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5. Esteredtipo, realismo e luta por representacao Muitos dos estudos sobre a representacao étnica/racial e colonial nos meios de comunicacio tém sido “corretivos’, ou seja, dedicam-se a demonstrar que certos filmes, de um jeito ou de outro, “cometeram algum erro” histérico, biografico ou de outro tipo. Se essas anilises sobre os “esteredtipos e as dis- torgGes” propdem questionamentos legitimos sobre a plausibilidade sociale acuidade mimética, sobre imagens positivas ou negativas, elas geralmente tém como premissa uma alianga exclusiva com uma estética da verossimilhanca-' Uma obsess com o “realismo” emoldura a discussdo, que parece se resumir a uma simples questio de identificar “eros” ¢ “distorcdes”, como se a “ver- dade” de uma comunidade fosse simples, transparente e facilmente acessivel, e “mentiras” fossem facilmente desmascaradas. Os debates sobre a represen- tagao étnica sio muitas vezes paralisados quando esbarram na questio do “tealismo’, as vezes chegando a um impasse no qual diversos espectadares ou criticos defendem apaixonadamente sua propria visio do “real”. 1 Steve Neale aponta que os esterestipos sao julgados simultaneamente em relagéo ao “real” empirico (acuidade) e um “ideal” ideolégico (imagem positiva). Ver Neale, “The Same Old Story: Stereotypes and Difference’, Screen Education, n, 32-3, outonofinverno de 1979-80. 261 262 ‘A questio do realismo Tais debates sobre 0 realismo e a acuidade néo sao triviais, como um certo tipo de ps-estruturalismo afirma. Espectadores (e criticos) insistem na idéia do realise porque tém em vista gidéia da verdade, e questionam um filme a partir de seu conhecimento pessoale cultural. Nenhum fervor desconstru- cionista deve nos fazer renunciar ao direito de achar que certos filmes sio falsos sociologicamente e perniciosos ideologicamente, e de ver O nascimento de uma nagio, por exemplo, como um filme “objetivamente” racista. O fato de que filmes sio representacdes nao os impede de ter efeitos reais sobre o mund mes racistas podem angariar adeptos para a Ku Klux Klan ou pre- parar terreno para politicas sociais retrdgradas. Como assinala Stuart Hall, reconhecer a inevitabilidade da representacdo no significa que “nao hd nada euioge” O desejo de emitir julgamentos sobre questdes de verossimilhanca vem a tona especialmente em casos nos quais ha protétipos reais para as persona- gens e situagGes, e quando o filme, a despeito de seu discurso em contrério, faz implicitamente — e é visto como ~ um comentirio sobre a situagdo historica/ realista. Os veteranos dos movimentos civis dos anos 60 esto em posicao de poder criticar Mississipi em chamas (Mississipi Burning, 1988) por transformar 0 inimigo da vida real - 0 Fer racista que sabotou 0 movimento — no heréi do filme, ao passo que os heréis histéricos - os milhares de afro-americanos que marcharam e enfrentaram a violéncia policial, a prisdo e 4s vezes a morte — so vistos como personagens secundarios, vitimas e observadores passivos esperando pela ajuda oficial dos brancos.” Essa hatalha sobre o significado tem importancia porque o filme pode induzir as platéi - liarizadas com os fatos a acreditarem em uma versao fundamentalmente in- correta da histéria americana, que idealiza o Far e encara os afro-americanos como testemunhas mudas da histéria, e nao seus agentes. Assim, a despeito 2 Para ler mais sobre o ataque do FBI aos ativistas dos movimentos pelos direitos civis, ver Kenneth O'Reilly, “Racial Matters”: The rar's Secret File on Black America, 1960-1972, Nova York, Free Press, 1989. Ahistoria branqueada em Mississippi em chamas. do fato de que nao existe uma verdade absoluta, nenhuma verdade distante da representagio e da disseminagio, ainda existem verdades contingentes, qualificadas a partir de certas perspectivas, que informam a visdo de mundo: de certas comunidades. A teoria pés-estruturalista nos lembra que babitamos no interior da Jin- guagem e da representacio, e que nig temos acesso direto a0 “rea]”. Mas as construgées e codificagées do discurso artistico nao excluem referéncias a uma vida social comum. Ficgées cinematograficas inevitavelmente trazem a tona yjsGes da vida real nado apenas sobre o tempo.¢o espaco, mas também sobre relacdes sociais ¢ culturais. Filmes que representam culturas margina- lizadas de um modo realista, mesmo que nao se refiram a qualquer incidente hist6rico especifico, ainda assim possuem bases factuais implicitas. Logo, os criticos estéo certos quando chamam a atengio para a ignorancia compla- cente dos retratos que Hollywood apresenta dos indios, e para 0 apagamento cultural que reduz as diferencas geograficas e culturais entre as tribos das 263 264 Grandes Planicies e de outras regides, todos fundidos em uma Unica figura estereotipada do “indio instantaneo”* Muitos grupos oprimidos usaram 0 “tealismo progressista” para desmas- carar e combater as representacdes hegemdnicas, contrapondo aos discursos reificadores da sociedade patriarcal e do colonialismo uma visio de siimes- mos de sua realidade da perspectiva “de dentro” Mas se essa intencZo merece clogios, cla nem sempre est livre de problemas. A “realidade” nao é evidente e a“verdade” nao é imediatamente apreendida pela camera. Deve-se distinguir, portanto, entre o realismo como'um objetivo - 0 “desmascaramento das redes de relagdes causais” de Brecht - ¢ o realismo como um estilo ou constelagio de estratégias que tém o objetivo de produzir um “efeito de realidade” ilusio- nista. O realismo como objetivo é perfeitamente compativel com um estilo que seja reflexivo, como demonstram eloqtientemente muito dos filmes alter- nativos discutidos neste livro. Em seu trabalho, Mikhail Bakhtin reformula a nocao de representacio attistica de modo a gvitar tanto a {€ ingénua na “verdade” e na “realidade” quanto a nogao igualmente inocente de que a ubigiiidade da linguagem e da representago significa o fim da luta e o “fim da historia” A consciéncia hu- mana ea pratica artistica, argumenta Bakhtin, nao ¢ntram em contato com a“tea]” de maneira direta, mas através dos canais do mundo ideoldgico que nos rodeia. A literatura, e, por extenso, o cinema, nao se referem ao “mundo”, mas representam suas linguagens e discursos. Em vez de refletir diretamente 0 real, ou mesmo refratar o real, o discurso artistico constitui a refracio, de uma refracdo, ou seja, uma versio mediada de um mundo sécio-ideolégico que ja € texto e discurso. Essa formulacao transcende um tipo de yeracidade referen- cial ingénua sem cair em um “niilismo hermenéutico”, segundo o qual todos ais . igpifcacs saa. Bakhtin rejeita as formulagées inocentes de realismo sem abandonar a nog4o de que as representacGes artisticas so a0 mesmo tempo sociais, precisamente 3 Ver Gretchen Bataille e Charles Silet, “The Entertaining Anachronism: Indians in American Film’, em Randall M. Miller (org.), The Kaleidoscopic Lens: How Hollywood Views Ethnic Groups, Englewood, New Jersey, Jerome S. Ozer, 1980. porque gs discursos que a arte representa sdo cles préprios sociais e historicos. Para Bakhtin, a arte é inegavelmente social nado porque representa o real, mas Porque constitui uma “enunciacao” situada historicamente ~ uma rede de sig- nos enderecados por um sujeito ou sujeitos constituidos historicamente para outros sujeitos constituidos socialmente, todos imersos nas circunstancias hist6ricas e nas contingéncias sociais. A questao, portanto, nao a fidelidade a uma verdade ou realidade pree- xistente, mas a orquestracao de discursos ideoldgicos e perspectivas coletivas. Se em um determinado nivel um filme se constitui através de uma pratica mimética, ele também é discurso, um ato de interlocucao contextualizada entre produtores e receptores socialmente situados. Nao basta dizer que a arte implica construgdo. Temos que perguntar: construgao para quem? E em. conjungao com quais ideologias e discursos? Dessa perspectiva, a arte é uma representacao nao tanto em um sentido mimético, mas politico, uma delega- gao de vozes.* Partindo desse ponto de vista, faz mais sentido dizer que 0 pro- blema de Os deuses devem estar loucos (The Gods Must Be Crazy, 1984) nao tanto 0 fato de que o filme nao é fiel a “realidade’, mas que ele reproduz.o dis- curso colonialista oficial da Africa do Sul branca. O discurso racista do filme prop6e um binarismo maniqueista entre os bosquimanos de um bantustéo - que viviam em total isolamento, felizes e nobres, mas impotentes - e os pe- rigosos, mas incompetentes, revoluciondrios mulatos. Entretanto, o filme dis- farca seu racismo através de uma critica superficial a civilizacZo tecnolégica branca. Do mesmo modo, uma abordagem discursiva ao filme Rambo (1983 nao insistiria no fato de que o filme “distorce” a realidade, mas que ele “na ver- dade” representa um discurso racista de direita construido para alimentar as fantasias masculinas de onipoténcia caracteristicas de um império em crise. Por outro lado, as representagGes podem ser convincentes e verossimeis, mas eurocéntricas, ou, ao contrério, incrivelmente “incorretas’, mas antieurocén- tricas. A andlise de um filme como Minha adordvel lavanderia (My Beautiful 4 Sob essa mesma légica, Kobena Mercer e Isaac Julien diferenciam a “representagéo como a pritica do mostrar” da “representacao como a pratica do delegar”. Ver Kobena Mercer € Isaac Julien, “Introduction: De Margin and De Centre”, Screen, v. 29, n. 4, 1988, pp. 2-10. 265 266 Laundrette, 1985), sociologicamente incorreto de uma perspectiva mimética (ao mostrar asiaticos ricos em vez de asidticos tipicos, ou seja, das classes pro- letarias de Londres), se altera consideravelmente se encararmos 0 filme como uma constelacao de estratégias discursivas, como uma inversio simbdlica e uma provocaco contra as expectativas convencionais comuns nas narrativas de vitimizagao asidtica. O fato de que algo vital est4 em jogo nesses debates se torna ébvio nos casos em que comunidades inteiras protestam apaixonadamente contra as re- presentacées feitas sobre elas, em nome de um gentido de verdade baseado em suas experiéncias. Os esteredtipos perpetrados por Hollywood nao passaram. despercebidos por varias das comunidades retratadas, Muito cedo os indios protestaram contra os equivocos nas representagées de sua cultura e histéria’ Um dos ntimeros da revista Moving Picture World (de 3 de agosto de 191) fala sobre uma delegacio de indios em visita ao presidente Taft para protestar contra representagGes erréneas e até exigir uma jnyestigacio do Congresso, De modo semelhante, a Associacao Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (waacp) protestou contra O nascimento de uma nagao, os chicanos pro- testaram contra os filmes de bandidos, os mexicanos contra Viva Villa! (1934), os brasileiros contra Rios Road to Hell (1931), os cubanos contra Cuban Love Song (1931), € os latino-americanos em geral protestaram contra as caricaturas feitas da sua cultura. O governo mexicano ameacou proibir a distribuicdo de filmes norte-americanos no pais se Hollywood nao parasse de produzir filmes com caricaturas do México, dos mexicanos nascidos nos Eva e da Revolu- ¢40 Mexicana. Mais recentemente, os turcos protestaram contra O expresso da meia-noite (Midnight Express, 1978), os porto-riquenhos contra Forte Apache, Bronx (Fort Apache the Bronx, 1981), os africanos contra Entre dois amores e os americanos descendentes de asidticos contra O ano do dragdo (The Year of the Dragon, 1985). Espectadores criticos podem assim exercer pressio contra a dis- tribuicio e exibicao de certos filmes, e até influenciar produgées posteriores. 5 Um artigo na Moving Picture World (1o jun. 1911) intitulado “Indians Grieve over Picture ‘Shows’ fala sobre protestos de indios do sul da Califérnia contra o retrato que Hollywood fazia deles, mostrando-os como guerreiros, quando na verdade eram fazendeiros pacificos. Embora o tealismo total seia uma impossibilidade tedrica, os espectadores chegam equipados com um “sentimento do real” baseado em sua experiéncia que lhes permite aceitar, questionar ou mesmo subverter as representagdes de um filme. Nesse sentido, a bagagem cultural de uma platéia em particular pode gerar presses contra um discurso racista ou preconceituoso. As pla- téias latino-americanas sempre riram dos retratos ridiculos que faziam de sua cultura nas telas. A verséo em espanhol de Drécula, por exemplo, realizada concomitantemente a verso de 1931 de Bela Lugosi, misturava 0 espanhol cubano, argentino, chileno, mexicano e peninsular em uma salada lingii/stica que soava ridicula para as platéias latino-americanas, Ao mesmo tempo, os espectadores podem enxergar além da caricatura para vislumbrar a opressio subjacente a representacao. E improvavel que os espectadores afro-ameri- canos considerassem Step’n Fetchit (Lincoln Perry) um exemplo tipico do comportamento ou da atitude dos negros: as plat¢ias negras sabiam que ele estava atuando e entendiam as circunstancias que o levavam a fazer papéis subservientes. Do mesmo modo, em um tipo de consciéncia dupla, os espec- tadores podem se divertir com O ladrito de Bagdd (1940), por exemplo, porque consideram o filme como uma fantasia escapista, como uma versio fantasiosa ocidental de um conto jé fantastico de As mil e uma noites, sem nenhuma re- lago com a Bagda histérica “real”. O fardo da representagio A hipersensibilidade geralmente associada aos esteredtipos tem origem, em Parte, naquilo que se costuma chamar de “fardo da representaciig”. As cono- tagdes de “representacao” sao ao mesmo tempo religiosas, estéticas, politicas e.semidticas. Em um nivel religioso, a censura judaico-cris gravadas” e a preferéncia por representagdes abstratas como 0 arabesco criou uma suspeita teolégica em relagao a representacao figurativa ¢, portanto, em das “imagens relagao 4 propria ontologia das artes miméticas.* A representacao também 6 Ha diversos exemplos de maneiras pelas quais as tenses religiosas afetam as representaces cinematogréficas. Em 1925, 0s planos de uma companhia alema para produzir O profeta, > 267 268 tem uma dimensio estética, pois a arte também é uma forma de represen- tagao, uma mimese, nos termos platénicos e aristotélicos. A representagao também ¢ teatral, e em muitas linguas “representar” significa “atuar” ou fazer um papel. As artes narrativas ¢ miméticas, na medida em que representam ethos (personagem) e ethnos (povos), sio consideradas representativas nao apenas da figura humana, mas também da visio_antropomérfica, Em um outro nivel, a representacao também ¢ politica, na medida em que o exerci- cio politico geralmente nao é direto, mas representativo. Marx disse sobre gs camponeses que “eles ndo representam a si mesmos, eles devem ser repre- sentados” A definicéo contemporanea de democracia ocidental - a diferenca do conceito classico ateniense, e da idéia de varias comunidades indigenas norte-americanas ~ tem como base a nocdo de um “governo representativo” Muitos dos debates politicos em torno de questées de raga e género nos EUA tém como ponto central a questao da representacao propria e do aumento de representagao das “minorias” em instituices politicas e académicas. O que todos esses exemplos tm em comum é 0 principio semidtico de que algo “esta no lugar” de uma outra coisa, ou de que alguém ou algum grupo estd falando em nome de outras pessoas ou grupos. Nos campos de batalha simbélicos dos meios de comunicacio de massas, a Juta por representacdo tem_correspondéncia com a esfera politica. (O acirrado debate a respeito de quais fotografias de celebridades, se as dos italo-americanos ou as dos afro-americanos, iro enfeitar a parede da pizzaria em Faga a coisa certa [Do the Right Thing], 1989, de Spike Lee, exemplifica bem esse tipo de luta Por representacio.) > com Maomé como protagonista, chocaram a Universidade Islamica de Al Azhar, pois 0 Isla profbe representacdes do profeta. Protestos impediram que o filme fosse feito, Por ou- tro lado, o filme A mensagem, de Moustapha Akkad (Kuwait, Marrocos, Libia, 1976), conta a histéria dentro das normas islamicas, respeitando a proibigao das imagens do profeta, de representagdes de Deus e das figuras sagradas. O filme narra a vida do profeta desde as primeiras revelacdes em 610 d.C. até sua morte em 632, em um estilo que desafia os épicos biblicos de Hollywood. Entretanto, o profeta jamais é visto na tela: quando os outros per- sonagens se dirigem a ele, falam para a cimera. O roteiro foi aprovado pelos intelectuais da Universidade Al Azhar, no Cairo, Como as “marcas do plural”, para usar a expresso de Memmi, projetam os povos colonizados como “todos iguais’, qualquer comportamento negativo de um membro da comunidade oprimida ¢ imediatamente generalizado como tipico, algo que aponta para uma eterna esséncia negativa. As representagdes, portanto, se tornam alegéricas: no discurso hegeménico todo papel subal- terno é visto como uma sinédoque que resume uma comunidade vasta, mas homoggnea. Por outro lado, as representagdes dos grupos dominantes nio sao vistas como alegéricas, mas como “naturalmente” diversas, exemplos de uma variedade que no pode ser generalizada,’ Esses grupos nao precisam se preocupar com “distorgées e esteredtipos’, pois mesmo imagens ocasional- mente negativas fazem parte de um amplo repertério de representacdes. Um politico corrupto branco nao ¢ visto como a “vergonha da raga’, e escandalos financeiros nao sao vistos como conseqiiéncias do poder branco. Entretanto, cada imagem negativa de um grupo “minoritario” se torna, na légica da her- menéutica da dominacio, imbuida de significado alegorico como parte do que Michael Rogin chamou de “excesso de valor simbélico” dos oprimidos.* Essa percep¢io opera em um continuum com outras representagdes e com a vida cotidiana, de modo que o “fardo” pode se tornar quase insuportével. E esse continuum que é ignorado quando certos estudiosos colocam os esteres- tipos dos chamados grupos étnicos americanos, por exemplo, no mesmo ni- vel dos indios ou afro-americanos. Embora todos os esterestipos negativos causem desconforto, eles nao exercem 0 mesmo poder de modo homogéneo. A generaliza¢ao simplista muitas vezes subjacente a critica dos esteredtipos apaga uma diferenga crucial: os estereétipos de algumas comunidades apenas fazem 0 grupo-alvo se sentir desconfortavel, mas a comunidade em questdo tem poder social para combaté-los e resistir a eles, enquanto os esteredtipos de outras comunidades fazem parte de politicas sociais preconceituosas e podem levar a praticas de violéncia que colocam em risco a propria vida do 7 Judith Williamson apresenta o mesmo argumento em seu ensaio na Screen, v. 29,7. 4, 1988, pp.106-12. 8 Ver Michael Rogin, “Blackface, White Noise: The Jewish Jazz Singer Finds his Voice’ Critical Inquiry, 8, n. 3, 1992, pp. 417-44. J 269 270 acusado. Os esteredtipos dos norte-americanos descendentes de poloneses ¢ italianos, por piores que sejam, nao fazem parte da fundacao racial e imperial dos Eva € nao sao utilizados para justificar a violéncia constante e a opressio estrutural contra essas comunidades. Por outro lado, a tendéncia da midia de apresentar negros como delingiientes em potencial tem impacto direto sobre a vida das comunidades negras. Portanto, a questao crucial em torno dos esteredtipos e distorgdes esta relacionada ao fato de que ‘guupos historicamente marginalizados nao tém controle sobre sua prépria representacao. A compreensio profunda desse Processo exige uma andlise abrangente das instituicgdes que criam e distri- buem textos midiaticos, assim como de suas platéias. Que histérias so con- tadas? Por quem? Como elas so produzidas, disseminadas, recebidas? Quais so os mecanismos estruturais da industria cinematografica e dos meios de comunica¢ao? Em 1942, nos Bu, a NAACP fez um acordo com os esttidios de Hollywood para integrar os negros nos quadros de técnicos dos diversos esttidios, mas pouguissimos se torn: diretores ou escritores. Os diretores oriundos de grupos minoritarios de todas as racas constituem menos de 3% do quadro de quase 4 mil associados do Sindicato dos Diretores da América Em 1970, um acordo entre diversos sindicatos e 0 Departamento de Justica dos Eva estipulou a integracéo de grupos minoritérios no quadro geral dos funciondrios da industria cinematografica, mas as boas intengdes do acordo foram logo esquecidas devido a situacao generalizada de desemprego na in- dustria e a um sistema de antigiiidade que privilegiava os funciondrios mais velhos (¢, portanto, brancos). Os relatérios mais recentes sobre a distribuicéo de empregos em Hollywood revelam que os negros estéo em desvantagem em “todo e qualquer aspecto” na industria de entretenimento. Nao obstante © sucesso de pessoas como Qprah Winfrey, Bill Cosby ¢ Arsenio Hall, apenas uma pequena parcela de afro-americanos tem cargos executivos nos esttidios cinematogréficos ¢ nas redes de televisdo. Embora o piblico negro seja res- ponsdvel por uma parcela enorme da bilheteria nos Estados Unidos, o despo- 9 Micheal Dempsey e Udayan Gupta, “Hollywood's Color Problem’, American Film, abr. 1982 (atualmente conta com 12.700 membros). tismo e a discriminago racial se combinam para dificultar 0 acesso de negros e seus negécios a industria.” Spike Lee fala de um “teto de vidro” i ayerba a ser gasta nos filmes dirigidos por negros, baseado_no pressuposto de que é perigoso confiar grandes quantidades de dinheiro a um negro." E os negros nao sao o tinico grupo em desvantagem. Se os produtores geralmente concordam que diretores italo-americanos devem dirigir filmes sobre as co- munidades italo-americanas, por exemplo, eles geralmente pensam de modo diferente quando se trata de filmes sobre latinos.'* Além disso, na medida em que 0 sistema de Hollywood favorece grandes produces carissimas, ele nao é apenas classista. mas também eurocénirica, quer a intenciio seja explicita ou nao: para participar desse jogo, é preciso ter grande poder econdmico, Pede-se dos cineastas do Terceiro Mundo que eles persigam um nivel de “civilidade” cinematogréfica inalcangavel. Ainda por cima, muitos paises do Terceiro Mundo reforcam a hegemonia ao discrimi: nar suas proprias produgdes culturais. No campo das noticias e da informa- ¢40, so as instituicdes do Primeiro Mundo (cNy, AP, € 0 resto) que filtram as noticias sobre o mundo. As vantagens no campo da distribuigéo também sao concentradas nos paises do Primeiro Mundo. Em muitos paises do Terceiro Mundo hé uma extensa campanha publicitéria nos jornais e na televisio so- bre as grandes produgées de Hollywood antes até que os filmes cheguem aos cinemas locais. A musica popular americana também dé suporte para a disse- minagao desses filmes: producées como Os embalos de sdébado 4 noite (Satur- day Night Fever, 1977), Purple Rain (1984), Na cama com Madonna (Truth or Dare, 1991) ¢ O guarda-costas (‘The Bodyguard, 1992) foram anunciadas mun- dialmente com antecedéncia, ja que as radios e as redes de televisto domina- das pelas grandes multinacionais tocaram suas cangOes. Até as ceriménias de entrega do Oscar constituem_uma forma poderosa de propaganda: a platéia é global e 9 produto promovido é sempre americano, enquanto 0 “resto do mundo’ é relegado a categoria restrita de “filme estrangeiro” 10 Ver o New York Times, 24 set. 1991. 11 Ver entrevista com Spike Lee, “Our Film Is Only a Starting Point’ Cineaste,v.19,n. 4,mar. 1993. 12. Ver Gary M. Stern, “Why the Dearth of Latino Directors?”, Cineaste, v.19, n.2-3,1992. 271 Dessa forma, 0 Terceiro Mundo ¢ duplamente enfraquecido pelo neocolo- nialismo cinematogréfico. O poeta/cineasta brasileiro Arnaldo Jabor denun- ciou essa situagéo em um poema incendidrio chamado “A agenda brasileira de Jack Valenti”: Jack Valenti, com seu sorriso republicano, gravata de estrelas € 0 sélido rosto com tragos de Dick Tracy George Wallace, Liberace ¢ Billy Graham, € tantos outros robés da gargalhada infinita, neste exato momento, com a sdlida valise dos objetivos indestrutfveis com 0 topete que nossa Divida Externa deu aos executivos internacionais, Jack Valenti desceré do seu avio de guerra no pais das promiss6rias vencidas. Jabor faz uma lista das deformagdes psiquicas causadas por Hollywood: sob 0s sapatos nao-brasileiros de Valenti, os tapetes rubros de nossa cordialidade deslizarao sob seus pés e ninguém ver no ar os crimes do cinema americano, ninguém verd 0s corpos de nossas pobres mentes mortas ninguém reconhecera as lesdes, nao ha legista que descubra as marcas de livores em nossa alma, ferida roxa, ferida rosa, ferida de arco-iris, pocira de estrelas em nossos olhos, homens tatuados que nés somos pelas mil aventuras de Hollywood, queimaduras de Eastmancolor amarelo-kodak de nossa fome. Para Jabor, mesmo as convengdes narrativas dominantes fazem parte de uma mentalidade imperial: Entao, Mr. Valenti tirard da mala de designios indestrutiveis os valores mais sagrados do Império ocidental: a simetria, a continuidade, © principio, o meio, o fim, o happy end, sua visdo mercantil de liberdade. © poema de Jabor descreve uma situacao na qual os filmes de Hollywood, com acesso facil aos circuitos de distribuicdo do Terceiro Mundo, exibem i dio praticamente inacessivei Ter- cciro Mundo e muitas vezes inapropriados para falar sobre suas preocupa- Ges. O orcamento fabuloso de uma grande produco de Hollywood pode ser 0 equivalente ao que se gasta em décadas na produgio de filmes em paf- ses do ‘Terceiro Mundo, Com suas técnicas de alto impacto, seu som Dolby, sua busca de uma emogio por minuto, esses filmes criam aquilo que poderi- amos chamar de “efeito Spielberg” de seducio e intimidacio dos cineastas.e espectadores do Terceiro Mundo. Ao mesmo tempo, o neocolonialismo sco: nomico ea dependéncia tecnolégica elevam os custos no préprio Terceiro Mundo, onde pelicula importada, cameras ¢ acessérios podem custar trés vezes mais do que no Primeiro Mundo. Mesmo diretores conhecidos do Ter- ceiro Mundo podem deparar com dificuldades para distribuir seu trabalho devido a dominagio dos paises adiantados sobre os canais de distribuicao, e quando os distribuidores americanos compram seus filmes, em geral pagam presos irrisérios. Cineastas 4rabes importantes - 0 egipcio Youssef Chahine, por exemplo ~ raramente sao distribuidos comercialmente nos Eva. Até os diretores mais radicais se tornam dependentes das companhias multina- cionais para obter equipamento e filme. E mesmo as peliculas acabam por iiscriminar de cor escura: so ivei i de pele ¢ exigem iluminacao especial para outros. Em Diary of a Young Soul 273 274 Rebel, Isaac Julien atribui a dificuldade de iluminar peles claras e escuras no mesmo quadro ao fato de que a tecnologia da pelicula favorece tons de pele mais claros." Q eurocentrismo das platéias também pode influenciar as produgées cinematograficas. Desse modo as platéias dominantes, cujos valores ideolé- gicos devem ser respeitados para o sucesso de um filme, ou mesmo para sua realizacio, exercem um tipo de hegemonia indireta. Q “universal” se torna um cédigo para o que é palatavel para o espectador ocidental, que é visto como a “crianca mimada’” do processo. Diversas produgées contra 0 apar- theid como Um grito de liberdade (Cry Freedom, 1987), Um mundo a parte (A World Apart, 1988) e Assassinato sob custédia revelam tragos de “ajustes de representac&o”, quando os valores de uma luta por libertacio radical sio dissolvidos para agradar a platéia americana predominantemente liberal Rob Nixon assinala que nesses filmes o desafio de conciliar diferengas cultu- rais é“dificultado por problemas de profunda jncompatibilidade ideolégica” Como resultado, a historia de Steve Biko em Um grito de liberdade da lugar auma historia sobre a “amizade que abalou o mundo”. O discurso radical do movimento de Consciéncia Negra é substituido por um “discurso liberal pa- latavel sobre a decéncia moral e os direitos humanos” Nixon compara a ex- periéncia de Um grito de liberdade com um filme mais radical chamado Ma- pantsula (1989) que, sé para ser feito, teve que se disfarcar como um “filme apolitico sobre um grupo de gangsteres”. Mas desta vez, as preocupacdes morais nao deslocam questdes institucionais estratégicas. A recusa de obser- var as “conven¢ées do mercado e de transformar uma narrativa sul-africana radical em um chavao liberal” resultou na j bili. distribuidora importante." Os processos de produgao de filmes individuais, seus modos e relagdes de produgao levantam questdes relativas ao processo cinematografico e a parti- 13 Ver Isaac Julien e Colin MacCabe, Diary of a Young Soul Rebel, Bloomington, Indiana Uni- versity Press, 1991. 14. Ver Rob Nixon, “Cry White Season: Apartheid, Liberalism and the American Screen’, South Atlantic Quarterly, n. 90, v. 3, verao de 1991. cipacao das “minorias” nesse proceso. E digno de nota, por exemplo, que em sociedades multiétnicas mas dominadas por uma elite branca, como a Africa do Sul, o Brasil e os Eva, os negros geralmente participam do processo cine- matogréfico mais como atores do que como produtores, diretores ou escrito- res, Na Africa do Sul, os brancos financiam, dirigem e produzem filmes com clenco inteiramente negro, Nos Eva da década de 20, eram equipes de bran- cos que filmavam musicais negros como Hearts in Dixie (1929) ¢ Hallelujah (1929). Os negros apareciam nesses filmes, assim como as mulheres ainda apa- recem em Hollywood: como imagens, em espetaculos cujo cantezida social é essencialmente controlado pelos outros: “A alma negra como artefato branco” (Fanon). E como filmes comerciais sao feitos para dar lucro, devemos também perguntar para quem vao os lucros. J. Uys, o diretor de Os deuses devem estar Joucos, pagou ao seu astro N!Xau apenas 2 mil rands (trezentos délares) por Deuses 1 € 600 mil rands por Deuses 11. Do mesmo modo, nao foram os ne- gros que lucraram com a exploso do cinema negro americano nos anos 70: esses filmes foram financiados, produzidos e vendidos pelos mesmos brancos que receberam a maior parte dos lucros. Os milhares de brasileiros negros que, sem receber um centavo, simularam um carnaval fora de época para as cameras francesas de Marcel Camus, jamais viram parte dos milhoes de déla- res que Orfeu negro (1959) rendeu em todo o mundo." Até certo ponto, um filme inevitavelmente espelha seus proprios proces- sos de producio, assim como processos sociais mais amplos. Muitas vezes, cineastas de grupos minoritdrios dirigindo filmes sobre violéncia policial fo- ram eles préprios vitimas da policia, Durante a filmagem de Bush Mama, de 15 Ver Keyan Tomaselli, “Myths, Racism and Opportunism: Film and Tv Representations of the San’, em Peter Jan Crawford e David Turton (orgs.), Film as Ethnography, Manchester, University of Manchester Press, 1992, P. 213, 16 Os misicos brancos que trabalharam em Orfew negro também foram explorados. O pro- dutor francés Sacha Gordine rejeitou as cangdes ja escritas para a pega na qual o filme se inspirou a fim de obter o copyright das miisicas do filme em francés, o que resultou em um contrato que lhe deu 50% dos luctos obtidos sobre cangées muitissimo populares, a0 passo que os compositores ~ Tom Jobim e Vinicius de Moraes ~ receberam apenas 10%. Ver Ruy Castro, Chega de saudade, Sao Paulo, Companhia das Letras, 1992. 275 276 Haile Gerima, um filme que trata da repressio policial nos subiirbios, a equipe foi atacada pela policia: negros com cameras, assim como negros com ar- mas, pensaram os policiais, nao podem ter boas intencées.”” Em outros casos, encontramos uma contradi¢io entre as inten¢ées politicas explicitas de um filme e sua politica de produgao. Gandhi, um filme supostamente anticolonia- lista, dedicado ao santo patrono da luta nao-violenta, utilizou uma tabela dife- rencial de pagamentos que privilegiou técnicos e atores europeus. Em Francis Ford Coppola: O apocalipse de um cineasta (Hearts of Darkness: A Filmmaker’ Apocalypse, 1989), documentério sobre a produgao de Apocalypse Now (1979), Francis Ford Coppola fala sobre 0 baixo custo da mao-de-obra nas Filipinas, reproduzindo assim os mesmos privilégios dos gerentes das corporagdes que realocam suas induistrias para 0 Terceiro Mundo a fim de tirar vantagem da mao-de-obra barata, Imagining Indians (1992), de Victor Masayesva, explora a mercantilizagao imposta sobre a cultura dos indios quando ela é filtrada pela industria euro- céntrica, mesmo quando os cineastas tém “simpatia pela causa dos indios’. Mais especificamente, o filme examina as negociagdes problematicas entre a tribo dos hopis e os produtores de The Dark Wind (1991), realizado em terra hopi. Imagining Indians combina entrevistas com indios que trabalham como extras em Hollywood, passagens dos filmes discutidos, seqiiéncias de rituais sagrados, e a histéria imagindria de uma india que se encontra com um den- tista branco bastante condescendente. Acima de tudo, o filme mostra os in- dios mais antigos da tribo levantando objegées ao projeto, mas cedendo no final, em um processo que relembra as negociacées entre os povos nativos € © governo americano. As vezes a resistencia indigena é bem mais agressiva. (Quando Werner Herzog tentava filmar Fitzcarraldo (1982) com indios agua- Irunas, o conselho aguaruna protestou, recusando-se a aparecer no filme da maneira que Herzog planejara, cercou a equipe de filmagem e os forcou a fugir pelo rio." 17 Ver Clyde Taylor, “Decolonizing the Image’, em Peter Steven (org,), Jump Cut: Hollywood, Politics and Counter Cinema, Toronto, Between the Lines, 1985, p. 168. 18 Ver Jean Franco, High-Tech Primitivism: the Representation of Tribal Societies in Feature > A importancia da participacao dos povos colonizados ou ex-colonizados no processo de produgio fica evidente quando comparamos A batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo, com seu filme posterior Queimada! (1970). No primeiro, uma producdo italo-argelina relativamente barata (de 800 mil dé- lares), atores argelinos nao-profissionais representaram a si mesmos em uma reconstrucao da guerra de independéncia da Argélia. Os habitantes locais fo- ram envolvidos em todos os aspectos da producio, e alguns dos atores fizeram seus prprios papéis nos lugares onde os principais eventos da trama haviam de fato acontecido. Também colaboraram de perto com 0 roteirista Fernando Solanas, que reescreveu o roteiro diversas vezes em resposta as suas criticas e observacées. Como resultado, os argelinos so representados como um povo socialmente complexo, como agentes de um esforco nacional. Jé a superpro- dugio Queimada! nao envolveu tal colaboracao. Uma co-produgio italo-fran- cesa, 0 filme mostra Marlon Brando, no papel de um agente colonial britanico, em contraposi¢do a Evaristo Marques, ator nao-profissional de origem cam- ponesa, Ao estabelecer 0 confronto de um dos atores mais carismaticos do Primeiro Mundo com um ator inexperiente do Terceiro, escolhido apenas por sua fisionomia, Pontecorvo subverte o star system de uma perspectiva, mas de outra desastrosamente direciona a fascinagao dos espectadores em favor do colonizador, em um filme cuja funcao didatica era, ironicamente, apoiar a luta anticolonialista, A falta de Participacao local na producao-leva a um retrato ‘unidimensional , que sao vistos como sombras vazias, sem definicao cultural, A politica racial da escolha do elenco Como uma forma imediata de representacao, a escolha do elenco no cinema € no teatro constitui um tipo de delegacao de voz com tons politicos. Tam- bém nesse campo os europeus e os euro-americanos tém desempenhado 0 papel dominante, relegando os nao-europeus a papéis secundarios e extras. > Films’, em John King, Ana Lopez e Manuel Alvarado (orgs.), Mediating Two Worlds, Lon- dres, BF, 1993. 277 278 Em Hollywood, os euro-americanos tém mantido a prerrogativa histérica de atuar pintados de negro, vermelho, marrom gu amarelo, enquanto 0 oposto & muito raro. Desde 0 vaudeville do século x1x até os papéis de Al Jolson em Hi Lo Broadway (1933), Fred Astaire em Ritmo louco (Swing Time, 1936), Mickey Rooney e Judy Garland em Sangue de artista (Babes in Arms, 1939) e Bing| Crosby em Dixie (1943), a tradigao do ator pintado de negro constitui uma das! formas mais populares da cultura norte-americana. Até cantores negros como Bert Williams, segundo o filme Ethnic Notions (1987), eram obrigados a car- regar a marca da caricatura em seus proprios corpos, com axolha queimada tornando literal o tropo da negritude, Consideragées de ordem politica eram bastante explicitas na escolha do elenco durante 0 periodo do cinema mudo. Em Qnascimento de uma naciio, os personagens negros e subservientes eram feitos pelos préprios negras, en- quanto os papéis de negros agressivos ¢ ameacadores eram feitos por brancos pintados. Depois de protestos do Naacp, Hollywood comecou cautelosamente aescolher atores negros para papéis pequenos. Entretanto, mesmo no periodo do filme falado, atrizes brancas eram contratadas para o papel das “mulatas trdgicas” em filmes como O que a carne herda, Imitagdo da vida (1959) e até no underground Shadows (1959), de John Cassavetes. Enquanto isso, mulatas de verdade eram escolhidas para papéis de mulheres negras ~ por exemplo, Lena Horne em Cabin in the Sky (1943) - embora pudessem facilmente “passar” por brancas. Em outras palavras, nao era a cor literal do ator que importava na escolha dos papéis. Dada a definigao “sangiiinea” do contraste entre “negro” e “branco” no discurso racista euro-americano, uma unica gota de sangue negro era suficiente para desqualificar uma atriz como Horne para g papel de uma mulher branga. Os afro-americanos nao foram as tinicas “pessoas de cor” representadas poreuro-americangs: a mesma lei de privilégio unilateral prevaleceu em re- lado a outros grupos. Rock Hudson, Joey Bishop, Boris Karloff, Tom Mix, Elvis Presley, Anne Bancroft, Cyd Charisse, Loretta Young, Mary Pickford, Dame Judith Anderson e Douglas Fairbanks Jr. estdo entre os diversos atores euro-americanos que representaram o papel de indios, enquanto Paul Muni, Charlton Heston, Marlon Brando e Natalie Wood estado entre aqueles que fi- zeram papéis de latinos. Windwalker (1973) & um exemplo tardio no qual os papéis indigenas mais importantes nao foram feitos por indios. E pratica co- mum do cinema dominante transformar as pessoas “escuras” ou do Terceiro Mundo em um “outro” substitufvel, em unidades intercambiaveis que podem “ser trocadas” umas pelos outras. Foi assim que a mexicana Dolores del Rio fez o papel de uma india dos mares do Sul em Ave do paraiso, enquanto o in- diano Sabu trabalhou em uma variedade de papéis de personagens orientais. Lupe Velez, mexicana, fez 0 papel de chinesas, esquimés, japonesas, malaias e indias, enquanto Omar Sharif, egipcio, fez 0 papel de Che Guevara. Essa assi- metria tem gerado um intenso ressentimento em comunidades minoritarias, ressentimento em comunidades minoritérias, para quem a escolha de um nao-membro do grupo “minoritério” representa um j i implica (a) aincapacidade de auto-n ;(b) a incapacidade de outros membros da sua comunidade de representé-lo; (c) a total falta de sensibilidade por parte dos produtores dos filmes, que detém o poder e contra os quais nada se pode fazer. Essas praticas tem implicagées mesmo no nivel mais basico da questdo da representacao prépria, a saber, a necessidade de trabalho. A idéia racista de que um filme, para ser economicamente vidvel, deve usar um astro “upiver- sal” revela a concatenagao entre economia ¢ racismo. A histérica limitacao de atores negros a papéis marcados racialmente, enquanto gs brancos sio vistos ideologicamente como “além da etnia’, tem conseqiiéncias desastrosas para 6s artistas de comunidades “minoritarias”. Em Hollywood essa situacao est mudando apenas agora, com atores como Larry Fishburne, Wesley Snipes e Denzel Washington ganhando papéis que originalmente seriam reservados para atores brancos. Ao mesmo tempo, quando a escolha de atores é baseada em “aces afirmativas’, ela pode servir a propésitos racistas, como no caso em gue © papel do juiz. branco do romance A fogueira das vaidades (Bonfire of Vanities, 1990) foi dado a Morgan Freeman no filme de Brian de Palma apenas para evitar acusag6es de racismo. O direito 4 representacdo prépria tampouco garante uma representacao nao-eurocéntrica. O sistema pode simplesmente “usar” o ator para ativar o sistema de codigos dominantes, muitas vezes a despeito de suas objecdes. Jo- sephine Baker era uma estrela, mas nao conseguiu intervir para mudar o final 279 280 de Princesse Tam Tam (1935), apesar da insisténcia para que sua personagem norte-africana (berbere) se casasse com 0 aristocrata francés, ou mesmo com. o francés proletario feito por Jean Gabin em Zou Zou (1934). Ao invés disso, Zou Zou acaba sozinha, no papel de um passaro engaiolado que relembra nostalgicamente do Caribe. A despeito de seus protestos, os papéis de Baker eram limitados pelos cédigos que proibiam o casamento de suas personagens com homens brancos. Os estilos de atua¢ao excessivos de atrizes como Baker ¢ Carmen Miranda permitiram que elas fizessem uma parédia dos papéis estereotipados, mas nao lhes garantiram poder significativo. Ultimamente Hollywood tem acenado em diregao a uma escolha mais “correta” dos elencos: afr -americanos, indios e latinos conquistaram o direito de“representar” suas proprias comunidades. Mas essas escolhas “realistas” ndo sao suficientes se a estrutura narrativa ¢ as estratégias cinematogrdficas permanecem eurocéntri- cas. Um rosto epidermicamente correto nao garante a representacdo de uma Diversos diretores de cinema e teatro procuraram abordagens alternati- vas para a questdo da escolha do elenco. Orson Welles montou versdes das pecas de Shakespeare com atores negros, das quais notabilizou-se seu Voodoo Macbeth, no Harlem, em 1936. Do mesmo modo, Peter Brook utilizou uma variedade de atores de diversas etnias para sua adaptacdo cinematogréfica do épico hindu O Mahabharata (1990). Glauber Rocha deliberadamente confun- diu representagées lingiiisticas e draméticas em Der Leone Have Sept Cabecas (1970), cujo titulo j4 subverte o posicionamento lingiifstico do espectador ao misturar_cinco das linguas dos colonizadores da Africa. A fabula brechtiana de Glauber dé vida a figuras emblematicas que representam as nac6es coloni- zadoras, sugerindo homologias imperiais entre elas ao fazer com que um ator com sotaque italiano faca o papel de um americano, um francés faca o papel de um alemio e assim por diante. Tais estratégias antiliterais propd6em uma questao irreverente: 9 que hade errado com um elenco nio-literal? Afinal, a atuacdo nao envolve sempre um jogo hidico com a identidade? Deverfamos aplaudir quando atores negros fazem_o Hamlet, mas nio quando Laurence Olivier faz Otelo? Atores euro- peus ¢ euro-americanos ja nao substituiram etnicamente uns aos outros (por exemplo, Greta Garbo e Cyd Charisse como russas em Ninotchka, de 1939, € Meias de seda (Silk Stockings], de 1957)? Gostarfamos de argumentar que a escolha de elenco deve ser vista em termos contingentes, em relacao ao pap a intencao politica ¢ estética e ao momento histérico. A prética comum em Hollywood - representar todo um pais estrangeiro por meio de atores que nio so daquele pais ¢ nem sequer falam sua lingua - nao pode ser compa- rada com casos nos quais elencos nao-literais formam parte de uma estética alternativa. A escolha de negros para papel de Hamlet, por exemplo, milita contra a discriminagao tradicional que nega aos negros qualquer papel - li- teral e metaforicamente ~ nas artes performaticas e na politica, enquanto a escolha de Laurence Olivier como Otelo prolonga uma histéria antiga de es- quecimento deliberado do talento dos artistas negros. A lingiiistica da dominagao As mesmas questées de representaco propria surgem em relacio 3 ingua. Como simbolos importantes da identidade coletiva, os idiomas constituem campos de lealdades profundas, no fio da navalha entre as diferencas nacionais e culturais. Embora, como entidades abstratas, nao existam em hierarquias de valor, seus usos concretos implicam hierarquias de poder. Inscritas no jogo de poder, as linguas esto no centro das hierarquias culturais do eurocentrismo. O inglés, em especial, serve muitas vezes de veiculo lingiiistico para a projecao do poder, tecnologia e finangas anglo-americanas. Os filmes de Hollywood, de sua parte, utilizam um hibrido lingiifstico criado pelo império. Hollywood se prope a contar nao apenas suas historias, mas também a das outras nagées, e nao apenas para americanos, mas para as outras nagdes também, e sempre mingles. Nos épicos de Cecil B. DeMille, tanto os antigos egipcios quanto os israelenses, para nfo falar de Deus, falam inglés. Ao “ventriloquizar” o mundo, Hollywood indiretamente diminui as possibilidades de auto-representacao lingiiistica para outras nagdes. Hollywood promoveu e lucrou com a dissemi- nagao mundial do inglés, e ao mesmo tempo contribuiu indiretamente para a erosao sutil da autonomia lingiiistica de outras culturas. Como, para os colonizadores, tornar-se humano significava falar o idioma 281 282 | deles, 0s povos colonizados foram encorajados a abandonar suas linguas. Ngugi wa Thiongo fala de criancas no Quénia sendo punidas por falarem suas proprias linguas.” Para os colonizados, como assinala David Spurr, a fala é negada em um sentido duplo, primeiro no sentido idiomético de que | Bao Ihes é permitido falar, mas também no sentido mais radical de nao lhes reconhecerem a capacidade de falar.” E esse processo histérico de calar as falas que tem provocado protesto contra intimeros filmes, nos quais a discri- Ininacio lingitistica e 0 “tato” colonialista andam ao lado de caracterizacces, condescendentes ¢ retratos sociais distorcidos. Os indios dos faroestes clas- sicos de Hollywood falam um inglés capenga, uma marca de sua inabilidade de. dominar a lingua “civilizada”. Em diversos filmes sobre 0 Terceiro Mundo produzidos pelo Primeiro a “palavra do outro” é apagada, distorcida ou cari- caturada. Nos filmes ambientados no norte da Africa, por exemplo, o arabe é reduzido a um murmirio indecifravel, enquanto a verdadeira lingua usada para a comunicagio é 0 francés de Jean Gabin em O deménio da Argélia (Pépé Ie Moko, 1936) ou o inglés de Bogart e Bergman em Casablanca. Em Lawrence da Ardbia, de David Lean, que se posiciona pretensiosamente - mesmo osten- sivamente ~ em favor dos arabes, quase néo ouvimos a lingua local, mas in- glés falado com muitos sotaques diferentes que nada tém a ver com 0 arabe (& exce¢io das falas de Omar Sharif). Mais recentemente, O céu que nos protege (The Sheltering Sky, 1991), filme de Bertolucci ambientado no norte da Africa, privi didlogo em arabe. Diante dessa tradi¢ao, 0 avango relative de Danga com lobos legia o inglés de seus protagonistas e nao se da ao trabalho de traduzir o e Habito negro traz esperanga de uma mudanga na representagao lingitistica. Muitos cineastas do Terceiro Mundo reagiram contra a utilizacao hege- ménica das linguas européias no cinema dominante. Embora 0 inglés, por exemplo, tenha se tornado a lingua franca para p6s-coloniais como Ben Okri, Derek Walcott, Bharati Mukherjee, Salman Rushdie e Vikram Seth, e, nesse 19 Ver Ngugi wa Thiongo, Moving the Center: The Struggle for Cultural Freedoms, Londres, Ja- mes Currey, 1993, p.33. 20 Ver David Spurr, The Rhetoric of Empire, Dutham, North Carolina, Duke University Press, 1993, P. 104.

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