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Desenvolvimento, capital social,

redes sociais e sustentabilidade


O conteúdo das minhas palestras no período 2003-2005

AUGUSTO DE FRANCO
Carta Capital Social 93 (01/09/2005)

Carta Capital Social era uma comunicação pessoal de Augusto de


Franco enviada quinzenalmente, desde 2001, para milhares de
agentes de desenvolvimento e outras pessoas interessadas no
assunto, do Brasil e de alguns países de língua portuguesa e
espanhola. A Carta Capital Social - originalmente chamada Carta
DLIS - passou a se chamar, a partir de 2006, Carta Rede Social. A
penúltima Carta Rede Social, de número 209, foi enviada para 10 mil
destinatários em 28/02/2010. A última carta – Carta Rede Social 210
– ainda será enviada, explicando os motivos pelos quais o autor
abandonou esse tipo de mídia (e-mail) um-para-muitos.

Nosso tema nestas cartas é o desenvolvimento; quer dizer, a


sustentabilidade.

Vou tentar resumir, nesta ‘Carta Capital Social 93’, de modo bastante
simplificado, o que venho dizendo sobre o assunto, em aulas e
palestras que tenho ministrado em vários lugares do Brasil, nos
últimos dois anos (2003-2005).

A DIFERENÇA ENTRE DESENVOLVIMENTO E CRESCIMENTO


ECONÔMICO

Começo dizendo que desenvolvimento não é a mesma coisa que


crescimento econômico. Mostro que a velha implicação –
‘Crescimento => Desenvolvimento’ – não está correta.

Para ilustrar essa desconstrução da velha cartilha economicista cito


freqüentemente o exemplo do Brasil, que foi campeão de crescimento
econômico, sobretudo no período que vai de 1850 a 1980. Digo que
quando chegamos no início dos anos 80, do século passado, éramos a
oitava economia do mundo (medida pelo valor do PIB, que não é uma

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medida de prosperidade econômica) e também éramos o país do
mundo onde se verificava o maior hiato, o maior distanciamento, o
maior abismo, entre o valor do PIB e os índices de desenvolvimento
social.

Assinalo que o Brasil jamais foi o país com piores índices de


desenvolvimento social do planeta, mas considerando o tamanho de
nossa economia nenhum país do mundo apresentou tamanha
defasagem entre crescimento e desenvolvimento. Assinalo, de
passagem, que todo desenvolvimento é desenvolvimento social (de
vez que o conceito de desenvolvimento se aplica a sociedades
humanas) e que, assim, não pode haver nenhum tipo de
desenvolvimento se não houver desenvolvimento social. Reafirmo
que fomos os campeões não apenas da desigualdade de renda, mas
da disparidade entre os macronúmeros da economia e a qualidade de
vida e de convivência social. Concluo dizendo que, se é assim, temos
a obrigação de investigar as relações entre crescimento e
desenvolvimento.

A EQUAÇÃO COMPLEXA DO DESENVOLVIMENTO

Bom, essa é a introdução. Vem então a primeira parte, na qual


começo a investigar o que é o desenvolvimento, tentando mostrar
quais os fatores que comparecem na equação do desenvolvimento.
Mostro que temos os fatores – ou variáveis – propriamente
econômicos, como a renda (o produto) e a riqueza (a propriedade
produtiva). Em outras palavras, temos, no mundo das variáveis
econômicas, dois capitais propriamente ditos: o capital financeiro e o
capital físico (compreendendo o que se chama de capital produtivo ou
capital empresarial). Evidencio a diferença entre renda e riqueza.
Mostro que a concentração de renda no Brasil, que é espantosa, não
é acompanhada de números menos espantosos sobre a concentração
de riqueza.

Feito isso, mostro que a equação “não fecha” se não considerarmos


também vários fatores extra-econômicos, que funcionam como se
fossem outros tipos de capital. O primeiro desses fatores –
considerados em geral como externalidades pelo pensamento
econômico – é o chamado capital natural (e a palavra capital é
empregada aqui em sentido metafórico, para chamar a atenção de
que o meio ambiente natural, os recursos naturais herdados,
funcionam também como um tipo de capital, embora não o sejam
stricto sensu). O capital natural (não com esse nome, mas como
“meio ambiente” ou “meio ambiente natural”) é o primeiro fator
extra-econômico porque foi o primeiro a ser levado em consideração

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pelos estudiosos do desenvolvimento, pelos economistas, pelos
policymakers, pelas instituições de apoio e fomento ao
desenvolvimento. O ar atmosférico, a água, sobretudo a água doce,
os recursos minerais, a fauna e a flora, os ecossistemas, os biomas,
enfim, todos esses recursos são “capitais”, no sentido de que são
fatores que comparecem na equação do desenvolvimento.

Em seguida, na ordem cronológica das descobertas, veio o chamado


capital humano. Ele é uma espécie de medida do desenvolvimento
humano e tem a ver com as condições necessárias para a reprodução
da vida humana e para a realização das potencialidades dos
indivíduos. Saúde, educação, segurança alimentar e nutricional e
outros fatores (como o empreendedorismo individual, como
capacidade de sonhar e correr atrás dos próprios sonhos) entram na
composição do capital humano. Advirto que o capital humano torna-
se um fator particularmente importante na transição, que estamos
vivendo, para uma sociedade do conhecimento. Do ponto de vista do
desenvolvimento, no século 21, o conhecimento é, sem dúvida, o
elemento mais importante na composição desse capital humano.

Por último, apresento um fator que só passou a ser considerado nos


últimos quinze anos: o chamado capital social. Digo que se o capital
humano é um conceito de fácil apreensão, quase intuitiva, o capital
social é uma idéia mais difícil de compreender. Antes de qualquer
coisa porquanto reina a confusão entre as realidades humana e
social. As pessoas imaginam que a sociedade é um conjunto de
elementos humanos e que sua dinâmica pode ser captada ou inferida
das características dos seres humanos que a compõem. Mas saliento
que não é assim. Digo que o social tem a ver com o que ocorre
‘entre’ as pessoas e não propriamente ‘nas’ pessoas.

Ao invés de apresentar uma definição formal de capital social, conto


então uma história, a história (ou melhor, a pré-história) do conceito
de capital social, antes que a expressão fosse cunhada – com o
sentido com que hoje a empregamos – no início dos anos 60 do
século passado, por Jane Jacobs.

TOCQUEVILLE E O CONCEITO SEMINAL DE ‘GOVERNO CIVIL’

Começo na primeira metade do século 19, com a célebre viagem de


Aléxis de Tocqueville à América. Tocqueville estava interessado em
observar a efervescência democrática da sociedade americana
daquela época. Faço um alerta que aquilo que chamou a atenção de
Tocqueville no final dos anos 20 do século 19 deveria ser alguma
muito diferente do que temos hoje nos Estados Unidos da Era Bush.

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Mas vou em frente, dizendo que o que mais chamou a atenção de
Tocqueville naquela velha e notável América (que havia realizado um
processo também notável de independência), sobretudo na região da
Nova Inglaterra, foi o espírito de associação, o vigor associacionista
bastante generalizado. Os americanos se associavam para fazer
quase tudo, em um grau jamais visto no velho mundo. Inclusive as
crianças se juntavam para brincar com as instituições republicanas,
encenando réplicas de parlamentos ao invés de forjarem espadas de
madeira para brincadeiras de cavaleiros e reinados. Reafirmo que o
interesse de Tocqueville era pela democracia à americana e que o
resultado de suas observações de viagem foram publicados em um
clássico da literatura política chamado “A Democracia na América”,
que veio à luz na segunda metade da década de 1830.

Mas aí paro para contar um caso particular narrado pelo viajante.


Estava ele andando pela rua quando, de repente, coube-lhe
presenciar um acidente de trânsito, o abalroamento de duas carroças.
Brinco que carroças, quando são muitas, também trombam e não
apenas os nossos velozes automóveis atuais. Aliás, lembro (dando o
devido crédito ao autor, Ladislau Dowbor, da PUC de São Paulo) que
a velocidade média das carroças deve ser mais ou menos uns 14 Km
por hora, justamente a velocidade média dos nossos carros na cidade
de São Paulo, o que é um excelente motivo para a reflexão sobre o
que chamamos de progresso.

Bom, mas aí as carroças se chocaram, uma delas virou, derramando


a mercadoria que levava e coisa e tal. Então Tocqueville ficou lá
observando o que ia acontecer em seguida ao tumulto. Ficou
esperando que alguém fosse chamar um policial ou, quem sabe, até
um juiz, para resolver aquela questão, aquele dilema da ação
coletiva.

Qual nada! O que Tocqueville observou foi coisa muito diferente. Os


circunstantes se reuniram espontaneamente em uma espécie de
comitê e chamaram os dois condutores das carroças, deram a palavra
a cada um deles, ouviram e sopesaram suas razões e, depois de
breve discussão, chegaram a um veredicto (que deve ter implicado
algum tipo de indenização do responsável pelo acidente, não me
lembro se o autor entra em tais detalhes). Resultado: todos
aceitaram a decisão coletiva, a aglomeração se desfez e a rua voltou
ao seu ritmo normal.

Tocqueville ficou tão impressionado com o fato, que cunhou uma


expressão para caracterizar aquele inédito comportamento coletivo.
Disse algo mais ou menos assim: “- Mas isso é o governo civil!”.
Então concluo a minha história dizendo que essa expressão “governo

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civil” (que não foi tão valorizada pelos leitores e estudiosos de
Tocqueville) é o antepassado, em linha direta, do conceito de capital
social.

Assinalo ainda que a expressão “governo civil” foi cunhada por


Tocqueville para designar a capacidade da sociedade humana de
gerar ordem espontaneamente a partir da cooperação. Mostro que as
pessoas que se juntaram para resolver o problema, ao invés de
apelarem para alguma entidade superior, para um terceiro
supostamente desinteressado ao qual caberia desempatar aquele
dilema, tomaram, elas mesmas, em suas mãos, a tarefa de buscar
uma saída. Reafirmo que isso significa auto-organização, ordem
emergente.

Às vezes, quando tenho tempo, mostro que Tocqueville não apenas


cunhou uma nova expressão senão que abriu uma linha de
pensamento sobre a sociedade civil, que na sua observação está
contida uma nova visão sobre a sociedade civil, diferente daquela de
Locke, de Hegel e de Gramsci e mais próxima daquela de John Stuart
Mill. Uma sociedade que subsiste por si mesma, que não é um
epifenômeno e que, portanto, isso também abre pistas para uma
teoria não-hobbesiana do Estado (de vez que, para Hobbes, sem um
terceiro supostamente desinteressado que tivesse, pelo monopólio do
uso da força, a tarefa de desempatar os dilemas da ação coletiva, os
seres humanos, deixados à sua própria sorte, não seriam capazes de
ordenar o seu comportamento e a sociedade acabaria se
transformando em palco de uma guerra de todos contra todos).

JANE JACOBS E O CONCEITO DE CAPITAL SOCIAL COMO REDE

Continuo então minha reconstrução histórica, pulando para os anos


50 do século 20. Falo do interesse de Jane Jacobs em explicar porque
certas cidades americanas pareciam vivas, florescentes, enquanto
que outras pareciam que estavam morrendo, fenecendo. Digo que o
interesse de Jacobs, embora ela não usasse, à época, a expressão,
era o desenvolvimento (visto como desenvolvimento urbano). Digo
ainda que Jacobs, a pensadora, ainda está viva, atualmente morando
no Canadá, bem velhinha mas ainda produzindo coisas bastante
interessantes sobre desenvolvimento sustentável.

Jacobs então vai fazer uma pesquisa empírica para tentar desvendar
o segredo da vitalidade das cidades. E descobre que naquelas cidades
que pareciam entidades vivas, efervescentes, com alto dinamismo
social, existiam, nos seus bairros e distritos, pessoas conectando-se
com pessoas, horizontalmente, voluntariamente, para discutir os

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problemas comuns, as questões coletivas relacionadas com o bem-
estar geral. E que, naquelas cidades que pareciam estar morrendo,
não se observava a ocorrência desse fenômeno. Conto que Jacobs
explicou a questão dizendo que essas redes sociais são o capital
social indispensável à vivificação (hoje diríamos, ao desenvolvimento)
das localidades. E assinalo que Jacobs, no início da década de 60 do
século passado, foi à primeira pessoa que empregou a expressão
capital social com esse sentido contemporâneo. Evidencio que ela foi
uma visionária. Quando muito pouca gente falava em rede social, ela
define um capital – quer dizer, um fator do desenvolvimento – como
rede. Não que a rede produzisse capital social, não foi isso que ela
disse. Para ela a rede era ‘o’ capital social.

Além disso, Jacobs teve uma intuição poderosa. Ela estimou que
bastavam 100 pessoas fazendo isso (quer dizer, se conectando
horizontalmente em rede para tratar dos assuntos comuns), para que
o efeito “vivificador” de sua atuação se fizesse sentir em uma
localidade mil vezes maior. Observo que Jacobs errou apenas por um
zero, porque não tinha ainda o instrumental conceitual, sobretudo as
ferramentas matemáticas, para justificar o seu insight. Não havia
ainda a Social Network Analysis, não havia a teoria dos grafos e não
havia os estudos de Duncan Watts sobre o “small world network” e
sobre a “refiação” em redes P2P.

Muito bem. Jacobs deu essa enorme contribuição, mas ela não a
traduziu em uma nova visão do desenvolvimento, capaz de afetar as
interpretações correntes, até o início da década de 1990.

Em 1989, com um célebre artigo de Coleman – que apenas


menciono, sem entrar no seu conteúdo – teve início a nova disciplina,
vamos dizer assim, do capital social. Nessa época um cientista
político americano, chamado Robert Putnam, já estava concluindo a
sua pesquisa na Itália.

A INVESTIGAÇÃO TOCQUEVILLIANA DE ROBERT PUTNAM NA


ITÁLIA

Conto então a história de Putnam, ou melhor, da viagem


tocquevilliana de Putnam, que, ao contrário do famoso viajante
francês, saiu do novo mundo em direção ao velho, para tentar
explicar porque certas localidades italianas tinham boa governança e
prosperidade econômica enquanto que outras não. Putnam queria
entender por que Milão é tão diferente de Cosenza, por que Bologna é
tão diferente de Palermo ou por que uma cidade qualquer do Veneto
recente é tão diferente de Salerno ao sul de Nápoles.

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Então, auxiliado por alguns acadêmicos italianos, Putnam se entrega
a uma pesquisa de campo exaustiva, que dura mais de década. E
descobre que, naquelas cidades italianas com prosperidade
econômica e boa governança (hoje diríamos, com bons índices de
desenvolvimento), havia uma história de organização da sociedade
civil. E descobre que naquelas localidades com baixos índices de
desenvolvimento, onde a sociedade civil foi menos ativa, menos
vibrante (talvez ele, Putnam, tenha dito menos organizada, porém
resisto bastante em usar tal expressão, preferiria dizer menos
conectada – embora o autor não tenha dito isso), tal fenômeno não
ocorria.

Mas o fato é que Putnam descobriu que sua constatação não era
fortuita, não se tratava de coincidência nem de uma constante
introduzida pelo modo de olhar. A presença de uma sociedade civil
forte era realmente um fator que acompanhava o nível de
desenvolvimento.

Conto que Putnam, no sexto capítulo do livro em que divulga a


pesquisa (o livro, lançado em 1993, tinha como título “Para que a
democracia funcione” e foi traduzido no Brasil, três anos depois, com
o título “Comunidade e democracia: a experiência da Itália
moderna”), mas dizia então que no sexto capítulo do seu livro
Putnam lança mão da hipótese do capital social (à época já se
construíam as primeiras teorias do capital social) para explicar por
que uma sociedade civil forte – uma cultura cívica e cidadã – é fator
indispensável à prosperidade econômica e à boa governança. Altos
níveis de desenvolvimento correspondem, assim, a um alto estoque
de capital social. Baixos níveis de desenvolvimento significam baixo
estoque de capital social.

Aí então explico que prosperidade econômica não é a mesma coisa


que crescimento econômico. Pode-se ter crescimento econômico com
baixo estoque de capital social, mas não desenvolvimento econômico,
o qual implica prosperidade econômica, quer dizer, diversidade de
empreendimentos, efervescência dos mercados, circulação de
mercadorias (de moeda inclusive), dinamização da vida econômica
como um todo.

Assinalo que Putnam, pelo menos até àquela época, não foi o criador
de nenhuma teoria do capital social, porém foi o principal divulgador
do conceito. A partir de sua pesquisa, “a ficha caiu” na cabeça de
economistas, policymakers, governantes, empresários e agentes de
organizações de apoio e fomento ao desenvolvimento. Pela primeira
vez de modo científico, se puder falar assim, aparecia um nexo entre
desenvolvimento (inclusive em termos econômicos) e organização da

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sociedade civil.

O CAPITAL SOCIAL, O ESTADO, O MERCADO E A SOCIEDADE


CIVIL

Mas por quê? O que a sociedade civil tem a ver com o chamado
capital social?

Explico então que o capital social se refere aos laços fracos (não
hierárquicos, não funcionais, não parentais ou consangüíneos) entre
pessoas, em conexões voluntárias, baseadas em reciprocidade,
cooperação, solidariedade. E esse fenômeno se manifesta na
sociedade civil em maior intensidade do que aquela se verifica nas
outras esferas da realidade social ou nos outros tipos de
agenciamento, como o Estado e o mercado.

Exponho assim o chamado esquema trinário de interpretação da


realidade social: primeiro setor (Estado), segundo setor (mercado) e
terceiro setor (sociedade civil). Argumento para mostrar que cada um
desses setores é caracterizado por uma “lógica” ou por uma
racionalidade própria: o Estado é normativo, o mercado é competitivo
e a sociedade civil é cooperativa – sempre chamando a atenção para
o fato de que esse é um esquema interpretativo e que, na realidade,
as coisas estão misturadas.

Ora, capital social é cooperação ampliada socialmente. Nada mais do


que isso. Mas a cooperação também ocorre dentro do Estado e dentro
dos entes de mercado. Assim, todos os setores produzem capital
social; nenhum deles, entretanto, no volume produzido pela
sociedade civil.

Adianto que o Estado pode induzir à formação de capital social


(sobretudo se fizer parcerias com a sociedade) mas também pode –
como ocorre freqüentemente – exterminar capital social. Aproveito
então para falar das quatro formas mais eficazes de exterminação de
capital social: o assistencialismo, o clientelismo, a centralização e a
introdução de uma dinâmica adversarial na base da sociedade,
explicando as características principais desses quatro exterminadores.

Em seguida falo que o mercado produz capital social, porém consome


mais do que produz. Advirto que, em geral, um bom mercado
competitivo deve ter como ambiente adequado uma sociedade
cooperativa. Que quem tem que ser de mercado é a economia e não
a sociedade. E que a tão falada competitividade sistêmica depende de
alguma coisa como uma cooperatividade sistêmica.

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Usando o exemplo de Fukuyama, tento mostrar por que os keiretsu
japoneses tiveram dificuldade de concorrer – em número de
inovações por segundo, vamos dizer assim – com o Vale do Silício.
Explico que no Vale do Silício, embora se tenha menos densidade de
capital humano, existe mais capital social, porquanto existem mais
conexões, as pessoas almoçam juntas, estabelecem laços fracos e
gratuitos de amizade e camaradagem, constroem canais por onde
trafegam informações etc.

Assim, digo, empresas imersas em ambientes sociais com baixo nível


de capital social têm mais dificuldades para sobreviver e competir.
Seus custos de transação são maiores, assim como são maiores as
margens de incerteza no que tange aos investimentos.

CAPITAL SOCIAL, EMPODERAMENTO E REDE SOCIAL

Continuo investigando o conceito de capital social. Mostro que, apesar


do nome conter a palavra ‘capital’ não é um conceito econômico. E
que apesar de conter a palavra ‘social’, não é um conceito
sociológico. Capital social é um conceito político porque significa um
outro tipo de poder, o poder de fazer, de empreender, de inovar e
não o poder de mandar em alguém. Mostro que esse poder é, na
verdade, um empoderamento, quer dizer, um encorajamento que flui
da sociedade para o indivíduo.

É a rede social que empodera os seus nodos. Fora da rede os nodos


não poderiam ser empoderados. Uso em geral um exemplo físico para
mostrar isso: é como um celular funcionando sem bateria. Isso é
possível, desde que esse celular estivesse imerso em um campo
eletromagnético que induz uma corrente elétrica (supondo que o
celular tivesse, no lugar da bateria, uma bobina capaz de “converter”
o campo em corrente elétrica).

Dou então outro exemplo, agora bastante prático. O exemplo de dois


pequenos empreendedores que resolvem montar uma fábrica de
doces em uma cidade do interior do Brasil e nos arredores da cidade
de Verona, nos dias atuais.

O que acontece no primeiro caso, do empreendedor brasileiro? Ele


sonha em produzir doces e começa a trabalhar para tornar esse
sonho realidade. Constrói um galpão no fundo do seu quintal, faz um
curso prático sobre o assunto e estuda os manuais. Todo empolgado,
vai contar a novidade aos seus amigos, no bar da praça da sua
cidade. Os amigos então perguntam onde ele arrumará o dinheiro
parar adquirir os equipamentos necessários. Ele responde que pegará

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um empréstimo no banco tal, numa linha de financiamento que foi
aberta para estimular os pequenos negócios. Os amigos então
retrucam: “– Cuidado, fulano! Olha que você ficará pendurado no
banco, igualzinho ao beltrano, que acabou perdendo até a casa”.

Continuo contando o caso fictício. O que acontece com o segundo


empreendedor, o italiano, na Verona dos dias atuais? A mesma coisa.
O que muda é a resposta dos amigos: “– Fantástico, fulano! O
beltrano está pensando a mesma coisa. Quem sabe vocês não
poderiam trocar idéias e, talvez, até se associar etc. etc.”

Então faço o comentário final. Não há diferença entre os


empreendedores. Eles têm o mesmo sonho. Eles deram os mesmos
passos. No caso do brasileiro, porém, ele foi desencorajado pelo
ambiente social, enquanto que, no caso do italiano, ele foi
encorajado. A diferença, portanto, está no ambiente social. O
primeiro desempodera, o segundo empodera. Por quê? Ora, porque o
nível do capital social da cidade onde vive o primeiro é baixo,
enquanto, na cidade onde vive o segundo, é alto.

Mesmo depois de comentar esse exemplo e alguns outros, as pessoas


ainda revelam grande dificuldade de entender a diferença entre
capital humano e capital social. Pudera! Tudo ou quase tudo o que é
chamado de ‘social’ se refere, na verdade, ao fator ‘humano’. Até
mesmo as chamadas políticas sociais são, na verdade, políticas
humanas, de investimento em capital humano. Saúde, educação,
segurança alimentar e nutricional – tudo isso “cuida” do capital
humano. O que se poderia propriamente chamar de uma política
social, em geral não é considerado assim. Por exemplo, um programa
de instalação de telecentros comunitários é uma política de
investimento em capital social, é uma política social stricto sensu,
quer dizer, de desenvolvimento social. Porque influi diretamente na
rede social. Mas um programa como esse não é tratado assim
porquanto as pessoas, os especialistas, os governos, não entenderam
ainda a diferença entre capital humano e capital social.

Conto então uma outra história fictícia, na verdade uma experiência


de pensamento para mostrar a diferença entre capital humano e
capital social.

É mais ou menos assim. Imaginem uma família com altíssimo capital


humano, por exemplo, a família do sultão de Brunei. Essa família tem
alto nível educacional (escolaridade alta), alto nível de atenção à
saúde (e expectativa de vida ao nascer também bastante alta).
Renda média familiar, nem se fala. Quer dizer, essa família tem
altíssimo nível de desenvolvimento humano. Agora imaginem uma

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nova localidade criada pelo assentamento, em um mesmo território,
de duas mil famílias do sultão de Brunei. Pergunta: o nível de
desenvolvimento social dessa nova localidade será, necessariamente,
tão alto quanto o nível de desenvolvimento humano das famílias que
a compõem?

Esse é o exercício. Se as pessoas respondem: “- Sim!”, então não há


necessidade de considerar o conceito de capital social. Aliás, se as
respostas forem afirmativas, não precisamos nem do conceito de
sociedade. Pois, se alguém diz sim está pensando o que acontece na
coletividade não é mais do que a soma – ou a conseqüência – do que
acontece nas suas unidades (as famílias ou os indivíduos).

Geralmente algumas pessoas respondem: “– Não”. É sinal de que, na


cabeça dessas pessoas, “caiu a ficha”. Quando elas dizem “– Não”,
em geral é porque se perguntam se as duas mil famílias do sultão de
Brunei conviveriam bem na nova localidade que foi criada. Bingo! É
sinal de que elas entenderam a diferença entre capital humano e
capital social.

CAPITAL SOCIAL E DESENVOLVIMENTO

Pois bem. Introduzido dessa maneira o conceito de capital social,


volto à equação complexa do desenvolvimento. Mostro que renda,
riqueza, meio ambiente, conhecimento e poder (ou empoderamento),
ou melhor, capital financeiro, capital físico (ou produtivo, ou
empresarial), capital natural, capital humano e capital social, não
devem crescer isoladamente para produzir o fenômeno que
interpretamos como desenvolvimento. Trata-se, o desenvolvimento,
na verdade, de uma combinação sinérgica de todos esses elementos.

O padrão aqui não é o crescimento ilimitado de cada variável per se e


sim a sua interação. Para haver desenvolvimento – ou seja,
sustentabilidade – é necessário que todas essas variáveis, esses cinco
“capitais”, flutuem em torno de valores ótimos. Mas os valores ótimos
de cada variável dependem dos valores das outras variáveis.

Cito então alguns exemplos. A Argentina tem mais capital humano


que o Brasil e, no entanto, não pode ser julgada uma nação mais
desenvolvida. Por que? Não será por causa do seu capital natural,
que também é altíssimo (o pampa argentino é a segunda terra mais
fértil do mundo). Não será por causa da sua renda per capita, que
também supera a nossa. Só pode ser porque o seu capital social é
bem menor do que o nosso (por razões que não vem ao caso
investigar agora, como o predomínio de uma política justicialista por

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décadas a fio). Ou seja, os níveis de confiança social na Argentina são
menores do que os do Brasil.

Cingapura tem menos capital natural que o Brasil e, no entanto, está


muito à frente em termos de desenvolvimento econômico. Por que?
Porque tem altíssimo nível de capital humano, concentrado em um
pequeno território, o que leva à uma sociedade altamente conectada.
Assim, os níveis do capital social em Cingapura devem ser
incomparavelmente maiores do que os do Brasil.

Explico que, na equação complexa do desenvolvimento, baixos


valores de uma variável podem ser compensados por altos valores de
outras variáveis. No entanto, se os valores do capital social forem
muito baixos, não pode haver compensação.

O capital social é diferente dos demais “capitais”, não porque


determine os demais (papel que se creditava ao capital propriamente
dito,quer dizer, ao fator econômico) e sim porque é um “fator
ambiental” em termos sociais. É a própria rede social, a identidade de
uma particular sociedade, que se expressa por meio da idéia de
capital social.

CAPITAL SOCIAL, REDE E SUSTENTABILIDADE

Para concluir, retomo o tema da sustentabilidade. Digo que não há


qualquer diferença entre desenvolvimento (tomado nesta nova
concepção) e sustentabilidade. Sustentabilidade é a capacidade de
mudar de acordo com a mudança das circunstâncias. Para isso, é
necessário estar conectado a uma rede de relações, criando canais
pelos quais fluem recursos de toda ordem, possibilitando que as
variáveis do desenvolvimento de uma organização mudem de valor
em uma congruência múltipla e recíproca com o meio. É por isso que
somente redes podem ser sustentáveis. Nenhum organismo ou
organização isolada pode ser sustentável.

Dou então alguns exemplos de redes. O cérebro humano (a rede


neural, que não funciona, como se acreditava, como uma CPU de
computador) e um ecossistema (a teia da vida).

A rede é sustentável porquanto consegue conservar a sua adaptação.


Na rede existem nodos que, em relação com os outros nodos, têm a
capacidade de exercer funções de nodos que porventura tenham
desaparecido. É o que acontece, em muitos casos, nos cérebros
afetados por acidentes. Quando uma região sofre uma lesão, que
destrói alguns neurônios, a rede permite que outros neurônios

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compensem aquela falta. É o que acontece com um ecossistema,
quando uma intervenção antrópica, desarmonizante, altera o
equilíbrio natural. Dependendo do tamanho da intervenção, o
ecossistema se recupera, redirecionando o papel de seus vários
elementos até conseguir restabelecer o equilíbrio. Explico que tudo
isso só pode acontecer em razão do padrão de organização desses
conjuntos de muitos organismos, de organismos ou de partes de
organismos, ser um padrão de rede.

Ora – digo – se é assim, então temos uma espécie de “modelo” para


uma organização ou localidade que quer ser sustentável, quer dizer,
que quer se desenvolver. Uma empresa, por exemplo. Se a empresa
quiser ser sustentável ela deve estabelecer o maior número possível
de conexões com seus stakeholders e, inclusive, com outras
empresas e outras organizações, do Estado e da sociedade civil. Por
meio desses canais podem fluir, para dentro, o capital humano e o
capital social de que ela necessita e também podem fluir, para fora,
as quantidades desses recursos que estão sobrando. Só assim a rede
toda pode adquirir as características de um sistema complexo
estável.

Concluo, enfim, dizendo que só redes podem ser sustentáveis.


Dependendo do público e dos objetivos do curso ou palestra, começo,
a partir desse ponto, a tratar do desenvolvimento de um ponto de
vista mais teórico, comparando os modelos transformacional e
variacional com o modelo regulacional.

É isso. Imaginei que poderia ser útil reproduzir em linhas gerais o


conteúdo do que venho dizendo em minhas aulas e palestras pelo
Brasil a fora.

Este texto foi escrito e publicado em 01 de setembro de 2005. De lá


para cá (junho de 2010) as investigações sobre redes sociais
progrediram bastante, assim como minhas próprias explorações
sobre as relações entre desenvolvimento, capital social, redes sociais
e sustentabilidade. Esse ulterior desenvolvimento do arcabouço
teórico com o qual trabalhava exigiu uma nova abordagem do
desenvolvimento, sobretudo dos processos de indução do
desenvolvimento local ou comunitário. De certo modo deixei de
trabalhar com o conceito de capital social (uma metáfora, urdida do
ponto de vista dos recursos para o desenvolvimento, para designar
nada mais e nada menos do que a rede social). Descobri que a
fenomenologia da rede era função da sua topologia e que, assim, o
que queríamos conotar com a idéia de ‘capital social’ depende,
fundamentalmente, dos graus de distribuição-conectividade ou de
interatividade da rede social.

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