uso que @ autora faz de discurso, vemos que opie 2 nogio de discurso a I: "Mesmo quando 0 ‘tem um papel seméntico ¢ intrasentencial. O t6pico esté mais ligado 30 discurso”. Do nosso ponto de vista, nfo basta esta distingo extensional = 2 que opde intrasentencial a intersentencial - para a caracterizacBo do discurso, Uma andlise textual pode no ser discursiva. A andlise de dis- curso no 6 um nivel diferente de andlise mas um ponto de vista dife: rente, que instaura 0 seu objeto de conhecimento, diferente do da lin- ‘ifstica imanente. Uma anélise de texto pode ser feita do ponto de vis ta da lingUfstica imanente, isto 6, aquela que ndo leva em conta suas condigdes de producgo, no sendo, portanto discursi Por se colocar no limiar entre sintaxe @ discurso, a autora faz recurso constante & estrutura sintética candnica para reinterpretar, traduzir, as ocorréncias de t6pico. Por exemplo, em relagio a ocorrén- cia (71) "E isso ai que eu guardei uma frase pr'océ'", Eunice Pontes diré “0 sentido de (71) 6 mais: Eu guardei uma frase pr'océ que se encaixa dentro desse assumto que voc’ estd estudando”. E isso acontece mesmo ‘quando a autora considera que 0 t6pico pode ser determinado pelo con- texto de situagdo, presente “apenas na consciéncia dos mo af ele ¢ inferido de alguma forma das estruturas, cas. E 0 caso, entre outros, do exemplo (24) “Pai essa viagem té grande, 1né” que, segundo a autora “Se fosse em ordem direta, equivaleria a ‘rase ‘Essa viagem do pal esté grande, né’.” 0 ato de estabelecer, sistematicamente, a equivaléncie com 0 sintético, acaba por colocar 0 sintético como modelar quando a autora ‘opera com as ocorréncias. E, segundo a minha perspectiva, acaba por perder de vista aspectos discursivas importantes que derivam da instén- cia da interlocugo, 15 Finalmente, da concepefo de discurso que adota, 2 autora de- ‘iva a funcSo de tépico epontando exemplos em que “o t6pico aparece desta maneira, como uma retomada do que foi dito antes" Voltando, entéo, a0 problema das retomadas @ repetigtes em termos de t6pico, quero dizer-que os recortes so determinados por ‘muita coisa mais que a frase que foi dita antes e tm pouco a ver com 0 esquera sintético SN-SV. © recorte # riaco, pedaco, fragmento. No é segmento mensu- rvel em sus linearidade, Exempl X: Maria apanha do marido. ‘Y: As mulheres, elas ainda vo ter de lutar muito para mudar lum pouco essa heranca histérica. © que foi retomado? Que conhecimentos sfo partilhados? Que informacio “nova’* esté af delimitada? Ni hé algo dado, so qual acrescento, quando retomo, Penso ‘que a incompletude ¢ a condiggo da linguagem. No adianta querer es: ‘tancé-le em compartimentos que se preenchem a cada turno da interio- cugéo, Por outro lado, apesar de achar interessante 2 proposte da ‘gestalt que vé na topicalizagio 0 jogo do todo e partes, acredito, no entanto, que no ¢ suficiente falar em todo e partes pois & pr «es jogo sob a forma da interaeBo social da linguagem, © que quero dizer sobretudo é que com essa idia de incomple- tude apage-se, em relagdo a turnos, 0 limite que separa o meu dizer ¢ 0 do outro, Quando falo do apagamento dos limites, rfiro-me tanto #0 ‘apagamento em relagd0 a0 proprio momento da interlocucSo, isto €, do discurso in praesentia, como do discurso in absentia, ito €, 08 outros ‘iscuros produzidos por mim ou por outros (e mesmo os que poderiam Sr produzidos naquelas condig6es de produedo) © que tém relagSo com © meu dizer, [No vejo essa coisa como algo linear cronolégico:alguém fa- la, eu retomo e completo, 6 outro retoma e completa etc. S50 recortes {eitos de maneira bem menos organizada e linear. O espago e 0 tempo da linguagem so outros. € nisso que tropecam os modelos com sus seg: mentalidade. © espaco do texto nfo 6 fechado em si mesmo, tem rela- ‘eo com 0 contexto de situagdo e com outros textos, & intervalr, a¢- sim como 0 sentido ¢intervalar: nfo estd em nenhum dos interlocutores especificamente mas no espaco discursivo constituido pelos/nos dois terlocutores. 16 Um exemplo do problema do recorte me foi dado por uma co- lega® que me relatou a dificuldade que teve em fazer o recorte que esta- belece 0 “tépico" na seguinte situaglo: ela queria saber de uma amige ‘acerca de um livro que teria sido dado 2 esse amiga. No entanto, como ela 36 sabia 0 nome do fivro mas no sabia ao certo quem o teria dado nem se 0 livro teria sido dado pare essa amiga mesmo, colocava-se 0 se- uinte problema: comecar por onde? Pelo livro? (Sabe o livro x?) Pelo ‘nome do’ amigo? (Sabe 0 2?) A amige poderia desconhecer ambos e nfo serviria como apoio para estabelecer 0 ponto de contato, ‘A( esté, inegavelmente, uma das fungées importantes do t6pi- ‘0: estabelecer um comeco, um luger na incompletude. | Esse lugar pode ser qualquer um e isso ¢ “negociado", para se tsar um termo muito utlizado, quando se fala em interacSo. Para mim, mais do que negociaglo, ¢ confronto, € reconhecimento, é jogo de in- tersubjetividade e pode até mesmo chegar a ser disputa. / Disse que esse lugar pode ser qualquer um, mas, uma vez esta- belecido, ele tem conseaiiéncias fortes, isto é, determina toda a organi: zagG0 do texto, privilegia esse ou aquele elemento pertinente para a nificacdo, dé essa ou aquela direcdo ao texto, representa essa ou aquela dinémica da interlocugéo. Um exemplo de funglo do recorte, em relacéo @ outro fend- , Bode ser visto no Mecanismo da causatividede (Or- recortes feitos determinam formagbes dis sntes, Porque esses recortes representam momentos diferentes do processo ico (so textos de hist6ria que so analisados) ¢ 0 pri- dilégio de um ou outro momento (de um ou outro recorte) desemboca ern uma diferenga textual importante, do ponto de vista da signi também pela operaco que estou chi cor se estabelece a relagdo entre explicito e implcito, de maneira geral.Jé / que, nessa perspectiva, essa relacio nfo é dade, ou seja,0 explicito no. > estd definido @ priori mas ¢ na propria situagdo discursiva que explicito —- impl{cito se delimitam mutuamente. 4A Estraturagio dos Processos de SignificagS0 @ Outros Con- ceitos afins. Procurendo estabelecer, de maneira ainda superficial, uma rela- fo entre essas unidades distintas, poderia dizer que, na perspective que adotamos, no hé oposico entre conceitos tais como Sujeito - Predica- do/Tépico - Comentdrio, embora se distingam. Se tomarmos tanto © Sujeito como o Tépico em relagio és ‘condicSes de produeéo da linguagem, eles se definem como estrutura- $80 de processos de significagio distintos mas que s8o da mesma ordem a © ndo mutuamente exclusivos. O que hi é 0 jogo de um processo em re- lagdo a0s outros. A estruturago de processos em termos de Sui to - Predicado se articula com a estruturacdo Tépico - Comentério, O problema se dé quando se privilegia © conceito de informago, por exemplo, ¢ se hierarquiza sintético & pragmético. Af, embora teorica- mente distintos, na delimitacSo das marcas formais, acaba havendo sobreposicéo do sintético 20 pragmético 0 que, segundo © que venho expondo, ¢ redutor, pois desconsidera as condigbes de produgSo. Ora, a estruturacdo de processos de significacio distinta no tem de ter ne- cessariamente a forma de domindncia. Podesse, assim, dizer que a re lagdo entre o sintético, © seméntico e o pragmtico ndo deve ter a for ‘ma de hierarquia, em que uma dimensfo determina as outras. Ao con- trio, essas diferentes dimensdes, dever conviver dindmicamente, Na perspective da andlise do discurso, dadas certas condigdes de producio, 6 possivel veriticar qual a forma de relacdo que se estabe- lece entre esses processos de estruturacao e, por extensio, como se re: lacionam no texto, o sintético, o seméintico e o pragamético. A articulagdo entre Tépico - Comentério © Argumentaclo ¢ te rmatizada por Guimaries (19812). Em sua apresentacio, o autor consi dera que hi, em termos de estratégia de relacdo na interlocucdo, ora a Predominincis da relago Tépico - Comentério, ora a predomindncia da Argumentagio. Na maneira como venho considerando a relacdo entre esses fatos, enquanto estruturagio de provessos seménticos, nfo seria 0 caso de afirmar a dominéncia do processo Topico - Comentdrio sobre o de Argumentacdo e vice-versa. Seriam, antes, processos que se combinam, odendo co-ocorrer ou no, produzindo um certo tipo de efeito de sen- ido”. Com isso nfo pretendo excluir a possibilidade de haver a domi- ncia de certos processos sobre outros, dadas certas circunsténcias. Di- ia, mesmo que esse jogo de dominéncia pode explicar muitos mecanis- ‘mos gerais da linguagem, Mais adiante, lancarei mo desse jogo de do- ‘mindncia pare situar 0 problema da multiplicidade de sentidos. No en- ‘tanto, parece-me, no € 0 caso quando se trata da articulacdo entre T6- pico - Comentério © Argumentacio, como tenho observado. Assim, ‘Tépico - Comentério e Argumentagio, sendo processos que se combi- ‘nam, devem compor um nivel de mecanismo mais geral que, este sim, deve-se articular em termos de domindncie com outro mecanismo que resta determinar. No nfvel especifico de Tépico - Comentério e Argu- mentagdo ereio que o que hé ¢ uma relacdo em que eles ndo se alternam ‘em importéncia, co-ocorrem, 18 Talver se esteja usando indiferentemente certos termos que A\literalidade ¢, assim, efeito de discurso. Dizer, entéo, é estabelecer este e ndo aquele sentido, através ddesse © no de outro enunciado, para este © no para aquele interlo- ‘eutor, etc, no interior de relacSes que sfo sdcio-historicas A literalidade no préexiste, a0 contrdrio, é um efeito do dis- curso. No processo histérico da significagio, o sentido instituide como dominante faz parte das condi¢des de produeio dos discursos podendo, pois, reproduzir-se ou nfo como tal, pelo falante, A rigor, nessa linha de reflexéo, 0 falante néo opera com a li- teralidade como algo fixo ¢ irredutivel, [Nao hé um sentido prévio e dinico que aparece em todos os u: $05. Como diz Benveniste (1976): “0 sentido de uma forma lingiifstica Se define pela totalidade de seus emprogos, pela sua distribuicdo e pelos tipos de ligagBes resultantes”. Ainda segundo esse autor, no podemos saber, de anteméo, se existe um emprego em que dois sentidos diferen tes de morfemas idénticos recobram sua unidade. ' Para 0 analista,essa unidade ¢ aquilo a qui lo do que ele parte, chega, nfo aqui Do ponto de vista tebrico metodoldsico, o que distingue esta postura, da ortodoxa, é que a literalidade, para o analista ¢, assim, uma construcdo que e:iva da andlise dos usos no contexto hist6rico-social Essa posicdo, sem divide, difere daquela colocade pela lingiifs- tica imanente em que se encontra a hipStese de um sentido primeiro verdadeiro a0 qual se acrescentar outras significacdes, r 6 Algumes Conseaiténcias Se rompemos com a tradieio lingistica que néo considera a multiplicidade de sentidos como inerente & linguagem e se considera- mos bisicos 0s conceitos de interagdo, de processo constitutivo @ de confronto de interlocutores no proprio ato de linguagem, chegamos a algumas conseqiiéncias que passarei a enumerar. a. Consegiiéncia metodoligica: se néo é de um sentido nuciear que derivo 0s vérios sentidos mas se, $0 contrério, trata-se de verificar como, entre os vrios sentidos, um (ou mais) se tornou © dominante, as regras conversacionais - enquanto servem para derivar sentidos - perder seu valor metodolégico'!. © que se “ca/cula” é 0 sentido literal, ié que ele ndo & dado de antemio. Além disso ¢ preciso considererem se otras fungbes, outras operacdes na andlise da inguagem. Por exemplo, fem termos de fungées, € preciso considerarem-se fungGes como a co- nativa, a fética, 2 expressive como tdo importantes quanto @ cognitiva ‘ou referencial. Operagées como a segmentacio e distribuiggo perdem sua importancia em relacSo ao recorte de seqiéncias textuais. O per- Curso psiquico (linguagem/pensamento) deixa lugar para © percurso social (linguagem/sociedade) etc. ©. Consegdéncia aneiitica; parte-se do maltiplo, do observével « se procuram as condicSes que estabelecem @ domindncia de um ou partese, pois, do funcionamento, do uso e nfo de uma forma abstrata; fazse, como quer Voloshinov (1976), do texto (da palavra) © documento fundamental da linguagem, jf que uma palavra tem tantos sentidos quantos forem os contextos em que aparece. () OAbrangente eo Detaihe Nao hé, por definicéo, entéo, um centro ¢ ume margem. Hé multiplicidade. E 6 assim, finalmente, que entendo 0 proceso discur- sivo, 0s efeitos de sentido (sem pensar um centro do qual partem, mas como possivell, as familias parafrésticas que se formam a0 longo do dizer (na relagdo do dito com 0 nfo-dito mas que se poderia dizer). E € nesse sentido que vejo @ colocacéo de que uma andlise que leve em ‘conta as condicdes de producgo da linguagem, 0 processo de interagdo isto , 0 lugar social dos interlocutores, a relagdo de interlocuglo e as 23 circunsténcias em que se realiza - 6 uma andlise mais abrangente.|Logo, 1ndo se trata de analisar um maior nimero de fatos, ou de peger no foco “explicativo" da teoria um maior numero de fendmenos, Trata-se de it ‘mais fundo na natureza da linguagem. No hé como opor @ essa abran- géncia ume maior especificidade do estudo em detalhe, aquele que diz sacrificar 3 abrangéncia & especificidade, por exemplo, da sintaxe (em selacdo com a pragmética), A oposiggo,, tampouco, # a do pormenor ‘em relegio 20 todo - pois eu poderia dizer que trabalho o pormenor Pensando © todo, posigio tipica do estruturalismo. Volto @ repetir, ‘rata-se da relago entre o ponto de vista e @ natureza da linguagem. Um estudo mais abrangente, a essa altura dos estudos da lin- ‘guagem, € aquele que vai mais fundo na sua natureze, ou sea, € aquel que perde menos de sua multiplicidade, de sua complexidade. E aquele que ouse aceitar que nfo ha hierarquias, no hé categorias estritas, ou niveis que possam servir de suporte para explicitar © que no dé para explicitar, nem simplificar © que nfo dd para simplificar, ou clerear 0 ue, por natureza, se faz obscuro. A idéia de movimento, a de fra nto, @ de moltiplo, « de fugaz, no devem meter medo. Eo linglista ‘no precisa se obrigar @ outros escritos que no sejam ensaios. NOTAS 1. Guimardes Rosa diz isso em seu prefécio a Turaméia, cujo titulo 6 Aletria e Hermenéutica onde tece considerages a respeito da anedota e & definicio “por extragdo’ 2. Essa escolha nfo ¢, entretanto casual, Nasce, antes, da minha ccuriosidede pelo que se tem chamado “criago" na linguagem também da refiexéo sobre o estimulante trabalho de Eunice Pon. tes (1980), Compe também a origem dessa reflexdo uma mesa: -redonda @ respeito de t6pico e comentdrio da qual participeram Eunice Pontes, Luiz Carlos Cagliari e Eduardo Guimardes. Acres- centaria, ainda 0 trabalho de Eunice Pontes de 1981, 3. Benveniste, @ meu ver, quando coloca a constituiggo da subjetivi ‘dade como propriedade fundamental da linguagem, parece consi: derar a linguagem de um nivel em que esses dois percursos no se texcluem, a0 contrério, s80 complementares. 4. Luiz Orlandi, tendo lido este trabalho, lembra que a tradi¢fo feno- ‘menoldgica, iniciada com Husserl,estabelece, entre outros, © con- ceito de pré-compreensio, visando tematizar um tipo de conheci- ‘mento pré-conceitual, pré-objetivo, um conhecimento lateral nfo 4 ainda fixado em formulagtes clarase distintas. Essa é uma perspec- tiva interessante, porque © que estamos tratando como polisseria esloca a importincia dada a linuagem conceitual e & razao. Por essa via, parece-me, podem-se explorar outras dimensbes da relacdo linguagem-pensamento. 5. Trata-se de Maria Augusta Bastos. Agradeco a ela a oportunidade do.exemplo. 6. Maria’ Fausta Castro Campos, em uma mesa-redonda sobre Repre- sentagdo e linguagem, em dezembro de 1980, organizada pelo C.L.E Unicamp, apresentou um trabalho chamado Linguagem, Operago © Representagio onde, falando sobre principios estruturantes da construco de justficativas, fala dos recortes em relago aos elos de cadeias causa. 7. Tratei mais explicitamente disso na andlise de conjuneSes enquan- to operadores de discurso (Orlandi, 1983), 8. Mais recentemente esto sendo publicados estudos de pardfrase fei- ‘tos na perspectiva da lingistica textual e do discurso. Um exemplo € 0 livro Paraphrase de Catherine Fuchs, PUF, Paris, 1982. 9. Veja-se a lingiistica histérica cléssica que tem trabalhado no per- curso da evolucdo, privilegiando as cristalizagbes. Nesse sentido, a LLingistica histérica é a histéria da Ifngua oficial (idioma histérico) 10. GF, 1, Voloshinov (1976) que coloca que o signo ¢ lugar (arena) de contronto, de luta de classes, 11, Desenvolvi esse aspecto da conseqiiéncia metodolégica da conside- +2¢30 da polissemia como inorente a linguagem em um trabalho ‘eujo titulo € “Tipologia de Discurso e Regras Conversacionais” (Orlandi, 1983). BIBL I OGRAFIA Ducrot, O. La Preuve et le Dire. Paris, Mame, 1973. Guimardes, E, “Estratégias de relaco e estruturacSo do texto”. In: E. Orlandi et al, 1981. Guimardes, E. “Tépico-Comentério © Argumentagio". Texto inédito apresentado em mesa-redonda no IEL, Unicamp, 1981a, Halliday, MA.K. “Language Structure and Language Function”. In: J. Lyons (1970). Halliday, M.A.K. @ Hasan, Cohesion in English. London, Longman, 1976. Lyons, J. 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