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Para uma ve ndotacista/ Margaeth Rago, Afedo Veiga-Net, xganiaadoves, = Belo Horizonte: Autntca Edtora,2009.~ (Coleco Estudos Foucaulans) Biodogratia '58N 972-85-7526-420.9 1. Artigs floséfens 2. Fascsmo 3, Flosofa francesa 4, Foucault, Michel, 1926- 188 - Cie interpreta. Rago, Margareth I. vega, alfredo. Ste. 09-1034, cov. 194 Margareth Rago Alfredo Veiga-Neto (Organizadores) Para uma vida nao-fascista @ Estuvos Foucauttianos auténtica ee ee FOUCAULT, Mich hemes dst Tago de Sana Mich A emit ds i, Taso Tice Adsense So re: MariesFones, 2000 FOUCAULT, Michel Nascimento da biopolt 5 FOUCAULT, Mishel Nau biopoltica. Teadugao de Eduardo Brandio. Sie FOUCAULT, Michel. Segura ir roucat tl Swan ‘enti, ppulagio. Tradugo de Eduardo Brandio. FOUCAULT, Michel, Le gowenement Fouc oo de soe des autres, Pais: Gallimard /Seuil, FOUCAULT, Michel Do goveme do ios 7 etn a so dot vivo Tiago de No Vere. Sio Paulo: Nu-Sol, v. 12, 2007, p. 270-298. 2 ie KADARE, Ismail. A jitha de Aj -mnardc c de Aaron, O sia, Tadugio ‘So Paulo, Companhia das Letras, 2006. eee ee KLIMA, Ivan. Amor ¢ liso. Tradugio Eduat i xabea, ten 4 iio Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: NIETZSCHE, Friedrich. Aurore. Tradi Jurors. Tzadugio de Paulo César de Souza, Si ee i¢fo de Paulo César de Souza, Sto Paulo: RATZINGER,ogh Hows sss Td a mts. Tg Robes ‘Martins. Sdo Paulo: Quadrante, 2007. iaeeniareriahientebca RESENDE, Pau & PASSETT, ion Palo ans Cientistas Sociais, v. 56, 1986. nei ea ROTH. Philip. Entre nbs. Ta it ROTH Pip Exe nbs Traduca de Pal Henigue Beto, So Palo: Comps: SAO FRANCISCO DE SALES, i a deo, Tadeo se od Go, ean: Vrs 5 in pn em hip Jono oi itn ole dt one STIRNER, Max. O since a sua propriedade a STIRNER, Ms Propriedade. Teaducio de Jo30 Barrento. Lisboa: Foucault e os estudos queer ‘Guacira Lopes Louro Aproximmar Foucault dos estados queer pode soa cestranho. Mas isso seca, de certa forma, o experado, j& que queer sempre fiz pensar no es rnho, no esquisito, no excéntrico. Queer parece ser algo que incomoda, igus exeapa das definigdes. © termo fica atenuado quando dito assim, fm portugues. Provavelmente porque deixa escondido sva historia de Sbjesdo. Usado para indicar 0 que & incomum ou bizaro, 0 emn0 ingls & também, a expresio pejrativa atsibufda a todo sujeito nio- eros. Equivaleria a “bicha”, “viado”, “sapatio”. Um insuito ane, repetio & exaustio, acabor sendo deslocado desse local desprezivel, foi seerido e assumido, afirmativamente, por militantes ¢ estudiosos. Ao we yuto-denominarem quer, cles e clas reiteraram sta dsposisdo de viver # diferonga ou viver a diferenga, Foram (e sio) homens ¢ mulheres que recusam a normalizacio e 2 integragio condescendente. Queer puso a se, eno, mais do que o qulificativo genérico Pars gays lsbicas, bisexuals, transgéneros de todas a8 col@neOss ‘Acexpressio tanhou forga politica e tebrica e pass a designar um jeito transgressive aortas no mundo e de pensar © mundo. Mais do que uma nova posigéo de sajeito, queer sugere um movimento, uma dsposicio. Sup6e & no Scomodagdo, admite a ambiguidade, o nio-Logar, 0 trinsito, 0 estar-ente Sugere fraturas na episteme dominante. ‘Como esse movimento pode se ligar a Foucault? ‘Algans poderiam argumentar que Foucault esté na origem do que ‘yeio ase chamarteotia ou estudos quer. Nao fago est afirmacion Entendo {que a busca de origens ou principios € pouco coerente ‘quando se pretende seutir um campo tebrico dito pos-esteaturalisa. Além disso Foucault nunca pretendeu fandar qualquer teoria nem inaugurar nada. Mesmo com tais ressalvas, estou convencida de que o queer esti enredado com 0 pensamento de Michel Foucault. As ideias do filsofo se consticuem em. ‘uma das condiges de possibilidade para a construgio de um modo queer de ser e de pensar, E sobre algumas dessas ligagSes ou sobre esse enredo que me disponho a fala. Por um lado, queer tem a ver com discusses ¢ fraturas internas dos ‘movimentos organizados das chamadas “minorias” soxuais, com dissensSes em relagio aos propésitos ou alvos prioritérios dessus lutas. A politica de identidades, ao mesmo tempo em que visibilizava e fortalecia os movi- ‘mentos sexuais, também sugeria uma unidade que, para alguns/mas, se aparentaya a uma nova forma de normatizacio. Por outro lado, queer se vincula a vertentes do pensamento contemporineo que problematizam nogdes clissica de sujeito, de identidade, de agéncia, Ao longo do século XX, tebricos de distintos campos ajudaram a descentrar ou a perturbar o sujeito racional, coezente e unificado; o sujeito senhor de si, aparentemente livre © capaz de tragar, com suas préprias mios, o seu destino, Foucault fi um desses te6ricos. Ele formulou questées novas, revicou verdades A respeito da sexualidade, duvidou do suposto siléncio e repressio que a teriam cercado e afirmou que, em vez disso, essa era urna questio sobre a qual muito se flava e hi muito tempo, Assumindo sua ética, passamos a afirmar que a sexualidade era e & construfda discursivamente, O dispositivo da sexualidade vinba sendo construido pelos discursos da igneja, da psiquiatria, da sexologia, do diteito, desde finais do século XTX. ais discursos produziram classificagdes, dividiram individucs e priticas, criaram “espécies” e “tipos” e, simultaneamente, modos de controlar a sexualidade. Produziram sujeitos e corpos ou, para usar a contundéncia de Judith Butler, se constituiram (e continuam se constituindo) em dis cursos que “habitam os corpos, que pastam a ser cartegados pelos corpos “como parte de seu préprio sangue” (BUTLER apud Prins ¢ Meyer, 2002, . 163). Conforme Foucault, o processo entio desenvolvido acabou por Possibilitar, também, a formagio de um “discuso reveso”, iso é, um discurso produzido a partir do lugar que tinha sido apontado como a sede da perversidade, como o lugar do desvio e da patologia: a homos~ sexualidade. Mas'“a anilise de Foucault das ‘espirais perpéraas do poder € do prazet’ produzidas nos discursos da sexualidade ndo pode se reduzir ficilmente a uma oposigio bindria entre discurso e discurso reverso”, como lembta, oportunamente, Tamsin Spargo (Sparco, 1999, p. 22), Foucault nos convida a extrapolar tal polaridade, 20 afirmar que vivemos uma proliferagdo ¢ uma dispersio de discursos, bem como uma dispersio de sexualidades. Em suxs palavras, “assstimos a uma explosio visivel das sexualidades heréticas” (Foucautt, 1993, p. 48). Na esteira dessasideias, os estudos queerassumem o cariter discursivo da sexuaidade e, seguindo Foucault (mas também Derrida), questionam binarismos de toda ordem, Aswumem a dispersio e « multiplicidade; aclamam a “proliferagio de prazeres” ¢ a “multiplicagio de sexualidades disparatadas” (FOUCAULT, 1993, p. 48); acollnem sujeitos e priticas que negam ou contrasiam as normas regulatérias das sociedades. Provavelmente sio muitos os elementos dos escritos foucaultianos que se poderia perceber enredados no movimento queer. Particularmente, me chamam a atengio suas formulagdes ¢ comentérios sobre a resistencia, Indmeras vezes Foucault falow sobre a resin, Chg meso 4 e feria ser tomada como um ponto de partida ou co ee a eee quimico, de forma a tazer& luz as relagdes de poder, localizar sua posgio, encontrar seus pontos de aplicagio e os métodos usados” (Foucaurt, 2008). A compreensi da resisténcia como intrinseca endo externa as relagdes de poder; uma resisténcia entranhada no tecido social, no cotidiano, no banal combina com o queer. A insubordinacio, © io-acomodamento, a ecusa a0 ajustamento sio algumas de miltipas formas aque a ressténcia pode assumic. A par6dia e o camp’, expressbes de ironia € de uma estética dstinss, podem representar, na pés-modemidade, um modo de resist, podem se constituir em uma forma especial de critica ~ aquela que se fz de dentro ou por dentro. O exagero € a artificialidade desses movimentos desconstroem, eventualmente, figuras e priticas tidas como natunis; confrontam normas e valores; podem ter expresso politica e se constituir num modo de recusar, de reagir e contestar. Foucault afirmava que a subversio ocorreria no interior das estruturas discursivas existentes. Esses movimentos parecem funcionar desse modo. Linda Hutcheon, discutindo sobre a pritica parédica na pés-moder- nidade, sugere que essa nio se reduziria 3 “imitagdo ridicularizadora”, mas "Dial de dit ov mmo de decvet = como sou San Sotg 8 ago ce [Notes om eamp (987) ~ 0 cong & usolmere reaclonado ao exapeco, 3 aetapf, UMA ‘peal qu iron ow sdiculiea 0 que ¢ dominante, Lembrando de si dificil wadao part 2 ports, Delon Lape sf ae, “como comport cng pode compe ‘etn, katte cago de cero omonenn oo ingle ein como gio ‘ccs, 0 ap esi mais fer do begs suid, sem culpa, to rents nos ger sruits ds cones a MBB.” (LOPES, 2002, p. 28) poderia ser compreendida “como uma repeticio com distincia critica que ‘permite a indicagio iténica da diferenca no proprio mago da semelhanga” (Hurcs#0N, 1991, p. 47). A estudiosa lembra que essa pritica pastou a ser popular entre artistas vinculados a grupos tradicionalmente postos & macgem (negros, mulheres, minorias sexuais ¢ €tnicas) como uma espécie de “acerto de contas ¢ uma reagio de maneira critica e criativa, em relagGo 4 cultura ainda predominantemente branca, heterossexual e masculina na qual se encontravam” (HUTCHEON, 1991, p. 58). E possivel perceber potencial sub- versivo na ironia e no humor e esses, muuitas vezes, podem se constituirem formas privlégiadas de dizer © que, de outro modo, nio pode ser dito. E nese contexto que trago a figura da drag queen, tio recorrente nos textos queer. Com seu exagero ¢ exuberincia de comporcamento, gestos, trajes e acessrios, uma drag queen parodia a feminilidade, Nesse movimento, a0 mesmo tempo em que incorpora, ela desafia o feminino e denuncia sua fibricagio. Imitar um género pode ser uma forma de mostrar 0 cariterimi- tativo dos géneros em geral; mais do que isto, pode ser um modo de desna- turalizar a ligacio entre sexo e género que 6, ordinariamente, tomada como natural, Parédias usualmente também pem em xeque nogdes de origem. ou de originalidade, Seré atevimento ler resisténcia nessa figuracio? Jadith Butler, uma das mais conhecidas teéricas queer, valeu-se de Foucault para construir alguns de seus argumentos. Sua leitura do filésofo é, como qualquer leitura, uma apropriacio singular e uma intervengio. E Foucault que lhe permite, por exemplo, construir a nogio de “normas regulatSrias da sociedade”, normas que, segundo Butler, super continui~ dade e consequéncia entre sexo, género e sexualidade (BuT1sn, 1999). Tais normas regulat6rias tim um cariter performativo?, quer dizer, sua citagio € tepetigio fazem acontecer, isso é, produzem aquilo que nomeiam. ‘Uma l6gica heteronormativa rege 2 sequéncia que presume que, 20 nascet, umn corpo deva ser designado como macho ou como fémea, 0 que implica’, por conseguinte, astumir 0 género masculino ou feminino e, caf, expressar desejo por alguém de sexo/género oposto 20 se. Um corpo * pr mtn coneio pp oo de primate, ogmimente cons 29 debs oc or he: per see tartans user fede} Dein ue ene concn pune pes teats cena Geer do relate nor ou euch ptt Et pa useage so doen’ onde af eens pu cor mrinkne rcpt evens epee pn oli ono de corpo pn ma ig Sad + eee aes srtaoeaae baceasaal merrae ese tea vviével, ou melhor, um sujeito pensdvel estio, portanto, ciscunscritos 20s contomos dessa sequéncia “normal”. Uma vez que @ logica que sustenta tal processo ¢ bindria,toma-se insuportivel (e impensivel) a multiplicidade dos géneros ¢ das sexualidades. Aqueles e aquelas que escapam da sequéncia «das notmas regulatérias arviscam-se, pois, no dominio da abjecio. |A figura da drag pode ser interpretada como critica & naturalidade dessa sequéncia, Personagem estranha, els, de algum modo, escapa ou deslza da cordem e da norma e, por isso, provoca desconforto, curiosidade e fiscinio. ‘A diag passa a existic como personagem quando se “monta”, isso é, quando, assumidamente, inventa sua aparéneia, E nesse momento que efedivamente 2 dng incorpo, rorna corpo. Excrevendo sobre els, perguntei em outro texto: “De ‘que material, tragos, ros ¢ vestigios ela se fiz? Como se fiz? Como fibricasew ‘corpo? Onde busca as eferéncias para seus gestos, seu modo de sere de estar? ‘A quem imita?, Que principios ou normas cita e repete? Onde os aprenden?” (Louno, 2004, p. 20). Aquelas perguntas, acrescento agora: Quando expoe as formas de montagem do género, a dag nfo toma evidentes, também, os “pontos de aplicagdo do podec”, como dizia Foucault? Sua exitica parbdica no nos ajuda a perceber por onde passa 0 poder ou como ele passa? [Em uma nogio tradicional de poder éssas perguntas, provavelmente, io fariam sentido. Quando o poder & compreendide como algo que alguém possui e que é disputado por um outro que € dele despossuido, quando & compteendido como uma relagio na qual hé um domixante ¢ um dominado, uma relagio na qual um sujeito pode impor proibir ages ou priticas a outro sujeito, essas questies ndo cabem. ‘Mas Foucault promovew uma revitavolta em tudo isso, quando se dispés a examinar a dindmica do poder e afirmou que esse funcionaria zuma espécie de rede, exercido a partir de miltiplos pontos que, sisulta~ neamente, também produziriam resistencias. Reviravolta que, para além da repressio, acentuou o carSter produtivo e positive do poder. Assumindo ‘essa no¢io, faz sentido, ento, pensar pot onde se infiltra o poder, como se manifesta e as indimeras respostas que incita. Outras implicagSes podem ser contempladas. David Garcia lembra ‘que “numa concep¢io na qual é a propria rede de relagées de poder ‘que produz os sujeitos” (como se dina ética de Foucault), “é necessirio remeter-nos & dinimica e 4 estruturacio da rede ¢ nio 3 interioridade dos sujeitos ou a uma exterioridade independente da relagio de poder” (Gaacts, 2005, p. 30). Entio, menos do que tentar descobrir se a figura da drag queen pode ou nfo ser tomada como revolucionitia, parece produtivo tomé-la como instincia para pensara dindmica e o funcionamento do poder impli- ‘cados na construsio e reprodugio dos géneros e das sexvalidades. Nao se ‘ratar de propor a figura como um eventual projeto ou modelo ~ isso no faria sentido numa ética queer ~ mas nela se reconhece potencial critico e desconstrutivo da normatiza¢a0/naturalizagio dos géneros. ‘A nommatividade dos génevos est extreitamente articulada manutengio da heterossexualidade. E somente através da heterosexualdade que nogies de ‘oposigao e complementaridade dos géneros masculino/féminino sio garanti- as, No entanto, a heterossexualidade no 6 um regime fechado em si mesmo, coerenté e monoltico, pelo menos nao é assim tomado no ambito dos estudos queer (CE. GaRcis, 2005). Em ver. disso, entende-se que esse regime (como ‘qualquer outro) tem fissuras¢ incoeténcias. Na sustentago desse argumento, ganha peso a nogio de resisténcia formulada por Foucault, uma vez que cla admite que a subversio é fita a partir da norma, ocorre no proprio intesior norma, Sendo assim, entendo que se poderia dizer que &, precisamente, a necessidade de repeticio ou de reiteracio da heterosexualidade que fornece as ondigdes para que se aticulem priticas de resistencia, Se a heterossexualidade fOsse efetivamente natural ¢ dada no haveria necessidade de empreendimentos « esforgos continuados para garanti-Ia, No proceso repetido, continuado & sempre inconcluso de produzir 08 géneros € que ocorem os deslizamentos, 2s desarmonias ¢ desaranjo. A repeticio incesane das normas permite © incita, 20 mesmo tempo, sua resisténcia, Na medida em que regime da sexualidade passa a ser entendido como “eftito de uma multiplicidade de préticas, de uma dispersio de pontos de dominacio e de resisténcia”, como diz Garcia (2005, p. 45), € possivel supor algumas consequéncias politicas. A resist8ncia nfo seri ‘mais procurada apenas naqueles espacos explicitamente articulados como politicos. Por certo nfo se negari a importancia de espacos ou movimen- tos que, declaradamente, se cotocara no contraponto da imposicio das rnormas heterossexuais, mas se pissari a observar, também, outras priticas € gestos ensaiados de outros tantos pontos como capazes de se constituir ‘em politicas de resisténcia. Garcia afirma que “‘jé no nos encontramos nna dicotomia iberacionista entre alienacio (Esa consciéncia) e liberagio (Conscientizagio politica). A resistencia se dati em lugares miiltiplos de forma nem sempre intencional e consciente. Os pontos de subversio do sistema do regime (hetero)sexual estatio dispersos por todo o espaco delimitado por este regime” (Garcia, 2005, p. 45). Quero acentuar a potencialidade politica dessa perspectiva e, também, a oxigenagio que ela parece trazer is representagbes irremediavelmente pessimistas da sociedade. Na medida em que se assume que 0 contraponto aos discursos domiinantes pode ser (¢ é) exercido a partir de miltiplos espacos e priticas, parece razofvel supor que outros ou que mais sujeitos intentam formas de resistic e de contestar. Formas talvez menos espetacu- Jares ou menos visiveis, mas (quem sabe?) igualmente produtivas. £ possvel supor também que, hoje, se questione o campo da sexuali- dade de outros modos. Ji nio se coloca como imperativo, pelo menos para alguns, descobrir as causas dos desvios da heterossexualidade, mas, em vez, disso, examinar 0s discursos que permitiram que essa forma de sexualidade fosse tomada como natural, ou melhor, exatninar 0s discursos que fizeram, ‘com que essa se constituisse em uma verdade tinica ¢ universal. Consequen- temente, os olhares se voltario, também, para os processos que silenciaram outros discursos empurraram outras formas de sexualidade para o lugar ilegitimo, nio-natural¢ inaceitivel. Para aléin do questionamento da hereronormatividade, se passa a ques- tionar a “produgio/maquinacio de uma homonormatividade”, como diz Fernando Pocaby (2008), ou seja, a produsio de uma noma homostexual, capaz de alienar outras formas de sexualidade, A polatizagio constituide pela hetero/homonormatividade passa 2 ser desestabilizada e desconstruida, Hi quem afirme que a desconstrugio pode ser entendida como um terremoto que, muitas vezes, se desencedeia a partir da menor rachadara, & capaz de acontecer no mais leve tremor. Nio se pode esquecer que racha~ aras quase imperceptiveis podem se desdobrat ou se largar profundamente e produzir efeitos inimagindveis. A desconstrugio envolve, pois, aten¢io 20 ‘menor detalhe. E aqui, mais uma vez, parece se impor a lembranga de Fou- cault. Ele, mais do que outros, sugeriu que se prestasse atengio aos detalhes, 4s priticas, palavras, “coisas” aparentemente banais ¢ pouco importantes que, discretamente, enredam ¢ constituem sujeitos, Ele ofereceu, como diz Ewald, uma “mudanga de perspectiva”, ele propés que se olhasse para as “ninharias, [para] 0 grio do poder” (Ewatp, 1993, p. 27). Se os conhecimentos “maniféstam uma histéria que nfo é a de suz per~ feigio crescente, mas, antes, a de suas condigdes de possibilidades”, como dizia Foucault (1995, p. 11), hi, portanto, sujeitos e priticas que podem ser pensados no interior de uma cultura e outros que sio impensiveis, por nfo se enquadrarem na logica Gu no quadro admissiveis para aquela cultura, naquele momento, No campo da sexualidade, parece insuportivel pensar em sujeitos ou priticas, em experiéncias ou saberes que extrapolem co binarismo das nonmas ¢ que acenem para a multipicidade, para 2 mis tara, a mélange, o nio-lugar. Mas este patece ser precisamente 0 desafio ¢ ‘o convite do movimento queer: transgredir a l6gica estabelecida, pensar 0 impensivel, admitir 0 insuportivel, atravessar limites. Enredados, ainda, ‘com Foucault, buscar fissuras na episteme dominante ¢ ousar ir além. Referéncias BUTLER, Judith, Corpos que pesam: sobre of limites discursivos do “sexo”, In: LOURO, Guacira Lopes (Org). O copo edwado: pedagogias da sexualidade, Trad. ‘Tomuz Tadeu da Silva, Belo Horizonte: Auténtica, 1999. p. 151-172, EWALD, Frangois. Fowault « norma e o dito. Trad. Anténio Femando Cascais. Lisbou: Vega, 1999. FOUCAULT, Michel. A histiria da sesualidade 4+ a vontade de saber. Trad. Masia "Thereza da Costa Albuquerque eA. Guithon Albuquerque. 11*ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993, FOUCAULT, Michel, As palavas ¢ as cosas. Trad, Salma Tannus Muchail. Sto Paulo: Martins fontes, 1995. FOUCAULT, Michel. El sujetoy el poder. Disponivel em: , Acesso em: 10 mar, 2008. GARCIA, David Cérdoba. 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Abjegao e desejo. Afinidades e tensdes entre a Teoria Queer e a obra de Michel Foucault Richard Miskolci No preficio 4 edigio norte-americana de O Anti-Edipo (197), inti- tulado Por uma vida ndo-fescista, Michel Foucault adverte em sua sétima 0 se apaixone pelo poder”. O filésofo analifaria essa rela Gio entre 0 poder € © desejo ao empreender uma genealogia do sujeito modemo que criaria as bases para uma analitica do poder focada na sexualidade. E 0 foco na interseceSo entre subjetividade ¢ norma social, ow seja, entre o desejo € 0 que & socialmente qualificado como abjeto {que repousa a principal afinidade e tensio entre a Teoria Queer ¢ a obra de Michel Foucault. Contextualizar 0 projeto foucaultiano como uma hist6ria da sexua- lidade permite compreender sua incorporagio, 20 mesmo tempo seletiva e diferenciada, pelo pensamento queer. A despeito das tenses, predomina tuma afinidade entre a obra do fil6sofo e 0 empreendimento tebrico de trazer a0 presente a analitica da normalizacio. Em comum, tanto Foucault quanto os queer enfatizam a maneira como 0 poder opera por meio da adesio dos préprios sujeitos &s normas sociais. Ao invés de reprimidos, constrangidos ou vitimizados, mostram como os sujeitos costumam pac~ ticipar da ordem que os subjuga em uma forma de andlise mais sofisticada ‘e menos compassiva para com aqueles que se “apaixonam.” pelo poder. © cmpreendimento queer tém muitas fontes, dentre as quais, so ‘marcos importantes O Anti-Edipo de Deleuze e Guattari (1972) ¢ Histéria dda Sexualidade I: a vontade de saber (1976) de Foucault, obras que represen taram reagSes 4 hipStese repressiva que marcara as especuilagdo do freudo- marxismo, um conjunto amplo de teorias crticas desenvolvidas a partir da década de 1920, que buscou asiociar 4 economia-politica de Marx as descobertas de Freud para compreender 2 adesio das massas ao fiscismo, ou seja, a internalizagio subjetiva do poder. Em Histiia da Sexualidade, Foucault sintetizou a critica 4 hiptese repressiva ao afirmar que vivemos em, ‘uma sociedade que hi mais de um século fila prolixamente de seu proprio siléncio, obstina-se em detalhar 0 que nio diz; denuncia os poderes que exerce ¢ promete libertar-se das leis que a fizem fincionar. (Foucautr, 2005, p. 14) Assim, o fil6sofo afirrna que a sexualidade no ¢ proibida, antes produzida por meio de discursos, priticas que criam incessantemente 05 “objetos acs quais se referem. Portanto, 0 se fila, teorizar ou ainda legislar sobre sexo, cria-sc a sexualidade inserindo o desejo em um regime de ver- dade no qual se privilegiam alguns em detrimento de Outros. Seguindo set projeto inicial da histéria da sexualidade, Foucault ‘mostraria que a associagio entre sexo, subjetividade ¢ verdade remonta 4 moralidade pagi centrada em valores como monogamia, fidelidade e proctiacio. Essa moralidade antiga foi incorporada pelo Cristianismo, mas ‘ransfotmada de forma importante por Santo Agostinho quando descreveu ‘0 que hoje chamatiamos de libido ou desejo como o componente interno, rebelde ¢ perigoso da vontade interior. Segundo 0 teélogo cristio, a erecio involuntiria de Adio equivalia 4 sua rebelido contra Deus. A teologia moral de Agostinho problematizou o desejo de forma a ver no interior dos sujeitos uma luta espiritual que exigia um constante auto-exame, uma hermenéutica do sujeito em que 36 se alcangaria 0 dominio de si por meio da vitbria definitiva com relagio & vontade. (FOUCAULT; SENNETT, 1981) O eixo dessa luta espirtual contra a impureza estaria em descobric a verdade sobre si mesmo ¢ vencer o desejo fora das normas. ‘A hermentutica de Agostinho foi aprimorada e disseminada quer no continuo exame de consciéncia instivuido pela Reforma Protestante quer ‘por meio da confissio obrigatéria dos catélicos imposta a partir dz Contra~ Reforma, A mesina técnica espiritual disserinou-se ¢ adquiriu contomos agnésticos na vida cotidiana assim como ma sua herdeira mais conhecida, a priticapsicanalitica. © paralelo critico nfo deixa de ser esclarecedor: enguanto no passido se confessava a fraqueza da came 20 padre, desde o final do século XIX confidenciam-se segredos sexuais a0 terapeuta. Uma coisa 6 cert, 2 centralidade do desejo como meio de acesso & verdade do sujeito é uma hheranga crsti que nos lega a associaco entre sexualidade e cariter. «A Biola de Punkin fi wa dean principe vertentes do endomarssme e obra Bese Civ ‘Hes (1955) de Herbert Maroure um de evs maccor so peeiguas muita das idl que marian ‘os movimentes da contrac na década de 1960. (© projeto dos volumes finais de Historia da Sexualidade foi modificado entre o final da década de 1970 € o inicio da seguinte, portanto em um periodo histérico ainda marcado pelas consequéncias de 1968. Durante pouco mais de uma década, 0 mundo ocidental passou por transforma~ es comportamentais profindas como a disserninagio do uso da pilula, 1 aprovagio do diteito a0 aborto em alguns paises (no Brasil, apenas do divércio), a retirada da homossexualidade da lista de patologias pela Socie- ‘dade Psiquiéttica americana em 1973, a expansio e maior visibilidade de ‘movimentos sociais como 0 feminista e 0 entio chamado movimento homosexual. Pot fim, especialmente nas sociedades centrais, vigorava uma maior experimentagio sexual propiciada pela separagio definitiva ‘entre reprodugio e prazer, o que Foucault pode constatar 20 conhecer as comauinidades gays que floresciam na América do Norte. Ao encontrar no desejo 0 meio pelo qual o dispositivo de sexualidade emergiu ¢ se desenvolveu, Foucault decidiu especular sobre formas de resistincia focadas em compos e prazeres. Nesse intuito, voltou-se para cestudos hist6ricos sobre a forma como os antigos haviam desenvolvido uma relagio divetsa com as presctiges sociais, Sua priorizaglo dos prazeres em detrimento do desejo derivou, portanto, de uma tentativa de escapar 40 ponto nodal entre individuo e poder. No inicio da década de 1980, 0 filésofo mio poderia imaginar como 0 foco nos prazeres perderia seu apelo alterativo em meio a0 painico que se utilizaria da emergente epidemia de AIDS com intuitos moraizadores. Nio apenas o prazer tomou-se o grande inimigo da sadde piiblica como também foi, desde entio, associado 30 desejo destegrado ¢ i culpa pela doenga. Nesse contexto de pinico sexual ¢ dominio de um modelo epidemiolégico sobre a sexualidade também s¢ tomnou progressivamente visivel a centralidade do desejo homoerético como fantasma da cultura ocidental contemporinea.? Infelizmente, em meio & primeira vaga de fatalidades, sucumbiu Foucault deixando inacabado seu projeto renovado de histéria da sexua- lidade e, sobretudo, sem poder testemunhar a mudanga de contexto social ¢ histérico que poderia fizé-lo repensar a discussio dos prazeres como alternativa a uma aprisionamento pelo desejo. No ano seguinte & sua morte, em 1985, sua amiga antropélogs Gayle Rubin esereveria Pensando sobre * Sobre fas do desejo homocrStico na cular ocidetl contenip sine consulte PERLON- (GHER, 1987 eam PELUCIO e MISKOLCI, 2009, Sexo, um dos textos mais importantes sobre panicos sexuais, ¢ a te6rica literdtia Eve Kosofiky Sedgwick daria 0 primeiro passo em direcio a0 queer 20 publicar seu livro Between Men: English Literature and Male Homosocial Desire. Em comum, a preocupagio em compreender 0 misto de atragio e repulsa que a cultura ocidental desenvolveu pela sexualidade e pelo desejo nio-normativo, em especial, o voltado para pessoas do mesmo sexo. 0 Panico Sexual da AIDS (Os primeiros te6ricos queer eram leitores norte-americanos de Foucault que, emt meio a0 pinico sexual da AIDS na segunda metade da década de 1980, retomaram o foco no desejo como estratégia de critica sociolégica 20 impulso coletivo de purificag3o pelo expurgo ¢ eliminagio dos contamina~ dos, compreendidos como desviados sexuais, marginais ¢ estrangeir 2 Nos BUA, a resposta social e governamental 3 epidemia foi de repato- logizagao da homossexualidade em uma mistura perversa de epidemiologia do isco com ciéncias psi. Os discursos morais sobre o “mau sexo” ganhavam, ‘uma roupagem cientfica, agora que a homossexualidade, sobretudo a mas- culina, podia ser repatologizada em novos termos por meio de uma doenga {que chegou a ser anunciada como “o cincer gay". Quando a AIDS ganhou, cenfim, sua etiologia, essa veio fortemente associada aos homossexuais € suas priticas erdticas. O movimento gay foi timido nas suas respostas 20 panico sexual suscitado pela doenga poucos intelectuais ousavam contestar 0 ‘senso comum reinante. Na visio da maioria, parecia ter chegado a hora de pagarmos “pelos excessos libidinasos” cometido em nome do amor livre € dda livre expressio das sexualidades nao heterossexuais. (PERLONGHER, 1987) No limite, a AIDS constituida como DST foi a resposta médico-moralizante A geragdo 1968, a0 “desbunde” e i Revolugio Sexual.* 2 Segundo Willam B, Turner: "Os criadores da Teots Queso todas admis emis ¢ as preocupajes nfo Edovam apense com a setldade, mas embéns com tod as intenecpes de Sexualcice, goneroe ous categoria idenias que hi mit servi de base pars a orchaio ‘java da busca de comprensio di vids de pesoss musgizaaads.” (2000, p34). A despito da doen tr sido descober em 1979, oh teve sua daa de nascimento oficial em 1981, quando a autsiader do mde perecberam que dois em exda cinco conaminads eram home que se relaioawvarcotn outros homens. Para uma anise extica da constugio médica {4 AIDS como doenga semtlmente wansmisivel 20 invés de uma smi i hepaite B, conse GILMAN (1991) © pinico sexual da AIDS revelava o retomno de um “desejo coletive de expurgo” e de “eliminagio”, de forma que o contaminado se tornou ‘uma “raga”, uma “espécie”, no sentido empregado por Foucault ao discutir a invengio da homossexualidade como fenémeno clfnico. Essa “nova espé- cie” foi aglutinada na categoria clinica do “aidético”, sendo-Ihe atribuida ‘uma trajetéria moralmente condenavel. Sander L. Gilman observou que © paciente de AIDS era compreendido como um homem soffedor, a0 mesmo tempo a vitima e 2 fonte de sua prépria contaminagio (GILMAN, 1991, p. 262), de forma que a epidemia foi compreendida inicialmente de forma a desculpabilizar a maioria evocando fantasias de purificago coletiva. © saber epidemiologico, por meio da ret6rica do risco e de seu status de cientificidade, tomou-se meio de expresso de medos coletivos ‘anteriores com relagio a uma “psicologia do Outro” em que fantasias de decadéncia e degeneragio do passado se reatvalizavam. A bioidentidade do “aidético”, surgida nessa onda, tornou-se uma forma contemporinea do “judeu”.* Historicamente, devido a0 estigma religioso que os associava a uma impuréza contaminante, os judeus foram, sistematicamente perseguidos em diferentes contextos, dentre 0s quais, © holocausto nazista representou o Spice do desejo de purificagio do corpo social do elemento de poluigio. Na segurida metade da década de 1980, 2 AIDS se apresentava como uma espécie de Holocausto gay em que, 30 invés dos campos de concentragio, vigorava a proposial filta de politicas ppiblicas ou tratamento durante os primeiros anos da epidemia. Ao invés da perseguigo politica e militar, deu-se a marcagao da populacéo por meio de politicas de saide centradas no controle ¢ na testagem. Ao invés do encarce~ Tamento em campos, aistia-sea exposicio dos doentes a processos continuos de estigmatizacio, isolamento e individualizacio. Diante do pinico sexual teforgado por um alto némero de mortes, pesquisadores € pesquisadoras comegaram a desenvolver reflexes marcadas por trés aspectos. + Sobre pinics sexu consulke RUBIN (1995) «sobre a teovia tocol dos pinicos mons vis MISKOLCI (2007 A questo judsin en intesoydercom asexulidade eo ginero marcanma emergincia da Teoria ‘Quer, algo aotxio na forma como Sedgwick (199, 2007 analis os pares entre o egredo da crigem judica eo da homosesuaidide em Marcel Proust pura descavolvec su eptemologia do rls, A miora dos teen ut de origam jude, o gue ft com que na inrodueo cle- {ine orgaizads por BOYARIN etal, inslads Quer Ten and he fvisk Quation observe: "Se quer poser mas do quc um temo subiato prs homosexual ~esea Teoria Que ame secmais do que uma forma tfistada de diner mat do mesmo ~ endo & necesiro eababar nos ‘Sparos ivermectin nor qasis nora Sfeenes se sabeepSe a outrs.” 200, p. 9). Primeiro, a evitica as insuficitncias te6ricas das ciéncias sociais cand niicas e mesmo dos feminismos para lidar com questes de sexualidade fora cde um marco em que a heterossexuatidade se confundia com a propria ‘ordem natural do sexo. Assim, esse conjunto de pesquisadores eram cri- ticos tanto das vertentes do feminismo que afirmavam apenas as mulheres, como seu sujeito quanto dos saberes institucionalizados que ~no maximo — desenvolviam estudos de minorias. Os estudos socioantropol6gicos, por exemplo, 20 estudarem gays e lésbicas como culturas sexiaisreiteravam a concepgio do social como sinénimo de heterossexualidade ¢ qualquer dissidéncia como “ questo minoritiria”,? O pinico sexual da AIDS expri- mia a ansiedade coletiva diante do desejo homoerético, a qual exigia coragem teérica de ser trazida a0 discurso ¢ analisada em sua centralidade para compreender a vida social contemporinea como um todo. Politicamente, crticavam os objetivos assimilacionistas dos movimentos identtirios (feministas, gays, Ksbicos ou outros) ¢ afitmavam que 0 central rio eram as identidadles, antes as regras, as normas de enquadramento societé- ro, apontando, assim, para uma nova politica de género em que o sujeito do feminismo, nos termos de Judith Butler, nfo tinha que ser necessariamente a mulher (ou as mulheres). A nova politica de género (New Gender Politi) podia incluir sujeitos em desacordo com as normas sexuais e de género ‘como transexuais, travesti € pessoas intersex (BUTLER, 2004). Por fim, mas nio por menos, as reflexdes de pesquisadores como Eve Kosofiky Sedgwick, Judith Butler, David M. Halperin ¢ Michael ‘Warmer tomavam como axioma Histiria da Sexualidade I: a vontade de saber (1976) e, por assim dizer, levava a0 paroxismo sua andlise estendendo a reflexio foucaultiana sobre o dispositivo de sexualidade para a sua forma contemporinea. A inspiragio foucaultiana, no entanto, nio era Gmnica. As obras de Jacques Derrida, Gilles Deleuze ¢ Félix Guattari e, mais atris, Antonio Gramsci, sio algumas das fontes que marcaram o desenvolvimento do que em 1991, em uma conferéncia na California, Teresa de Lauretis denominaria de Teoria Queer. Seu objetivo era contrastar essa vertente tebrica e politica com as jé existentes do feminismo ¢ também em rela~ ‘glo aos antigos estudos gays € lésbicos. A escolha do termo queer para se denominar a teoria, ou seja, um xingamento que denotava anormalidade, * Sobce at elagds entre a Teoria Quer as Cine Soci, em particular a Socolog, consult MISKOLCI @0. perversio © desvio, servia para destacar 0 compromisso em desenvolver ‘uma analitica ds normalizagio focada ta sexvalidade, ‘A emergéncia da Teoria Queer equivale, portanto, 4 de toda uma vertente de anilise que tem por objetivo dissecar a sexualidade contempo- tinea para compreender como ela opera dentro do binirio interdependente da hetero-homossexualidade naturalizando, ¢ portanto privilegiando, as relagSes entre pessoas do sexo oposto subalternizando, silenciando ¢ tornando invisiveis no espaco pitblico as relagdes homoersticas, Dentre as obras que marcaram esse ponto de viragem nos estudos sobre sexuali- dade, destacou-se A epistemologia do armério, de Eve Kosofsky Sedgwick (1990). Nesse livre, considerado 0 fandador da vertente tedrica, logo rno primeiro parigrafo, aparece © ponto de partida do empreendimento intelectual queer Ex liveo argumentaré que uma compreensio de virtualmente qualquer specto da cultura ocidental modern er, ado meramente incomplet, mas aniicada em sua sobstincia cenmal no grau em que no incorporar uma andlsecrtica da definigo moderna homo/hetcrosental;¢ asumizd que © lugar apropiado paca compa wl anil cxtca& da penpectvarelativa- mente descentads da tora gaye an-bomofdbies moderna. (1950, p. 1) Sedgwick afirma que o armério ndo & um objeto de reflexio apenas sobre aqueles que se relacionar com pessoas do mesmo sexo, mas também © meio de regulago que garante privilégios aqueles que se relacionam com individuos do sexo oposto e mantém a ordem heterossexista com suas insttuigdes (como o casamento ¢ a familia tradicionais)¢ seus valores (como a assimetria entre os géneros). Assim, ele nio diz respeito apenas Aqueles que vivem suas vidas amorosas em segredo, mas também aos que usuffuem o privilégio de vivé-las abertamente.* (© armério é um regime que, com suas regraslimitantes no que toca 20 piblico e 20 privado, serviu para dar forma ao modo como questbes de valores, moralidade e conhecimento foram tratadas na sociedade ocidental como um todo ha mais de um século. Sua andlise permite perceber que 9 binirio hetero/homossexualidade nio se trata de verdadeira oposisio, * 0 armiro ainda extra a vida maior dos homens que buscar lage moro com outros homens. Sabre o contexte basta contemporines, consuls snuese de minha etograf fits ‘xa bte-papo gst de bares de pazceizr esos voledos para wis dx ctde de Sto Paulo em MISKOLCI 2008 | ) &, antes, um Gnico sistema interdependente que tem por objetivo reins- crever incesantemente uma hierarquia que privilegia e reitera a ordem heterosexual desprezando e subordinando sujeitos homo-orientados. De forma sintética, em 1991, Michael Wamer denominou esse sistema de heteronormatividade. O dispositive de sexualidade to bem descrito por Foucault em cua génese ganha, nas anise queer, um nome que esclarece tanto a que cle diteciona a ordem social como seus procedimentos nesse sentido. A hheteronormatividade expressa as expectativas, as demandis e as obrigagbes sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da sociedade, Muito mais do que 0 ape de que 4s relages com pessoas do sexo oposto so compulsérias, a heteronorma- tividade sublinha um conjunto de prescrigBes que fundamenta processos socisis de regalagio ¢ controle até mesmo daqueles que se relacionam ‘com pessoas do mesmo sexo.’ Assim, ela nlo se refere apenas 208 sujeitos legitimos e normalizados, mas é uma denomina¢i0 contemporinea para o dispositive histérico da sexualidade que evidencia seu objetivo: formar a todos para a heterossexualidade ou para organizarem suas vidas a partir de seu modelo supostamente coerente, superior e “natural”, Historicamente, pouco a pouco, 2 heterossexualidade passou 2 ser encarada pela maioria das pessoas como a prOpria ordem natural do sexo enquanto 2 homossexualidade tomow-se o prinefpio da diferenga sexual ¢ social, o fandamento de um novo sistema baseado na individualiza~ Glo do desejo e na atribuigio, a cada individuo, de uma orientacio € identidade sexuais. Segundo o sociélogo ¢ historiador da sexualidade David M. Halperin (2002), a homossexvalidade se revelou fundamental na articulagio da diferenga, na produgio social do desejo ¢ na prépria construgio social da subjetividade. (0 foco queer na heteronormatividade tem um duplo objetivo: analisar tanto o heterossexismo coletive materializado em mecanismos de inter- disfo e controle das elagGes amotosise sexuais entre pessoas do mesmo + Piorzoo wo de expres como “pesca que sma oxtas do meso sex0” de manic ev verter implica ex termes come homowexal asim como a penpectva minodia © Tenia que o engendia, Na penpoctva qe, 0 dejo & wnivena ssame frat valves lures eaardiment, portant ileniadesrexuais no pasam de ftereceSes entre ber € ter gus bia cma uum exabiidade Rion do dejo par individuals, conta « el tl sexo quanto a padronizagio hetero dos homo-orientados por meio de meca~ nismos subjetivos em que a sensagio de estranhamento incentiva a adesio 4g normas culeurais dominantes. Em outras palavras, para a Teoria Queerhé ‘uma relagio intrinseca entre a norma heterossexual ea formagio de sujcitos abjetos, intetiormente marcados pelo temor de que seus desejos os coloque fem uma perigosa contradicio com a ordem social. Assim, em uma situagd0 paradoxal em que seu desejo se confunde com 2 solidio de uma vida em ‘egredo, convivem com uma sensagio de impoténcia diante da coletividade ‘cujas normas os ameagam permnanentemente com a eliminacio. ‘Abjegdo e Desejo ‘A emergéncia da epidemia de HIV-ALDS permitiu que 0s saberes médicos eristalizassem 0 maior pinico sexual de que se tem noticia como resposta mralizadora 3s mudangas comportamentais profindas pelis quais passava a sociedade ocidental apés 1968. Pinico que engendrou biopoliticas que mantiverzm e aprofimndaram a crenga em um antagonismno origindrio entre 0 desejo homoerdtico e a ordem social. Nesse contexto, [Néstor Peslongher expos uma das mais corajosas e perspicazes anilises do aque denominou de dispositive da AIDS assim como seu adversirio jamais derrotado: “Nas polfticas de combate 3 AIDS, o discurso médico parece considerar os 6rgios € 0s corpos como coisas perfeitamente reguliveis. No centanto, enftenta uma incontornivel resisténcia: 0 desejo” (1987, p. 81) Desde a década de 1980, o discurso preventive que marca a sexua- lidade pés-AIDS controlou os desejos de forma a evitar 0s usos alterna tivos do corpo em busca do prazer revertendo-os para formas canénicas claramente padronizadas a partic de uma relagdo sexual reprodutiva. No passado, a heterossexualidade compulséria incentivava a manutencio deste modelo enquanto, em nossos dias, a heteronormatividade revela-se mais sofisticada em sua capacidade de modelar até mesmo as relagdes entre pessoas do mesmo sexo em diresio a formas monogimicas, legalizadas ce, quigd, firniliares. Discursos educativos, governamentais ¢ midiéticos se articulam em priticas sociais que nos formam desde a mais tenrainfincia para crermos que somos 0 que desejamos. De forma que o desejo consttui-se no porto nodal da sexualidade, ou seja, do que Foucault descreveu como um dis- positivo histbrico do poder que regula socialmente as subjetvidades € 95 corpos direcionando o desejo segundo normas sociais rigidas. O que (0 teéricos queer acrescentaram & descoberta foucaultiana foi a dissecaco dessas normas de maneica a demonstrar que o heterossexismo institucional insere-nos dentro do bindrio interdependente da hetero-homo de forma 4 construir 0 espaco piiblico como sindnimo de heterossexualidade por meio de uma “politica da vergonha” que se manifesta na recusa cognitiva das relagGes entre pessoas do mesmo sexo, A Teoria Queer converge para a proposta foucaultiana de uma analitica ch normalizago, masse diferencia no foco nas subjetividades dos sexualmente dlissidentes buscando somar & critica dos procestos sociais normalizadores tumma compreensio nio-normativa da subjetividade daqueles que vive em desacordo com as prescrigdes sexuais e de género hegem@nicas. Por meio de caminhos distintos, o que hi & uma busca de articulagio da analitica fou- caultiana do poder em um empreendimento no-moralizador quer seja em. relacio ao social ou aos saberes psi. Percebe-se o intuito de analisar o aparente paradoxo heteronormativo que privilegiasubjetivages normalizadas criando ‘outras, vigiadas constrangidas a apagar seu desejo do convivio cotidiano 20 ‘mesmo tempo que compreendem a si mesmas como produto dele. Em nossa era pés-AIDS, a repatologizacio do desejo por pessoas do ‘mesmo sexo tem seu centro na epidemiologia do risco, nos discursos de saiide piblica que montam um drama gético de crime sexual e punigio contribuindo para restaurat a associagio entre homossexualidade e doenga. Nio estamos mais nos tempos em que ela era sindnimo ‘de loucura ¢ {nternamento forgado ern hospitais psiquidtricos, antes em im momento hist6rico em que diagnésticos sobre psiques “perigosas” levam esses indi- viduos a se auto-examinarem e autocontrolarem. Diante disso, David M. Halperin afirma: “€ crucial afistarmos nossos modelos de subjetividade -g2y masculina dos discursos da satide mental, do alto drama moral do ato sexual em si, da oposigo dicotémica entre agéncia racional e patologia € da epidemiologia do risco” (2007, p. 29). ‘Equant Judith Buder bua, em um vik pscanlcolacaniano, consul una nove erogia guia apts de dir cona dis subveses do dese, David M. Hspern, por sua ves, prope 0 desenvolvimento de uma perspectva socoligica hires de compreensio du abetivdades eo,

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