You are on page 1of 4

A lição de Juruti Velho

a história que Avatar conta no cinema é vivida pelos tradicionais da Amazônia

Fagner Garcia Vicente*

A multinacional mineradora ALCOA, todos os dias, ensina muito aos moradores das
margens do Lago Juruti Velho. Ensina sobre o valor do dinheiro. Ensina que o minério
vermelho enterrado sob a floresta vale mais do que as areias brancas e as águas azuis
que formam a paisagem paradisíaca habitada imemorialmente por Mundurukus e
Muirapinimas. Ensina – como um dia já ensinaram os primeiros colonizadores
europeus – sobre a importância de eletrodomésticos, tênis americanos e outras
quinquilharias modernas. Pacientemente, os tradicionais de Juruti Velho têm ouvido os
especialistas contratados pela empresa explicarem que seu modo de vida ancestral é
rudimentar, ultrapassado, insustentável.

Realmente, não se pode subestimar a capacidade de aprendizado do caboclo


amazônida. Mesmo vivendo na distante fronteira entre os maiores estados brasileiros,
nesse afluente do Amazonas em que, há poucos anos, transações monetárias ainda
eram raríssimas e onde as necessidades da população sempre foram supridas pelo rio
e pela floresta, o povo de Juruti Velho entendeu perfeitamente a lição da ALCOA.
Entendeu e contestou. E a gigante multinacional foi obrigada a retribuir a paciência
cabocla e ter, ela também, a sua lição.

Primeiro passo de uma vitória: a conquista do território

O mais novo mega-empreendimento minerário da Amazônia instalou-se há cinco anos


no município de Juruti, no extremo oeste do Pará, mais precisamente na região
conhecida como Juruti Velho, na qual vivem mais de duas mil famílias tradicionais,
distribuídas em dezenas de comunidades. A mineradora ALCOA-OMNIA explora,
desde o final de 2009, as jazidas de bauxita que se estendem em grandes áreas de
florestas, na calha sul do rio Amazonas. Contudo, para que o minério começasse a ser
extraído, a empresa foi obrigada a entabular – pela primeira vez na história de
empreendimentos desse tipo – uma longa e tensa negociação com a entidade
representativa dos moradores da região, obrigando-se, não apenas às compensações
sócio-ambientais previstas na legislação, mas ao pagamento de perdas e danos e
participação nos resultados da lavra. Um precedente inédito em se tratando exploração
de recursos naturais em terras públicas habitadas por população tradicional.

Essa vitória dos povos tradicionais é fruto de um processo iniciado antes mesmo das
primeiras prospecções da ALCOA em Juruti Velho, quando as comunidades
Mundurukus e Muirapinimas, com participação fundamental das Pastorais católicas
ligadas à Prelazia de Óbidos, começaram a se organizar para reivindicar a garantia dos
seus territórios ancestrais. Em 2005, o objetivo é parcialmente alcançado, com a
decretação do Projeto de Assentamento Agro-Extrativista Juruti Velho, pela recém
criada Superintendência Regional do INCRA no Oeste do Pará. Essa modalidade de

*
Chefe da Divisão de Desenvolvimento da Superintendência Regional do INCRA no Oeste do Pará.
Projeto de Reforma Agrária, voltada para a garantia de territórios tradicionais (cujo
histórico é de apropriação por agentes externos), deu base para a ocorrência de dois
fatores fundamentais na luta que se desenrolaria nos próximos anos: a aplicação
maciça de políticas públicas pelo governo federal, através do INCRA, e o
reconhecimento dos moradores, mediados por suas organizações sociais, como
protagonistas políticos inarredáveis.

Bauxita sangrenta: negociação, enfrentamento e a atuação do INCRA

Luciano Brunet, então Superintendente Regional do INCRA e mediador das


negociações que precederam a instalação do empreendimento minerário, não cansava
de contar a cena que presenciara numa das muitas reuniões entre empresa e
moradores: Gerdeonor Pereira, presidente da Associação Comunitária do PAE Juruti
Velho (ACORJUVE), ao perceber que um dos Secretários do Governo do Estado havia
faltado, antes mesmo do início da reunião, ergue-se e declara “Não há negociação
hoje”. Imediatamente, os outros treze membros da diretoria da entidade representativa
levantam-se e acompanham o presidente para fora do recinto, deixando, boquiabertos
na sala, executivos da ALCOA, Secretários e assessores do Governo do Estado do
Pará, diretores de órgãos do Governo Federal, imprensa e demais envolvidos no
evento.

Noutra oportunidade, em reunião com a cúpula do governo estadual, vi o principal líder


dos Muirapinimas e Mundurukus, sem alterar seu tom de voz, avisar: “Essa bauxita vai
sair com sangue. Vai ser bauxita sangrenta.” Gerdeonor alertava que, nos termos em
que estava posta a discussão à época, a paciência do povo de Juruti Velho se
esgotaria e fatos como a ocupação da mineradora, ocorrida em 2008, se repetiriam.
Outro diretor da ACORJUVE, com toda tranqüilidade do mundo, me afirmou: “Nos
amarraremos aos trilhos um a um. A cada dia, o trem da ALCOA terá que passar por
cima de um de nós pra sair daqui.”

Foram muitos enfrentamentos até os representantes dos comunitários serem


respeitados como interlocutores principais da negociação. Não era algo habitual que
grandes empresas tratassem de seus negócios com moradores de comunidades rurais
atingidas pelo empreendimento. O diálogo sempre fora desviado. INCRA, FUNAI e
outras instâncias governamentais sempre foram a contraparte, os “representantes” do
território afetado, enquanto que a população não passava de um ator secundário,
quase um efeito colateral do empreendimento. Mesmo a instalação da usina
hidrelétrica de Belo Monte está sendo conduzida nesses termos. O reconhecimento da
ACORJUVE foi construído aos poucos, a partir do trabalho de base das Pastorais, da
atuação de assessores jurídicos populares, num processo em que a ação do INCRA foi
fundamental.

Superintendente Regional de 2008 ao início de 2010, Luciano Brunet pregava a


necessidade de “trabalharmos no sentido de dar musculatura aos movimentos da
região”. O caso de Juruti Velho é exemplar. Para que os comunitários pudessem fazer
frente às pressões econômicas da ALCOA, o INCRA priorizou a aplicação de políticas
públicas no PAE. Enquanto a mineradora acenava com 3 milhões como compensação
pelos impactos de sua instalação, a Superintendência Regional destinou, por meio da
ACORJUVE, quase 35 milhões, em alimento, instrumentos de trabalho, equipamentos
produtivos e habitações. Ao passo que o “trabalho social” da empresa
convenientemente apregoa a necessidade de abandonar as “atrasadas” atividades
econômicas extrativistas (as quais são extremamente impactadas pela mineração), o
INCRA estimula o desenvolvimento de alternativas econômicas baseadas na própria
cultura produtiva sustentável dos povos amazônidas e nessa direção são orientadas a
Assessoria Técnica e a aplicação dos Créditos.

Todavia, além das ações de desenvolvimento, importante foi a agilidade do INCRA em


emitir – vencendo os entraves burocráticos internos – o Contrato de Concessão de
Direito Real de Uso (CCDRU) em nome da ARCOJUVE e legitimando-o frente às
inúmeras contestações que recebeu. Pela primeira vez um título coletivo foi emitido
pelo INCRA, garantindo aos tradicionais, não só o domínio sobre seu território, mas a
participação nos resultados da lavra. A Autarquia não estava preparada à época para
lidar com situações como essa. O então Superintendente Substituto, Dilton Tapajós,
elaborou a minuta de contrato, a qual, mais tarde viria a ser adotada nacionalmente
pelo Instituto. Em setembro de 2009, uma vitória fundamental: o governo do Estado do
Pará condicionava o licenciamento ambiental do empreendimento à observância dos
termos do CCDRU. A mineradora era obrigada a reconhecer os tradicionais como
legítimos proprietários daquelas terras.

Desafios do futuro imediato: mudanças e desenvolvimento

Quanto vale o último olhar para uma paisagem à qual se está costumado desde o
nascimento? Quanto vale a perda de laços ancestrais com a natureza? Como se
quantifica, como se paga em dinheiro a extinção do modo de vida de um povo? Parece
o argumento do filme hollywoodiano Avatar, mas são questionamentos levantados no
estudo que visa calcular as perdas e danos da população de Juruti Velho.

Quem já viu o tamanho do desmatamento provocado pela extração de bauxita


(“Garimpo é garimpo. Quando acaba, deixa um buraco ”, lembrava um diretor do
INCRA durante a ocupação da ALCOA), não acredita no discurso dos engenheiros da
multinacional, segundo o qual “em 20 anos, está tudo bem de novo”. A relação entre a
população amazônida e a natureza é complexa em sua sustentabilidade. O peixe tirado
do rio, o fruto da floresta, o animal caçado, os detritos gerados, as áreas desmatadas,
as áreas recuperadas, tudo isso faz parte de um frágil equilíbrio alcançado em
centenas de anos de sobrevivência da população tradicional, na preservação e no
resgate da cultura indígena ancestral. Essa sustentabilidade ainda não foi alcançada
por nenhuma das avançadas técnicas produtivas que tanto a apregoam.

Nessa simbiose homem-floresta estão contidas as relações produtivas e sociais. É um


modo de viver cujos valores não encontram uma equivalência monetária tão facilmente.
Mas o progresso, a modernização, a civilização são implacáveis. Os grandes
empreendimentos – eterna fórmula de desenvolvimento para a Amazônia – estão,
irremediavelmente, extinguindo esse modo de vida, como o sistema colonial extinguiu o
modo de vida dos povos pré-colombianos.
O caso de Juruti Velho é tão emblemático porque traz consigo a fagulha da resistência.
Embora, garimpo seja garimpo e o buraco esteja sendo cavado, pela primeira vez, há
uma possibilidade de que não ocorra apenas a extinção pura e simples daquele modo
de vida, mas, sim, sua transformação (inevitável), num processo em que o povo tem
protagonismo garantido. Mais: o exemplo está dado. Mostrou-se que é possível fazer o
enfrentamento. Nenhuma outra mineradora poderá, como sempre fizeram,
desconsiderar a população atingida por seus empreendimentos.

A lição de Juruti Velho é ampla. Ao Estado, mostra que é possível, ainda, governar
para transformar; que temos instrumentos e capacidade de intervir decisivamente na
realidade amazônica e pautar outro modelo de desenvolvimento, mais sustentável e
com mais controle social.

Aos movimentos fica o exemplo de capacidade de luta e de negociação, calcado na


coesão, na participação e na articulação com outros agentes, como a Igreja
progressista e a assessoria jurídica popular.

E mesmo aos pragmáticos executivos das multinacionais mineradoras, pelo menos um


ensinamento os tradicionais de Juruti Velho hão de deixar: nem tudo que tem valor
pode ser trocado por dinheiro.

You might also like