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FICHA TECNICA, Tilo origina: Bniretions sur Descartes Composigdo: MIRASETE — Artes Grificas, Lda. preseio e acabamento: Guide — Artes Oréficas 1 O MUNDO INCERTO ‘Trés séculos — e que séculos! — nos separam de Des- cartes e do Discurso do Método. ‘Trés séculos é muito tempo: para a histéria, para a ciéncia, para a técnica. Muito tempo para a vida. E muito pouco para o pensa- mento filos6fico. ser, do conhecimento, do homem. Coisas simples sem- pre actuais. Por isso as respostas dadas pelos grandes filésofos a estas questdes téo simples permanecem importantes durante séculos, ¢ mesmo durante de anos. A actualidade filosdfica vem de tao longe como a prépria filosofia. E talvez nao haja hoje pensamento filosdfico mais actual que o de Descartes. Se nao for 0 de Platao. Toda a gente conhece 0 Discurso: todos o lemos. ‘Temos a meméria cheia das suas frases descuidadas e encantadoras, cheias de bonomia, de ironia e de sabedoria. Cheias também de «bom senso», daquele «bom senso» que, e Descartes que nao leve a mal, ou, mais exactamente, de acordo com ele mesmo, é a coisa mais rara ¢ mais pre- ciosa do mundo, Lembramo-nos de que «o bom senso é a coisa mais bem partilhada do mundo, porque todos pensam possui- -la tanto que mesmo os mais dificeis de contentar em tudo 0 resto no costumam desejar mais que 0 que jd tém». Aprecidmos bem a ironia desta demonstracdo. Sabemos que o que é importante «ndo é ter o espirito bom mas... aplicd-lo bem», e perguntémo-nos todos como é que isso era possivel. Recordamo-nos de que é preciso ser firme e resoluto na acco... «imitando nisso 9 08 viajantes que, estando perdidos nalguma floresta, nao devem caminhar em circulo... mas andar sempre o mais direito que possam para o mesmo lado... porque deste modo, se nao vao dar exactamente aonde desejam, che- gardo sempre a algum sitio onde verosimilmente estardo melhor que no meio de uma floresta»; que «a leitura de todos os bons livros é como uma conversa com as pes- soas de bem dos séculos passados», e que «nao se pode- ria imaginar nada de to estranho e de tao pouco crivel gue ndo tenha sido dito por algum fildsofo». __ Desde ha trés séculos que todos somos, directa ou indirectamente, alimentados pelo pensamento cartesiano, dado que, desde ha trés séculos justamente, todo 0 pen- samento europeu, todo 0 pensamneto filoséfico, pelo ‘menos, se orienta e se determina em relacdo a Descartes. Por isso, é-nos extremamente dificil darmo-nos conta da importancia e da novidade da obra de Descartes: uma das mais profundas revolugdes intelectuais, e mesmo espirituais, que a humanidade j4 conheceu, conquista decisiva do e 6 éria decisiva na seno inteiramente impossivel, € imaginarmos a impresso produzida pelo Discurso nos que o liam — ha és séculos — pela primeira vez. Trés séculos, digamo-lo de novo, é muito. E embora os problemas filosdficos sejam de facto eternos, no é menos verdade que os interesses espirituais dos contem- pordneos de Descartes diferiam profundamente dos nos- 50s interesses espirituais. Por isso, o que eles procuravam nesse livro era uma coisa completamente diferente daquilo que nés af procuramos. De resto, 0 Discurso do Método que eles possuiam, © que saiu da imprensa de Jean Maire, em Leyde, no dia 5 de Junho do ano de 1637, era muito diferente do que nds lemos hoje. O Discurso do Método nao era para eles © que é para nés. Para nés, 0 Discurso do Método & um livrinho encantador que contém sobretudo e antes de mais uma autobiografia espiritual de Descartes; as famosas quatro regras de que ndo sabemos que fazer e de que retemos 10 nomeadamente as passagens sobre as «ideias claras ¢ dis- tintas», mandando-nos ndo ter por verdadeiro sendo 0 que vemos evidentemente sé-lo, ¢ condi ordem, comegando pelas coisas mais faceis; um pequeno esboco de moral, bastante estdica € razoavelmente conformista; um pequeno tratado de metafisica, bastante abstruso, com 0 famoso «penso, logo existo» € uma exposicdo — apaixonante para o his- toriador mas muito aborrecida para o homem de bem dos nossos dias — de pesquisas cientificas feitas e a fazer. Sabemos, sem diivida, que 0 Discurso possuia ainda um apéndice composto por trés ensaios: Didp- trica, Meteoros, Geometria, que jé nao lemos. As nossas edigdes correntes, de resto, j4 nao os trazem. Para 0s contempordineos de Descartes as coisas pas- savam-se de outra maneira. O Discurso do Método ou, para usarmos 0 titulo exacto, 0 Discurso do Método para bem conduzir a razao e procurar a verdade nas ciéncias, mais a Didptrica, os Meteoros e a Geometria, que sao os Ensaios deste método era um volumoso livro — 527 paginas in-4.° — que continha trés tratados cientificos de uma novidade surpreendente e de um interesse capi- tal: a Didpirica, ou seja, um tratado de Optica com- preendendo nomeadamente uma teoria da refraceao da luz que, pela primeira vez, dava a sua lei — a lei do seno —, assim como um esiudo dos novos instrumentos 0 éculo de alcance — que acabavam de transformar 0 nosso conhecimento do Universo; os Meteoros, ou seja, um estudo dos fendmenos celestes ou, mais exactamente, atmosféricos: as nuvens, a chuva € © granizo, 0 arco-iris ¢ 0s parélios explicados pelos meios mais simples e mais naturais — 0 movimento da matéria que enche o espaco, a refraccdo da luz nas gotas de chuva. Enfim, a Geometria, ou seja, um tratado de Algebra que revolucionava a concepeao recebida das cién- cias matematicas ao estabelecer uma comunidade entre dominios tao diferentes como os do espago — quanti- dade continua —e do ntimero — quantidade discreta. Esta Geometria trazia uma teoria geral das equacdes com uma notagao nova — a mesma que ainda empre- gamos — e, entre outras coisas, uma soluedo elegante, ul por métodos algébricos, do célebre problema geométrico de Pappus. Além disso, 0 livro continhz , composto & ‘mesmo paginado & parte, um longo prefacio, 0 Discurso propriamente dito que, além de uma exposi¢ao e de um programa de pesquisas cientificas extremamente suges- tivo, oferecia um esboco metatfisico muito curioso ¢ arro- jado, um pequeno tratado de método ¢, enfim, uma autobiografia espiritual do autor. Para os contemporaneos de Descartes, e para o pré- prio Descartes, 0 Discurso do Método — introducdo a uma ciéncia nova, antincio de uma revolugdo intelectual de que uma revolucdo cientifica serd 0 fruto — é um pre- faci. Nés esquecemo-lo. Nao sem razio, sem diivida, dado que os Ensaios ou tratados puramente cientificos que © volume continha estao irremediavelmente ultrapassados, envelhecidos, caducos, enquanto o Discurso mantém ainda a sua frescura. No entanto, foi aos Ensaios que o Discurso- -prefécio deveu a fortuna, a influéncia ¢ a repercussao. s tratados de método nao eram raros na época car tesiana. E 0 tltimo em data, 0 Novum Organum, de Bacon!, trazia, ele também, um «método» novo. Um método conduzindo a uma ciéncia nova, ciéncia activa, «operativa», oposta por isso mesmo a cigncia puramente contemplativa do passado. Essa ciéncia nova, que devia transformar a condicao humana e fazer do homem o «senhor ¢ possuidor da Naturezay, Descartes anuncia- -a igualmente. Mas néo se limitava a anuncié-la: essa cigncia nova, ele trazia-a e dava-nos resultados. O seu «método» no era desenvolvido em abstracto: resumia, formulava, codificava um uso realmente experimentado, E era 0 uso, a aplicacdo conereta, que demonstrava 0 seu valor e, por sua vez, era a tinica coisa que permitia com- preender o sentido verdadeiro e profundo das regras bas- tante vagas e banais que 0 Discurso dava. Quem & que, com efeito, jd alguma vez pés em diivida que 0 fildsofo, enquanto ‘al, no devesse submeter-se somente & evidéncia da razo? E quem é que — até aos nossos dias, pelo menos — alguma vez negou o valor supe- rior da ideia clara sobre a obscura? Ninguém. Como "Novum Organum Scientiarum, Londini, 1620, 12 ninguém nunca contestou 0 valor dade de comecar pelas coisas mai 1 no, inversamente, pelas mais dificeis e mais complica- das. Sao lugares-comuns da filosofia. Mas qual é essa clareza que devemos procurar? Qual & essa ordem que devemos seguir? Quais s4o essas coisas simples e faceis pelas quais devemos comecar? : E na resposta a estas perguntas que consiste a reforma cartesiana. E essa resposta — verdadeira revolu- 40 — no é s6 no Discurso mas também nos Ensaios jue a devemos procurar. 6 aparecimento do Discurso do Método fez bastante barulho entre os eruditos. Por causa do seu contetido, sem dtivida. Mas também por causa do autor. O nome deste ndo aparecia, é verdade, na capa: Descartes apre- sentava-se ao piblico guardando um anonimato orgu- Ihoso. Mas os iniciados, ou seja, todos os membros da Repiiblica das Letras, estavam bem ao corrente. Toda a gente sabia que se tratava de Descartes. : Em 1637, Descartes nao era, sem diivida, aquilo em que se tornou poucos anos mais tarde: o grande, o céle- bre fildsofo, 0 primeiro espirito do seu tempo. A efer- vescéncia das ideias ainda ndo tinha comegado nas alco- vas ¢ ndo se discutiam assuntos subtis nos saldes. Nao era, no entanto, propriamente um desconhecido. O mundo literdrio € sabio* era mais pequeno. As pes- soas conheciam-se melhor. Descartes tinha vivido em Paris, frequentado os meios cientificos, onde ainda se lembravam do homenzinho colérico € bizarro — nao suportava a contradig&o, levantava-se tarde e detestava as visitas — que se costumava encontrar em casa de Mersenne, de Bérulle, de Gibieuf. Sabia-se que ele tinha bruscamente deixado Paris para se ir enterrar em qual- quer buraco da Holanda. Mas mantivera relacdes epis- tolares com Mersenne, essa caixa de correio do mundo sdbio, segundo a qualificacéo pouco amadvel de Huygens (que nao podia com ele), ou, se se preferir, esse procura- dor-geral da Repiiblica das Letras, como lhe tinha, mais * Nas Consideracdes sobre Descartes, «sibio» traduziré sempre, desde ‘que no haja indicagdo em contrario, savant (N. do T) B gentilmente, chamado Hobbes, que lhe devia muito. E 0 P.° Mersenne era o tiltimo homem capaz de guardar qualquer coisa sé para si. Sobretudo uma novidade. Ou uma carta. E toda a gente sabia que Descartes era um grande sdbio e um grande filésofo, que preparava um Mundo ou Tratado da Luz, que era partidrio do movi- mento da Terra, que tinha prometido a Balzac a historia do seu itinerdrio espiritual. Por isso, esperavam-na com impaciéncia. © Discurso do Método decerto nao desiludiu as expectativas. A parte cientifica da obra era verdadeira- mente muito bela, original e nova. Por isso, sera dis- cutida com calor: os sabios e os matematicos da época, Fermat e Roberval, Beaugrand ¢ Mydorge, objectam, discutem, comparam, lancam-se problemas, desafios ¢ invectivas. Desenvolve-se uma polémica epistolar. Tudo para grande alegria de Mersenne: esta alma doce e can- dida do que mais gostava era de uma boa zaragata lite- raria. O Preficio — 0 nosso Discurso — provocou, tam- bém, um interesse muito vivo. E mesmo um’ certo espanto. Repitamos que nds estamos demasiado acostumados ao Discurso, a nele ver um grande filésofo contar-nos a hist6ria da sua vida espiritual. Isso parece-nos natural ¢ rmal. E jé ndo vemos quanto, pelo contrario, é ins6- ‘0, singular, surpreendente. Que um sabio ou um fildsofo, hoje em dia, tendo feito algumas belas descobertas, nos exponha os cami- nhos e meios, os métodos, que Ihe permitiram obté-las € absolutamente natural e normal. Que um sabio ou que um fildsofo, tendo descoberto um método de pesquisa novo, no-lo exponha e nos dé, além disso, alguns exem- plos — amostras — das suas possibilidades, do seu valor, também ¢ absolutamente natural e normal. Mas que nos conte a esse propésito a sua biografia — ai esté © que seria surpreendente, Imaginamos Einstein ou de Broglie a contarem-nos a vida — mesmo a vida espiritual — antes de nos exporem a teoria da relatividade ou a mecanica ondulatéria? Nao, nao é verdade? Ora, Descartes fa-lo. Porque ¢ entdo que 4 se julga, obrigado a fazé-lo? Porque é que se nos con- fessa? E verdade que no-lo diz. Mas as razées que nos da nao me parecem ser as verdadciras. Que nos diz ele, com efeito? Que teve a sorte de des- cobrir um «amétodo» que Ihe permitiu fazer grandes pro- gressos no estudo das ciéncias e que expée a fim de que 0s leitores 0 possam aproveitar. De resto, aqui vai o texto: «Penso que tive muita sorte em me ter encontrado desde a juventude em certos caminhos que me conduziram a consideragdes e a m: mas com as quais formei um Método pelo qual me parece que tenho possibilidade de aumentar gradual- mente 0 meu conhecimento e leva-lo a0 mais alto ponto a que a mediocridade do meu espirito e a curta duracéo da minha vida poderdo permitir-lhe chegar; [...] jé tirei dele tais frutos que, embora no juizo que faco de mim préprio trate sempre de me inclinar para o lado da des- confianea mais que para o da presuneao, e que, olhando com olhos de filésofo as diversas acces e empresas de todos os homens, nao haja quase nenhuma que ndo me pareca va e intitil, ndo deixo de receber uma extrema satisfacdo dos progressos que penso ja ter feito na pro- cura da verdade e de conceber tais esperangas para futuro que, se entre as ocupagdes dos homens puramente homens houver alguma que seja solidamente boa e im- portante, ouso crer que é a que eu escolhi.» Mas, no fim contas, pode ter-se enganado e ter tomado cobre € vidro por diamantes e ouro. Por isso, diz-nos: «© meu designio ndo ¢ ensinar aqui o Método que cada um deve seguir para bem conduzir a sua razo, mas somente fazer ver de que modo tratei de conduzir a minha... ndo pro- ponho este escrito sendo como uma historia, ou, se pre- ferem, como uma fabula, na qual, entre alguns exemplos que se podem imitar, se encontrar talvez também varios Ora, se é certo que a solicitude, que 0 desejo de aju- dar os seus contemporaneos, a humanidade inteira, é um 15 dos motivos mais poderosos, ¢ na maior parte das vezes menosprezado, da actividade filos6fica de Descartes — nao 6 uma lei, e mesmo a lei suprema da moral, essa moral da generosidade que Descartes nos ensina, «que nos obriga a procurar tanto quanto de nés depende o bem de todos os homens»? —, se é exacto que a descoberta do «método» foi considerada por ele como uma «sorte», sendo como uma graca, ndo é menos verdade que a modéstia nunca foi o defeito principal de Descartes, desse homem que nunca julgou ter aprendido, ¢ mesmo poder aprender, fosse 0 que fosse com alguém, desse homem que se pro- pusera refazer sozinho o sistema do mundo e substituir Aristoteles nas escolas da cristandade. Quanto as razdes que alega, parecerdo realmente suficientes? Pessoalmente, julgo’ que nao. Dir-me-Ao, sem dtivida, que Descartes, no fim de contas, sabia melhor que ninguém aquilo que fazia, e porqué; que era ‘mesmo 0 tinico a verdadeiramente 0 saber. Com certeza. Mas Descartes é um homem prudente ¢ dissimulado que pensa no que diz ¢ nao diz o que pensa. Ou, pelo menos, fudo 0 que pensa. Nao escreveu ele nas suas Cogitationes Privatae: larvatus prodeo, caminho mascarado? E, a Mersenne, um dos dois ou trés homens em quem tinha plena confianca: bene vixit qui bene latuit*. ‘Nao The levemos a mal tomar precaucdes. A aventura de Galileu € ainda muito recente, e Descartes ndo tem qualquer desejo de a ver renovar-se a sua custa, Ora, a mensagem que ele traz 20 mundo é bem mais perigosa —e Descartes da-se conta disso — que a do matematico florentino. A ciéncia nova, essa ciéncia de que os Ensaios nos trazem amostras, nao se contenta com tirar © homem, ¢ a Terra, do centro do Cosmo: esse Cosmo, quebra-o, destréi-o, aniquila-o ao abrir em seu lugar a imensidade sem limites do espaco io. E quanto a0 Método, empreendimento de revisdo sistematica e critica de todas as nossas ideias, que todas sao chamadas por ele a justificarem-se diante do tribunal da razio, Descar- tes por mais que queira — muito sinceramente, sem dti- vida — restringir-lhe o alcance, por mais que nos assegure * Bem viveu quem bem se ocultou. (N. do 7.) 16 prias ideias no fim de contas, é fazer 0 que lhe apetecer, ndo pode deixar de se dar conta que acaba de aperfeicoar a mais formidavel maquina de guerra — guerra contra a autoridade ¢ a tradic&éio — que © homem alguma vez possuiu. E que os temperamentos «conflituosos e inquietos» ndo ligarao nenhuma as suas restrigdes dele, Descartes, e que, apropriando-se da arma que acaba de forjar, nao se deterao nem diante da auto- ridade da Igreja, nem diante da realidade do Estado: dois valores tradicionais que ele bem teria querido salva~ guardar. Por isso, ndo temos que nos basear na «fran- queza» de Descartes que, de resto, a apregoa demasiado. Entdo, o problema continua intacto. Porque € que nos conta a vida? Problema grave e que toca no préprio fundo do pensamento de Descartes. Creio, por mim, que ele 0 faz por razdes muito pro- fundas. Exactamente contrdrias, ainda para mais, aque- las, muito superficiais, que nos da. Estas implicariam, com efeito, que 0 método cartesiano, esse método que (segundo o titulo ivo do Discurso) Descartes declara ser capaz de «levar a natureza humana ao seu mais alto grau de perfeic4o», s6 teria um valor estrita- mente pessoal, subjectivo, individual. Bom para uns, poderia nao o ser para outros! Ora, nada é menos carte- siano que isso. Implicariam, em’ seguida, que, neste método, cada um pode escolher 0 que Ihe agradar. Agar- rar umas coisas e deixar ficar outras. Nada, de novo, € menos cartesiano. O método, método da diivida e das ideias claras, forma um bloco de que nao se pode sepa- rar nada. E€ 0 método, ou seja, 0 caminho, 0 tinico caminho capaz de nos libertar do erro e levar-nos ao conhecimento da verdade. Sim, sem chivida que 0 método de Descartes nao é de aplicagdo universal. O caminho que seguiu no serve para toda a gente, ¢ Descartes no 0 propée como um modelo que toda a gente devesse imitar. E que é muito penoso, muito longo, muito perigoso, e s6 aproveita aos que tém a forea necessdria para o seguir até ao fim. todos os outros, para todos os que, «julgando-se mais habeis que o que so, ndo se podem impedir de precipitar 7 0s seus juizos nem tém paciéncia suficiente para condu- zirem por ordem todos os seus pensamentos [...]», tal como para todos os «que, tendo razio bastante, ou modéstia, para julgarem que séo menos capazes de dis- tinguir 0 verdadeiro do falso do que alguns outros pelos quais podem ser instruidos, devem preferivelmente con- tentar-se com seguir as opinides desses outros em vez de procurarem eles préprios melhores», 0 exemplo carte- Siano nao convém de maneira nenhuma. S6 poderia ser- “Ihes prejudicial, porque «se alguma vez tivessem tomado a liberdade de duvidar dos principios que rece- beram e de se afastar do caminho comum, nunca seriam capazes de se manter no atalho que é preciso tomar para se ir a direito e permaneceriam perdidos durante toda a vida». Ora, «o mundo quase que é s6 composto por [estas] duas espécies de espiritos...». Nao é para eles, ndo 6 para a multiddo que Descartes escreve, mas para 0s que tiverem as forgas necessrias e forem capazes de o seguir até ao fim. Também ndo era para a multidao que Platéo compunha 0s seus didlogos ¢ que Santo Agostinho escre- via a sua historia: a historia da sua conversio a Deus. Porque se no Discurso, esas ConfissGes cartesianas, Descartes nos conta a histéria da sua vida espiritual, a histéria da sua conversio a0 Espirito, nao 0 faz para no- la dar a conhecer no que ela tem de individual, de pes- soal, de singular. Conta-no-la, pelo contrério, para nos fazer reflectir seriamente, para nos fazer ver nessa hist6- tia individual, pessoal, 0 resumo, a expresso da situa- cdo essencial do homem do seu tempo. E para nos levar a realizar, com ele, os actos essenciais, os tinicos que pet- mitem ao homem superar e vencer 0 mal do sew tempo. E do nosso. Esse mal do seu tempo, essa situacdo existencial, pode- mos exprimi-los em duas palavras: incerteza e confusio. Estados de alma que se explicam, de resto, facilmente pela histéria da época que precede Descartes. ‘© século xvi foi uma época de importancia capital na histéria da humanidade, uma época de um enriqueci- mento prodigioso do pensamento ¢ de uma transforma- ¢ao profunda da atitude espiritual do homem; uma 18 época possuida por uma verdadeira paixdéo da desco- berta: descoberta no espaco ¢ descoberta no tempo; pai- x20 pelo novo e paixao pelo antigo. Os seus eruditos desenterraram todos os textos enterrados nas velhas bibliotecas monésticas. Leram tudo, estudaram tudo, editaram tudo. Fizeram reviver todas as doutrinas esque- cidas dos velhos filésofos da Grécia e do Oriente: Platao € Plotino, o estoicismo e o epicurismo, 0 cepticismo e 0 pitagorismo, o hermetismo ¢ a cabala. Os seus sdbios tentaram fundar uma ciéncia nova, uma fisica nova e uma nova astronomia; os seus viajantes e aventureiros sulcaram 0s continentes e os mares, e os relatos das suas viagens levaram a concepao de uma geografia nova, de uma nova etnografia. Alargamento sem igual da imagem historica, geogré- fica, cientifica do homem e do mundo. Fervilhamento confuso e fecundo de ideias novas ¢ de ideias renovadas. Renascimento de um mundo esquecido e nascimento de um mundo novo. Mas também: critica, abalo e enfim dissoluco e mesmo destruigo e morte progressiva das antigas crengas, das antigas concepcdes, das antigas ver- dades tradicionais que davam ao homem a certeza do saber e a seguranca da accdo. De resto, uma coisa supde a outra: o pensamento humano é, na maior parte dos casos, polémico. E as verdades novas estabelecem-se, quase sempre, sobre o timulo das antigas. Seja qual for, de resto, a validade desta tese geral, ela éverdadeira para o século xv1. Que tudo abalou, tudo des- truiu: a unidade politica, religiosa, espiritual da Europa; acerteza da ciéncia e a da fé; a autoridade da Biblia ea de Aristoteles; o prestigio da Tgreja e o do Estado. Um amontoado de riquezas e um amontoado de escombros: tal é 0 resultado desta actividade fecunda e confusa, que tudo demoliu e nada soube construir, ou, pelo menos, acabar. Por isso, privado das suas normas tradicionais de juizo e de escolha, 0 homem sente-se per- dido num mundo que se tornou incerto. Mundo onde nada € seguro. E onde tudo é possivel. Ora, pouco a pouco, a diivida instala-se. Porque se tudo ¢ possivel, ¢ que nada é verdadeiro. E se nada é seguro, 86 0 erro é certo. 19 Nao sou eu quem tira esta conclusao pessimista do esforgo magnifico da Renascenca. Trés homens, trés con- tempordneos, tiraram-na antes de mim: Agrippa, San- Montaigne. one Sate 1580. depois de ter passado em revista todos os dominios do saber humano, Agrippa proclama a incer- teza e a vanidade das ciéncias. Cinquenta anos mais tarde, depois de ter submetido a exame critico a humana faculdade de conhecer, Sanchez reitera, e mesmo agrava, © julgamento: Nao se sabe nada3. Nada se pode conhe- cer. Nem 0 mundo, nem nds proprios. Enfim, Mon- taigne acaba e faz o balango: 0 homem nada sabe, por- que 0 homem ndo énada. ( caso de Montaigne é muito particularmente instru- tivo e curioso: este grande destruidor s6 0 é, na reali- dade, contra sua vontade, O que ele queria demolir nao era, de inicio, sendo a supersticao, o preconceito € o erro, © fanatismo da opiniao particular que se faz passar pot verdadeira e se julga tal sem razio. Nao é por culpa sua se a sua critica Ihe deixa as maos vazias: de facto, nada € mais que «opinido> num mundo incerto. Montaigne tenta entao a manobra socratica, a mano- bra classica da filosofia em desespero. Porque a filosofia tenta sempre dar-nos uma resposta a dupla quest&o: «o que é que €?» e «que sou eu’ se se preferir: «onde estou eu?» e «que sou eu?» me ponho esta pergunta. Nas épocas felizes, ela comeca por aquilo que & pelo Mundo, 0 Cosmo, ¢ € a partir do Cosmo que tenta responder a pergunta ‘que sou eu?» procurando 0 local, o lugar que o homem ‘ocupa na «grande cadeia do sern, na ordem hierarquica do real. Mas nas épocas «criticas», épocas de crise, em que 0 Ser, 0 Mundo, 0 Cosmo se torna incerto, se desa~ grega e estilhaca, a filosofia volta-se para o homem. ‘Comeca ent&o pelo «que sou eu’ interroga aquele que poe as questdes. 2Cf. Henrici Corelli Agrippa de Nettesheim, De incerttudine et Lugéuni, 1581 20 E justamente o que faz Montaigne. Abandonando o mundo exterior (objecto incerto da opiniéo incerta), tenta dobrar-se sobre si proprio ¢ encontrar em si o fun. damento da certeza, os principios firmes do juizo. Do juizo, ou seja, do discernimento do verdadeiro e do Salso. se descreve, se 0 «inconstante io onde apoiar a norma do juizo. Repitamos que nao ¢ culpa sua se, também ai, nao encontra nada. Nada senéo incerteza ¢ vazio, Nada sendo finitude e mortalidade. Diante desse vazio, que fard entio Montaigne? Nao fard absolutamente nada. Admite 0 fracasso. Aceita-se tal qual 6, tal qual a sua andlise 0 revelou a si préprio. Que fazer, de resto, onde nao ha nada a fazer seno renunciar a esperanga impossivel, acomodar-se, aceitar 0 que ? Voltar atrés, revoltar-se num impulso de deses- pero, tentar recoser o véu da ilustio que se rasgou? Para chegar ai Montaigne é demasiado honesto, demasiado viril, demasiado licido. Os Ensaios nao so um tratado de desespero. Sko um tratado de remincia. © cepticismo, todavia, néo ¢ uma atitude vidvel. A longo prazo, é intoleravel. Nao tenhamos ilusdes: «0 fofo travessciro da diividan é muito duro. O homem nao pode renunciar definitivamente, sem esperanca, & cer- teza, 4 «seguranca do juizo», como diz Descartes. Tem necessidade dela. para viver. Para se orientar na vida. Por isso, desde o fim do século xvi, desenha-se um movimento de reaceao: P. Charron, Bacon e Descartes — a £6, a experiéncia, a razio. Pierre Charron, a bem dizer, nao tem nada para opor a Montaigne. Salvo o facto de a situagao revelada por ele ser, no sentido proprio do termo, insuportavel, e condu- Zir-nos ao desespero. Se a razdo nao nos pode salvar, tanto pior para ela! Ou tanto melhor: resta-nos a fé. A critica céptica, a critica de Montaigne, sem dtivida que minou as bases da teologia escolastica, da apologé- tica tradicional, das provas habituais da verdade rel giosa. Mas, objecta Charron, a critica céptica destréi-se 21 asi prépria, As provas por nao valem nada, sem diivida, Em contrapartida, as provas contra ndo t@m igualmente valor. Assim, em face da incerteza da raziio natural, Charron ergue a certeza sobrenatural da fe. © fideismo céptico de Charron teve, é preciso confessi-lo, muito pouco sucesso. O que compreensi- vel: o «sentimento religioso» é uma coisa quase desco- nhecida na sua época. O Deus do século nao é um Deus sentido — Pascal ainda nao o inventara —, é um Deus ‘provado. Ora, tal como mais tarde dira Descartes na sua Epistola aos Doutores da Sorbonne, «embora seja abso- lutamente verdade que ¢ preciso acreditar que ha um Deus porque assim € ensinado na Sagrada Escritura ¢, por outro lado, que é preciso acreditar na Sagrada Escri- tura porque ela vem de Deus [...] nao se poderia, toda- via, propé-lo aos infigis (ou seja, aos cépticos ¢ aos libertinos), que poderiam achar que se cometia com isso © erro que os Logicos chamam um circulo». Por isso, a Sagesse de Charron nao detém 0 movimento céptico: pelo contrario, torna-se 0 seu breviario. ‘Charron é um homem de Igreja, Bacon é um homem. de Estado. O que o preocupa a ele nao é a certeza reli- giosa, 0 destino eterno do homem no além: € 0 pro- gresso das ciéncias e das invengGes titeis, o destino tem- poral do homem aqui em baixo. Nao é a beatitude que aspira: é ao bem-estar. Por isso, nao € no passado mas no futuro que procura um remédio para os males do pre- sente. Bacon aceita a critica do céptico. Ninguém melhor que ele classificou os erros humanos; ninguém melhor do que ele revelou a sua origem, simultaneamente natu- ral e social; ninguém tem menos confianca que ele nas forcas espontaneas préprias da razao. "A razio — a razdo teérica — esté, sem diivida, doente, impotente, cheia de quimeras e de erros. Bacon toma entio uma’ deciséo. O que Ihe importa, o que, segundo ele, importa a0 homem, nao ¢ a feoria, a espe- culagdo, mas a acedo, porque o homem é agente antes de “Pierre Charron, Les Trois Vérités, Pavis, 1593; De la sagesse, Paris, 160. 22 ser pensamento. Por isso, é na accao, na prdtica, na experiéncia que se encontram, para o homem, as bases seguras e certas do saber. A razdo tedrica é a louca da casa. Perde-se logo que deixa a experiéncia. O que é pre- ciso, entdo, é no a deixar a solta. E preciso dar-Ihe um lastro, trava-la com regras numerosas e precisas, trazé-la 4 forga ao solo firme do uso empirico. ‘A experiéncia — aqui esté o remédio de Bacon. © Novum Organum nao tem outra finalidade: & incer- teza da razo entregue a si mesma opor a cerfeza da experiéncia ordenada. Bacon julga ter sido bem sucedido, ¢ 0 livro ardente sobre A Dignidade e 0 Progresso das Ciéncias5 res- onde, até pelo titulo, ao livro desiludido de Agrippa. A solucao de Bacon teve um sucesso enorme, Sucesso puramente literdrio, de resto, Porque esta ciéncia nova — ciéncia activa, empirica e pratica — de que os seus livros anunciavam 0 advento, ele nao a tinha posto em prética. E ninguém o fez depois dele. Pela simples razio de que era impossivel. O empirismo puro nao leva a nada. Nem mesmo a experiéncia. Porque toda a experiéncia supde uma teoria prévia. Interrogacao da natureza, a experién- cia implica uma linguagem na qual seja formulada. E foi por ndo o ter compreendido e por ter querido «seguir a ordem das coisas e no a das razdes», tal como disse Descartes, que a reforma baconiana foi um fracasso. Foi por o ter compreendido ¢ ter seguido o caminho inverso que a revolucao cartesiana, que liberta a razo em vez de a entravar, foi um sucesso. Esta breve digressdo histérica parece-me necesséria para fixar 0 lugar histérico do Discurso, 0 pano de fundo sobre que é preciso projecté-lo para o podermos compreender. Creio, com efeito, que se compreende mal © Discurso, ¢ mesmo Descartes, se nao se vir que sobre eles se estende a sombra poderosa de Montaigne. Os adversarios de Descartes sao, sem diivida, Aristéteies e a escolastica. Mas nao sao, todavia, os seus wnicos 5 Cf, F Bacon, On the Proficiency and Advancement of Learning, Lon- don, 1605; em latim: De dignitate et augments scientiarwm, Londini, 1623. 23 adversérios, tal como demasiadas vezes foi dito, tal ‘como outrora eu proprio o disse (a estes trata-se de os substituir e ndo de os combater): 0 adversétri a e talvez sobretudo, Montaigne. Ora, Mont mesmo tempo, o verdadeiro mestre de Descartes. ‘A obra destruidora e libertadora de Montaigne — a luta_contra as «superstigdes», 0s «preconceitos», as «opinides feitas», a falsa racionalidade escolistic: Descartes prolonga-a e leva-a até ao fim. A duivida transformada em método, apoiada na certeza da ver- dade reconquistada, torna-se nas suas maos uma pedra de toque, um poderoso instrumento de critica, um meio de discernimento do verdadeiro e do falso. A inversio ica, a viragem para si mesmo — Descartes segue Montaigne, ultrapassa-o ise até ao fim. ‘A atitude céptica de Montaigne — Descartes combate-a, levando-a, também a ela, até ao fim. E nisso, nesse radicalismo inflexivel e fixo do seu pen- samento — virtude muito rara e que exige muito mais que simples qualidades intelectuais, por muito grandes que elas sejam, virtude que exige audacia, coragem, que supde a determinacdo de nio se deixar ficar pelo caminho, antes perseverar nele custe o que custar, nao obstante os obsta- culos, ndo obstante os absurdos aparentes — é nisso que consiste a grandeza de Descartes. E, porque foi em tudo até ao fim, péde salvar-se do birinto do erro e da duivida, e onde Montaigne néo tinha sabido encontrar nada, nada além de vazio e de finitude, ele soube, ele, Descartes, descobrir a clareza da liberdade espiritual, reencontrar a certeza da verdade intelectual e encontrar Deus. E essa a verdadeira tarefa do Discurso: reencontrar-se a si proprio e, para além da divida que arruina a «opiniao racionaix, mostrar 0 caminho para a clareza e para a certeza do conhecimento intelectual. O Discurso responde aos Ensaios. A histé- ria espiritual de Montaigne, Descartes opde a sua pro- pria. A histéria de uma derrota, o relato de uma vitoria. 24 2 O COSMO DESAPARECIDO

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