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DESENVOLVIMENTO,

CAPITAL SOCIAL
& DEMOCRACIA
34 PONTOS
Augusto de Franco (sem data)

Nota do autor | Não consegui encontrar o local onde este texto foi
originalmente publicado. Presumo que deve ter sido escrito entre
2005 e 2008. Recuperei-o no blog Sentinela do Nada de Egeu Laus.
Link: http://migre.me/MnIZ

1 – Em geral não se leva muito em conta que o desenvolvimento


econômico deve ser interpretado como prosperidade econômica,
medida como aumento da riqueza, não em termos absolutos ou
médios, mas em termos do aumento do acesso das pessoas à
propriedade produtiva e a melhoria das suas condições (e, portanto,
o aumento de suas chances) de sucesso na realização dessa
propriedade. Prosperidade econômica ainda é a melhor expressão do
desenvolvimento econômico de uma sociedade e deve significar que
mais e mais pessoas estão podendo não simplesmente obter renda,
senão também gerá-la diversificadamente. Implica, portanto, para
além da distribuição da renda, desconcentração da riqueza.

2 – Se a concentração da renda no Brasil é absurda (estamos entre


os países mais injustos do mundo em termos de desigualdade de
renda), também é injusta a distribuição da riqueza. Com efeito, se a
maior parte (cerca de 70%, talvez) do faturamento bruto de todas as
empresas fica nas mãos de uma pequena parcela (menos de 2%) das

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empresas, então estamos diante de uma monumental concentração
de riqueza. Isso não é captado diretamente por indicadores de
desigualdade de renda e nem por indicadores de aumento geral de
riqueza (como o PIB).

3 – Há quem ache que tudo vai se resolver com a criação geral de


mais riqueza e com a distribuição da renda. Há quem ache que se
distribuirmos a renda então isso vai levar à distribuição da riqueza.
Mas talvez tenha que haver alguma desconcentração de riqueza para
que haja uma distribuição da renda. Em outras palavras, distribuir
renda não é uma tarefa fácil enquanto a outra variável econômica
que comparece na equação do desenvolvimento – a riqueza –
permanecer tão concentrada. Ora, enquanto isso, enquanto a riqueza
permanecer tão concentrada, pode até haver crescimento econômico,
mas não haverá desenvolvimento econômico porque não haverá
prosperidade econômica, a qual pressupõe diversidade econômica co-
implicada no aumento da circulação de mercadorias (inclusive de
moeda).

4 – Isso para não falar de outros fatores – extra-econômicos - que


também comparecem na equação do desenvolvimento, como, por
exemplo, o conhecimento e o poder. Ou seja, isso para não falar do
desenvolvimento em um sentido mais sistêmico e global, para além
do desenvolvimento econômico.

5 – Nos últimos anos tem se reforçado a hipótese de que o fenômeno


de mudança que interpretamos como desenvolvimento econômico
não é, na verdade, tão estritamente econômico quanto se pensa.
Aparece como desenvolvimento econômico em virtude de
interpretação fragmentária de um fenômeno que é global,
envolvendo, para além da renda e da própria riqueza (ou seja, das
internalidades), outras variáveis como conhecimento, poder, meio
ambiente (que são consideradas externalidades).

6 – Mas mesmo para que haja o tal desenvolvimento econômico,


interpretado como prosperidade econômica, é necessário, para além
do crescimento econômico, que mais pessoas, individual e
coletivamente, consigam empreender mais e ter mais sucesso em
seus empreendimentos. Ora, para isso é necessário que mais pessoas
tenham mais conhecimento (um dos componentes, talvez o principal,

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do que se chama, metaforicamente, de “capital humano”) e que os
ambientes sociais em que essas pessoas convivem sejam ambientes
capazes de encorajá-las a empreender mais e a adquirir mais
conhecimento para empreender melhor.

7 – Esse encorajamento é uma espécie de poder (um “poder” social,


não caracteristicamente político) que passa das coletividades para os
indivíduos. É como um campo de força que aciona (energiza)
elementos nele imersos por indução (na acepção física – como na
indução eletromagnética – e não lógica do conceito). Esse é o
processo que foi chamado de empoderamento, o qual tem a ver não
com o poder de mandar, ou seja, com a possibilidade e a capacidade
de um indivíduo ou grupo de impor sua vontade a outros indivíduos
em virtude de algum atributo diferencial (força, saber ou riqueza),
institucionalizado ou não e sim com os padrões de convivência social,
vale dizer, com a configuração da rede social existente. Quem
empodera é a rede social (que pode, então, também em termos
metafóricos, ser interpretada como um outro tipo de capital, o
chamado “capital social”).

8 – O fenômeno que interpretamos como desenvolvimento


econômico não pode ocorrer isoladamente. É um aspecto de uma
mudança que envolve mudanças em vários outros fatores além
daqueles que são considerados como internalidades econômicas. A
incompreensão desse processo complexo levou os pensadores
econômicos a imaginar que seriam as mudanças na renda e na
riqueza (ou, em geral, apenas na renda ou no produto) que levariam
a mudanças nos outros fatores extra-econômicos. Estabeleceu-se,
assim, um modelo linear e unívoco, que parte do econômico (= a
causa) em direção a outros fatores considerados sociais – sócio-
culturais, sócio-políticos, sócio-ambientais etc – (= os efeitos).

9 – Essa é a razão pela qual o que se chama de política social


sempre foi visto como uma política de segunda classe, já que ela não
trabalharia com a causa e sim com os efeitos e, dessarte, não poderia
ser tão estratégica quanto a política econômica. Caberia à política
social compensar as defasagens de inserção no processo de
desenvolvimento, quando os processos intra-econômicos não foram,
por alguma razão extra-econômica que atrapalha o funcionamento
dos mecanismos de distribuição econômica, capazes de incorporar
“automaticamente” os excluídos. Para esse pensamento, contudo, o

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remédio principal para a inclusão, a receita que vale de fato, é a
econômica, pelo incremento da renda, em geral via salário, quer dizer
como remuneração do trabalho (de alguém que foi empregado para
realizar a propriedade produtiva de outrem, subordinado ao sonho
alheio) e não como recompensa ao empreendedorismo (como
apropriação de um sobrevalor gerado pelo trabalho de realizar a
própria propriedade produtiva) como deveria inspirar a utopia da livre
iniciativa capitalista.

10 – Segundo esse modelo, se queremos promover a


desenvolvimento social, então temos que promover o
desenvolvimento econômico. E como o desenvolvimento econômico é
visto como o resultado mais ou menos automático do crescimento
econômico, então tudo se resume a promover o crescimento
econômico.

11 – Ocorre que as relações entre as diversas variáveis do


desenvolvimento são plurívocas. Nesse sistema complexo, não-linear,
os supostos efeitos retroagem sobre a imaginada causa e todos os
fatores interagem entre si. Então, quando acontece o fenômeno que
interpretamos como desenvolvimento econômico, é porque vários
outros fenômenos inter-relacionados aconteceram também.

12 – Pode-se dizer que a renda permite acesso ao conhecimento


necessário para a geração de mais renda (sem o que, por um lado,
não pode existir prosperidade econô-mica). Como isso é muito
plausível, as pessoas costumam imaginar que tudo depende, nas
sociedades de consumo, de ter mais renda para ter mais acesso à
educação (ou à capacitação). No entanto, temos aqui apenas uma
parte da história. Pois é difícil imaginar que a renda auferida
individualmente consiga construir ambientes sociais favoráveis ao
sucesso dessa geração de renda (sem o que, por outro lado, também
não pode existir prosperidade econômica). Em outras palavras, para
realizar a propriedade produtiva é necessário, além do capital
humano, um certo estoque ou fluxo de capital social. Porque quanto
menor o capital social menos chances de sucesso os
empreendimentos terão e, portanto, menor será o grau de realização
distribuída da propriedade produtiva.

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13 – Como capital social não pode ser comprado, é um bem público
que não pode ser adquirido no mercado, ele tem que ser gerado.
Gerar capital social – como se sabe, desde que Jane Jacobs inventou
o conceito – é a mesma coisa que tramar redes sociais. Mas o
incremento da renda per capita não é capaz, por si só, de aumentar a
trama do tecido social. Em contrapartida, se aumentamos – por que
meio for – a trama do tecido social, aumentam as chances de sucesso
dos empreendimentos produtivos.

14 – Desse ponto de vista poder-se-ia inverter a sentença: se


queremos promover o desenvolvimento econômico então temos que
promover o desenvolvimento social. A inteligência mediana retrucará
que, apenas invertendo a implicação simples (‘desenvolvimento
econômico => desenvolvimento social’) que vige na cabeça da
maioria dos economistas, policymakers e jornalistas na atualidade,
não se resolve o problema. Estaríamos trocando uma relação linear,
baseada em uma crença de causalidade unívoca, por outra também
linear, igualmente incapaz de captar a complexidade do fenômeno. A
objeção é verossimilhante: por algum motivo as pessoas têm a
impressão de que a verdade está no meio (daí a popularidade dos
dísticos “nem 8, nem 80”, “nem tanto ao mar, nem tanto a terra”) e
gostam de evitar os extremos. Ademais, soa razoável dar o mesmo
peso a todos os fatores do desenvolvimento, haja vista, como se
argumentou acima, que o que interpretamos, fragmentariamente,
como desenvolvimento econômico, é um aspecto de um fenômeno de
mudança global mais complexa. De sorte que o mesmo deveria valer
para o desenvolvimento social, ou seja, o que interpretamos como
desenvolvimento social poderia ser um aspecto, captado pela
percepção fragmentária, do fenômeno de mudança mais global (o
desenvolvimento em termos sistêmicos).

15 – Entretanto, a mudança que queremos interpretar como


desenvolvimento, mesmo em termos sistêmicos, é uma mudança que
ocorre sempre na sociedade humana. Ou seja, é uma mudança
social, nas relações concretas entre as pessoas que vivem em
sociedade e não nas relações entre os elementos de um esquema
abstrato que foi construído para explicar uma classe qualquer de
fenômenos observados na sociedade, como, por exemplo, a “máquina
econômica” inventada pelos economistas.

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16 – Em outras palavras, desenvolvimento, seja o que for, é alguma
coisa que acontece na sociedade humana. Isso significa que todo
desenvolvimento é, sempre e antes de qualquer coisa,
desenvolvimento social. Não pode haver nenhum tipo de
desenvolvimento que não seja desenvolvimento social. Pois
desenvolvimento é um conceito que se aplica a sociedades humanas
e não a outros sistemas (de seres animados ou inanimados). Só
metaforicamente pode-se falar de desenvolvimento de uma colônia
de insetos, de um processo industrial ou de uma teoria.

17 – Pois bem. Existem evidências suficientes para corroborar a


hipótese de que o desenvolvimento é um fenômeno próprio das redes
sociais, é como se fosse um aprendizado dessas redes. Uma
sociedade se desenvolvendo é sinônimo de sua rede social
aprendendo a manter uma congruência dinâmica com o meio. Em
outras palavras, uma sociedade se desenvolvendo significa uma rede
social mudando com a mudança das circunstâncias, ou seja,
realizando o processo de se tornar sustentável. Desse ponto de vista
não há nenhuma diferença entre os termos ‘desenvolvimento’ e
‘sustentabilidade’.

18 – Uma nova visão do desenvolvimento social que emerge da


compreensão das redes sociais.é uma (talvez a única) visão
compatível com a noção de capital social. No principio está a rede. O
que chamamos de ‘social’ refere-se à rede social. A configuração e a
dinâmica de sua rede social é o que podem explicar, em um nível
mais profundo, os fenômenos que acontecem em uma sociedade.
Uma sociedade só é distinguível de outra porque sua rede social é
diferente da rede social da outra sociedade. A identidade de uma
sociedade pode ser compreendida, nesse nível de profundidade, por
padrões de tecitura social e de fluxos recorrentes ou circuitos
ativados. Embora a rede seja móvel, embora os fluxos que a
percorrem sejam diferentes em cada instante, existem padrões,
invariantes que são próprios daquela particular coletividade. O retrato
desses padrões é a impressão digital de uma particular sociedade.
Aquilo que permanece constante na configuração e na dinâmica de
uma rede social é a “carteira de identidade” da particular sociedade
onde essa rede foi observada.

19 – Todavia, assim como a teia da vida que liga os elementos de


um ecossistema é invisível para os olhos, assim também ocorre com

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a teia social que estabelece as conexões entre as pessoas e os grupos
em uma sociedade. São essas conexões que caracterizam os padrões
de convivência social. Anisotropias criadas nesse tecido social,
singularidades geradas nesse “espaço”, condicionam fluxos,
constroem caminhos preferenciais para esses fluxos. Perturbações
introduzidas nesse espaço vão percorrer o sistema seguindo
caminhos construídos por repetição, pré-cursos que foram sulcados
pelo transito diferencial de mensagens. O software modifica o
hardware. A dinâmica da rede constrói sua configuração. Um caminho
muito trilhado é um canal com mais capacidade. Redes de
conversações acionadas com grande freqüência são como ruas que
ligam bairros construídos em uma cidade. Tornam-se padrões
invariantes na geografia urbana. O sistema que resulta dessas
múltiplas anisotropias conforma a identidade de um espaço social,
quer dizer, uma rede social particular, identificável.

20 – A analogia da rede social com a cidade tem muito poder


heurístico. Mas é mais do que isso: as cidades – ou, em termos ainda
mais genéricos, as localidades – são redes sócio-territoriais. As
cidades são resultados de comportamento coletivo. Elas se auto-
organizam, mesmo as que foram planejadas se reorganizam,
tornando-se, todas, auto-planejadas, bottom up. Mas só podem fazer
isso porque têm artérias, canais, circuitos ligando suas várias
localidades (regiões administrativas, bairros, ruas e praças e outros
equipamentos e casas). Por esses canais fluem as mensagens. Assim,
dentre os múltiplos caminhos percorridos, afirmam-se como
principais aqueles mais trafegados.

21 – Tal ocorre com a rede social que está por trás da rede urbana.
Mais do que isso: tal só ocorre no espaço urbano (territorial) porque
ocorre no espaço das conexões entre pessoas e grupos (social). Isso
é a localidade do ponto de vista do desenvolvimento sustentável.

22 – Sustentabilidade é o que chamamos de desenvolvimento com


base em um modelo regulacional da mudança, ou seja, um modelo
que não é nem (apenas) transformacional, nem (apenas) variacional.
Transformações e variações acontecem o tempo todo. Mas
transformações não são unicamente o desdobramento de um projeto
prefigurado, contido em germe, em um programa arquivado em um
genoma. E variações não são o resultado da replicação imperfeita
desse projeto diante da mudança totalmente aleatória das

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circunstâncias. A nova ordem implicada na mudança só pode emergir
porque a transformação e a variação passam a ser reguladas. Essa
nova ordem emerge quando há regulação da mudança. Quem regula
a mudança, desse ponto de vista, é a rede social. Ela se adapta e
conserva seus padrões de adaptação. Ela só consegue conservar a
adaptação porque reconstrói (ou seja, muda) seus programas de
adaptação a partir desse padrão (a identidade de uma rede social).
Sustentabilidade, isto é, desse ponto de vista, desenvolvimento, só
pode existir quando existe ordem emergente, quer dizer, auto-
regulada.

23 – Novamente aqui é evocado um poderoso paralelo heurístico. Se


em termos biológicos sustentabilidade é a mesma coisa que vida, em
termos sociais sustentabilidade é a mesma coisa que
desenvolvimento. A vida cessa quando se rompe a congruência entre
o indivíduo e o meio, o que significa incapacidade de manter uma
correspondência dinâmica com os outros elementos da rede que
possibilite a autopoiese. O desenvolvimento (sustentável) ocorre a
não ser enquanto exista auto-regulação social.

24 – Mas há ainda um outro paralelo heurístico. Assim como o


processo de vida é análogo ao processo de conhecimento, o processo
social – ou seja, o processo de desenvolvimento social de um ponto
de vista regulacional (ou para uma teoria sistêmica do
desenvolvimento, poder-se-ia dizer) – é também comparável ao
processo de conhecimento. É assim que se pode então dizer que a
sociedade se desenvolvendo é sinônimo de sua rede social
aprendendo. Aprendendo o quê? Aprendendo a se auto-regular.
Aprender, aqui, significa ser capaz de reconstruir seu programa de
adaptação; ou seja, ser capaz de construir um outro (novo) programa
a partir da (mesma) matriz de identidade, quer dizer, do mesmo
padrão que caracteriza uma sociedade particular porque contém os
invariantes da configuração e da dinâmica de sua rede social.

25 – Ocorre que uma sociedade particular capaz de fazer isso é


sempre uma sociedade local. É por isso que se diz que todo
desenvolvimento (sustentável) é local, porque todo bottom up é local,
porque todos os conhecimentos tomados (a partir de baixo) são
locais, quer dizer, são tomados com base em avaliações locais das
circunstâncias mais amplas ou das condições mais gerais. A
emergência (quer dizer, o surgimento de uma nova ordem por auto-

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regulação) se dá a partir do local; inclusive uma ordem emergente de
caráter mais global é construída a partir de interações locais.

26 – Sistemas complexos são capazes de fazer isso, ou seja, de


configurar ordem mais global (macrocomportamentos) a partir de
regras locais, tornando-se capazes de comportamento emergente, de
inteligência coletiva, de swarm intelligence, quando seus elementos
se concentram na solução dos mesmos problemas (que são, então,
forçosamente, problemas locais).

27 – Sociedades (de massa) não são capazes de fazer isso, mas


comunidades (de projeto) sim. Ou melhor, sociedades só são capazes
de fazer isso se as comunidades de projeto que se formaram no seu
seio fizerem isso, como percebeu Jane Jacobs, em outros termos, há
40 anos. Só comunidades de projeto – que se dedicam, por milhares
de micromotivos diferentes das pessoas e grupos que as compõem –
à resolução dos mesmos problemas locais, podem ser capazes de
adquirir a dinâmica de sistemas complexos adaptativos e, assim,
podem ser sustentáveis. É por isso que uma nova visão do
desenvolvimento como a que está sendo cogitada aqui aponta para o
desenvolvimento local. Desenvolvimento local, nesse sentido, não é
uma redução, não é uma particularização. Desenvolvimento local
nada mais é do que desenvolvimento comunitário, ou seja,
desenvolvimento de comunidades de projeto a partir dessas próprias
comunidades. Desenvolvimento, nesse sentido, é uma emergência. E
o terreno da emergência é o local.

28 – Só redes podem aprender, mas não é qualquer rede que


aprende. Só redes podem ser sustentáveis, mas não é qualquer rede
que pode ser sustentável. No que tange a sociedades humanas, só
em comunidades de projeto o tecido social pode atingir o grau de
tramatura suficiente para ensejar a fenômeno da autoregulação.
Comunidades são sociedades que atingiram certo grau de tramatura
do seu tecido social. Uma ordem na sociedade global – se não for
autocrática – só poderá emergir, quer dizer, vir de baixo, do local.

29 – Tudo isso pode ser analisado por teorias do capital social se


considerarmos que o fator do desenvolvimento designado pela noção
de capital social nada mais é do que a rede social. É o grau de
conectividade, o número de caminhos (medido, se quisermos, pela

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‘extensão característica de caminho’ ou pelo ‘comprimento de
corrente’) existentes entre os nodos de uma rede social que dá o
poder social de uma sociedade, ou seja, a sua capacidade de
empoderar os seus elementos para que eles criem, inovem,
empreendam, assumam protagonismo – enfim, se desenvolvam na
medida em que desenvolvem o coletivo do qual fazem parte.
Desenvolvimento (sustentável) é, assim, a coincidência de auto-
desenvolvimento e comum-desenvolvimento. Em outras palavras,
desenvolvimento é sempre a operação de uma rede de co-
desenvolvimentos interdependentes

30 – Qualquer ordem não-autocrática só pode existir se for


emergente. Temos aqui uma pista para estabelecer um nexo
conotativo entre desenvolvimento e democracia. Assim como o
desenvolvimento é o ‘aprender’ de uma comunidade, a democracia é
um ‘deixar aprender’. Como pacto de convivência, a democracia é um
modo de regulação de conflitos que preserva a existência dos
conflitantes, que permite a continuidade de sua experiência de
convivência social, que possibilita a expansão continuada dos graus
de liberdade para que possa haver cada vez mais experimentação e
mais aprendizagem e, por conseguinte, mais desenvolvimento.

31 – É por isso que não pode haver desenvolvimento (tomado em


termos regulacionais, na visão proposta aqui, ou seja,
desenvolvimento sustentável ou sustentabilidade) sem democracia.
Ou melhor, é por isso que mais desenvolvimento (ou
sustentabilidade) implica mais democracia, avanço do processo de
democratização, de democratização da democracia. Pode haver
crescimento (da renda, da riqueza ou de qualquer outra variável
extra-econômica da equação do desenvolvimento, como o
conhecimento, por exemplo) sem democracia, mas não pode haver,
nesse sentido, desenvolvimento.

32 – E é por isso que desenvolvimento depende da produção de


capital social, ou seja, da capacidade de uma sociedade de gerar
ordem espontaneamente a partir da cooperação. Em outras palavras,
é por isso que desenvolvimento depende da capacidade de uma
sociedade de constituir comunidade, de tramar o seu tecido social a
ponto de permitir a eclosão dos fenômenos associados à emergência
(multiplicidade, diversidade, reverberação, circuitos de
retroalimentação de reforço ou de feedback positivo etc.).

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33 – Ora, na sociedade (em termos genéricos; ou seja, nas
sociedades humanas) quem pode fazer isso na escala e com a
intensidade necessárias é o tipo de agenciamento chamado sociedade
civil (ou comunidade, no sentido em que Offe e os teóricos alemães
empregam o termo), esfera da realidade social caracterizável por
uma racionalidade cooperativa e baseada em uma “lógica”
participativa. Não é o Estado, caracterizado por uma racionalidade
normativa e baseado em uma “lógica” representativa e delegativa,
produtor, por excelência (e por definição) de ordem top down, ainda
que o Estado possa também induzir processos bottom up, quando
consegue estimular a sociedade civil a produzir capital social (ou
quando se abstém de desestimulá-la, renunciando a programas
baseados em uma padrão de relação centralizador, assistencialista,
clientelista e adversarial). Nem o mercado, caracterizado por uma
racionalidade competitiva, muito embora o mercado também produza
algum tipo de ordem emergente.

34 – Impõe-se como necessária não a oposição entre essas esferas


da realidade social – o Estado, o mercado e a sociedade civil (ou
comunidade) – mas a sua combinação virtuosa que pode surgir
quando se busca extrair sinergias da sua atuação combinada. O
Estado, sozinho, tenderá a induzir o desenvolvimento a partir de um
modelo transformacional (a partir de um plano e de regulações
exógenas) e o mercado, deixado ao léu da sua própria “lógica”, o fará
– sem querer – a partir de um modelo variacional (apostando na
sobrevivência dos que melhor se adaptaram). É por isso que cumpre
um papel tão estratégico a participação da sociedade civil, de vez que
somente a sociedade civil consegue suportar uma dinâmica endógena
regulacional gerando novos macrocomportamentos a partir da
composição de muitos quereres, de miríades de micromotivos. Para
que tal aconteça, entretanto, é necessário instaurar uma atmosfera
de liberdade coletiva, um clima de confiança que encoraje as
pessoas, coletivamente, a sonhar e a correr atrás dos próprios
sonhos, ensejando seu aprendizado – como soe ocorrer em uma
comunidade de projeto sob a democracia.

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