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Miopia tem cura?

Roberto Menezes

Não tem uma vez que não aconteça. Sempre que acordo e abro os olhos, o primeiro
pensamento que me vem é, “Cadê meus óculos?” Sou míope. O que eu enxergo além do meu braço,
quando estou sem óculos, é uma borra de cores. Parece que as cores rompem os contornos das formas
e se misturam em uma pintura tridimensional sem foco. E se olho para mais longe, a confusão quer se
ampliar e, assim, sem óculos não me atrevo a sair de casa. Sou quase cego sem essas lentes.
Hoje quando acordei, procurei os óculos e eles não estavam lá onde sempre ponho. Geralmente
alguém me socorre; alguém que enxergue além de dois palmos. Mas hoje eu estava só. Se não
existissem óculos, é certo que há muito eu estaria acostumado com a situação, assim como os cegos.
Porém me apavoro só com a idéia de continuar assim, quero os meus óculos. Geralmente fecho os
olhos e espero, vou dormir mais um pouco. Nos sonhos não uso óculos, enxergo o que quero, como
quero. Hoje não foi dia para esticar a soneca. Não esperei pelo bom samaritano que não iria chegar.
Tive que levantar e ir palpando as paredes, até chegar nas reentrâncias e saliências do mar de objetos
sobre a mesa desarrumada; com os olhos bem perto, para trazer à luz duas lentes transparentes, presas
a duas hastes metálicas invisíveis no meio de tanta bagunça.
Imagine um mundo em que todos tivessem um tipo diferente de miopia, uma miopia extrema.
Explico: depois de certa distância (digamos, um metro) não se enxergasse nada e para esse mal não
existissem óculos. A visão estaria encarcerada em uma esfera de um metro de raio. Nossos olhos
seriam o centro desta esfera; um abajur que iluminaria só dentro dela. Fora, a incerteza. Todos nesse
mundo teriam uma lanterna destas e mais nada. Se houvesse alguém sem esse problema, veria os
quase-cegos vagueando, caminhando de lá pra cá, de cá pra lá. Teriam que ver para crer. Muito
parecido com os cegos que iam vagando pela cidade em Ensaio sobre a Cegueira, a diferença é que os
quase-cegos conseguiriam ver, ainda que apenas de perto.
E se além de quase-cegos, todos fossem quase-surdos, da mesma maneira. Não se poderia
indagar, “tem alguém aí?”. Cada um seria um barco à deriva, que, quando em quando, por
coincidência, poderia se chocar com outra navegação. E nesse encontro, quando as esferas da
iluminação se coincidissem, não haveria mais cegueira, não haveria mais surdez, pois os dois estariam
perto o suficiente para se verem. Para continuar assim, perpetuar este instante, os que se esbarrassem
não poderiam mais se separar, ou correriam o risco de nunca mais se acharem como dois barcos no
meio do oceano depois que transpõem a linha do horizonte.
O horizonte. É, finalmente achei o meu par de óculos. Escorregadio, se meteu por baixo de
folhas amassadas de jornal. Pus no meu rosto e, tranqüilo, fui passear na orla. Na praia vazia, sentei na
areia, a fim de ouvir o som do quebrar das ondas. No entanto, me distraí com uma linha que se
estendia horizontal. Roubava as minhas vistas: a linha do horizonte.
A palavra horizonte vem do grego orizon que, como é de se esperar, significa limitar. Durante
milênios, o terror de qualquer cidadela desprovida de uma boa defesa era a possibilidade de surgir na
linha do horizonte algum batedor de uma tropa inimiga de tamanho e força incógnitos. Paliativos eram
tomados, como pôr torres de vigia para ampliar o raio de visão, que, mesmo assim, era limitado. E
muitas batalhas foram decididas por esta via, com a surpresa, pela terra ou pelo mar, do inimigo que
vinha por trás da linha do horizonte.
Eu, na praia, olhava a linha à minha frente, que mais do que dividir o mar do céu, me divida do
resto do mundo. Fiquei pensando quantos barcos poderiam estar além daquela linha: se havia algum
pescador arremessando suas redes aos peixes, se algum cargueiro viajava paralelo ao continente
escondido por trás do horizonte. Na areia, ao meu lado, havia um jangadeiro preparado para partir, ir
além, descobrir a minha linha. Eu quis ir com ele, até pedi . Ele, bom homem, negou educado. Sem
poder fazer nada, fiquei; ansiando para que da linha algo surgisse.
É de se imaginar o que a frota de Colombo sentiu ao desvendar o que estava coberto de trás do
horizonte que não se tinha ido. Também é de se imaginar o que os nativos da nova terra pensaram.
Estes, ao contrário dos espanhóis, não procuraram o que chegou na sua esfera de visão. Mas a
novidade veio até eles.
Quando Newton, no fim do século XVII, lançou luz para a criação do iluminismo, nos olhos de
uma civilização quase-cega foram postos óculos poderosíssimos. A ciência tornou-se a nova caravela
para romper linhas do horizonte, arrancar vendas. Por todos os lados. Na química, viu-se que a matéria
não nasce e não morre; na biologia, viu-se as células, criaram-se as vacinas; a geologia, que surgiu
nessa época, viu que a terra não pôde ser criada em sete dias; na astronomia viu-se que o sol era uma
estrela de quinta categoria. A novidade veio para todos, não apenas para quem foi atrás dela. Negá-la e
permanecer em ilusões era abraçar a estupidez. Na fé nas coisas que não se enxergavam.
Se sobre ombros se vê mais longe, imagine sobre ombros de gigantes. Respostas não levam ao
silêncio, levam a mais perguntas. E perguntas e mais perguntas vieram à tona. Muitos baús foram
remexidos atrás de óculos para elas. Viu Darwin a origem das espécies. Viram Rutherford e Bohr a
eletrosfera quântica. Viu Einstein a relatividade do movimento. Viram Flemming e Mendell o gene.
Viu Hubble o Big-Bang. Viram Crick e Watson o DNA. Viu Freud a partitura da consciência.
Para não se prolongar em lista de iluminações – que para mim está limitada à minha área de
conhecimento – basta dizer que a ciência e todas as revoluções que se sucederam por esses séculos
alargaram o horizonte para uma distância confortável. Porém, ainda restam infinitos horizontes que
não conseguimos romper.
Einstein disse: “Só há duas coisas infinitas: o Universo e a estupidez humana e quanto à
primeira não tenho a certeza”. Sobre o Universo ainda não se tem certeza, porque o que podemos ver
dele é só a distância que a luz percorreu desde a sua criação; nunca se saberá além disso. Já sobre a
estupidez humana, sou mais otimista do que Einstein, mas devo dizer que há muito estúpidos que, por
conveniência, querem permanecer sem enxergar um palmo à frente, mesmo existindo óculos para eles.
Há outros muitos que preferem inventar histórias de lugares que nunca foram, vendendo óculos que, ao
invés de alargar a visão, vão contra, distorcem.
Há quem sente na areia da praia e invente que no lado lá há sereias, monstros marinhos,
cidades submersas; que do no lado escuro da lua, um dragão e um santo estão em eternas competição.
Há quem acredite nas palavras do inventor, que tenha medo, que ajuste a sua vida em torno disso, em
um caso raro de causa e efeito, onde a causa não existe.
Depois de um dia inteiro, eu ainda estava na praia, procurando a causa de ainda estar ali. A
cinco quilômetros na minha frente, a linha do horizonte escurecia. Cansado de olhar para ela, desejei ir
até lá, nadar para muito mais do que cinco quilômetros, para além da miríade de linhas. Beber do leite
de nossa galáxia, desmanchar a beleza das nebulosas e pendurar minha rede na orla do horizonte do
Universo, e ali descansar para outras jornadas. A certa altura, esqueceria que precisava de óculos para
ver, mas eles estariam lá.
Miopia tem cura. Basta apenas encontrar as lentes certas, quase sempre elas existem.

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