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Singularidades das lógicas

25-05-2008

por Monica Aiub

Filosofia
Dicas para quem busca seu bem-estar no movimento da vida

Quando descrevemos a metodologia terapêutica utilizada em


filosofia clínica (veja o artigo “Como funciona a prática da
filosofia clínica”, no final deste artigo), afirmamos que os
procedimentos clínicos são encaminhados de acordo com os dados
coletados na pesquisa feita a partir da historicidade da pessoa.

"Se não questionamos nossas formas de pensar, se não nos


dispomos a experimentar outras formas, podemos permanecer
no erro, no engano, sem que consigamos nos dar conta dele"

Assim, alguns leitores poderiam imaginar uma pessoa contando


sua história de vida, ordenada e cronologicamente, formulada em
um discurso lógico racional bem estruturado, completo – com
começo, meio e fim –, elaborado com termos claros e precisos,
unívocos, ou seja, um trabalho que se passa no âmbito lógico-
racional.

A pessoa imaginada poderia até, falar sobre emoções, derramar


algumas lágrimas ou esboçar sorrisos, gargalhar talvez. Mas tudo
isso seria claramente compreendido pelo filósofo clínico, pois seria
acompanhado de um discurso racional perfeito. Se não o fosse,
seria “corrigido” pelo filósofo. Este teria o papel de acompanhar o
raciocínio do partilhante (paciente), apontando os “erros lógicos”, os
“raciocínios sofismáticos”, as falhas no argumento. Poderia também
apontar a ausência de motivos suficientes para se adotar uma
crença, ou para se tomar uma decisão.

É isto o que acontece nos consultórios de filosofia clínica? Não


necessariamente. Há pessoas que, de fato, contam suas histórias
com discursos logicamente bem elaborados, claros, precisos. Mas
nem sempre é assim. Em boa parte dos casos – como já apontaram
filósofos como Wittgenstein, Searle, Strawson, entre outros – o
discurso informal não é formulado segundo as regras da lógica e da
gramática. Assim sendo, nem sempre é possível – e na maioria das
vezes não o é – tratar a fala do partilhante considerando a correção
das construções lógico-lingüísticas.

Investigações filosóficas

Outra dificuldade, também já apontada por Wittgenstein no livro


Investigações Filosóficas, diz respeito ao significado dos termos e
expressões. Segundo ele, o significado das palavras encontra-se no
uso. Estabelecemos jogos de linguagem com regras específicas em
cada contexto. Assim, para significar a fala do partilhante, o filósofo
clínico necessita, antes, conhecer as regras do jogo de linguagem
utilizado. Para tal, a análise do discurso, assim como a pesquisa
sobre o significado dos termos utilizados para compô-lo, é de
fundamental importância.

Enquanto a pessoa conta sua história, são observados os termos e


cada um dos contextos nos quais aparecem. Os termos mais
utilizados, os termos relativos ao Assunto (Imediato ou Último),
ainda que pareçam ter seus significados apresentados de forma
clara, devem ser pesquisados. A pesquisa inclui também os termos
utilizados em contextos inusitados, em sentidos específicos, e
termos que pareçam conter contradições. Esse procedimento de
pesquisa é denominado enraizamentos e consiste numa pesquisa
epistemológica pela origem e pelo significado de cada termo para o
partilhante.

Durante os enraizamentos também são observados os padrões das


Categorias, Tópicos e Submodos, os choque existentes, as
interações tópicas. Em outras palavras, o filósofo clínico observa
como se dá o movimento existencial da pessoa, através de uma
análise de seu discurso.

Em alguns casos, trata-se, como apontado acima, de identificar


problemas advindos de uma má formulação dos raciocínios e/ou
argumentos. A partir desta identificação, provocar novas formas de
ordenação das idéias, questionando o modo como são encadeadas.
Mas na maior parte dos casos, não se trata de apontar erros
lógicos, mas de encontrar formas para lidar com as questões da
vida. Assim, muitas vezes, ao invés de buscar a correção lógica
segundo um modelo formal, o filósofo clínico precisará conhecer a
maneira como a pessoa organiza e encadeia suas idéias.
Filosofia das lógicas

Susan Haack, no livro Filosofia das Lógicas, explica que um sistema


formal é uma maneira de representar os argumentos informais, de
modo a permitir sua validação. Contudo, mostra-nos diferentes
sistemas formais a partir dos quais é possível avaliar um argumento
informal. Em seu estudo, lista quinze diferentes sistemas lógicos,
classificados entre as lógicas: tradicional, clássica, ampliadas,
alternativas e indutivas.

Considerando apenas a lógica clássica, que respeita os princípios


de identidade, não contradição e terceiro excluído, Susan Haack
analisa um mesmo argumento fazendo uso do sistema de cálculo
sentencial bivalente e cálculo de predicados. Apesar dos sistemas
citados respeitarem os mesmos princípios e serem classificados
como lógica clássica, num sistema o argumento é válido e no outro
não. Com isso ela nos provoca a pensar que a validação de um
argumento depende do sistema formal utilizado.

Diante do exposto, fica explícito porque não é o caso do filósofo


clínico avaliar e validar ou não um argumento segundo um sistema
formal previamente determinado. Seu papel é, ao contrário,
observar o sistema de validação utilizado pela pessoa, e os
resultados advindos de tal sistema, diante dos contextos vividos e
das necessidades apresentadas.

É preciso destacar, ainda, que uma mesma pessoa pode fazer uso
de diferentes sistemas formais para tratar diferentes questões, ou
para tratar a mesma questão em diferentes contextos ou condições,
ou ainda, sob o impacto de alguns tópicos, alterar o sistema formal
utilizado.

É muito comum, nas instâncias sociais, elegermos determinadas


formas como sendo as mais adequadas. Muitas vezes, não apenas
as mais adequadas, mas as únicas válidas, corretas. Em grande
parte das vezes a eleição é feita a partir de um padrão dominante,
ou seja, consideramos correto pensar da forma como pensamos.

Quando nos deparamos com alguém que pensa diferente, que


possui uma estrutura lógico-formal distinta daquela à qual estamos
habituados, não compreendemos, não aceitamos, julgamos,
imediatamente, que estamos certos e o outro errado. Tentamos, por
vezes, adequar, corrigir a estrutura do outro, buscando formas de
encaixar seu discurso no padrão pré-estabelecido por nós. Quando
não conseguimos, a reação costumeira é a exclusão. Se você
pensa diferente, está errado, é incompreensível, ou é louco.
Mas qual o critério para considerarmos algumas formas de
raciocínio mais adequadas que outras? Não estaríamos
considerando adequada uma forma apenas por ser ela a que
escolhemos para nós, ou porque crescemos aprendendo ser a
única possível?

Pensamento e flexibilidade

Muitas vezes nosso engano, nosso erro, é fruto de uma estrutura


lógica a partir da qual pensamos o mundo. Se não questionamos
nossas formas de pensar, se não nos dispomos a experimentar
outras formas, podemos permanecer no erro, no engano, sem que
consigamos nos dar conta dele. Por outro lado, o fixar-se numa
única e mesma forma poderá limitar nossa possibilidade de
compreensão do mundo.

Você já observou as formas como organiza e encadeia seus


pensamentos? Já se deparou com alguém cujas formas de pensar
são completamente distintas das suas? O que aconteceu?
Ao pesquisar os jogos de linguagem utilizados pelo partilhante, o
filósofo clínico observa não somente o significado das palavras em
cada contexto, mas também as regras lógicas de elaboração da
linguagem. As diferentes lógicas utilizadas por cada um, em cada
diferente situação. Não se trata de escolher a melhor forma, a mais
perfeita, mas de fazer uso de todas as formas possíveis para aquela
singularidade.

Referências Bibliográficas:

HAACK, Susan. Filosofia das Lógicas. São Paulo: UNESP, 2002.

SEARLE, J. Expressão e Significado. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

STRAWSON, P. Análise e Metafísica. São Paulo: Discurso, 2002.

WITTGENSTEIN. L. Investigações Filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2005.


Monica Aiub
é Filósofa Clínica e Mestre em Filosofia da Mente (UFSCAR-SP)

Fonte:
http://www1.uol.com.br/vyaestelar/filosofia.htm

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Como funciona a prática da filosofia clínica


por Monica Aiub

Vários leitores perguntaram sobre o funcionamento da filosofia


clínica, em especial a partir do artigo “Somos um ou vários?” -
clique aqui. A principal questão é: como é possível um atendimento
em Filosofia Clínica diante de tamanha modificação? Para
responder a questão faz-se necessário primeiro apresentar
brevemente o funcionamento da filosofia clínica.

A filosofia clínica é uma terapia que faz uso de posturas e métodos


filosóficos para auxiliar a pessoa a lidar com suas questões
existenciais. A pessoa que procura o consultório de um filósofo
clínico é denominada partilhante, porque participa ativamente de
todo o processo terapêutico, partilhando sua história, suas
questões, suas inquietações, suas formas de vida.

Há muitos possíveis motivos para uma pessoa procurar o


consultório de filosofia clínica, e isso não há como saber
previamente. O motivo, a queixa apresentada pelo partilhante, é seu
Assunto Imediato. Quando a pessoa chega ao consultório, o filósofo
clínico contextualiza o Assunto Imediato apresentado,
estabelecendo um primeiro contato com o partilhante.

“Sei que nada sei, de tudo quanto sei”. O princípio délfico serve de
inspiração ao trabalho do filósofo clínico, que assume, diante da
pessoa e de suas questões, o princípio filosófico do não saber, da
dis-posição para coletar dados, para buscar o máximo possível de
elementos para obter um mínimo de compreensão acerca do
exposto. Não é possível pensar sobre a questão proposta sem um
contexto, considerá-la isoladamente. Contextualizar somente a
questão apresentada também não permite, muitas vezes, encontrar
elementos para enfrentá-la ou para lidar com ela.

Como o filósofo clínico coleta os dados?

Compreendendo que cada um de nós se constrói a partir de suas


vivências, de sua própria história; compreendendo também que
cada uma de nossas questões possui uma gênese, o filósofo clínico
solicita ao partilhante que conte sua historicidade, a fim de obter os
dados necessários para o encaminhamento do trabalho.

Enquanto o partilhante conta sua história de vida, o filósofo clínico


procura interferir o mínimo possível, acompanhando atentamente e
cuidando para que a pessoa dê continuidade a seu histórico. Essas
mínimas interferências são denominadas agendamentos mínimos.
Ao mesmo tempo, o filósofo clínico observa dados que comporão a
leitura clínica, a partir da metodologia da clínica filosófica, que
permitirá a compreensão de modo mais amplo das formas de ser do
partilhante.

Metodologia

A metodologia filosófico-clínica é composta por três eixos


fundamentais que se entrecruzam: Exames Categoriais, Estrutura
de Pensamento e Submodos.

Os Exames Categoriais são exames iniciais que – assim como


definido no conceito de categoria – permitem conhecer, mas limitam
o conhecimento. Ou seja, eles consistem numa primeira
abordagem, onde é observado o entorno do partilhante. As
categorias observadas são: Assunto (Imediato e Último),
Circunstância, Lugar, Tempo e Relação.

Na categoria Assunto, como já vimos, o Assunto Imediato é a


queixa inicial, e o Assunto Último, a questão a ser trabalhada em
clínica. Há casos em que ambos são coincidentes, mas também há
casos em que são totalmente diversos. Tanto o Assunto Imediato
quanto o Assunto Último são sempre definidos pelo partilhante. Se o
Assunto Último, ou seja, o objetivo da clínica, o para onde ela se
dirige, é determinado pelo partilhante, então podemos afirmar que,
em filosofia clínica, todo o processo terapêutico depende da pessoa
e é definido por ela.

Na categoria Circunstância, o filósofo clínico observa os contextos.


Afirmou o filósofo Ortega y Gasset, em Meditações do Quixote: “Eu
sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela não me salvo
eu”.
A circunstância é todo o entorno, não apenas o ambiente, o entorno
geográfico, mas a cultura, a sociedade, tudo o que circunda a
pessoa. A categoria Circunstância permite contextualizar as
questões e os modos de vida do partilhante, permite situar os
problemas levantados a fim de identificar possíveis
encaminhamentos.

Na categoria Lugar é observado o lugar existencial. Como a pessoa


se sente nos ambientes que freqüenta, como se relaciona com tais
ambientes, em que lugares sente-se bem ou mal, como se sente
habitando seu próprio corpo, sua casa, sua cidade, o planeta...
Dados sensoriais e abstratos são aqui observados.

A categoria Tempo cuida das relações entre o tempo cronológico e


o tempo subjetivo. Duração: instantes que duram uma eternidade,
vários anos que se passaram como se fosse um segundo, toda a
vida, sempre, nunca, eternamente. Idades: quantos anos você tem?
E com quantos você se sente? Esses modos de viver o tempo
variam de acordo com os contextos, mudam com a categoria lugar?

Em Relação, são consideradas as diferentes relações que o


partilhante mantém: com ele mesmo, com o mundo, com os outros,
com pessoas, instituições, animais de estimação, objetos,
atividades, e outras formas de relação encontradas. São
observadas as qualidades das relações.

Se o leitor acompanhou atentamente até aqui, pode perceber que


não há como separar cada uma das categorias, a distinção é
apenas didática. Elas são formas de conhecer, limites do
conhecimento, e constituem os contextos nos quais o partilhante se
constituiu, construiu a si mesmo.
Pensar é criar

Os modos de ser do partilhante são denominados Estrutura de


Pensamento. Uma estrutura que considera relações, movimentos
existenciais, um constante devir, um tornar-se contínuo.
Pensamento aqui pode ser compreendido no sentido utilizado por
Deleuze: pensar é criar. Na metodologia da Filosofia Clínica há 30
tópicos compondo a Estrutura de Pensamento. Neles encontramos
desde uma visão de mundo até sensações, emoções, formas e
veículos de expressão, valores, formas de raciocínio, de
intencionalidade...

O que importa ao filósofo clínico não é categorizar, classificar, mas


compreender os movimentos existenciais. Assim, ele observa o que
se passa com o partilhante, como ele vivencia as situações de seu
entorno, como elas o afetam, o que lhe chama a atenção, como ele
constrói seus pensamentos, como sente, como vive, como as
diferentes relações interferem em sua constituição... e todos os
dados que se destacarem nesse processo de observação.
Submodos

No eixo Submodos, modos, procedimentos subordinados aos eixos


anteriores, o filósofo clínico observará como o partilhante lida,
informalmente, com as questões de sua vida. Os submodos são
também os procedimentos clínicos, as possibilidades de atuação,
que serão provocadas no partilhante. Há, no instrumental da
filosofia clínica, 32 Submodos. São formas vazias, que só fazem
sentido quando devidamente acompanhadas dos conteúdos aos
quais se referem.

Os tópicos da Estrutura de Pensamento e os Submodos são


observados considerando-se três critérios: Assunto (Imediato ou
Último), ou seja, a queixa; dado padrão – o que se repete a ponto
de constituir um padrão no modo de ser, sentir e pensar do
partilhante –, e dado atualizado – como ele está hoje.

Assim, diante do problema (Assunto), faz-se um estudo do entorno


(Exames Categoriais), dos modos de ser (em devir) do partilhante
(Estrutura de Pensamento) e dos Submodos Informais (maneiras
que a pessoa possui para lidar com suas questões).

Mas o leitor deve estar se perguntando: somente enquanto a


pessoa conta a história, é possível observar tudo isso?

Experimente iniciar a narrativa de sua história de vida. Muito


provavelmente você observará que escolheu um percurso e foi
contando sua história através dele. Muitas coisas ficaram para trás,
muitos dados foram negligenciados. Para oportunizar a lembrança e
a apresentação desses dados, após o partilhante relatar sua
história, do nascimento aos dias atuais, o filósofo clínico pedirá que
conte mais detalhes, outros dados, de cada período narrado em seu
histórico. Assim, dividirá a história e pedirá que conte outra vez.
Após subseqüentes divisões, quando a pessoa apenas estiver
repetindo os dados já apresentados, iniciam-se os enraizamentos:
procedimentos epistemológicos de busca de conteúdos de um
termo, estudo das formas dos movimentos existenciais, pesquisa
acerca do significado de um termo.

Em outras palavras: enquanto o partilhante narra a história, o


filósofo clínico esboça uma leitura, a cada nova consulta ele revê e
atualiza seu esboço, que sempre será um esboço. Com os dados
de tal esboço, ele terá elementos para provocar o partilhante a
pensar em sua própria existência e tomar para si a responsabilidade
pela construção de seus modos de vida.

Assim, é possível ao filósofo clínico acompanhar as várias


manifestações, os vários eus, as diferentes formas de ser que
habitam a cada um de seus partilhantes.

As formas de leitura e trabalho em filosofia clínica serão melhor


detalhadas em próximos textos.

Referências Bibliográficas:

ORTEGA Y GASSET, J. Meditações do Quixote. Rio de Janeiro:


Ibero, 1967.
Para saber mais:
AIUB, M. Para Entender Filosofia Clínica: o apaixonante exercício
do filosofar. Rio de Janeiro: WAK, 2004.
PACKTER, L. Filosofia Clínica: Propedêutica. Porto Alegre, AGE,
1997. (disponível no site www.filosofiaclinica.com.br)

Fonte:
http://www1.uol.com.br/vyaestelar/filosofia_clinica.htm

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