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Mestrado
Semiótica
PUC-SP 1997
1
MARIA DE LOURDES BACHA
PUC - SP 1997
2
Banca examinadora
Orientador Prof. Dr. Breno Serson
Prof. Dr. Ivo Assad Ibri
Profa. Dra. Soraya Maria Ferreira Vieira
3
4
RESUMO
A dúvida, da qual a investigação parte é uma dúvida real, genuína, e não simplesmente
uma dúvida metodológica, um "faz-de-conta".
5
Ao Waldemir,
com saudades
6
AGRADECIMENTOS
CAPES.
7
ÍNDICE
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................008
CONCLUSÕES .......................................................................................................................168
BIBLIOGRAFIA .....................................................................................................................187
8
INTRODUÇÃO
De acordo com Murphey1, a Teoria da Investigação foi desenvolvida por Peirce, entre
1870 e 1872.
1
M Muphey, (1993) The Development of Peirce's Philosophy. p. 159.
2
(MS 614.7 e CP.7.49,7.60, 7.61, 7.87) C. Delaney, (1993), Science, Knowledge and Mind- A study in the philosophy of
C.S.Peirce ,p.13 e C. Stewart, (1986) "Social and Economic Aspects" Transactions of the C.S.Peirce Society, vol.XXII p.
501.
9
diferente partir daquelas coisas das quais nós não duvidamos, o que não quer dizer que
existam verdades ou certezas absolutas. Todo conhecimento tem início nas percepções
recebidas pelos sentidos, mas estas percepções em si mesmas não constituem conhecimento
nem podem ser premissas para o conhecimento.
A rejeição peirceana aos “apriorismos” pode ser expressa na frase: "Não bloqueie o
caminho da investigação". O que Peirce quer evitar é dogmatismo e ceticismo.
Entretanto, guiados por nossas crenças e empregando métodos de investigação que não
sejam apropriados, poderemos chegar a uma opinião errada, já que todas as teorias científicas
são falíveis e seus resultados devem ser submetidos à crítica
3
C.Delaney (1993), op.cit. p.14.
10
adotar a hipótese da realidade e sua adoção pode ser justificada pelo fato de que leva ao
conhecimento da realidade. A hipótese realista é fundamental para o método da ciência.
De acordo com Peirce, os três estágios da investigação são: abdução, dedução e indução.
Esta distinção é que fundamenta a Teoria da Investigação, formalizando um ciclo; abdução,
dedução, indução, nova abdução...
Segundo Serson (1996: b), a Metodêutica pode ser vista por dois ângulos:
11
interlocutores ideais ou duas inteligências científicas ao conversar possam provar alguma
coisa uma para a outra.
Por outro lado, sendo a investigação uma atividade voltada a um fim, este fim não pode
se resumir à ação, mas este fim é uma busca do "admirável", o “summum bonum” da
investigação.
Este capítulo foi dividido em cinco itens. O primeiro item do Capítulo I procura
mostrar resumidamente a importância da Lógica ou Semiótica na obra de Peirce. A concepção
peirceana de Semiótica é de uma Lógica que leva em consideração todos os possíveis tipos de
signos e seus específicos modos de ação.
4
Idem, op.cit. p.121.
5
N .Houser (1990) "O escopo da semiótica peirceana", p.207-214.
12
Para Peirce, todo pensamento ou representação cognitiva é um signo, sendo o signo
peirceano uma relação triádica complexa envolvendo o signo, objeto e o interpretante. Em
função desta relação triádica os signos podem ser classificados de várias maneiras, três das
quais são resumidamente apresentadas neste capítulo.
O Capítulo II tem como título "A Teoria da Investigação" e foi dividido em cinco
itens.
O segundo item do Capítulo II, se refere à questão do método, discutindo a visão anti-
cartesiana de Peirce, sua rejeição à tradição fundacionalista e oposição às idéias de certeza e
verdade absolutas. A análise destes pontos é feita a partir dos textos conhecidos como a "série
da cognição":
6
Os textos 1 e 2 foram publicados em C.S.Peirce,(1990), Semiótica, São Paulo: Perspectiva. p 242-282.
13
1. “Fixação das Crenças” -1877 (CP 5.358-87),
2. “Como Tornar Nossas Idéias Claras” -1878 (CP 5.388-410),
3. “A Doutrina dos Acasos” - 1878 (CP 2.645-60),
4. “A Probabilidade da Indução” -1878 (CP 2.669-93),
5. “A Ordem da Natureza” -1878 (CP 6.395-427) e,
6. “Dedução, Indução e Hipótese” -1878 (CP 2.619-44).7
A evolução dos conceitos peirceanos a partir das inferências para tipos de raciocínio e
finalmente para estágios da investigação também é discutida neste capítulo. Sua análise se
baseia principalmente no texto "Tempo de Colheita", do livro A Assinatura das coisas de M.
Lúcia Santaella.
Resumidamente, se pode dizer que no início de seus trabalhos, Peirce considerava que
todas as formas de inferência poderiam ser reduzidas ao silogismo Bárbara (CP 2.620), mas a
noção peirceana de inferência evoluiu, e as inferências passaram a ser três tipos distintos e
irredutíveis dos argumentos ou raciocínio.8 Inicialmente, Peirce incluía a analogia como o
quarto tipo de raciocínio, mas posteriormente acabou reconhecendo que a analogia combina as
características da indução e da retrodução. (CP 1.65)
Ainda dentro do Capítulo II, são apresentadas as principais idéias peirceanas que
caracterizam cada um dos três estágios da investigação. A abdução, a primeira etapa, é o
processo de geração de hipóteses. A dedução, que é a segunda etapa, consiste em traçar
imaginariamente todas as conseqüências necessárias que se seguem à adoção da hipótese. A
terceira etapa, que é a indução, consiste em testar a hipótese e suas predições dedutivas,
comparando-se os resultados experimentais obtidos com as predições originais.
7
Os textos 1, 2 e 6 estão traduzidos em C.S.Peirce, (1972), Semiótica e Filosofia, São Paulo: Cultrix.
8
B. Serson, (1992), La théorie sémiotique de la cognition chez C.S.Peirce, tese de doutoramento, p.64-91.
14
O item 5 do Capítulo II discute a lógica da investigação, vista como um ciclo abdução/
dedução/indução. Quando fatos surpreendentes que são observados, ou diferenças entre as
previsões e os resultados obrigam a reformulação da hipótese original ou ao seu abandono ou
a conseqüente formulação de hipóteses inteiramente novas, então se reinicia o ciclo como
nova abdução/dedução/indução/nova abdução...Toda a idéia da investigação, no contexto da
metodêutica, é mostrar como se encadeia este ciclo de abdução/dedução/indução/nova
abdução...
CP Collected Papers
15
Capítulo I - FUNDAMENTOS DA SEMIÓTICA PEIRCEANA
1. Introdução:
Mas, diferentemente de Kant, Peirce concebeu a Lógica como uma lógica da ciência,
como a arte de entender os métodos de investigação utilizados pelas mais diversas ciências.
Segundo Santaella (1994:105), a Semiótica ou doutrina dos signos, da qual Peirce foi o
moderno fundador, aconteceu, na sua vida, como uma conseqüência de sua investigação dos
mecanismos de pensamento e raciocínio que dão suporte aos métodos através dos quais as
ciências conduzem suas investigações.
16
Peirce é um filósofo sistêmico e sua filosofia busca respostas harmônicas para uma série
de questões entre as quais o estatuto do cosmos, a questão da temporalidade, a questão do
conhecimento, a questão da crença e da dúvida, a questão da interioridade e exterioridade, a
dicotomia sujeito-objeto, as condições de possibilidade do pensamento, do real, do
imaginário.
Portanto, sendo antes de tudo um cientista, seu interesse em Lógica era primeiramente
um interesse na Lógica das ciências e, entender a Lógica das ciências era, em primeiro lugar,
entender seus métodos de raciocínio.
Durante 60 anos de sua vida Peirce lutou pelo reconhecimento da Lógica como ciência.
Segundo Santaella, tudo o que Peirce fez, todas as atividades científicas que praticou tinham a
Lógica como mira, e, ao se aprofundar no estudo da Lógica, acabou se deparando com sua
insuficiência ou incompletude. “Esta incompletude está no cerne de sua concepção de signo.
Todo signo, por fatalidade congênita, está destinado a ser incompleto” (SANTAELLA,
1994:155).
9
L. Santaella, (1985) O que é Semiótica, p. 26.
17
possível sem signos, a Semiótica, como estudo de todos os tipos possíveis de signos, nasceu
como uma conseqüência natural das descobertas peirceanas em Lógica.
A Lógica será definida aqui como Semiótica formal. Uma definição de signo
será dada que não tem nenhuma referência ao pensamento humano, não mais
do que teria a definição de uma linha como o lugar que uma partícula ocupa,
parte por parte, durante um lapso de tempo (PEIRCE, NEM 4:20).
10
M Muphey, (1993) The Development of Peirce's Philosophy. p. 3. Por outro lado Houser, na Introdução de The Essential
Peirce, aponta outras divisões cronológicas da obra de Peirce, tais como a de Max Fisch e Deledalle, p.xxiii
11
C.S Peirce,(1972) Semiótica e Filosofia, p. 93, L. Santaella, (1992) op. cit. p.49 e B. Serson (1996) Introdução à Semiótica
de C. S. Peirce, p. 17-18.
12
L. Santaella (1992) "Signos de Todas as Coisas", op. cit. p.43-57.
18
No sentido mais estreito, é a ciência das condições necessárias para se atingir
a verdade. No sentido mais amplo, é a ciência das leis necessárias do
pensamento, ou melhor (o pensamento sempre ocorrendo por meio de
signos), é Semiótica geral que trata não apenas da verdade, mas também das
condições gerais dos signos... também das leis de evolução do pensamento,
que coincide com o estudo das condições necessárias para a transmissão de
significado de uma mente a outra, e de um estado mental a outro (PEIRCE,
CP 1.444).
Na última década de sua vida, Peirce estava trabalhando num livro que se chamaria “Um
sistema de Lógica, considerada como Semiótica”.13
Para Peirce, a finalidade da ciência seria aprender a lição que o universo tem a ensinar.
Ciência, portanto, não se confunde com conhecimento acumulado.
Cientista, para Peirce, será aquele movido pela sede da verdade. (CP 7.609) A ciência é
“um modo de vida”, a vida dedicada à busca do conhecimento e devoção à verdade, não a
13
L .Santaella (1985) op. cit. p.26
19
verdade como cada um a vê, mas a devoção à verdade que não se é ainda capaz de ver, mas se
está lutando para obter. 14
As ciências da descoberta, das quais a Semiótica faz parte, serão privilegiadas neste
trabalho. Elas se dividem em três grandes classes:
1. Matemática,
2. Filosofia e,
3. Ciências Especiais.
Segundo este diagrama, quanto mais abstrata for a ciência, mais ela será capaz de
fornecer princípios para as menos abstratas. “É por isso que o diagrama da classificação é um
esquema similar a uma escada de degraus, onde cada degrau é, ele mesmo uma escada de
degraus” (SANTAELLA, 1992: 120).
A classificação das ciências de Peirce não é um esquema linear, mas uma série de
escadas relacionadas numa forma tri-dimensional, de forma a exibir as relações de
dependência entre as ciências. É baseada na lógica dos relativos e na forma diagramática de
pensamento, mostrando os efeitos concebíveis de uma ciência, ou em outras palavras. seu
14
C. Eisele (1987) Historical Perspectives on Peirce's Logic of Science p. 804 e L.Santaella, (1992) op.cit. p.108.
15
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “The life of science is in the desire to learn. If this desire is not
pure, but is mingled with a desire to prove the truth of a definite opinion, or of a general mode of conceiving of things, it
will almost inevitably lead to the adoption of a faulty method (...)” (CP 1.235)
20
significado pragmático, que segundo Peirce seria uma das formas mais completas de se
entender uma ciência. 16
A classificação das Ciências não é um sistema fixo e rígido porque está sempre em
evolução. Sua imagem é de um continuum tridimensional, onde pontos poderiam ser
acrescentados ou tirados em qualquer localização.17
Peirce reconhecia que as ciências não podiam ser rigidamente definidas; suas linhas de
demarcação não tinham grande importância, de forma que novas ciências pudessem emergir,
ou aquelas que se tornassem obsoletas poderiam ser retiradas do diagrama. O importante é que
a classificação deveria ser capaz de incorporar estas mudanças.
Fundamental para Peirce era a ordenação das ciências com relação às categorias. Existe
dentro de sua classificação uma lógica ternária e os números 1,2,3 indicam não somente a
ordem, mas são indicadores de um conteúdo lógico-relacional, de tal forma que, onde o
número 1 estiver, há relação com a primeira categoria, a Primeiridade, que é a categoria da
qualidade, sentimento, acaso, indeterminação. O número 2 indica relação com a segunda
categoria, a Segundidade, que é a categoria do existente, da ação, do aqui e agora, da
dualidade. O número 3 está relacionado com a terceira categoria, a Terceiridade, que é a
categoria da continuidade, da lei, da generalidade, do crescimento e da evolução.
Para Peirce, todas as ciências são observacionais, a diferença entre elas reside no modo
de observação empregado em cada uma delas. 18
16
B. Kent (1987) op. cit. p. 47,139, 141-139
17
Ver B.Kent, (1987) op.cit. p.145 e L. Santaella, (1992) op.cit.p.118-121.
21
No diagrama peirceano, a Matemática é a ciência mais genérica e abstrata e não depende
de nenhuma outra ciência (CP 1.53). No entanto todas as outras ciências dependem da
Matemática, seja implícita ou explicitamente, já que os problemas matemáticos aparecem em
todas as ciências e na vida quotidiana, pois sempre temos que estabelecer conseqüências de
estados gerais de coisas. Conseqüentemente, todas as ciências têm um conteúdo matemático,
ou algum ramo para o qual a Matemática é chamada.19
A Matemática é uma ciência que constrói seus objetos na forma de hipóteses, e delas
extrai conseqüências necessárias, sem lidar, contudo, com questões de fato. (CP 4.232)20
Embora a necessidade teórica esteja relacionada às conclusões matemáticas, isto não significa
infalibilidade.
No texto "Reason's Conscience"21, Peirce explica que o matemático não se fia em nada,
ele simplesmente estabelece o que é evidente e mostra as circunstâncias que tornam isto
evidente.
18
C.Eisele (1985) "Laws of Nature" op.cit. p.851.
19
idem p.881.
20
ver I. Ibri (1992).Kosmos Noetós: Arquitetura Metafísica de Charles S. Peirce. p 3 e S. Rosenthal, (1994) Charles
Peirce's Pragmatic Pluralism, p. 21-25
21
C.Eisele, (1985) Op. cit. p. 845. Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: "The mathematician does not rely
upon anything. He simply states what is evident, and notes the circunstances which make it evident."
22
A Matemática não é uma ciência positiva pois “constrói no seu interior as hipóteses com
as quais opera, independente do universo dos fatos”. As teorias matemáticas são meras
possibilidades. (CP 1.248) O falso e verdadeiro na Matemática tem a ver somente com suas
próprias regras e não com o mundo. “As hipóteses da matemática pura são puramente ideais
na intenção, e seu interesse é puramente intelectual” (PEIRCE, CP 5.126).
A Matemática não necessita suporte experimental para suas conclusões, que são
baseadas em coisas hipotéticas. A Matemática parte “de uma hipótese, cuja verdade ou
falsidade nada tem a ver com o raciocínio; e naturalmente, suas conclusões são igualmente
ideais” (CP 2.145). Isto não significa, entretanto, que não dependa da observação (CP 3.427).
22
idem p. 849, Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte:: “Now the mathematician's whole interest is in the
forms of necessary conclusions; and whatever does not concern them is regarded by him as foreing to mathematics, it is
the same in regard to relations. Only a few relations between the individuals of his imaginary universe are noticed at all by
the mathematician , and as to those few, what he cares for is the presence (or absence) of an unbroken rule as to the
identity of objects in different sets of objects between which the relation subsists. If there is no such rule, which might serve
as the means of drawing some necessary conclusion, he will regard the relation as having no mathematical interest.”
23
B.Kent (1987) op. cit. p. 147 e Santaella (1992) op. cit. p. 119.
24
NEM 4.49 Ver S. Rosenthal, (1994) op.cit. p. 23/24
23
termos gerais, realiza experimentos sobre esse diagrama, nota seus resultados
e os expressa em termos gerais. Esta foi uma descoberta de importância,
mostrando tal como ela o faz, que todo conhecimento vem da observação.
(NEM 4:47)25
Dentro do diagrama das ciências de Peirce, a ciência que ocupa o segundo lugar é a
Filosofia.
A segunda classe é a Filosofia, que lida com verdades positivas, pois de fato,
satisfaz-se com observações tais como as que são pertinentes à experiência
normal e diária de todo homem, e nas mais das vezes, em toda hora
consciente de sua vida (PEIRCE, CP 1.241)
A Filosofia tem apenas a Matemática como ciência mais abstrata. Dela retira seus
princípios. Enquanto a Matemática estuda aquilo que é logicamente possível, a Filosofia como
25
L.Santaella (1993 b) op.cit. p. 140.
24
ciência tem como função descobrir “o que é realmente verdadeiro, limitando-se, porém, à
verdade que pode ser inferida da experiência comum que está aberta a todo ser humano a
qualquer tempo e hora” (SANTAELLA, 1994:113).
A Filosofia peirceana é uma filosofia científica, que também deve empregar métodos de
observação, hipótese e experimento como qualquer outra ciência. A Filosofia tem um caráter
observacional porque visa examinar e compreender tudo o que se oferece à nossa
experiência.27
1. Fenomenologia
2. Ciências Normativas
3. Metafísica.
26
Ver B. Kent (1987) op. cit. p. 142, I. Ibri (1992) op.cit. p.2/3 e L. Santaella (1992) op.cit. p 118.
27
B .Kent (1987) Op.cit. p. 145.
28
C. Eisele (1985) op.cit. p. 885.
25
tudo o que está diante de nossa mente, pode ser um sonho, uma sensação, pode ser uma
presença física ou pensamento, não se restringindo a algo "que se pode sentir, perceber,
inferir, lembrar, ou a algo que podemos localizar na ordem-espaço temporal que o senso
comum nos faz identificar como sendo o „mundo real‟.” (SANTAELLA, 1995:16)
A Fenomenologia não é uma ciência da realidade, nada diz sobre o que é, nem sobre o
que deve ser; apenas constata e classifica os fenômenos, ficando restrita às suas aparências.
Peirce sempre enfatizou que a Fenomenologia necessita utilizar o raciocínio dedutivo da
Matemática, embora ela não faça nenhuma tentativa de determinar se o que está investigando
corresponde a algo real. (CP 1.284).
Para Peirce, a observação fenomenológica não requer habilidades especiais (CP 5.41), ela
requer em primeiro lugar apenas uma “capacidade de ver o que está diante dos olhos, tal como
se apresenta sem qualquer interpretação”, em segundo lugar dar atenção aos aspectos de
incidência notável e, finalmente ter capacidade de generalizar, ou seja, torná-lo geral e
pertinente a todo fenômeno. Resumindo: “ver, atentar para, generalizar”. A simplicidade
destas idéias caracteriza um dos traços mais importantes da filosofia peirceana: “o cotidiano, o
imediatamente experienciável, o senso comum.” (IBRI, 1992: 6)
29
B. Kent (1987) op. cit. p. 146/148 , L. Santaella, (1985) op.cit. p.43, L. Santaella, (1992) op.cit. p. 131.
26
e Terceiridade. (CP 5.43, CP 1.357). Os fenômenos aparecem primeiro como liberdade, em
segundo como alteridade e, em terceiro, como ordem.
A Segundidade (CP 1.317-336) está ligada às idéias de força bruta, dualidade, ação e
reação, conflito, aqui e agora, esforço e resistência, díada.
30
I. Ibri, (1996 b) “Introdução à Filosofia Kósmos e Psyché”, curso ministrado no espaço Solaris, anotações em aula.
31
Traduzido por L. Santaella, (1993b) A Percepção - uma teoria semiótica, p. 36. Ver N.Houser (1992) "Trichotomic" in
The Essential Peirce, p. 280.
27
(signo, objeto, interpretante), sendo próprio da ação do signo gerar ou produzir outro signo,
processo este que Peirce definiu como semiose.32
A segunda divisão da Filosofia se refere às Ciências Normativas, que investigam “as leis
universais e necessárias da relação com os Fenômenos com os Fins, ou seja, talvez, com a
Verdade, o Direito e a Beleza” (CP 5.121).
As Ciências Normativas são assim chamadas porque tem como função compreender os
fins, normas e ideais que regem o sentimento, a conduta e o pensamento humanos. As
Ciências Normativas tratam das leis da relação dos fenômenos com os fins, isto é, tratam dos
fenômenos em sua segundidade. (CP 5.123) A tarefa das Ciências Normativas é descobrir
como Sentimento, Conduta e Pensamento devem ser controlados, supondo-se que estejam
sujeitos “numa certa medida”, e apenas em certa medida, ao autocontrole, “exercido por meio
da autocrítica e a formação propositada de hábitos, tal como o senso-comum nos diz que eles,
até certo ponto, são controláveis” (MS 655:24) 33.
As Ciências Normativas são constituídas por proposições provisórias e não por crenças
ou modos de ação. (CP 1.635). É a ciência que estuda o que deveria (CP 1.281) e não o que
precisa ser. (CP 2.156)
32
As idéias peirceanas sobre signo serão retomadas posteriormente no item 4.
33
Apud L.Santaella, (1992) Op.cit. p.126.
28
Segundo Peirce, as Ciências Normativas tem três características (CP 5.126):
Por fim, como última divisão da Filosofia vem a Metafísica, que depende da Semiótica
ou Lógica. A Metafísica é a ciência da realidade. Para Peirce, real34 é aquilo que existe
independentemente do que pensamos a seu respeito (CP 5.405), pois “vivemos num mundo de
forças que atuam sobre nós, sendo essas forças, e não as transformações lógicas do nosso
próprio pensamento, que determinam em que devemos por fim acreditar”. (PEIRCE, apud
29
SANTAELLA, 1985:39) O real é aquilo que não é o que eventualmente dele pensamos, mas
que permanece não afetado pelo que possamos dele pensar (PEIRCE, CP 8.12). Essa definição
deixa clara porque a Metafísica comparece como resultante e não como antecedente de toda a
sua filosofia peirceana.
Finalmente, a terceira grande classe das ciências são as ciências especiais.36 Enquanto as
observações da Filosofia se voltam para os fenômenos que são comuns, familiares a todos, as
ciências especiais descobrem novos fenômenos.
Para Peirce, nas ciências especiais os fatos são confrontados com as teorias, porque é
objeto destas ciências conectar os fenômenos especiais que elas descobrem com as
experiências gerais derivadas de outras fontes (CP 8.113)37.
34
Há diversas passagens que tratam da noção de real: CP 1.578, 3,161, 5.405, 5.408, 5.503, 6.495, 7.339, 8.12. A este
respeito ver J. Smith, (1983), "Community and Reality", The Relevance of Charles Peirce, p.39/41 e S.Rosenthal (1994)
op. cit. 2/3.
35
I. Ibri (1992) op.cit. p.24; B. Kent (1985) op.cit. p.181/184.
36
B. Kent (1985) op.cit. p.184/191.
37
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte:"In the special sciences facts are set over against theories,
because it is the business of those sciences to connect the special phenomena which they discover with the general
experience they derive from other sources." (Peirce, CP.8.113)
30
As Ciências Especiais apelam para a Lógica, como também nas questões mais gerais e
abstratas requerem as concepções da Metafísica. Para Peirce, aqueles que negligenciam a
filosofia também fazem uso de teorias metafísicas tanto quanto os outros, só que “rudes, falsas
e mundanas”. Há aqueles que acham que escapam dos erros metafísicos se não derem atenção
à metafísica, mas desde que todas as pessoas devem ter concepções das coisas em geral, é
muito importante que estas sejam cuidadosamente examinadas (CP 7.579).
Peirce dividiu as Ciências Especiais em físicas (em cujas bases estão ações dinâmicas) e
psíquicas (em cujas bases estão ações signicas). As ciências físicas se “caracterizam como as
ciências das coisas como tal” incluem a Física, Astronomia, Química, Biologia, Geologia, etc.
As ciências psíquicas são “as ciências das coisas governadas pelo intelecto. O termo psíquico
não deve ser, portanto, tomado num sentido restrito, mas como sinônimo de vida inteligente”
(SANTAELLA, 1992:142). As ciências psíquicas englobam a Psicologia, Psicanálise,
Lingüistica, História, Crítica da Arte, Literatura, etc.
Mas esta divisão das ciências especiais não se baseou somente nas diferenças entre seus
objetos, porque Peirce acreditava que a natureza do objeto está sempre em mutação. Estas
diferenças se baseiam nas orientações básicas que o cientista adota, correspondendo a tipos
intelectuais de cientistas muito distintos: “se a orientação dirige-se primariamente para a
causação eficiente, então a ciência é física, se ela está direcionada para a causação final, então
é psíquica” (SANTAELLA, 1992:145). Isso não impede que conceitos semióticos sejam
usados nas ciências físicas, assim como há conceitos físicos que são usados nas ciências
psíquicas.
38
idem p.185.
31
Embora sua tarefa seja descobrir fenômenos previamente desconhecidos, as ciências
especiais "lidam com o existente, tanto no seu nível dinâmico (Segundidade), quanto no seu
nível de generalidade ou tendencialidade (Terceiridade” (SANTAELLA, 1992:148).
Para o desenvolvimento deste capítulo podem-se destacar três textos de Peirce: “Os três
Tipos de Bem”(CP 5.120-150), “O que é Pragmatismo?”(CP 5.411-437)41, e “Ideais da
Conduta”.(CP 1.591-615).
No texto “Os Três Tipos de Bem”, Peirce ao colocar os problemas da Estética, da Ética
e da Lógica, aponta para alguns vetores da interdependência entre Verdade, Virtude e Beleza,
isto é, as razões pelas quais o Belo se torna admirável.
No texto “O que é Pragmatismo?”, Peirce explica como a Lógica depende da Ética, isto
é, como o significado de um conceito tem influência sobre a conduta. A Ética como ciência
geral da conduta está sob a Segundidade na sua dualidade entre conduta e fins da conduta.
Mas é a conduta que revela a conseqüência prática do conceito. Este texto mostra como é que
39
Este capítulo é muito importante dentro do contexto do trabalho. o inter-relacionamento entre a Estética, Ética e Lógica ou
Semiótica vai ser retomado posteriormente nas Conclusões.
40
Ver B. Kent (1985) op.cit. 149/174.
41
Os textos "Os Três Tipos de Bem" e "O que é Pragmatismo" foram publicados em C.S. Peirce, (1990) op.cit. p 197-209 e
283-299 respectivamente. "Ideais da conduta" foi publicado em Trans/Form/Ação, (1985), n.8, 79-95.
32
se dá a ação, que é Segundidade como reflexo do plano de conduta, a relação entre o
autocontrole da lei, o autocontrole lógico e o autocontrole ético ou autocontrole da conduta.
“Ideais da Conduta” mostra como o Belo da Primeiridade pode estar contido no interior
da inteligência, porque o Belo admirável implica juízo e emana de um sistema, envolvendo
uma forma de propósito. Este texto mostra a Ética, como o vínculo entre a Estética e a Lógica.
A Estética peirceana é uma ciência, enquanto que o Belo é um traço real do mundo.
Numa visão mais estreita o Belo, ou a Estética seriam concebidos como sendo exclusivamente
relativo ao gosto humano, mas Estética não pode ser confundida com teoria da arte. Peirce faz
uma clara distinção entre sensibilidade artística, apreciação estética e estudo científico do
Belo.
Portanto, faz sentido buscarmos a caracterização do que seja verdade estética como o
limite de uma investigação indefinidamente controlada. Por outro lado, a Ética também não
pode se confundir com a moral, com o certo e errado, como também não se pode dizer que a
Lógica lidaria apenas com o raciocínio humano.
Peirce entendia a relação entre as Ciências Normativas num sentido amplo, bastante
diferente do sentido cartesiano. Segundo Peirce, uma "estreiteza sutil" atravessa a concepção
33
de Ciência Normativa em quase toda a filosofia madura, relacionando-a exclusivamente com
o espírito humano (CP 5.128).
O próprio Peirce chegou a dizer em uma passagem que "era um perfeito ignorante em
estética” (CP 5.111), e que não "se sentia autorizado a ter nenhuma opinião segura sobre ela"
(CP5. 129), mas acreditava ter “certa capacidade para o prazer estético"(CP 5.133).
Parret (1992) também critica a visão do belo como kalos; ou seja, o fim último como
harmonia e integração perfeita, o que Peirce enfatiza não é a perfeição harmônica, mas a
ligação do Belo com o admirável, o alvo final do amor criativo, a evolução agaspática.43
Segundo Santaella (1994:13), muitos comentadores alegam que não há uma teoria
estética na obra de Peirce. Isto seria um equívoco pois não apenas há uma teoria estética,
como também essa teoria tem coerência e relevância para a discussão de questões que estão
sendo debatidas contemporaneamente. Segundo a autora, a Estética passou a ocupar um lugar
proeminente na arquitetura filosófica de Peirce, a tal ponto que, sem a compreensão
aprofundada do papel fundamental por ela desempenhado como alicerce da Ética e, por
extensão, da própria Lógica ou Semiótica, não é possível entender o pragmatismo peirceano.
42
H. Parret (1992), “Fragmentos peirceanos sobre a experiência estética”, Face-Revista de Semiótica e Comunicação, vol.3,
n.2.,jul/dez, p.219
34
Calabrese em "Peirce's Aesthetics From a Structuralistist Point of View"44 faz uma
análise das abordagens sobre a Estética peirceana, dividindo-as em duas tradições: a primeira
relacionada com crítica de arte e a segunda com a idéia de experiência de beleza.
outra corrente como Hocutt (1962), considera o belo como kalos, tentando encontrar
um esquema lógico para a experiência estética em Peirce a partir de quatro passos
lógicos: 1) o objeto estético é um ícone, 2) o valor do objeto estético depende da
harmonia de suas qualidades intrínsecas, 3) o intérprete ou leitor do signo responde a
uma emoção ou sentimento e 4) quando a emoção ou sentimento é repetido é chamado
de "sentimento de beleza".
O inter-relacionamento das Ciências Normativas pode ser visto ou, categorialmente ou,
através da sua posição hierárquica na classificação das ciências ou, com referência à questão
pragmática, mas é fundamental que esta análise seja inserida na cosmologia de Peirce.
Do ponto de vista categorial, Estética, Ética e Lógica são governadas pelas três
categorias (CP 5.132). Assim a “Estética considera aquelas coisas cujos fins devem incorporar
qualidades”, portanto está dentro da Primeiridade. A Ética “considera aquelas coisas cujos
fins residem na ação”, portanto está sob a Segundidade e a Lógica considera “aquelas coisas
cujo fim é o de representar alguma coisa”, portanto sob a Terceiridade. As três Ciências
Normativas correspondem às três categorias, que no seu aspecto psicológico aparecem como
Sentimento, Reação e Pensamento (CP 8.256).
43
Ver o texto peirceano "Evolutionary Love" publicado em Houser (1992), op. cit. p.353-371.
44
O. Calabrese (1994) "Peirce's Aesthetics From a Structuralist Point of View" em Peirce and Value Theory, p.143 - 151.
35
Para Peirce, o que é esteticamente bom deve ser definido na categoria da Primeiridade: a
qualidade de sentimento, totalidade, imediatidade, presentidade, ou seja, o bem estético não
depende de nada, ele se justifica por si mesmo, é incondicionado.
Um objeto para ser esteticamente bom deve ter um caráter holístico, deve conter a idéia
de unidade, deve ter “um sem número de partes de tal forma relacionadas umas com as outras
de modo a dar qualidade positiva, simples e imediata, à totalidade dessas partes; e tudo aquilo
que o fizer é, nesta medida, esteticamente bom, não importando qual possa ser a qualidade
particular do total.” (CP 5.132)
Dessa definição decorre que não existe melhor ou pior em estética, mas tudo o que pode
haver são várias qualidades estéticas, isto é, “simples qualidades de totalidade incapazes de
corporificação completa nas partes, qualidades estas que podem ser mais determinadas e
fortes num caso do que no outro.” (CP 5.132).
A afinidade da Estética com a Primeiridade também poderia ser explicada pela idéia de
que pessoas experienciam uma forma estética "simplesmente na sua apresentação" (CP 5.36) e
Primeiridade é aquilo que "está presente para o olhar do artista." (CP 5.44). Em outra
passagem, Peirce define a Estética como a teoria da formação de hábitos de sentimento. (CP
1.574).
45
H.Parret (1992) op. cit, p.218.
46
Idem p. 147.
36
que cria beleza. Assim, fica evidente que Peirce liga a experiência estética ao raciocínio, já
que ela é claramente uma terceira atitude.
Passando agora para a análise categorial da Ética, esta como verdadeira ciência dos fins,
está marcada pela Segundidade. De acordo com Peirce, seria passada para a Ética a tarefa de
testar se o ideal estético pode ser estabelecido como o fim último para o qual toda atividade
humana deveria ser dirigida. (CP 5.136)
Do mesmo modo que a Estética não está preocupada com o que é belo ou não é belo,
mas com o que é admirável por si só, a Ética não se preocupa diretamente com o que é certo
ou errado, mas sim com aquilo que deveria ser alvo do esforço humano. O bem ético, por
estar sob a segunda categoria envolve uma dualidade entre o plano e o fim da conduta.
A Lógica considera “aquelas coisas cujo fim é o de representar alguma coisa” (CP
5.130). A Lógica é a ciência dos signos (CP 1.204)
O âmago da Lógica reside na classificação e na crítica dos argumentos, que são três:
abdução (hipótese), dedução (necessidade), indução (probabilidade). Nenhum argumento pode
existir sem que “se estabeleça uma referência entre ele e alguma classe especial de
argumento”.
47
R. Bernstein (1990) “A sedução do Ideal”, Face-Revista de Semiótica e Comunicação, vol..3, n.2. jul/dez, p.195-206.
37
Por outro lado, de acordo com o diagrama da classificação das ciências a Estética, a
Ética, e a Lógica mantêm uma relação hierárquica entre si:
1. Estética,
2. Ética e
3. Lógica.
A Lógica é dependente da Ética, que por sua vez é dependente da Estética. Esta
dependência fica clara quando se entende que a Estética na concepção peirceana é aquela
ciência preocupada com o que deveria ser o telos supremo da vida humana: “o estado de
coisas que é admirável por si só, sem relação com qualquer razão ulterior”. (CP 1.611).
Mas quais são as condições desta meta última? Peirce responde que é a essência da
razão em si, que nunca alcança completude total e deve estar sempre em "um estado de
insipiência, de crescimento (...), a criação do universo que está em processo até hoje e que
nunca terminará é o próprio desenvolvimento da Razão". (CP 1.615)
38
A Ética está submissa à Estética, por isso o bem ético aparece como uma espécie
particular de bem estético, ao mesmo tempo em que o bem lógico é uma espécie de bem ético.
A Ética, como ciência normativa não diz respeito aos princípios de justiça, e
menos ainda, à justiça de qualquer lei específica; nem diz respeito aos valores
de vários tipos de conduta, nem a questões especificamente morais...
(SANTAELLA, 1992:125).
É a Ética que define o fim e, portanto, é impossível ser racionalmente lógico exceto em
bases éticas (CP 2.199). A Ética deve apelar para a Estética para ajudá-la a determinar o
summum bonum (CP 1.191). A Ética é mais do que simplesmente prática, porque ela envolve a
teoria de conformidade da ação com o ideal, o summum bonum. A Ética é uma Ciência
Normativa “par excellence”, porque um fim está ligado a um ato voluntário de uma forma
primária (CP 5.130). A Ética pergunta para que fim todo esforço deve ser dirigido. (CP 2.199).
A Lógica segundo Peirce, não só estabelece regras que deveriam ser, mas também é a
análise das condições de obtenção de algo que tem propósito como um ingrediente essencial.
A Lógica é “o estudo dos meios de atingir a meta do pensamento e é a ética que define a
meta” (CP 2.198) 49
A Lógica apela para a Ética para seus perceptos (CP 1.191). A conexão vital da Lógica e
da Ética tem sido posta de lado pelos lógicos. Segundo Peirce, a fim de bem raciocinar “é
absolutamente necessário possuir não apenas virtudes como as da honestidade intelectual, da
sinceridade e um real amor pela verdade, o estudo da ética permite uma ajuda do todo
indispensável para a compreensão da lógica” (CP 2.82).
48
CP 1.191, 1.573-575, 2.116, 5.566 e 6.290.
49
Ver R. Bernstein (1990), op.cit. p. 190.
39
Peirce entende o pensamento como uma operação lógica, como uma relação que se
opera por mediação, desenvolvimento ou processo. A dependência da Lógica sobre a Ética
também pode ser expressa da seguinte maneira:
Por outro lado, a escolha entre duas condutas deve levar ao bem estético. Assim, o fim
último da ação deliberadamente adotada, ou seja, razoavelmente adotada, “deve ser um ideal
admirável”. A admirabilidade, portanto "é um estado de coisas que razoavelmente se
recomenda a si mesmo em si mesmo, a parte de qualquer consideração ulterior” (CP 5.130).
Não foi senão depois disso que obtive a prova de que a lógica deve estar
fundada na ética, da qual ela é um desenvolvimento mas elevado. Mas mesmo
então, por algum tempo, fui tão imbecil a ponto de não ver que a ética, do
mesmo modo, está fundada sobre a estética, pela qual, desnecessário
mencionar, eu não quero significar leite e água e açúcar (PEIRCE, CP 8.225).
50
H.Parret, (1992), op.cit., p. 217-228.
51
L. Silveira (1997) "Subsídios para um retrato de Charles Sanders Peirce", em O sujeito entre a Língua e a Linguagem, p.
87-92.
40
O fim último não pode depender dos caminhos particulares que acidentalmente o agente
percorreu. O fim último não depende de contingências. Esse fim último, capaz de ser
perseguido no curso indefinidamente prolongado de uma ação, deve ser imutável, sem o que
não seria um fim último. É necessário que esteja em concordância com o livre
desenvolvimento da qualidade estética do próprio agente, ao mesmo tempo em que não tende
a ser perturbado pelas reações sobre o agente proveniente do mundo exterior pressuposto na
própria idéia de ação (CP 5.135-6).
Deste ponto de vista, aquilo que é moralmente bom surge como uma espécie particular
daquilo que é esteticamente bom. Portanto para se conhecer aquilo no que consiste
exatamente o bem lógico é necessário primeiramente analisar a natureza do bem moral e do
bem estético. Daí, se esta linha de raciocínio estiver correta, decorre que:
É necessário entender, portanto, que todo objetivo que puder ser perseguido de modo
consistente, coloca-se tão logo que seja adotado de uma forma decidida, além de toda crítica
possível, pois “um objetivo que não puder ser perseguido e adotado de forma consistente é um
mau objetivo e não pode ser chamado propriamente, de forma alguma, de fim último.” (CP
2.133).
Filósofos das mais diversas facções propõem que a filosofia deve ter como
ponto de partida um ou outro estado de espírito em que homem algum, e
menos ainda um principiante em filosofia, realmente se encontra. Um deles
propõe que comecemos por duvidar de tudo, e por dizer que só há uma coisa
de que não podemos duvidar como se duvidar fosse tão fácil como mentir
(PEIRCE, CP 5.416).
Peirce rejeita aquelas dúvidas que não são verdadeiras, “recusem-se os faz-de-conta”
(CP 5.416). Recusar os “faz-de-conta” significa recusar aquilo que contradiz nossas
verdadeiras crenças. A dúvida verdadeira é um estado muito desconfortável, com reflexos
imediatos na conduta, porque as crenças é que determinam o modo como agimos, como nos
conduzimos, e quem faz a análise desta conduta e de seus fins é a Ética
A crença não é um estado momentâneo, ela dura muito tempo e só é abalada pela
experiência, “a crença é um hábito da mente” A crença não é um modo momentâneo da
52
O espírito anti-cartesiano de Peirce vai ser aprofundado no próximo capítulo.
42
consciência (CP 5.417). Daí resulta a noção de verdade, como um estado de crença inatacável
pela dúvida, “a ação do pensamento é excitada pela incitação da dúvida e cessa com o atingir
da crença; e, assim o chegar à crença é a função única do pensamento” (CP 5.394).
Há uma relação entre crença e verdade como um ponto para o qual tende uma crença
indefinidamente. “Este conceito envolve uma idéia metafísica de evolução de crescimento de
signo, de crescimento da Terceiridade, crescimento da Razão” (IBRI: 1996: a). Quando se diz
que alguma coisa é verdadeira, significa que nela acreditamos, significa que nossas crenças
são permanentemente reforçadas através de nossas experiências, isto é, não encontramos
nenhuma experiência que invalide o que consideramos verdadeiro. É a conduta que mostra se
houve mudança de crença ou não. O sentido da crença é o modo como a conduta se mostra.
Para Peirce, as crenças são dotadas de três propriedades: em primeiro lugar, as crenças
são algo de que estamos cientes; em segundo lugar aplacam a irritação da dúvida e, em
terceiro lugar envolvem o surgimento, em nossa natureza, de uma regra de ação, ou digamos
com brevidade, o surgimento de um hábito (CP 5.397).
Se o conceito tem significado, estamos preparados para agir segundo ele, para interagir
existencialmente, isto é, o conceito só tem significado se tiver efeito na conduta. Significado
envolve alguma referência a propósito. "O que o hábito seja depende de quando e como ele
nos leva a agir" (CP 5.400). O agir está ligado às conseqüências experienciáveis do conceito,
43
na medida em que sai da interioridade, da mera possibilidade. Assim, a diferença entre os dois
conceitos se refere aos diferentes modos de como eles afetam a nossa conduta. 53
Assim, nosso agir tem referência exclusiva ao que afeta os sentidos, nosso
hábito tem o mesmo alcance de nosso agir, nossa crença o mesmo de nosso
hábito, nossa concepção, o mesmo de nossa crença [...] Meu único desejo é o
acentuar a impossibilidade de abrigarmos uma idéia relacionada com alguma
coisa que não sejam imagináveis efeitos sensíveis das coisas. Nossa idéia a
respeito de algo é nossa idéia a respeito de seus efeitos sensíveis... (PEIRCE,
CP 5.401).
53
Para Santaella (1993:24), “o Pragmatismo é um teorema semiótico, porque a Semiótica é a ética do intelecto e a ética é a
estética da ação.”
44
é o da existência, da Segundidade, da alteridade. Uma mera possibilidade, um primeiro que
não se existencializa, não se faz segundo não tem significado possível, não tem realidade, não
tem sentido.55
Ora, assim como a conduta controlada pela razão ética tende a fixação de certos
hábitos de conduta, cuja natureza (para ilustrar o significado, hábitos pacatos e não
irrascíveis) não depende de nenhuma circunstância acidental, e nesse sentido pode-se
dizer que ela está destinada; do mesmo modo, o pensamento controlado por uma
lógica experimental racional, tende à fixação de certas opiniões, igualmente
destinadas, cuja natureza será a mesma ao final, por mais que a perversidade de
pensamento de gerações inteiras possa provocar o adiamento da fixação última.
(PEIRCE, CP 5.429)
O pragmatismo peirceano não pode ser entendido sem as três categorias, o fim é algo
que dá sua sanção à ação, pertencendo, portanto à terceira categoria, a do pensamento, mas o
pensamento envolve ação, assim a Terceiridade é um ingrediente fundamental da realidade. O
ser concreto do pensamento (Terceiridade) é dado pela ação (Segundidade), do mesmo modo
que a ação é governada pelo pensamento.
54
Para alguns comentadores tais como J.Stuhr (1994) "Rendering the World more Reasonable: The Practical Significance of
Peirce's Normative Science", p. 3-16 e Krois, J.M "C.S.Peirce and Philosophical Ethics", p. 27-36, Peirce separa a prática
da teoria.
55
I. Ibri, (1996) “Estética, Ética e Lógica - As relações entre as Ciências Normativas na Filosofia de C.S.Peirce, anotações em
aula.
45
Por outro lado, quando uma pessoa afirma algo e se comporta de acordo com o que
afirma, isto é admirável. É esta a relação do pragmatismo com a Estética.
Uma pessoa que estrutura uma determinada teoria cujas conseqüências práticas ela
realmente vivência, isto é admirável. Quando se fala que uma pessoa é verdadeira
significa que ela tem um modelo de conduta e segue aquele modelo. Na nossa vida, é
difícil admitirmos distanciamento entre teoria e fato (IBRI, 1996 a).
Nós fazemos planos, prevemos nossa conduta, mas depois que ela se realiza fazemos
uma autocrítica para verificar se a conduta está de acordo com nossos fins. Fazemos
permanente esta auto-correção dos nossos projetos e das nossas previsões.
Entre as coisas de que o leitor, como pessoa racional que é não duvida, é que não
apenas tem hábitos como também pode exercer certo autocontrole sobre suas ações
futuras... (PEIRCE, CP 5.418)
O hábito só se constitui quando a pessoa passou por situações semelhantes onde exerceu
o autocontrole, sendo assim essa reflexão subsequente é um preparo para a ação futura. “Ora,
o pensamento é uma espécie de conduta que se acha em larga escala submetido ao
autocontrole” (CP 5.419).
46
comportarmos. Portanto, a Ética como ciência da conduta legitima a Lógica. Também do
ponto de vista categorial não há "lógica possível sem fato e não há lógica do fato sem o fato".
Em "Ideais da Conduta", Peirce argumenta que todo homem tem certos ideais de
conduta. Em primeiro lugar, certos tipos de conduta, quando o homem as contempla têm certa
qualidade estética. Em segundo lugar, o homem se esforça por moldar seus ideais,
consistentemente com cada outro, pois inconstância é odiosa para ele. Em terceiro lugar, ele
imagina quais conseqüências acarretariam seus ideais, e se pergunta que qualidades estéticas
estas conseqüências teriam (CP 1.591).
Segundo estes ideais, as pessoas são levadas a pretender que sua conduta se conforme,
pelo menos a uma parte destes ideais, formulando então certas regras de conduta. Estas regras
mobilizarão algumas forças levando a pessoa a considerar como agir. Esta resolução é da
natureza de um plano. Um plano é um diagrama, é um esquema geral de ação, não para uma
ocasião específica, mas para aquelas ocasiões em que aparecer um estado de coisas
semelhante, embora toda pessoa que vive em contato com a realidade sabe que o futuro
contém erraticidade.
47
Em contato com o real, a pessoa obtém o significado dos fatos e de suas próprias ações
para corrigir sua conduta a cada instante face à alteridade, face ao erro. O futuro contém certa
acidentalidade com a qual terá que programar sua conduta futura, já que não existe saber
absoluto, e as previsões devem ser feitas por meio de alguma coisa verdadeira e real.
Há um elo entre elaborar um plano e efetivamente cumpri-lo, este elo se chama vontade,
volição. Nem sempre fazer um plano significa que este plano será materializado na ação. A
única forma de saber a eficácia do plano é através da ação, porque a ação é uma passagem
necessária para correção, para o aperfeiçoamento. O mundo da existência virá fatalmente
denunciar o erro. A ação é o modo particular do geral, é a Segundidade embutida na
Terceiridade. Assim, o agir se transforma na concretude do pensamento, envolvendo volição.
Uma ação gera conseqüências diante das quais, as pessoas estão sempre se perguntando se a
conduta foi conforme a resolução, se a conduta concordou com as intenções gerais. A pessoa
pode ir mais longe ainda indagando se a conduta concordou com os ideais, o que será seguido
por um novo juízo acompanhado por sentimento, seguido por um reconhecimento do caráter
aprazível ou doloroso deste sentimento. (CP 1.597)
Por outro lado, o homem vai periodicamente rever seus ideais, pois a “experiência de
vida está contribuindo com exemplos mais ou menos elucidativos, que são sumarizados
primeiro, não na consciência do homem, mas nas profundezas de seu ser razoável. Os
resultados vêm à consciência mais tarde”. (CP 1.599).
48
Mas todos estes elementos estão representados no raciocínio e, portanto, há um
paralelismo perfeito entre conduta e raciocínio. Desde que a descrição dos fenômenos da
conduta controlada seja verdadeira, então o “raciocínio é apenas um tipo especial de conduta
auto-controlada” (CP 1.610).
Peirce percebeu que não era possível construir um amálgama entre a Estética, Ética e
Lógica sem resolver alguns problemas tais como, em primeiro lugar, situar o homem no
universo, ou seja, desenvolvendo uma teoria de mundo. 56
A condição inicial, antes da existência do universo, não foi um estado de um ser puro
abstrato, ao contrário foi um estado de simplesmente absolutamente nada, nem
mesmo um estado de vazio, pois mesmo o vazio é alguma coisa. Se vamos proceder
de modo lógico e científico, devemos, a fim de considerar todo o universo, supor
uma condição inicial na qual o universo completo foi não existente, e, assim um
estado de absoluto nada. (PEIRCE, CP 6.217)
O evolucionismo peirceano pode ser visto como uma teoria de um mundo cuja direção
indica a passagem da desordem para a ordem, onde coexistem ordem e desordem Lei e Acaso.
A ordem surge da liberdade como uma tendência à aquisição de hábitos. E a tendência à
aquisição de hábitos é uma tendência da mente. 57 A tendência para generalização consiste na
primeira e fundamental lei da ação mental. Idéias tendem a se reproduzir. Há várias
formulações de Peirce para a lei do crescimento da mente (CP 6.21).
O caminho da Lógica vai do vago ao definido. A ordem aparece como uma tendência do
universo a adquirir hábitos. O que é uma lei da natureza? É um hábito adquirido. Se o
universo adquire hábito ele deve ter um substrato mental. Aquisição de hábito é a
característica mais fundamental da mente.
56
I. Ibri (1992) op.cit. p. 73.
57
I. Ibri (1994) Kosmos Poietikos - Criação e Descoberta na Filosofia de Charles S. Peirce, p. 3.
49
Peirce entende os sistemas lógicos naturais como sistemas de mesma natureza que o
nosso pensamento. Pode-se pensar o mundo, ou certa ordem geral da natureza ou certos
sistemas de ordenação como tendo estruturação lógica similar à lógica de nosso pensamento, o
que permite representar com verossimilhança sistemas da natureza, pois nós temos uma
estrutura racional que é assim porque foi adestrada pela natureza, a forma racional do homem
é hereditária da forma racional da natureza.
A primeira coisa que demanda nossa investigação é que a conduzamos para uma
idéia clara e distinta do que são hábito e aquisição de hábito. Podemos unicamente
aprender isto estudando estas coisas onde as vemos em formação na mente humana.
Ao fazê-lo, não estou receoso de especializar demais e de assumir que o universo
tem caracteres que pertencem apenas ao protoplasma nervoso em um complicado
organismo. Pois devemos lembrar que o organismo não fez a mente, mas apenas a
ela se adaptou. Adaptou-se por um processo evolucionário tal, que não está longe de
ser correto considerar que a mente humana constitui o organismo (PEIRCE, NEM
141)58.
Portanto, é através do raciocínio correto que se chegará ao objetivo último, que é o ideal
da conduta. Para um autor como Peirce este objetivo último não pode estar na ação, como
também não pode ser qualidade de sentimento finita. Peirce se opõe à idéia de o homem só
possa agir pelo prazer, porque a ação que ser refere ao prazer não deixa espaço para a
distinção entre o certo e errado. Este objetivo último é o admirável.
O objeto admirável que é admirável per si deve, sem dúvida, ser geral. Todo ideal é
mais ou menos geral; ele deve ter unidade, porque é uma idéia, e unidade é essencial
a toda idéia e todo ideal. (PEIRCE, CP 1.613)
58
Apud I. Ibri (1992) op. cit. p. 87.
50
O objetivo último deve ser além de geral, deve trazer a idéia de continuidade, de
infinitude. Peirce retoma a idéia platônica do verdadeiramente Belo, que é uma combinação
entre sensibilidade e razão para encontrar as formas verdadeiras das idéias divinas.
Eu não posso ver como alguém possa ter um ideal mais satisfatório do admirável que
o desenvolvimento da Razão assim entendido. A única coisa cuja admirabilidade não
é devida a uma razão além é a própria Razão, compreendida em toda sua plenitude,
tanto quanto possamos compreendê-la. Sob esta concepção, a idéia de conduta será
executar nossa pequena função na operação da criação por dar uma contribuição
para tornar o mundo mais razoável, sempre que estiver ao nosso alcance fazê-lo. Em
lógica será observado que conhecimento é razoabilidade; e o ideal do raciocínio será
seguir os métodos que devem desenvolver o conhecimento mais rapidamente...
(PEIRCE, CP 1.615)
51
da escolha da conduta e a estratégia para atingir a meta. O critério de escolha é aquilo que
transgride o exercício do poder e resgata a liberdade de todos, é essa admirabilidade, que é
admirável por si mesma. Não tem outra justificativa, não precisa. Ela guarda o caráter de
Primeiridade da Estética. Não depende de uma justificativa, de uma causa ou condicionante
ulterior. Ela simplesmente irá bastar-se, mas é um Belo que emana da razão razoável ou da
razoabilidade inteligente.
A própria Beleza, na obra de Peirce, quando ele propõe a relação Belo, Bom e
Verdadeiro, é uma construção. A Beleza não é tão somente aquela qualidade primeira, que
aparece fenomenologicamente, mas é aquele Belo que está oculto num sistema e que só pode
percebido ao nível do entendimento, ao nível da inteligência.
59
I. Ibri, (1994) op. cit. p.138.
52
ser a terceira ciência, seu fim específico é o pensamento. Sua finalidade última é o estudo da
formação de hábitos e pensamentos que sejam consistentes com o ideal lógico, que por sua
vez é definido pelo ideal ético, servindo finalmente ao ideal estético que é o crescimento da
razoabilidade concreta. A Semiótica é a porção central do edifício filosófico peirceano.
Ao se propor como uma teoria geral e abstrata de todos os tipos de signos que são
possíveis, existentes ou não, estudando „seus modos de significação, denotação e de
informação e o todo do seu comportamento e propriedades‟, a Semiótica acaba
chegando a um sistema classificatório, altamente rigoroso e logicamente alicerçado,
dos tipos fundamentais de signos e das combinatórias possíveis entre esses signos
(SANTAELLA, 1993:12).
No seu sentido mais amplo, a Semiótica é uma ciência que trata não só dos símbolos,
mas de todas as espécies de signos, das relações triádicas autênticas, representações, de todas
e quaisquer formas de linguagem. É a ciência da Terceiridade. A Semiótica é o estudo abstrato
de todos os possíveis tipos de signo, seus modos de significação, de denotação e de
informação, e o todo de seus comportamentos e propriedades, na medida em que não são
acidentais (MS 634:14)60
Para Santaella (1985:14), a Semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação
todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de
constituição de todo e qualquer fenômeno de produção de significação e de sentido Daí seu
campo de indagação ser muito vasto. Neste contexto, vida é uma espécie de linguagem do
mesmo modo que todos os sistemas e formas de linguagem tendem a se comportar como se
60
L. Santaella, (1992) op.cit. p. 132.
53
fossem sistemas vivos, ou seja, eles se reproduzem, se readaptam, se transformam e se
regeneram como as coisas vivas. A Semiótica cobre o que se denomina vida e seus dois
ingredientes fundamentais: energia (que torna possíveis os processos dinâmicos) e informação
(que comanda, controla, coordena, reproduz e, eventualmente, modifica e adapta o uso de
energia).
Fisch (apud SANTAELLA, 1992:48) nos dá uma explicação sobre a serventia de uma
teoria geral dos signos.
[...] ela nos dará um mapa tão completo e tão detalhado a ponto de podermos
localizar qualquer campo de pesquisa altamente especializado em relação a
quaisquer outros; ensinará rapidamente como passar de um campo a outro e como
distinguir campos ainda não explorados daqueles já longamente cultivados.
Fornecerá enciclopédias e dicionários e os materiais para as introduções à Semiótica.
Aperfeiçoará as habilidades expositivas dos especialistas cujos relatórios e
comunicações são ilegíveis àqueles que não compartilham da mesma especialidade.
Assim, a comunicação entre especialistas em campos semióticos não-adjacentes, será
grandemente aperfeiçoada, assim como entre semioticistas e não-semioticistas, ou
entre semioticistas e pessoas que ainda não se reconhecem como tal. Seremos então
capazes de localizar pesquisas em progresso, visto que nos serão fornecidas
perspectivas sobre modos de ver e avaliar seus resultados. Mas por um bom tempo
ainda, a teoria geral dos signos irá requerer revisões continuas à luz de novas
descobertas. (FISCH, apud SANTAELLA, 1992:48)
Reforçando esta análise, Santaella (1992:53) enfatiza que a Semiótica de Peirce é uma
disciplina cientificamente concebida e não-antropocêntrica, tendo nascido no contexto de
Lógica das ciências. Por outro lado, embora sendo uma teoria do conhecimento “capaz de
explicar e interpretar todo o domínio da cognição humana”, ela não esta limitada às semioses
humanas. Ao contrário, ela nos fornece elementos para descrever e compreender semioses de
qualquer natureza, pois a semiose não é privilégio do homem.
54
Segundo Serson (1995:51), a Semiótica, no seu conjunto, é, portanto ao mesmo tempo a
ciência normativa dos métodos de investigação inteligente e do raciocínio em geral e a ciência
que estuda os signos de todas as espécies, sua condições de significação e de correspondência
com seus objetos, isto é, condições de verdade.
Para Peirce, todo pensamento ou toda representação cognitiva é um signo. Não temos
poder algum de pensar sem signos. (CP 5.264) Não há raciocínio possível, nenhum
pensamento, nenhuma linguagem seria possível sem o uso dos signos.
O terceiro princípio, cujas conseqüências nos cumprem deduzir, é que, sempre que
pensamos, temos presente na consciência algum sentimento, imagem, concepção ou
outra representação que serve como signo. Mas segue-se de nossa própria existência
(o que está provado pela ocorrência da ignorância e do erro) que tudo o que está
presente a nós é um a manifestação fenomenal de nós mesmos. Isto não impede que
haja um fenômeno de algo sem nós, tal como um arco-íris é simultaneamente uma
manifestação tanto do sol quanto da chuva. Portanto, quando pensamos, nós mesmos
tal como somos naquele momento, surgimos como um signo. (PEIRCE, CP 5.283)
Ao longo de sua extensa obra, Peirce elaborou várias definições para signo. A definição
citada abaixo faz referência à posição e ao papel de cada elemento da tríade (signo-objeto-
interpretante), como também a forma de relação ordenada num processo lógico:
Na relação triádica entre signo, objeto e interpretante, todos tem natureza sígnica. Esta
relação, que não é uma relação triádica simples, mas é um complexo de relações triádicas,
pode ser pensada de três modos diferentes, dependendo da ênfase que é colocada sobre cada
um dos correlatos; assim, se o signo é enfatizado, a relação é de significação ou representação.
Se o objeto é posto em evidência, a relação é de objetivação. Enfim, se o interpretante é
enfatizado, tem-se uma relação de interpretação.
Um signo é qualquer coisa que está relacionada a uma Segunda coisa, seu Objeto,
com respeito a uma Qualidade, de tal forma a trazer uma Terceira coisa, seu
Interpretante, para uma relação com o mesmo Objeto, e isso de maneira tal a trazer
uma Quarta para uma relação com aquele Objeto da mesma forma, ad infinitum. Se a
série é rompida, o Signo, nesse ponto perde seu caráter significante perfeito.
(PEIRCE, CP 2.92)
55
Há também nesta relação triádica um esquema de um processo de continuidade, que
Peirce denominou de semiose, explicando que nenhum interpretante pode ser tido como
absoluto ou definitivo. “Faz parte da própria forma lógica de geração do signo que ela seja a
forma de um processo ininterrupto, sem limites finitos.” (SANTAELLA, 1994:31)
Mas é em função desta diversidade entre signo e objeto, que Peirce introduz a noção de
experiência colateral - ”uma familiaridade com algo a fim de veicular alguma informação
ulterior sobre esse algo” (CP 2.231).
Assim, qualquer coisa desde que seja interpretada em função de um fundamento que lhe
é próprio, como estando no lugar de qualquer outra coisa. O fundamento do signo está no seu
poder de gerar outro signo como seu interpretante.
61
L. Santaella, (1996 b) "Semiosphere The Growth of signs" em Semiotica, vol.109, n1/2.p.178
62
L.Santaella, A Teoria Geral dos Signos Semiose e Autogeração p. 22.
63
L. Santaella, (1997) "Roteiro para Leitura de Peirce", em O Sujeito entre a Língua e a Linguagem, Série Linguagem, n.2 p.
93-114.
56
Um signo, ou representâmen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa
algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é cria na mente dessa pessoa, um signo
equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino
interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto.
Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo
de idéia que eu, por vezes denominei fundamento do representâmen. (PEIRCE, CP
2.228)
Portanto, a relação sígnica pressupõe algo que pode desempenhar o papel de um signo,
isto é, uma potencialidade sígnica - forma, essência, qualidade. Qualquer coisa pode ser um
signo, mas para seja um signo deve ter algum caráter em virtude do qual possa funcionar
como signo, deve existir algumas condições necessárias para que um signo possa funcionar
como signo:
Segundo Serson (1996:70), o signo deve ter certas qualidades ou caracteres que nos
permitam ser distinguí-los de outros objetos; o signo deve ser afetado de certa maneira pelo
objeto que ele significa; enfim, a terceira condição é que o signo se dirija por si mesmo a um
interpretante mental: não é suficiente que ele seja afetado e esteja em relação com um objeto,
mas é necessário que esta relação seja tal que conduza também a mente a entrar em relação
triádica com o signo e o objeto.
O signo tem dois objetos, que são: objeto imediato e objeto dinâmico. O objeto imediato
está indicado ou representado no signo, é o modo como o objeto dinâmico se apresenta. O
objeto dinâmico é o objeto fora do signo, que determina o signo e ao qual ele se aplica, isto é,
aquilo a que o signo se refere. O objeto dinâmico é aquele que vai se desvelando ao longo do
tempo. O conceito de objeto dinâmico e imediato traz a noção de evolução, de crescimento,
gerando significação.
58
1. Quali-signo: algo que se apresenta como mera qualidade
2. Sin-signo: algo singular ou conjunto de singulares, numa relação existencial com seu
objeto, seu segundo.
3. Legi-signo: algo de natureza geral, tendo o caráter de uma lei governando a ocorrência de
particulares, através da mediação para um terceiro, o interpretante. (CP 8.333, 2.244-46)
Quando o signo é considerado na sua relação com o objeto, isto é, na sua Segundidade,
aparece uma nova tríade: Ícones, Índices, Símbolos:
1. ícone: se o signo for um quali-signo, mera qualidade na sua relação com o objeto ele será
um ícone, isto é, um signo que pode representar seu objeto em função de suas
qualidades, qualidades que ele possuiria do mesmo modo, se o objeto existisse ou
não. Tratando-se de qualidades, a única relação que ele pode ter com aquilo que o
torna presente é de semelhança. “Um Ícone é um Representâmen cuja Qualidade
Representativa é uma sua Primeiridade como Primeiro”.(Peirce, CP 2.276)
2. índice: se o signo for um sin-signo então ele estará conectado existencialmente a algo
também singular ou conjunto de singulares, seu objeto está fora do signo e é
diferente dele. Neste caso, o signo funciona como um índice desse objeto do qual
o sin-signo indicial é uma parte. “Um Índice ou Sema é um Representâmen cujo
caráter Representativo consiste em ser um segundo individual”. (Peirce, CP 2.293)
64
Este conceito é de grande importância e será retomado no próximo capítulo, dentro da teoria do inquiry.
59
Com respeito a sua relação para com o interpretante, o signo será um Rema, um
Dicente ou Argumento. Essa divisão corresponde à velha divisão, Termo,
Proposição, Argumento, modificada de modo a se tornar aplicável aos signos de
modo geral. (PEIRCE, CP 8.337).
1. rema: quando se trata de um quali-signo icônico, esse signo se apresentará para ser
interpretado como uma possibilidade. Sendo a relação de comparação estabelecida,
uma relação de semelhança de duas qualidades, o signo só pode funcionar como
uma hipótese interpretativa. “Um Rema é definido como signo representado por seu
interpretante como se fosse um traço ou marca (ou sendo-o, efetivamente).”
(PEIRCE, CP 8.337)
3. argumento: quando se trata de legi-signos simbólicos, o interpretante que este signo estará
apto a produzir é chamado argumento, sendo que as regras interpretativas para
a produção do interpretante já estão inclusas no próprio signo, assim a ordem
lógica das relações das premissas é que dá o sustento ao interpretante.
Por sua vez os argumentos se dividem em abdução, dedução e indução. (A questão dos
argumentos será retomada no próximo capítulo, quando será exposta a segunda divisão da
Semiótica que tem por escopo estudar os argumentos.)
60
dão origem a sessenta e seis classes de signos.(CP 8.344). Apesar de sua importância,
deixarão de ser examinados detalhadamente porque fogem ao escopo deste trabalho.
Segundo Santaella (1993:13), além de ser uma ciência dos tipos possíveis de signos a
Semiótica se constitui em uma teoria da significação, uma teoria da objetivação e uma teoria
da interpretação, que pode ser explicada pela relação triádica entre o signo, objeto e
interpretante. 65
5. As divisões da Semiótica
65
Ver também Santaella, (1992) op.cit. 158-160.
61
melhor, metodêutica66. É a doutrina das condições gerais da referência
dos Símbolos e outros Signos aos Interpretantes que pretendem
determinar... (PEIRCE, CP 2.93)
Em outra passagem, Peirce argumenta que do fato de que todo pensamento é realizado
através de signos, a Lógica pode ser vista como a ciência das leis gerais dos signos. A Lógica
tem três ramos: A Gramática Especulativa, ou a teoria geral da natureza e significado dos
signos sejam eles ícones, índices ou símbolos; a Lógica Crítica classifica os argumentos e
determina a validade e o grau de força de cada um, e a Metodêutica, que estuda os métodos
que deveriam ser perseguidos na investigação, exposição e aplicação da verdade. Cada divisão
depende da precedente. (CP 1.191)
A base lógica para esta divisão da Semiótica está nas categorias e na própria definição
de signo. Sendo o signo peirceano aquilo que, “de certo modo e numa certa medida intenta
representar alguma outra coisa, diferente dele, seu objeto, produzindo, como fruto dessa
relação de referência, um efeito numa mente potencial ou real”, portanto podem existir:67
1. estudos cujo objetivo é o signo em si mesmo, suas potencialidades, e sua natureza interna,
2. as relações de referência do signo aos objetos que ele intenta representar, incluindo-se aqui
necessariamente as verdades ou não destas relações.
3. a eficácia comunicativa do signo.
66
L. Santaella (1993 b) op.cit. p.179 revela que Peirce, exercitando sua terminologia, atribui vários nomes à metodêutica:
retórica formal (CP1.559), lógica objetiva (CP 1.444, 2.111-118, 3.430), lógica dos símbolos (CP 4.9), lógica intencional
(CP 4.8), lógica de auto-aconcselhamento (4.116) e teoria da investigação. (CP2.106).
67
B. Kent (1987) op.cit.185/190, L.Santaella, (1993b) op.cit. p. 21/170.
62
referencialidade dos signos”, e o terceiro ramo, a metodêutica, está sob a Terceiridade, que
“determina o tipo de interpretação dada às coisas, a partir da mediação”.
Deve-se ressaltar a influência, porém, não só das categorias, mas também da lógica
triádica interna dos signos. Assim, se o signo é algo que se refere a uma outra coisa diferente
dele, seu objeto, para um interpretante, então a primeira divisão da Semiótica corresponde ao
exame do signo em si, a segunda divisão corresponde ao estudo do seu objeto e a terceira ao
estudo do seu interpretante.
A primeira divisão da Semiótica é a Gramática Especulativa, que tem por função estudar
a “fisiologia dos signos de todos os tipos”, investigando sua natureza e significados e
determinando as condições a que devem se conformar para serem signos.
A Gramática Especulativa é a ciência das “condições gerais para os signos serem signos
ou a doutrina das condições gerais dos símbolos ou outros signos para terem um caráter
significante”. (HOUSER, 1990:209).
Existe uma tendência em se confundir a Semiótica apenas com sua primeira divisão, ou
seja, aquela que classifica, descreve e analisa todos os tipos possíveis de signos.
63
aprender pela experiência, afim de que estes possam receber uma significação.” (SERSON,
1996:56)
Segundo Santaella68, a Lógica crítica ocupa justamente o coração da Semiótica, que por
outro lado, é o próprio coração da Filosofia peirceana. A Lógica Crítica começa onde acaba a
Gramática Pura, cujas classificações terminam no signo argumental.
Para Houser (1990: 211), o semioticista, que estuda Crítica, estuda a relação dos signos
com seus objetos, em particular as condições de referência eficaz dos signos aos seus objetos
significados. Um dos principais focos da Crítica está na concepção de verdade. O que
queremos dizer por verdadeiro? Como a veracidade de um signo é dependente de seu objeto?.
68
L. Santaella (1992) op.cit. p. 135/137,B. Serson (1996) Op.cit. p. 47/60l.
64
Estudando o raciocínio, que sempre se dá em signos, Peirce chegou à conclusão de que
existem três tipos de raciocínio ou métodos de investigação69: abdução, dedução e indução.“A
divisão de toda inferência em Abdução, Dedução e Indução, quase pode ser apresentada como
sendo a Chave da Lógica”. (Peirce, CP 2.98).
Isto é, o pragmatismo propõe certa máxima que, se sólida, deve tornar desnecessária
qualquer norma ulterior quanto à admissibilidade das hipóteses se colocarem como
hipóteses, isto é, como explicações dos fenômenos consideradas como sugestões
auspiciosas... (PEIRCE, CP 5.196).
69
A teoria da investigação vai ser retomada no próximo capítulo.
70
Segundo Santella, (1993 b:202), “se tomarmos como base os conceitos peirceanos, por volta de 1902, quase se pode
afirmar que a abdução é a questão central da metodêutica.”
65
1. afetar as premissas da dedução não é afetar a lógica da dedução,
2. o pragmatismo é a lógica da abdução e,
3. o pragmatismo é a doutrina de que toda concepção é uma concepção de efeitos práticos
concebíveis. (CP 5.196):
Aparece um fato, levanta-se uma hipótese. Se a hipótese for verdadeira, o fato será
explicável. Portanto há necessidade de investigação para daí se tirar conseqüências. Também
ao estabelecer uma a uma relação necessária entre o particular e o geral, o pragmatismo
traduz, implicitamente, a condição de possibilidade do argumento indutivo. “Assim, a
validade da indução depende da relação necessária entre o geral e o singular. É exatamente
isto que constitui a base do Pragmatismo.” (PEIRCE, CP 5.170).
Portanto, uma hipótese para ser admissível tem que ser verificada experimentalmente,
na medida em que é possível tal verificação. Toda a lógica da indução está contida naquilo
que Peirce entende por verificação experimental.
A verdade ou falsidade de uma hipótese não está relacionada apenas a ser capaz de ser
diretamente percebida, mas sim nas suas conseqüências. Para muitas teorias, as conseqüências
podem não ser experienciáveis agora, e somente poderão se tornar experienciáveis no futuro.
Mas, uma teoria pode ser dita verdadeira quando ela é aproximadamente verdadeira. “[...]
sendo nossas idéias mais ou menos vagas e aproximadas, o que pretendemos dizer quando
afirmamos que uma teoria é verdadeira é que é muito aproximadamente verdadeira”. (CP
5.199), ou numa outra passagem sobre o significado de um conceito:
[...] indaguemos o que pretendemos significar ao dizer que uma coisa é dura.
Evidentemente, que ela não será riscada por muitas outras substâncias. Toda a
concepção dessa qualidade assim como a de qualquer outra, confunde-se com seus
imaginados efeitos. Não há absolutamente nenhuma diferença entre uma coisa dura e
uma mole enquanto não forem submetidas a um teste. (PEIRCE, CP 5.403)
66
Isto significa que na ausência de um teste real, não há como determinar o significado de
um conceito. Para Peirce, um conceito só é realmente significativo quando se coloca no
âmbito de uma experiência concebível, possível, “[...].é outra forma de se dizer que aquilo que
chamamos de significado de uma proposição abarca toda dedução necessária e óbvia que dela
resulte.” (CP 5.165).
Assim, a discussão quanto à força do argumento pertence à Lógica Crítica, que foi, num
primeiro estágio, desenvolvida como uma teoria unificada da abdução, dedução e indução.
67
Para Houser (1990:209), a Retórica Especulativa ou Metodêutica é a ciência que estuda
as condições necessárias da transmissão de significados pelos signos de mente em mente, e de
um estado de mente a outro. É a doutrina das condições gerais de referência dos símbolos e
outros signos aos interpretantes que eles visam determinar..
A Metodêutica tem dois ramos: “um ligado à teoria geral da investigação, aos métodos
de investigação e outro, retórico, isto é, a arte de conduzir um raciocínio, um convencimento
porque permite explicar como é que se dá a construção do convencimento quando dois
interlocutores ideais ou duas inteligências científicas ao conversar possam provar alguma
coisa uma para a outra.” (SERSON, 1996b)
71
B. Kent,(1987) op. cit. p. 178.
72
L. Santaella (1997) op. cit. p. 110.
69
Capítulo II. A TEORIA DA INVESTIGAÇÃO
1. Introdução:
70
principalmente os remanescentes fossilizados da ciência”. A segunda seria “um corte mais
profundo”, caracterizada como um método do saber. A segunda visão seria a mais certa,
podendo, no entanto, ser comprometida por uma concepção metodológica individualista e por
vezes não suficientemente dinâmica.74
Peirce achava que os cientistas, assim como os lógicos deveriam "mirar dois alvos
principais": o grau de segurança, como aproximação da certeza de cada tipo de raciocínio e a
extração da possível e esperada "uberty", ou seja o valor em produtividade de cada tipo. (CP
8.384)75
Peirce propõe então uma definição para ciência como "um modo de vida", baseando-se
na sua própria experiência como cientista e em seu conhecimento de história da ciência:
A ciência deve significar para nós um modo de vida cujo único princípio animador é
encontrar a verdade, que persegue este propósito por um método bem respeitado,
fundado em profundo conhecimento daqueles resultados científicos já estabelecidos
por outros dentro do que esteja disponível, e busca cooperação na esperança de que
a verdade seja encontrada, se não pelas atuais investigações, ainda que finalmente
por aqueles que vêm depois deles e que farão uso de seus resultados. Não faz
diferença quão imperfeito possa ser o conhecimento de um homem, quão sujeito a
erro e preconceito, do momento em que ele se engaja em uma investigação dentro do
espírito descrito, aquilo que o ocupa é ciência... (PEIRCE, CP 7.54-55) 76
Peirce estende esta definição para todas as ciências. Assim na perspectiva peirceana,
quando se fala em ciência de modo geral ou quando se fala de uma ciência em particular,
subentende-se uma comunidade de pesquisadores, num determinado período de tempo, com
uma unidade de propósito e de método, que torna o resultado mais do que uma simples
somatória de resultados individuais. Neste contexto fica claro o sentido sócio-histórico da
investigação, que pode ser evidenciado na seguinte passagem:
73
(MS 614.7 e CP.7.49, 7.60, 7.61, 7.87) C. Delaney, (1993), Science, Knowledge and Mind- A study in the philosophy of
C.S.Peirce ,p.13 e C. Stewart, (1986) "Social and Economic Aspects" Transactions of the C.S.Peirce Society, vol.XXII p.
501
74
C.Delaney (1993),op.cit. p. 14
75
L. Santaella (1992) op.cit. p. 97.
76
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte:“Science is to mean for us a mode of life whose single animating
purpose is to find out the real truth, which pursues this purpose by a well considered method, founded on thorough
acquaintance with such scientific results already ascertained by others as may be available, and which seeks cooperation
in the hope that the truth may be found, if not by any of the actual inquiries, yet ultimately by those who come after them
and who shall make use of their results. It makes no difference how imperfect a man knowledge may be, how mixed with
error and prejudice, from the moment that he engages in an inquiry in the spirit described, that which occupies him is
science...” (CP7.54-55)
71
[...] se tivermos que definir ciência, não no sentido de abarrotar um arquivo [...] mas
no sentido de caracterizá-la como uma entidade histórica viva, devemos concebê-la
como aquilo com o qual homens como eu tem se declarado ocupados. (Peirce, CP
1.44)77
Assim, se um homem tem sede de aprender e compara suas idéias com resultados
experimentais a fim de corrigir suas idéias, esse homem será reconhecido pelos cientistas
como tal, não importando que seu conhecimento seja pequeno. (CP 1.44)
Destes pontos resultam os principais traços da análise lógica do método científico, que
serão desenvolvidos nos tópicos a seguir: a questão do método em Peirce, o anti-cartesianismo
peirceano e a lógica da investigação.
O estímulo da dúvida leva o esforço por atingir um estado de crença. A esse esforço
denominamos Investigação, embora se deva admitir que, por vezes, tal designação
não se mostra muito adequada. O estímulo da dúvida é o único motivo imediato do
esforço por chegar à crença. É certamente convenientíssimo serem nossas crenças
tais que nos orientem devidamente as ações, de sorte a satisfazermos nossos desejos;
e essa reflexão nos levará a rejeitar toda crença que não pareça ter-se estruturado de
forma a assegurar este resultado. Isso só ocorrerá, entretanto, se uma dúvida
substituir aquela crença. Com a dúvida o esforço começa e tem fim quando cessa a
dúvida. Conseqüentemente, a investigação tem por objetivo único o acordo de
opiniões.” (PEIRCE, CP 5.374)
Dúvida, para Peirce, é uma questão muito séria, a dúvida genuína não tem “gênese
téorica, ela tem gênese na experiência”. Isto não quer dizer que não possamos duvidar
teoricamente. A mera especulação teórica não tem o estatuto da dúvida genuína, não abala a
crença e não muda nosso modo de agir. A visão peirceana de dúvida e crença está
fundamentada no pragmatismo.
77
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “... if we are to define science, not in the sense of stuffing it into
an artificial pigeonhole where it may be found again by some insignificant mark, but in the sense of characterizing it as a
living historical entity, we must conceive it as that about which such men as I have described busy themselves” (CP 1.44).
78
“Fixação das Crenças”-1877 (CP 5.358-87), a análise deste texto vai ser retomada no item 2.2 deste capítulo.
72
A dúvida teórica não tem a força compulsiva da dúvida instaurada pelo fato, isto é, a
dúvida que surge ao colocar em crise uma teoria na qual nós cremos. A dúvida
legítima é aquela que efetivamente abala uma crença, ou seja a crença não é mais
operativamente guia de conduta habitual. (Ibri, 1997)
Nossas crenças guiam nossas condutas, então nossa conduta habitual é balizada pelas
nossas crenças, quando este balizamento se vê abalado pela dúvida, o hábito tende a se
romper.
Crença e dúvida são modos de ação. As ações tendem a se repetir criando hábitos, e a
dúvida é a privação de um hábito. Os hábitos influenciam a natureza dos pensamentos futuros,
ou seja, o hábito envolvido numa crença é a expectativa de que certos efeitos a serem
produzidos pelo objeto da nossa investigação sejam significados da crença.
Investigar é tornar uma crença cada vez mais determinada. As crenças indubitáveis
assim o são porque são indeterminadas. Quanto mais determinada uma crença mais
ele pode ser assaltada pela dúvida. Compreender uma crença é expô-la a uma
variedade de situações ainda não determinadas. Para Peirce, a crença não é uma
simples fórmula verbal, é a conclusão de um processo inferencial que envolve a vida
ativa e sensória do homem. (SANTAELLA, 1993:64)
73
A investigação corresponde à determinação da crença, sendo para isso necessários os
métodos. Peirce privilegia o método da ciência que apresenta dois aspectos básicos: de levar
ao estabelecimento de teorias amplamente aceitas e o de nos forçar a olhar a permanência
externa das coisas.
Para aplacar nossa dúvida, faz-se necessário, por conseguinte, que se encontre
método por força do qual nossas crenças passem a ser determinadas não por algo
humano, mas por algo externo e estável - por algo que nossa reflexão não tenha
efeito.(...) O algo externo e estável a que nos referimos não seria externo no sentido
indicado, caso sua influência atingisse um único indivíduo. Devemos dispor de algo
que afete ou possa afetar todas as pessoas. E embora as maneiras de afetar sejam
necessariamente tão diversas quanto às condições individuais, o método deve ser tal
que a conclusões últimas de todas as pessoas sejam as mesmas. Tal é o método da
ciência. (PEIRCE, 5.384).
Portanto, no método da ciência, mais tarde chamado pragmático, nossas crenças são
determinadas por algo externo independente de nossas fantasias, sendo que os resultados a
que chegamos devem atender à realidade e ser também submetidos à crítica dos outros.
Mas como é que uma grande variedade de observações e processos pode levar a uma
conclusão que seja aceita por todos aqueles que a compreendem? Para Peirce, quando
diferentes pesquisadores concordam com um resultado final, isto não é simplesmente um fato
bruto. Ao contrário há convergência de opiniões, observações, idéias e pontos de vista. A
explicação para isto está contida na sua teoria da realidade, como resultado final da
investigação. A realidade não é só alguma coisa que tem correspondência com o mundo, mas
é aquilo a que se chega ao acordo final da investigação. 79
Do fato de que o real permanece inafetado pelo que pensamos (CP 8.12); do fato de que
o real é independente do que dele se possa pensar (CP 5.405); do fato de que uma comunidade
de investigadores utilizando um método correto chegará a uma opinião com a qual todos
concordarão (opinião esta cujo objeto é o real e que não depende das opiniões individuais CP
5 407), emergem três idéias: 80
79
(CP 1.420, 2.5661, 4.580, 5.453, 5.467, 5.528, 6.327) Ver S .Rosenthal (1994) op. cit p. 10-11 e Smith (1983) op cit p.
42-43.
80
(CP 4.61, 6610, 5.407. 2781, 5.311, 4.547)
74
1.a realidade tem uma espécie de independência com relação àquilo que está sendo pensado e
representado.
2.a realidade está essencialmente relacionada com o pensamento e as idéias
3.a idéia de realidade é a resultante final da investigação.
Suponha que nossa opinião com referência a uma dada questão esteja completamente
estabelecida, de tal modo que mesmo que se a investigação for levada adiante, ela
não nos ofereça mais surpresas neste ponto. Então poderemos dizer que alcançamos
o perfeito conhecimento sobre essa questão. (Peirce, CP 4.62) 81
81
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: "Suppose our opinion with reference to a given question to be
quite settled, so that inquiry, no matter how far pushed, has no surprises for us on this point. Then we may be said to have
attained perfect knowledge about that question."(CP 4.62)
82
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: "There is no escaping the admission that the ultimate end of
inquiry -- the essential, not ulterior end -- the mould to which we endeavor to shape our opinions, cannot itself be of the
nature of an opinion. Could it be realized, it would rather be like an insistent image, not referring to anything else, and in
that sense concrete.”(CP 8.104).
75
Por ser extremamente geral, a teoria geral da investigação pode descrever, em um
plano estritamente lógico, tanto um sistema cognitivo biológico ou artificial
(perspectiva cognitiva), como também uma comunidade científica trabalhando com
um método estabelecido (perspectiva epistemológica). (SERSON, 1993:1)
Descartes inaugura uma filosofia rigorosa à luz da ciência com base na nossa
racionalidade, que é um alicerce seguro. Devemos abandonar velhas crenças e vamos começar
abandonando a mais básica delas, isto é, começamos duvidando da própria existência. Por
outro lado, se existo como ser pensante, devo ter uma causa para existir, ou seja, meu eu
requer um criador, então Deus existe porque eu existo, porque ele é o meu criador.
Segundo Descartes, Deus ilumina minha mente para que eu tenha idéias verdadeiras, já
que idéias claras e distintas são verdadeiras e Deus na sua bondade não deixa que eu me
engane. Esta é a condição de verdade para Descartes. As verdades surgem com idéias claras e
distintas, porque Deus ilumina nossa mente e não deixa que ela seja iludida pelo demônio. O
critério de verdade cartesiano depende de Deus.
Então, em primeiro lugar admitimos uma entidade metafísica, Deus, para que ela
legitime a condição de verdade, ou seja, a lógica depende da metafísica. Descartes introduz de
maneira definitiva na filosofia a idéia de sujeito, com o método da dúvida. O Cogito é a
descoberta do eu. Ele pretende que o método da dúvida seja realmente método e leva esta
dúvida ao ponto radical de modo que ele passa a duvidar da sua própria existência.
76
Para Descartes a alma, o espírito, a mente nada tem a ver com a matéria. Peirce tem uma
posição diferente, ele retoma a idéia de cosmologia. Para Peirce, natureza e mente são co-
substanciais. Pensamento, signo, construção simbólica, existem tanto na interioridade como
na exterioridade, e o fundamento do mundo é justamente a idealidade. Matéria, para Peirce é
uma espécie de “mente exaurida, cansada, que tem hábitos enraizados e alto grau de
uniformidade”. 83
Nós observamos esta tendência na mente humana, nós temos esta tendência de adquirir
hábitos, portanto a natureza tem um substrato mental. A substância primária da natureza é
mente. Peirce, portanto rompe a dualidade mente-matéria, que seriam substâncias
inconciliáveis, e introduz o idealismo. Tudo é idealidade, mundo é idealidade, mundo e
idealidade são consubstanciais. Hábito é aquisição ao longo do tempo e a natureza adquire
hábitos na forma de leis. Terceiridade é hábito. A própria idéia de hábito implica a idéia de
repetição, de contínuo.
83
I.Ibri, (1996 a)"A Física da Physis", Revista HYPNO : Reflexões sobre a natureza, Educ - Palas Athena, n.2.p.23-31.
84
C. Eisele, (1985) op.cit. p. 829
77
vida curta e muito do que tem sido considerado indubitável num determinado dia tem sido
provado falso na manhã seguinte. (CP 5.514)
Meu ensaio original, escrito para uma revista popular mensal, assume por nenhuma
razão melhor do que essa que a verdadeira investigação não pode começar até que
um estado de dúvida verdadeira comece e acabe tão logo a crença seja atingida,
aquele da "estabilização da crença", ou em outras palavras um estado de satisfação, é
tudo no que consiste a verdade ou o alvo da investigação. (PEIRCE, CP 6.485)85
Peirce mostra que razão e instinto não são inseparáveis como quer Descartes. Essa
rejeição de Peirce ao cartesianismo está na base de suas teorias da ação mental, dos signos, da
cognição, da investigação científica e dos métodos.
Para Santaella (1993 b:23), a herança cartesiana não é algo de que podemos nos
descartar, e deve ser encarada de frente, sob pena de cairmos no outro extremo, do anarquismo
metodológico e desprezando ensinamentos lógicos que podem guiar os passos do
investigador.
Descartes expõe o método da dúvida como o método correto para se chegar à certeza,
usa a dúvida como método, é um cético metodológico: começar duvidando de tudo para
chegar à certeza absoluta, chegar à verdade.
85
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: "My original essay, having been written for a popular monthly,
assumes, for no better reason than that real inquiry cannot begin until a state of real doubt arises and ends as soon as
Belief is attained, that "a settlement of Belief," or, in other words, a state of satisfaction, is all that Truth, or the aim of
inquiry, consists in. " (CP 6.485)
78
Hume não é um cético metodológico, ele realmente duvida. Ele entra profundamente na
especulação cética, tanto que se declara angustiado, confessando que perdeu sua auto-
identidade. Hume mina o que Kant mais tarde vai chamar de “bases dogmáticas da filosofia”.
Hume vai minar a idéia dogmática de contínuo, de continuidade, o contínuo da temporalidade
real, da espacialidade real, das predicações reais. O que Hume vem minar é a idéia de que
estas regularidades permaneçam regularidades. Esta tal regra que se supõe que exista, é
razoável acreditar que ela permanecerá no futuro como regra? Como poderemos saber se o sol
nascerá amanhã?
Esta questão é importante, porque ela questiona todo nosso saber, toda a estrutura íntima
do nosso saber. Quando questionamos a validade daquilo que observamos, ontem e hoje, com
relação a não ser válido para o futuro, estamos questionando fundamentalmente a básica
estrutura do saber, estamos questionando se é possível conhecer alguma coisa. Estamos
admitindo que pelo menos as coisas do passado eu posso conhecer, mais conhecer o passado
será sinônimo de conhecer? Podemos subtrair do conceito de conhecer a idéia de predizer?
Hume colocou uma questão muito difícil: como é que provamos a continuidade da
ordem na natureza, como é que nós temos a certeza de que esta ordem natural permanecerá no
futuro? Esta é a questão da causalidade. O que eu observo ser causal vai permanecer causa no
futuro? Este é um problema da indução, porque é um problema da causalidade. A partir da
observação de casos particulares pode-se generalizar, isto é indução. Hume mina isto, ele
indaga como é que de uma observação de casos particulares eu construo uma regra geral? Para
Hume, esta regra geral só tem fundamento psicológico. Os fatos induzem esta regra geral.
Para Peirce, ceticismo total é tão impossível como certeza absoluta. Sua resposta para o
ceticismo está no pragmatismo, o conceito assume significado quando acarreta uma totalidade
de experiências. O conceito assume significado quando molda a conduta.
Nada é vital para a ciência, nada pode ser. Suas proposições aceitas, entretanto, não
são mais do que opiniões, e toda a lista é provisória. O homem científico não está
minimamente atado às suas conclusões. Ele não arrisca nada por elas. Ele está pronto
a abandoná-las tão logo a experiência a elas se oponha [...] Não há, portanto,
nenhuma proposição em ciência que responda à concepção de crença. Mas em
questões vitais é bastante diferente. Devemos agir em tais questões, e o princípio sob
o qual estamos dispostos a agir é a crença. (Peirce, CP 1.635-36) 86
86
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “Nothing is vital for science; nothing can be. Its accepted
propositions, therefore, are but opinions at most; and the whole list is provisional. The scientific man is not in the least
79
Para Peirce, os métodos são adotados para minimizar as surpresas e reduzir o erro,
conforme a seguinte passagem do texto "Reason's Conscience"87:
Hookway em "Truth and The Aims of Inquiry"89, observa que para Peirce não há
verdades que não possam ser conhecidas por aqueles que conduzem ou praticam corretamente
seu raciocínio. Exercer o autocontrole sobre o raciocínio não pode ser diferente da adoção do
método científico. Peirce tinha confiança na sua justificativa da indução e acreditava que mais
cedo ou mais tarde todos reconheceriam que as hipóteses são produzidas e testadas
experiencialmente e que o progresso científico requer uma fonte confiável de hipóteses e
meios eficientes para testá-las. (NEM iii 211)
wedded to his conclusions. He risks nothing upon them. He stands ready to abandon one or all as soon as experience
opposes them (...) There is thus no proposition at all in science which answers to the conception of belief. But in vital
matters, it is quite otherwise. We must act in such matters; and the principle upon which we are willing to act is a belief.”
(CP 1.635-36)
87
Apud C. Hookway, (1992) “Truth and The aims of Inquiry” em Peirce, p. 67.
88
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “The most logical way of reasoning is the method which while
reaching some conclusion will the most ensure us against surprise, or, if you please the method which while leading us as
seldom as possible into surprise, produces the maximum expectation, or again, which leads us by the shortest cut to
maximum of expectation and the mimimum of surprise.” (R693p.166)
89
C. Hookway, (1992), op.cit. p. 41-79.
80
2. 1. O anti-cartesianismo peirceano90
92
Houser inclui entre os textos da série cognitiva a resenha do livro de Fraser "As obras de
George Berkeley" e "On a new class of Observations suggested by the principles of
Logic"(Ms1104).
90
B. Serson, (1997) “On Peirce‟s Pure Grammar as a general theory of Cognition: From the thought sign of 1868 to the
semeiotic theory of assertion”, Semiotica, 113-1/2. P.107-157, C. Hookway, (1992), op.cit. p.41-77, Delaney (1993) "The
Critique of Cartesian Epistemology" The relevance of Charles Peirce, p. 85-129, e H.B. Garewicz, (1994), "Peirce and
Descartes", Living Doubt, p.151-155.
91
Segundo Murphey, a teoria das categorias seria parte da teoria da cognição. Segundo ele, os textos “Questões Referentes a
Certas Faculdades Reivindicadas pelo Homem” (CP.5.213-63), “Algumas Conseqüências das Quatro Incapacidades”
(CP.5.264-317) “Fundamentos para a Validade das Leis da Lógica: Outras Conseqüências das Quatro Incapacidades”.
(CP.5.318-57), conhecidos como a série da cognição, na verdade, seriam destinados a um trabalho maior da qual o texto
"New List of Cathegories" seria apenas um dos capítulos.
92
N. Houser, (1992) The Essential Peirce-Selected Philosophical Writings, Bloomington and Indianapolis: Indiana
University Press, p. 83/108.
81
A crítica de Peirce não é dirigida somente a Descartes mas ao cartesianismo. Esta
rejeição é conseqüência de uma busca de uma fundação epistêmica a que as ciências já
estavam apontando na segunda metade do século passado. Peirce inclui nesta controvérsia os
empiristas ingleses, cujas doutrinas tendiam para o nominalismo. Há alguns trechos que
podem ser lidos como respostas a Hume, já que para Peirce o "espírito do cartesianismo"
significava o "espírito do nominalismo". (CP 5.264, 5.310).
Para Peirce nada mais inadequado do que fundar o conhecimento na intuição, o que
significaria depositar na consciência individual a certeza do conhecimento. Peirce acredita na
transcendência dos interesses individuais.
A filosofia de Descartes começa com a dúvida que é algo que Peirce não aceita, para
quem a filosofia deve começar com as crenças, porque só conseguimos nos livrar das crenças
pela experiência. As crenças nos foram impressas no espírito pela experiência, não nos
livramos delas por um ato de arbítrio, não podemos acreditar em coisas falsas.
Como a filosofia de Peirce é evolucionista, ele acredita que a verdade é atingível num
processo a longo prazo, a "verdade é alguma coisa que resiste a ser durante muito tempo
ignorada". À medida que se reconhece a natureza evolutiva da realidade, se reconhece a
incompletude do conhecimento. O espírito da ciência anima aqueles que dão suporte à teoria
do falibilismo, segundo a qual nosso conhecimento nunca é absoluto, mas navega num
“continuum” de incerteza e indeterminação. (CP1.135, 1.170-75).
Neste artigo, Peirce enumera sete capacidades mentais que a filosofia cartesiana atribui
aos homens, e para cada uma delas pesa os argumentos a favor e contra, concluindo que a
faculdade em questão pode ser reduzida a algo mais simples.
Para Peirce o termo “intuição será tomado como significando uma cognição não
determinada por uma cognição prévia do mesmo objeto” e, conseqüentemente determinada
por algo fora da consciência. A crença na intuição e na certeza que ela acarreta produz um
abrigo seguro contra a indeterminação, o provisório, o erro. Até então, a intuição era tomada
como um sinônimo de inspiração na qual repousavam os poderes humanos da descoberta.
Para Peirce há, portanto, uma diferença entre ter uma intuição e pensar que ela é intuitiva,
como também é impossível distinguir uma cognição derivada de uma intuitiva.
83
[...]. a questão consiste em saber se estas duas coisas, distinguíveis no pensamento ,
estão de fato, invariavelmente conectadas, de forma tal que podemos sempre
distinguir intuitivamente entre uma intuição e uma cognição determinada por uma
outra [..] Neste caso, eu diria que tivemos um poder intuitivo de distinguir uma
intuição de outra cognição. Não há evidências de que temos esta faculdade, exceto
que parecemos sentir que a temos. (PEIRCE, CP 5.214)
Por outro lado, não temos uma autoconsciência intuitiva. Para Peirce a autoconsciência
é a recognição de interioridade privada (sei que eu existo). Esta autoconsciência é distinta da
consciência em termos gerais, do sentido interno e da apercepção. Esta autoconsciência é
inferencial, isto é, só temos consciência do mundo exterior, que existe como algo diferente do
eu, quando erramos.
Para complementar esta questão Peirce introduz a teoria dos signos. Não há inferência
possível sem signos.
Peirce sustenta que toda cognição é determinada por outra, atacando o postulado
aristotélico-cartesiano de que as premissas primeiras (originárias) são indemonstráveis. Para
Peirce a certeza intuitiva é psicológica e não lógica, ele mostra que as cognições intuitivas não
podem ser tomadas como sinônimo de certeza e infalibilidade. Nós podemos ter intuições,
mas nunca poderemos ter certeza de que essas intuições são originárias. Peirce rejeita a dúvida
total, a certeza, a clareza, o método, a verdade, o incognoscível como origem.
85
1. “O cartesianismo ensina que a filosofia deve começar com a dúvida universal, ao
passo que o escolasticismo nunca questionou os princípios fundamentais.
2. Ensina que a comprovação final da certeza encontra-se na consciência individual,
ao passo que o escolasticismo se baseou no testemunho dos doutos e da Igreja
Católica.
3. A argumentação multiforme da Idade Média é substituída por uma linha singular
de inferência que freqüentemente depende de premissas imperceptíveis.
4. O escolasticismo tinha seus mistérios de fé, mas empreendeu uma explicação de
todas as coisas criadas. Todavia, há muitos fatos que o cartesianismo não apenas não
explica como também torna absolutamente inexplicáveis, a menos que dizer que
“Deus os fez assim” há de ser considerado como explicação." (Peirce, CP 5.264)
Peirce refuta o cartesianismo não para voltar ao escolasticismo, mas para atender às
exigências da ciência e da lógica modernas estabelecendo que “não podemos começar uma
investigação a partir da dúvida completa", porque nenhuma investigação parte do nada. Alem
do que não podemos começar pela dúvida em parte porque é impossível psicologicamente, em
parte porque não há intuições ou premissas originárias e em parte porque o senso comum nos
diz que não duvidamos daquilo que de verdade não duvidamos. “Não pretendemos duvidar
filosoficamente daquilo que não duvidamos em nossos corações.” A dúvida real é um estado
doloroso e desconfortável.
Por outro lado, supor algo inexplicável como originário só pode ser feito através do
raciocínio em signos, mas a única justificativa para uma inferência a partir de signos é que a
conclusão explique o fato. Supor que o fato seja absolutamente inexplicável é não explicá-lo
86
e, por conseguinte, esta suposição nunca é permitida. A crítica ao espírito cartesiano resultou
em quatro incapacidades:
1. “Não temos poder algum de Introspecção mas sim, todo conhecimento do mundo
interno deriva-se, por raciocínio hipotético, de nosso conhecimento de fatos
externos.
2. Não temos poder algum de Intuição mas, sim, toda cognição é determinada
logicamente por cognições anteriores.
3. Não temos poder algum de pensar sem signos.
4. Não temos concepção alguma do absolutamente incognoscível “ (PEIRCE, CP
5.264)..
Dessa forma, Peirce ataca o Cogito de Descartes, isto é, o eu penso como um ponto
original e fundamental para se chegar ao conhecimento do mundo, negando que todo
conhecimento inferido e derivado necessita ser justificado por uma dedução lógica a partir de
um conjunto de premissas que são elas próprias intuições.
Para Descartes todo conhecimento teria seu início nas percepções recebidas pelos
sentidos. Mas, para Peirce percepções por si mesmas não constituem conhecimento e não
podem servir de premissas para inferir conhecimento. Aceitar a primeira proposição de que
não temos poder introspectivo, sendo nosso conhecimento do mundo interior derivado de
hipóteses a partir do conhecimento de fatos externos, significa ter de abandonar os
preconceitos arraigados e crenças numa autoconsciência intuitivamente acessível.
Peirce está, portanto, preocupado em evitar o dogmatismo de que certas crenças estão,
em princípio imunes à discussão e críticas, como também evitar o ceticismo.93
93
E. Saporiti,(1995) A Interpretação, p 18-24.
87
necessário), indução (o raciocínio procede como se todos os objetos dotados de certos
caracteres fossem conhecidos) e hipótese ( ou abdução, que é a inferência que procede como
se todos os caracteres necessários para a determinação de um certo objeto ou classe fossem
conhecidos).
A cognição não tem início numa intuição mas é o resultado de uma inferência que
ocorre num processo cuja origem e cujo fim não se pode precisar. Embora, posteriormente
Peirce mude sua maneira de pensar, na época em que escreveu este artigo, ele acreditava que
toda inferência tem a forma de um silogismo padrão resultando nos três tipos de raciocínios
possíveis: hipótese, indução e dedução.
Do fato de que não temos poder algum de pensar sem signos, decorre que em qualquer
momento que temos um pensamento, estará presente na consciência algum sentimento,
imagem ou concepção, ou outra representação que serve como signo.
Ora, um signo tem, como tal, três referências; o primeiro, é um signo para algum
pensamento que o interpreta; é um signo de algum objeto ao qual, naquele
pensamento é equivalente; terceiro, é um signo, em algum aspecto ou qualidade, que
o põe em conexão com seu objeto. (PEIRCE, CP 5.283)
Dessa forma o pensamento-signo se refere a algo exterior, quando uma coisa real é
pensada, mas sendo o pensamento determinado por um pensamento precedente do mesmo
objeto, ele só pode se referir à coisa exterior, denotando este pensamento prévio. Peirce
retoma a negação da cognição originária na postulação de que não há pensamento ou cognição
ou signo que não seja precedido por um pensamento anterior.
88
A presentidade não tem valor intelectual, sendo assim, os conteúdos da consciência não
são conhecidos em si mesmos, mas apenas através da ação mental. Daí decorre que não há
conhecimento sem interpretação, visto que todo conhecimento é condicionado pelos fatores
anteriores a ele no processo de cognição e só se revela no momento em que é interpretado
num conhecimento subsequente.94
94
Existe consenso entre os comentadores de Peirce que estes textos, embora da juventude, cujos conceitos vão sendo
amadurecidos, já deixam evidentes alguns pontos muito importantes na obra de Peirce: o falibilismo, o pragmatismo, sua
teoria da percepção, o conceito de signo triádico.
95
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “We come now to the consideration of the last of the four
principles whose consequences we were to trace; namely, that the absolutely incognizable is absolutely inconceivable. That
upon Cartesian principles the very realities of things can never be known in the least, most competent persons must long
ago have been convinced. Hence the breaking forth of idealism, which is essentially anti-Cartesian, in every direction,
whether among empiricists (Berkeley, Hume), or among noologists (Hegel, Fichte). The principle now brought under
discussion is directly idealistic; for, since the meaning of a word is the conception it conveys, the absolutely incognizable
has no meaning because no conception attaches to it. It is, therefore, a meaningless word; and, consequently, whatever is
meant by any term as "the real" is cognizable in some degree, and so is of the nature of a cognition, in the objective sense
of that term.” (Peirce, CP 5.310)
89
não existe a coisa que é, em si mesma, no sentido de não ser relativa à mente, embora coisas
que são relativas à mente sem dúvida existem à parte desta relação.” (CP 5.311)
Assim, as cognições que nos encontram através desta infinita série de induções e
hipóteses são de dois tipos - verdadeiras ou falsas, ou cognições cujos objetos são reais e
aquelas cujos objetos não são reais. O real é definido na seguinte passagem:
O real, então, é aquilo no qual, mais cedo ou mais tarde, a informação e o raciocínio
resultarão finalmente, e que é, portanto independente das minhas e das suas
fantasias. Assim, a verdadeira origem da concepção de realidade mostra que esta
concepção implica essencialmente a noção de uma COMUNIDADE, sem limites
definidos e capaz de um aumento de conhecimento indefinido. (Peirce, CP 5.311) 96
No terceiro texto da série cognitiva, “Fundamentos para a Validade das Leis da Lógica”,
Peirce continua suas críticas ao ceticismo absoluto, dizendo que não existem céticos
absolutos. O ceticismo absoluto é auto-contraditório porque todo exercício da mente consiste
em inferências e, embora existam objetos inanimados que não tem crenças, não há seres
inteligentes nestas condições. (CP 5.318) Há razão para se creditar que a ação da mente se
assemelha a um “movimento contínuo”. (CP 5.319)
96
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “The real, then, is that which, sooner or later, information and
reasoning would finally result in, and which is therefore independent of the vagaries of me and you. Thus, the very origin
90
Peirce introduz algumas idéias sobre a indução, relacionando-a com sua cosmologia e
evolucionismo. Na verdade, parece haver certa conexão física entre nossos órgãos e a coisa
experienciada, entre nosso conhecimento prévio e o que aprendemos desta maneira. É uma
faculdade que o homem tem. (CP 5.341) Só assim as induções são verdadeiras, e são
explicadas pelo fato de que o mundo e o homem têm a mesma natureza, só assim se explica
esta tendência de fazermos mais freqüentemente boas induções do que más. (CP 5.353)
Peirce pergunta a que se deve esta faculdade? A resposta para esta questão está, sem
dúvida, num certo sentido, na seleção natural, já que esta faculdade é absolutamente essencial
para a preservação da raça. Mas como isto é possível? Como explicar que fatos de certa
espécie possam ser verdadeiros quando mantém relação com outros que são verdadeiros? A
validade da indução e da hipótese é dependente de certa particular constituição do universo.
Quando se acredita na evolução natural, pode-se pensar que o homem teve uma
derivação natural. Parece plausível dizer que nós herdamos estas faculdades de uma matriz,
que é a natureza. Assim não é à toa que nossa inteligência tem alguma afinidade com as
formas naturais. Mas se acreditarmos numa derivação evolutiva das nossas faculdades,
haveria um real muito antigo, sem a presença do ser humano.
A resposta peirceana para esta questão está ligada à sua idéia de “continuum”, de
permanência. Os juízos sintéticos são possíveis porque há leis gerais que são reais, por
exemplo, as leis da natureza. (CP 5.348)
Para Peirce toda inferência provável é inferência das partes do todo e é essencialmente
inferência estatística. A validade da indução está ligada não ao fato de se poder dizer que a
generalidade da indução é verdade, mas, que a longo prazo tende para isto.
of the conception of reality shows that this conception essentially involves the notion of a COMMUNITY, without definit
limits and capable of an indefinite increase of knowledge.” (CP 5.311)
91
Outra questão relativa à validade da indução diz respeito a que desde que algo seja real,
segue-se necessariamente que uma sucessão suficientemente grande de inferências das partes
do todo vai levar ao conhecimento do todo.
Nós estamos na condição de um homem numa luta entre a vida e a morte, se ele não
tiver força suficiente ser-lhe-á totalmente indiferente como ele age, tal que a única
suposição sobre a qual ele pode agir racionalmente é a esperança do sucesso. Assim,
este sentimento é rigidamente demandado pela lógica. Se o seu objeto fosse qualquer
fato determinado, qualquer interesse privado poderia conflitar com os resultados do
conhecimento e, portanto consigo próprio, mas quando seu objeto é de uma natureza
tão ampla quanto a comunidade possa se tornar, é sempre uma hipótese não
contraditada por fatos e justificada por sua‟indispensabilidade‟ para tornar qualquer
ação racional. (Peirce, CP 5.357) 97
O quarto texto da série cognitiva é a resenha de "As obras de George Berkeley", na qual
Peirce analisa a questão dos universais, e declarando-se realista, em oposição ao nominalismo.
Por outro lado, para os nominalistas toda generalização é mera matéria de conveniência,
só existem fatos particulares. As leis, a teoria são apenas invenções para lidar com fatos
particulares. Mas para o "homem científico", as leis realmente operativas na natureza são
reais.
Peirce, ao indagar se os universais são reais, argumenta que esta questão se torna
transparente quando se considera o que seja o real. Peirce divide os objetos, de um lado, em
97
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “We are in the condition of a man in a life and death struggle; if
he have not sufficient strength, it is wholly indifferent to him how he acts, so that the only assumption upon which he can
act rationally is the hope of success. So this sentiment is rigidly demanded by logic. If its object were any determinate fact,
any private interest, it might conflict with the results of knowledge and so with itself; but when its object is of a nature as
wide as the community can turn out to be, it is always a hypothesis uncontradicted by facts and justified by its
indispensableness for making any action rational.” (CP 5.357)
92
ficção e sonho e de outro lado, em realidade. Os primeiros só existem na medida em que
alguém os imagine; os últimos possuem uma existência que independe da mente. (CP 8.12)
Este ponto é fundamental para a distinção entre o que é real e o que é criação da mente.
A realidade tem permanência e alteridade diante da mente. O real não é afetado "por aquilo
que possamos pensar dele." A questão, portanto, está em que existe algo fora da mente, que
influi diretamente sobre a sensação e através da sensação, sobre o pensamento, porque está
fora da mente e é independente do modo como a pensamos. O traço fundamental da realidade
é estar aí, permanecer sendo, ser independente, é a alteridade, a característica de ser outro.
Esta concepção da realidade é tão familiar que não é necessário que eu me demore
sobre ela; mas a outra, ou a concepção realista, ainda que menos familiar, é ainda
mais natural e óbvia. Todo pensamento e opinião humanos contêm um elemento
arbitrário, acidental, que depende das limitações das circunstâncias, poder e
inclinação do indivíduo; um elemento de erro, em suma. Mas a opinião humana
tende universalmente, a longo prazo, para uma forma definida que é a verdade. [...]
Existe, portanto, para toda questão, uma resposta verdadeira, uma conclusão final,
para a qual a opinião de todo homem constantemente tende. (Peirce, CP 5.311)
Para Peirce, o erro ou a vontade arbitrária podem adiar este acordo geral, mas a opinião
final é independente de tudo que é arbitrário e individual no pensamento. A verdade não é
uma questão individual, a verdade tem um sentido coletivo. Portanto esta teoria da realidade é
contrária àquela da “coisa-em-si” kantiana. É de Kant que deriva a idéia de que a linguagem
substancia o pensamento, o que ele chamou de passo copernicano. Estava na essência da
filosofia kantiana considerar o objeto real enquanto determinado pela mente.
Portanto, realidade para Peirce é "uma coisa que existe independentemente de toda
relação com a concepção que dela tem a mente". Aquilo que existe tem persistência,
93
existência e permanência. Devemos observar que o "exterior" significa apenas aquilo que é
independente de todo fenômeno imediatamente presente, isto é, de como possamos pensar ou
sentir, assim como o "real" significa aquilo que é independente de como possamos pensar ou
sentir. (CP 8.13)
Para Peirce, não somente as cognições devem conter termos gerais, como também estes
termos devem permanecer vagos, para assumir seu papel como signo, ou seja, um signo só
pode funcionar como signo somente se for capaz de ser interpretado e esta interpretação deve
ocorrer na forma de outro signo (CP 5.287).
Assim, a generalidade dos termos nunca pode ser exaurida pela própria enumeração dos
particulares. A vagueza, ou seja, a capacidade indefinida para futuras interpretações é
essencial para a significação. Então esta concepção de realidade é inevitavelmente realista
porque as concepções gerais entram em todos os juízos e, portanto, em todas as concepções
verdadeiras, "por conseguinte uma coisa no geral é tão real quanto no concreto." (CP 8.14)
A teoria realística é "altamente prática e de senso comum", pois o realista não irá
perturbar a crença geral por meio de dúvidas inúteis e fictícias, pois um consenso ou opinião
comum constitui realidade. O realista também não separa a existência fora da mente e o ser da
mente, pois quando uma coisa está numa relação tal com a mente individual que a mente a
conhece, ela está na mente, e o fato dela estar na mente em nada diminui sua existência
externa. (CP 8.16)
94
Peirce apresenta uma discussão sobre as sensações, se opondo à existência de sensações
originárias sem quaisquer relações gerais entre elas, embora observando que muitas vezes não
é possível estabelecer completamente as diferenças entre elas. Sensações diferentes se
parecem umas com as outras, diferentes sensações também diferem em intensidade, mas há
outra diferença entre elas, irreconciliável com seu caráter individual, há uma incerteza quanto
ao seu julgamento, um provável erro. Mas este erro provável na verdade determina a relação
entre duas sensações.
Nas leis destas relações de intensidade entre diferentes sensações há uma imensa
pesquisa, um ramo da ciência. Existem não somente relações entre sensações, mas
elas são o ponto de partida mais tangível e natural. (PEIRCE, MS1104) 98
Para finalizar esta análise dos textos anti-cartesianos é apresentado o resumo feito por
Haak99, em "Descartes, Peirce and the Cognitive Community", entre as principais diferenças
Descartes Peirce
O método da dúvida é impossível, a dúvida
1. Método da dúvida não voluntária requer uma razão específica e
deve começar com as crenças que nós temos.
Orientação para a comunidade.
2.Individualismo Define verdade e realidade via acordo
Certeza da auto-consciência. intersubjetivo.
Rejeição da tradição, autoridade. Indivíduo como "locus" de ignorância e erro.
Auto-consciência aprendida via interações
com os outros.
Todo pensamento feito através de signos.
Falibilismo.
3. Busca Dogmática da certeza. Nenhuma intuição infalível
Cadeia de inferências. Não há premissas primeiras indubitáveis
Capaz de vários argumentos; continuidade do
conhecimento.
4. Inexplicáveis (Deus assim fez) Não há incognoscíveis,
Realismo Idealismo.
98
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “In the laws of these relations of intensity between different
sensations there is an immense research, a branch of science. There are not only the relations between sensations but they
are the most tangible and the natural starting point.” (MS 1104)
99
S.Haak, Susan (1993)," Descartes, em Peirce and the Cognitive Community", em The relevance of Charles Peirce.
95
2.2. O Método Científico.
100
R. Descartes, (1996) "O discurso do método", p. 61-127.
96
No primeiro artigo desta série “Fixação das crenças” 101, Peirce retoma a crítica à dúvida
cartesiana e apresenta seu método de investigação. A investigação ou a luta pela crença
também surge de uma dúvida, mas muito diferente da dúvida cartesiana.
Crença e dúvida são dois estados da mente que estão vinculados à ação. O sentimento da
crença indica que foi estabelecida em nossa natureza uma tendência que determinará nossas
ações, de forma mais ou menos segura. A dúvida, ao contrário, paralisa a ação. A dúvida é
uma ruptura de um hábito de ação que a crença estabeleceu. (CP 5.372) Dúvida e crença tem
significado na conduta. A dúvida é um estado de espírito incômodo em que temos dificuldade
de escolher um caminho de ação. “De modo geral sabemos quando é de nosso desejo formular
uma pergunta ou formular um juízo, pois há diferença entre a sensação de duvidar e a de crer”.
(Peirce, CP 5.753).
Mas há uma diferença de ordem prática entre a dúvida e a crença: nossas crenças
orientam nossos desejos e dão contorno a nossas ações. “O sentimento da crença é indicação
mais ou menos segura de se ter estabelecido em nossa natureza uma tendência que
determinará nossas ações.” A ação é determinada pela crença, portanto a crença estabelece
uma relação entre conceito e a ação. Crer em algo não significa que seja verdade, muitas vezes
a humanidade acreditou em coisas que a história posteriormente revelou serem falsas. No
entanto, quando cremos em alguma coisa, cremos como sendo verdadeira e esta crença
determina nosso modo de agir.
A dúvida paralisa a ação. Peirce vincula crença e dúvida à ação. A dúvida é ruptura de
um hábito de ação e a crença estabelece um hábito de ação. Quais são os efeitos, as
conseqüências práticas da dúvida e da crença? Este vínculo entre pensamento, conceito e
conduta é fundamental na filosofia peirceana. É a espinha dorsal do pragmatismo, pois
condensa o compromisso entre a razão prática e a razão teórica, isto é, não há cisão entre o
prático e o teórico, ou seja, o senso comum da conduta humana é tomado como objeto
filosófico e a filosofia deixa de ser mera especulação teórica.
101
C.S. Peirce, (1972), Semiótica e Filosofia, p.71-92.
97
Há muitas dúvidas que são teoricamente formuladas e que não tem reflexo nenhum na
conduta. As dúvidas reais são aqueles estados de espírito nos quais temos dificuldade de
escolha de um caminho, de um modo de ação.
A pessoa tem um hábito e age segundo ele. Este hábito se configura em uma
determinada crença para produzir determinados fins. De repente acontece algo que faz a
pessoa questionar determinada crença ou determinado hábito. Este é um estado incômodo,
porque a pessoa por um determinado espaço de tempo deixa de agir e se for pressionada,
incômodo aumenta.
Em certo estágio de vida, um hábito que foi rompido enseja uma reflexão e uma revisão
de coisas que eram anteriormente tomadas como verdadeiras e que não mais se apresentam
como verdadeiras, mas que ensejam as descobertas de outras verdades. Mas qualquer que seja
o processo, seja de reflexão, seja de busca de outra situação de equilíbrio, é um processo
incômodo. Uma vez rompida uma crença ou um hábito, nós nos colocamos imediatamente em
busca de outro. 102
É a este compromisso entre discurso e ação, que Peirce chama atenção como um critério
de significação. O discurso só tem significação quando tem compromisso com a conduta. Às
vezes acreditamos em algumas coisas, mas não aparecem circunstâncias nas quais a crença
pode ser mostrada.
“O agir não é positivo por si mesmo”, a ação não é boa em si mesma como finalidade.
Nós perseguimos um estado de crença a partir de um estado de dúvida, porque desejamos agir,
queremos voltar a agir porque estávamos paralisados pela dúvida.
A ação é importante do ponto de vista reflexivo, isto é, o único jeito de derrubar uma
crença e mostrar que ela não é verdadeira é colocá-la como ato, observando suas
conseqüências e as conseqüências só aparecem na sua particularidade, na sua contingência. É
preciso circunstancializar um estado de coisas onde seja possível o agir. Não é um agir
imediato, não como um fim em si mesmo, mas um passo do pensamento e da significação. O
estado de crença é um estado necessário porque nos leva a agir.
98
Tão logo alcançamos uma crença, sentimo-nos satisfeitos, seja esta crença falsa ou
verdadeira. Se nós cremos e sabemos que cremos, não temos consciência de ela possa ser
falsa. Se for crença, deve ser verdadeira, não importa que depois ela se mostre falsa. Naquele
momento, nem o indivíduo nem a comunidade tem meios de saber se é falsa. Ninguém
acredita no falso. A crença é tomada como verdadeira, seja ela revelada ou não como
verdadeira.
A crença se cristaliza quando não há nenhum fato que a coloque em questão. No âmbito
da crença e da dúvida não é possível abstrair o sujeito, o problema de acreditar ou duvidar é
um problema nosso, é um problema de significação, que não tem nada a ver com o real. O real
é independente daquilo que dele pensamos.
A expectativa de que no futuro esta crença, que agora tomo como verdadeira, passará no
futuro pelo crivo do verdadeiro e do falso, pressupõe que o estado de coisas sobre o qual eu
tenho uma opinião e creio permanece independente de minha opinião, permanece sendo o que
é, independente daquilo que eu hoje dele penso. Esta permanência no futuro é que vai balizar
efetivamente a verdade ou falsidade da crença. O conceito de real está implicado nesta
expectativa futura de balizamento do verdadeiro e do falso da crença atual.
A investigação começa porque as crenças que até aquele momento guiaram nossos atos
começam a se tornar insatisfatórias, gerando um estado de dúvida que é desconfortável. “O
estímulo da dúvida leva a esforço para atingir um estado de crença. A esse esforço
denominamos investigação". (PEIRCE, CP 5.374)
A investigação, que é uma luta pela crença também nasce da dúvida, mas de uma dúvida
genuína e específica, "o simples colocar uma proposição em forma interrogativa não estimula
o espírito a correr atrás da crença". (CP 5.376). Da dúvida nasce a investigação, que gera nova
crença, de onde nasce nova dúvida, gerando outra investigação e assim por diante... A dúvida
genuína não pode ser criada por um simples esforço de vontade, mas deve estar circunscrita
pela experiência. (CP 5.498)
102
I. Ibri (1997) “Crença, Verdade e Interpretante Final”, anotações em aula.
99
[...] a genuína dúvida nada menciona a respeito de começar a duvidar. O pragmatista
sabe que duvidar é uma arte que tem que ser adquirida com dificuldade; e suas
dúvidas genuínas irão além das de qualquer cartesiano. Ele perceberá que o de que
ele próprio não duvida sobre assuntos cotidianos, não é matéria de dúvida para
qualquer homem maduro. (PEIRCE, CP. 6.498)
Peirce reconhece três modos através dos quais as dúvidas nascem, ou por meio de
experimentação imaginária (aspecto que foi se tornando cada vez mais importante na sua
concepção do papel da dúvida na investigação) ou quando dois hábitos de ação entram em
conflito e, ou quando tropeçamos em fatos brutos, fatos externos e inesperados. 103
A crença envolve certa inércia, uma tendência para a continuação de um “status quo”,
uma vontade de continuar agindo da mesma forma. 104
Cremos no que supomos ser verdadeiro e vamos agir segundo estas crenças. As crenças
moldam o nosso modo de agir. Se verdade tem um sentido coletivo e verdade não é uma
questão pessoal, então a crença seria verdade final, seria representação perfeita? A resposta
para esta questão é não, porque o saber é sempre provisório, mas o fato de ser provisório não
quer dizer que ele seja falso, porque verdade e falsidade é uma questão da nossa
representação.
Por que não podemos dizer que uma crença é falsa? Porque não temos razão para
duvidar. A questão da crença é a seguinte: se acreditamos em alguma coisa, então agimos
segundo esta crença.
103
L.Santaella, (1993b), op.cit. p. 64.
104
E.Saporiti, (1995) A Interpretação, p. 20-30.
100
Não basta só o discurso, é preciso que os efeitos desta crença se materializem na
experiência. Se nós sabemos algo, nós sabemos sobre o futuro, então se nós fazemos uma
previsão e o resultado ocorre mais ou menos como nós prevemos, não temos como duvidar da
nossa teoria ou da nossa crença. Então vamos agir segundo a crença, até que esta previsão seja
contrariada pelo curso dos fatos.
Esta é uma questão importantíssima para a ciência, já que as teorias científicas tem
significado porque se balizam na conduta do mundo. O modelo da ciência é um
comprometimento do discurso com a ação, é uma relação profunda entre o dizer e o conduzir,
aqui está implicado o pragmatismo.
Peirce distingue quatro métodos para fixação das crenças: o método da tenacidade, o da
autoridade, o método “a priori” e o método da ciência. Ele tece críticas aos três primeiros,
privilegiando o método da ciência, que apresenta dois aspectos básicos: levar ao
estabelecimento de teorias amplamente aceitas e nos forçar a dar atenção à permanência
externa das coisas.
101
1. o método da autoridade, pelo qual uma instituição tem poder para criar, ensinar ou reiterar
um conjunto de doutrinas, ao mesmo tempo que os dissidentes são condenados ao silêncio
ou penas exemplares (CP 5.379-381),
2. o método da tenacidade, pelo qual qualquer resposta que se queira pode ser adotada sem
qualquer questionamento (CP 5.377) ,
3. o método “a priori”, pelo qual se adota uma resposta que geralmente é a mais agradável à
razão (CP 5.382) e,
4. o método da ciência, é o método tal que as conclusões últimas das pessoas sejam as
mesmas.
O método da tenacidade fecha os olhos àquilo que possa abalar a crença porque o estado
de crença é um estado confortável e o indivíduo se nega a abdicar deste estado. Este método
de fixar a crença é incapaz de sustentar-se na prática, porque o problema de fixar a crença se
transforma na fixação da crença simplesmente no indivíduo e não na comunidade.
O método da autoridade impõe uma verdade por conveniência. Uma sociedade que tem
determinado fim a ser atingindo, ela simplesmente inventa razões para torná-los aceitos,
encontrar uma razão que leve a determinado fim, que na verdade já está estabelecido. Inventa
um discurso que justifique os fins. Do ponto de vista da racionalidade, é uma crueldade
inaceitável.
102
verdade, ele tem, repetidamente produzido imponentes resultados”. A história nos revela que
crenças coletivas foram estabelecidas pelo método da autoridade, com sucesso. O praticante
do método da autoridade, também de certa forma adota a tenacidade.
É preciso cautela quanto ao acordo geral que é dado pelo método da autoridade, que é
aquele método onde ninguém questiona aquilo que é tido como verdadeiro. É um método
dogmático que, historicamente conglomerou grandes comunidades em função de
determinados interesses.
Para se investigar questões metafísicas deve-se supor uma lógica que seja independente
da estrutura de qualquer ciência. Pelo método “a priori” chega-se a conclusões fáceis.
Algumas idéias claras e distintas se mostraram posteriormente grandes falsidades, no
confronto com os fatos. A questão do “a priori” é uma questão complicada na filosofia de
Peirce, porque ele é totalmente avesso aos “apriorismos”. Como é que sabemos que
proposições “a priori” são verdadeiras?
105
I.Ibri (1997) “Crença, Verdade e Interpretante Final”, anotações em aula.
103
Portanto, voltando à escolha do método, o método da ciência é o único que permite que
tenhamos nossas opiniões coincidindo com os fatos. O fundamento do método científico é o
permanente conflito com o fato. Nem o método da tenacidade, que evita o fato bruto, nem o
“a priori” tem este confronto.
No segundo texto desta série "Como Tornar Nossas Idéias Claras"107, crença e dúvida
são definidos como modos de ação. As ações tendem a se repetir formando hábitos. A dúvida,
portanto é a privação do hábito.
106
C.Hookway (1992) op. cit. p. 44.
107
C.S. Peirce (1982) op.cit. p. 49/70.
104
de verdade, o serem claras as idéias. Mas nunca ocorreu a Descartes uma distinção entre uma
idéia aparentemente clara e realmente clara. Ao confiar na introspecção, Descartes não
percebeu que a “maquinaria do pensamento só pode proceder à transformação do
conhecimento, mas nunca originá-lo, a menos que seja alimentado por fatos da observação”.
(CP 5.392)
Segundo Peirce, o pensamento teórico, especulativo não tem força, não tem potência
compulsiva para instaurar a dúvida, nem para abalar ou fixar uma crença. “A ação do
pensamento é excitada pela incitação da dúvida e cessa com o atingir a crença; e, assim, o
chegar à crença é função única do pensamento,” (CP 5.394), mas não existe regra lógica para
se conjecturar.
Prever a conduta é romper a força bruta, a experiência de alteridade. Mas esta força
bruta é superada quando aponta para a necessidade de uma mediação frente à alteridade.
Conhecer é prever a conduta, mas é a alteridade que dá a forma da mediação, num esforço de
diálogo, de observação. Diante do conhecimento, existe a possibilidade de se utilizar a
mediação como forma de poder.
105
Do momento que acreditamos num acordo de opiniões, nós não colocamos em dúvida a
crença, porque não conseguimos gerar uma dúvida real. Aquela crença que se mostrou
operativa não foi demovida porque efetivamente não se concretizou uma experiência capaz de
mudá-la. Dúvida e crença têm um ponto de contato, que é saber ou não saber como agir.
No texto “Como tornar claras nossas idéias”, Peirce apresenta uma definição de crença,
segundo três propriedades: crença é algo de que estamos cientes, crença aplaca a irritação da
dúvida e crença envolve o surgimento, em nossa natureza, de uma regra de ação, um hábito.
(CP 5.397) Nós podemos estar cientes daquelas coisas nas quais acreditamos, podemos tomar
consciência lógica de nossas crenças. O conceito de hábito como regra de ação, que Peirce
apresenta aqui transgride a conotação psicológica, é uma definição lógica.
Como, entretanto, a crença é uma regra de ação, cuja aplicação envolve dúvida
posterior e posterior reflexão, constitui-se, ao mesmo tempo, em ponto de escala e
novo ponto de partida para o pensamento. Tal a razão por que eu me permiti chamar-
lhe pensamentos em repouso, apesar de o pensamento ser, essencialmente, ação.
(PEIRCE, CP 5.397)
Para Peirce, sendo a essência da crença a criação de um hábito, então diferentes crenças
se distinguem pelos diferentes tipos de ação a que dão lugar. Este é um critério de
exterioridade, a crença como estrutura lógica, conceitual, como regra, só pode ser conhecida
como modo de ação a que dá lugar, isto é o pragmatismo. Este é um critério de separação de
conceitos, mesmo que eles tenham nomes diferentes, se observarmos seus modos de ação, é
isto que vai distinguí-los. Idéias que não geram ação nenhuma não tem significado, como
idéias.
Peirce também chama atenção neste texto para a diferença entre a complexidade do
objeto e a confusão lingüística, “interpretar erroneamente a sensação produzida por nossa
própria obscuridade de pensamento, tomando-a como uma característica do objeto pensado,
sem perceber que a obscuridade é puramente subjetiva.” (CP 5.397) No mundo da ciência tem
106
que haver uma interação entre a estrutura do objeto e a estrutura lingüística. Outro ponto
importante se refere à atenção que se dá à linguagem em detrimento da atenção que se dá às
coisas “[...] uma coisa significa apenas os hábitos que envolve” (PEIRCE, CP 5.400)
Os hábitos por sua vez são regras de ação, a caracterização de um hábito depende de
como ele possa nos levar a agir. O significado do pragmatismo não tem uma conotação
utilitarista, mas sim está em dar ao que é “tangível e admissivelmente prático o papel de raiz
de qualquer efetiva distinção” (CP 5.400) A ação é o significado exterior do pensamento
desde que a ação conduza a outro pensamento. “O pensamento é geral e se existencializa na
particularidade da ação.” (Ibri, 1997)
Assim, nosso agir tem referência exclusiva ao que afeta os sentidos, nosso hábito tem
o mesmo alcance de nosso agir, nossa crença, o mesmo de nosso hábito, nossa
concepção o mesmo de nossa crença... (PEIRCE, CP 5.401)
Peirce acentua a impossibilidade de se abrigar uma idéia relacionada com alguma coisa
que não seja os imagináveis efeitos sensíveis das coisas. As nossas idéias a respeito de algo
são sempre nossas idéias acerca de seus efeitos sensíveis. Portanto, se imaginarmos de forma
diferente, "estaremos incidindo em engano e tomando erradamente uma sensação que
acompanha o pensamento como parte integrante do próprio pensamento".
Para Peirce, a dúvida genuína, real é muito diferente da dúvida geral e genérica.
107
É no texto “Como Tornar Nossas Idéias Claras” está contida a primeira enunciação da
máxima do pragmatismo108 :
Alcance prático é aquilo que possa afetar nossa conduta. Peirce usa os conceitos de peso
e força para explicar o que seja o pragmatismo: o significado destes dois conceitos é dado
pelos efeitos que eles produzem. Assim, dois conceitos ou hipóteses que impliquem os
mesmos condicionais são idênticos, ou duas hipóteses explicando precisamente as mesmas
observações são sinônimas. 109
Nós podemos nos enganar, podemos ter crenças coletivas absolutamente equivocadas,
mas não indefinidamente porque se o real está lá, e se ele for realmente independente do que
dele pensamos, independente da representação que dele fazemos, o real irá se impor, se tiver
permanência e independência. Esta é uma questão de harmonia entre condutas, entre a minha
conduta e o mundo, e não somente uma relação intersubjetiva. O real é que dá forma à
representação e esta representação não é arbitrária. A opinião que será, afinal, sustentada por
todos os que investigam é o que entendemos por verdade, e o objeto que nesta opinião se
representa é o real (PEIRCE, CP 5.407).
O terceiro texto da série Lógica da Ciência, "A Doutrina dos Acasos"110 discute a
continuidade como um ferramenta da lógica.
108
Ver Ibri (1992), op. cit, capítulo 6 sobre o significado da máxima do pragmatismo.
109
M. Murphey, (1993), The Development of Peirce's Philosophy, p. 158.
110
N. Houser. (1992) op.cit. p. 143/153.
111
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “And it will be found everywhere that the idea of continuity is a
powerful aid to the formation of true and fruitful conceptions. By means of it, the greatest differences are broken down
and resolved into differences of degree, and the incessant application of it is of the greatest value in broadening our
conceptions”.(CP 2.646)
108
A idéia de probabilidade pertence essencialmente a um tipo de inferência que é repetida
indefinidamente. Para Peirce, a teoria das probabilidades está relacionada com a ciência da
lógica quantitativa. Só há duas possíveis certezas com relação a uma hipótese: a sua
veracidade e sua falsidade.
No quarto texto da série "A Probabilidade da Indução", Peirce continua com a questão
da teoria das probabilidades, fornecendo regras para o cálculo da probabilidade de múltiplos
eventos. Peirce compara a visão conceptualística (que se refere às probabilidades como
eventos) com a materialista (que toma probabilidade como a freqüência relativa dos casos
favoráveis).
Peirce reforça a idéia de que "crença tende a se fixar gradualmente sob influência da
investigação", (CP 2.693), conforme a passagem abaixo.
112
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “Having certain premises, a man draws a certain conclusion,
and as far as this inference alone is concerned the only possible practical question is whether that conclusion is true or
not (...) But in the long run, there is a real fact which corresponds to the idea of probability, and it is a given mode of
inference sometimes proves successful and sometimes not, and that in a ratio ultimately fixed.”(CP 2.650).
113
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “As all knowledge comes from synthetic inference, we must
equally infer that all human certainty consists merely in our knowing that the processes by which our knowkledge has
been derived are such as must generaly have led to true conclusions. Though a synthetic inference cannot by any means
be reduced to deduction, yet that the rule of induction will hold good in the long run may be deducted from the principle
109
No quinto texto da série Lógica da Ciência, "A ordem da natureza"114 Peirce retoma a
idéia de que a indução deveria ser explicada pela teoria das probabilidades. Por outro lado ele
também volta à questão de como o homem está capacitado a entender o mundo, sendo esta
capacidade resultante do processo evolucionário. Este é um ponto importante para a
compreensão do processo de formulação de hipóteses, que será abordado posteriormente
quando se for desenvolver o processo abdutivo.
Esta capacidade humana resultante da seleção natural vai ser fundamental para garantir
o sucesso do raciocínio abdutivo na seleção das hipóteses. Portanto, o final da investigação
resultaria em descobrir a estrutura final do universo.
Finalmente no último texto desta série "Dedução, Indução e Hipótese" (CP 2.619-2.641)
Peirce discute as três formas de raciocínio como formas de argumentos silogísticos: regra,
caso e resultado.
that reality is only the object of the final opinion to which sufficient investigation would lead. That belief gradually tends
to fix itself under the influence of inquiry is, indeed, one of the facts with which logic sets out.” (CP 2.692-93)
114
N.Houser (1992) op. cit. p. 171/185.
115
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “If we could find out any general characteristic of the universe,
any mannerism in the ways of Nature, any law everywhere applicable and universally valid, such a discovery would be of
such singular assistance to us in all our future reasoning that it would deserve a place almost at the head of the
principles of logic. On the other hand, if it can be shown that there is nothing of the sort to find out, but that every
discoverable regularity is of limited range, this again will be of logical importance. What sort of a conception we ought
to have of the universe, how to think of the ensemble of things, is a fundamental problem in the theory of reasoning.” (CP
6.397)
110
A indução ocorre quando generalizamos a partir de certo número de casos em que
algo é verdadeiro e inferimos que a mesma coisa será verdadeira do total da classe.
Ou quando verificamos que certa coisa é verdadeira, na mesma proporção de casos e
inferimos que é verdadeira, na mesma proporção, para o total da classe. Hipótese
ocorre quando deparamos com uma circunstância curiosa, capaz de ser explicada
pela suposição de que se trata de caso particular de certa regra geral, adotando-se,
em função disto a suposição. Ou quando verificamos que sob certos aspectos dois
objetos mostram forte semelhança e inferimos que se assemelham fortemente um ao
outro sob aspectos diversos (PEIRCE CP 2.624)
Dedução
Regra: todos os feijões deste pacote são brancos.
Caso: estes feijões são deste pacote.
Resultado: estes feijões são brancos.
Indução:
Caso: estes feijões são deste pacote.
Resultado: estes feijões são brancos.
Regra: todos os feijões deste pacote são brancos.
Hipótese
Regra: todos os feijões deste pacote são brancos.
Resultado: estes feijões são brancos.
Caso: estes feijões são deste pacote. (PEIRCE, CP 2.623)
Esta distinção entre dedução, indução e hipótese ainda seguia o esquema kantiano.
Posteriormente Peirce vai ampliar esta distinção.
A análise desta série de textos mostra que uma das razões do ataque de Peirce ao
cartesianismo está na introdução da hipótese como um dos tipos de inferência juntamente com
a indução e a dedução. A compreensão do que é inferência para Peirce leva-nos à
compreensão da inclusão da hipótese como uma inferência. A inclusão da hipótese como um
terceiro tipo distinto de inferência reside no fato de que não se pode chegar indutivamente às
conclusões de uma inferência hipotética porque sua verdade não é suscetível de observação
direta em casos singulares.
111
Quando elaboramos uma conclusão dedutiva ou analítica, nossa regra de inferência é
que os fatos com certo caráter geral são, invariavelmente ou numa certa proporção
dos casos, acompanhados por fatos de um outro caráter geral. (...) Mas a inferência
sintética se baseia numa classificação dos fatos, não conforme seus caracteres mas
sim, conforme a maneira de obtê-los. Sua regra é a de que certo número de fatos
obtidos de um dado modo em geral irão assemelhar-se, mais ou menos, a outros fatos
obtidos de idêntico modo; ou experiência cujas condições são as mesmas terão os
mesmos caracteres gerais. (PEIRCE, CP 2.692)
Do fato de que todo conhecimento provém da inferência sintética, pode-se inferir que
"toda certeza humana consiste meramente no fato de sabermos que os processos a partir dos
quais se derivou nosso conhecimento são tais que devem geralmente, conduzir a conclusões
verdadeiras." (CP 2.693).
Resumidamente, se pode dizer que no inicio de seus trabalhos, Peirce considerava que
todas as formas de inferência poderiam ser reduzidas ao silogismo em Bárbara (CP 2.620),
mas a noção peirceana de inferência evoluiu, e as inferência passaram a ser três tipos distintos
e irredutíveis dos argumentos ou raciocínio.117 Inicialmente Peirce incluía a analogia como o
quarto tipo de raciocínio, mas posteriormente acabou reconhecendo que a analogia combina as
características da indução e da retrodução. (CP 1.65)
Segundo Santaella (1993 b:74) a inferência peirceana é uma função essencial da mente
cognitiva e o pensamento em todos os níveis apresenta um padrão semelhante aos de três
tipos de processos: hipótese, indução e dedução. Assim a vida do pensamento, em todos os
estágios e situações, é uma questão de formação e/ou exercício de certos hábitos de inferência.
116
D. Anderson, (1987) "Scientific Creativity" em Creativity and The Philosophy of C.S.Peirce, p.12/53.
112
Para Peirce, a inferência é um ato voluntário que culmina na “adoção controlada de
uma crença como conseqüência de um outro conhecimento”. É um processo causal que “cria”
ou “produz” crença ou sua aceitação na mente de quem raciocina. (CP 2.442, 2.44 e 5.109) As
inferências tem três níveis: o do raciocínio, consciente e articulado, e das inferências
informais do dia-a-dia, sem apoio do controle lógico e aquelas que estão totalmente fora de
nosso controle lógico (inconscientes e incontroláveis).
Já em 1867, Peirce mostra a correlação das três formas de inferência com as três figuras
do silogismo. Ao negar a intuição cartesiana, Peirce resolve o problema das premissas. Assim
a hipótese é responsável pelos julgamentos perceptivos e pela introdução de premissas
menores em geral. A introdução de uma nova afirmação universal, servindo como premissa
maior pode ser vista como resultado da indução, sendo que dedução responde, então, pelas
118
conclusões derivadas. As inferências eram ordenadas segundo seu grau de certeza, sendo
sua ordem a seguinte: dedução, indução e hipótese.
Segundo Santaella (1993b: 97), a teoria da cognição, a que Peirce chegou em 1868-69 e,
que se completou na Teoria da Investigação, de 1877-78, juntava a crítica da doutrina da
intuição com a postulação de novas fundações para a investigação, com base na concepção
inferencial da mente cognitiva apoiada na teoria do pensamento-signo.
Somente após a descoberta da Lógica dos relativos é que Peirce concebe os três tipos de
inferências como tipos distintos e irredutíveis de raciocínio ou argumento.
O raciocínio é de três tipos. O primeiro é necessário, mas ele só pode nos dar
informações concernentes à nossa própria hipótese (...) O segundo depende das
probabilidades (...) O terceiro tipo de raciocínio tenta o que “il lume naturale” (...)
pode fazer. Ele é realmente um apelo ao instinto. (PEIRCE, CP 1.630)
117
B. Serson, (1992) La théorie sémiotique de la cognition chez C.S.Peirce, tese de doutoramento, p. 64-91.
118
L. Santaella (1992) op.cit. p. 87.
113
Entre 1890 e 1900, Peirce introduz novas modificações substituindo hipóteses ou
inferência hipotética por abdução. Daí para frente, as três espécies de inferências tornaram-se
os três estágios da investigação científica, conectados como um método; a inferência começou
a ser tratada principalmente como processo metodológico.
O uso da palavra abdução não é original em Peirce, mas ele foi o primeiro autor a
empregá-la no contexto científico. Peirce traduziu a “apagoge” de Aristóteles como abdução,
ou seja, aceitação ou criação da premissa menor como uma solução hipotética para um
silogismo cuja premissa maior não é conhecida e cuja conclusão nós achamos ser um fato(“we
find to be a fact”). (CP 7.249)
Anderson119 enfatiza dois pontos com relação a esta questão. Em primeiro lugar, a
abdução não é um argumento necessário, mas sim provável (Terceiridade) ou possível
(Primeiridade). Na abdução a aceitação da premissa menor e do silogismo é provisória, o que
leva ao segundo ponto, ou seja, a abdução foge do sentido puramente silogístico e dedutivo do
raciocínio.
Este ponto é crucial para a explicação peirceana da abdução como método e como forma
lógica, pois à medida que Peirce se afasta das idéias aristotélicas sobre a abdução, a abdução
passa a consistir no exame de uma massa de fatos que sugerem uma teoria. (CP 8.209).
A seguinte passagem mostra a autocrítica120 que Peirce fez em 1902, a respeito de como
se deu a evolução de suas idéias quanto aos três estágios da investigação.
Devido ao excessivo peso que pus sobre considerações formalistas, caí no erro (...)
de designar o sinônimo que, então, usava para abdução isto é, hipótese como um
modelo de indução levemente semelhante à abdução, mas que deve mais
propriamente ser chamado indução abdutiva.... Isso funciona como uma ilustração
instrutiva tanto dos perigos quanto dos poderes do meu método heurístico (...). Vi,
primeiramente, que devem existir três tipos de argumentos estritamente relacionados
às três categorias; e os descrevi corretamente. Subseqüentemente, ao estudar um
desses tipos, descobri que, além da forma típica, havia um outro, que se distinguia da
forma típica por estar relacionada àquela relação categorial que distingue a abdução.
Apressadamente, identifiquei-o com a abdução não tendo tido a cabeça clara para
ver que, embora estivesse relacionada àquela categoria, não o estava no modo
119
D.Anderson (1987), op.cit. p.15.
120
L. Santaella (1992), op.cit. p. 93.
114
preciso no qual as divisões primárias dos argumentos deveriam estar. Esta é a forma
de erro a que meu método de descoberta peculiarmente tende. Percebendo-se que
uma forma tem relação com uma categoria, fica-se incapaz, por certo tempo, de
atingir clareza suficiente de pensamento para se ter certeza se a relação é
precisamente da natureza requerida.
Embora haja algumas confusões na diferenciação entre abdução e indução, pode-se dizer
que Peirce nunca teve nenhuma dificuldade para diferenciar abdução e dedução, por serem
dois tipos diferentes de raciocínio, explicativo e ampliativo respectivamente.
Numa outra passagem Peirce afirma que, quando após sucessivas tentativas, finalmente
consegui esclarecer o assunto, os fatos demonstraram que a probabilidade propriamente nada
tinha a ver com a validade da abdução, a não ser de uma maneira duplamente indireta. "(CP
2.102) .
Nada tem contribuído mais para as atuais idéias caóticas ou errôneas da lógica da
ciência do que a incapacidade em distinguir as características essencialmente
diferentes dos diferentes elementos do raciocínio científico; e uma entre as piores
dessas confusões, também uma das mais corriqueiras, consiste em juntar abdução e
indução (freqüentemente misturadas também com dedução) como um argumento
simples. (PEIRCE CP 8.228).
A indução, de qualquer classe que seja não pode jamais originar idéias novas. Pode
apenas confirmar ou não as hipóteses. Só a abdução introduz idéias novas, sendo a única
forma de raciocínio propriamente sintética. Assim sendo, ela é meramente preparatória, é o
primeiro passo do raciocínio científico, é o mais ineficiente, mas o único responsável pelas
descobertas com que o homem explora e explica o mundo. A indução é o mais eficaz dos
argumentos e o passo conclusivo do raciocínio científico.
A abdução inicia-se dos fatos sem, em princípio, ter qualquer particular teoria em
vista, embora ela seja motivada pelo sentimento de que uma teoria é necessária para
explicar os fatos surpreendentes. A indução busca uma teoria, a indução busca fatos.
(PEIRCE, CP 7.217-8).
115
similares aos fatos observados são verdadeiros em casos não examinados. Por hipótese se
conclui a existência de um fato bastante diferente de tudo o que foi examinado, do qual de
acordo com leis gerais, algo observado resultaria necessariamente. A indução é o raciocínio do
particular para a lei geral, a hipótese do efeito para a causa. A indução classifica, a hipótese
explica. (CP 2.636)
A essência da indução está no fato de que ela infere de um conjunto de fatos outro
conjunto de fatos similares, enquanto que a hipótese infere de fatos de um tipo para fatos de
outro. Portanto, uma das diferenças entre hipótese e indução está na impossibilidade de se
inferir indutivamente conclusões hipotéticas. (CP 2.642).
Outra distinção apresentada por Peirce entre indução e hipótese se refere às diferenças
psicológicas e fisiológicas no modo de se aprender fatos. Indução infere uma regra, mas a
crença de uma regra é um hábito, e evidentemente um hábito é uma crença ativa. Toda crença
é da natureza de um hábito, então a indução é a forma lógica que expressa o processo
fisiológico de formação de hábito. (CP 2.643)
A hipótese substitui uma complicada massa de predicados ligados a um tópico por uma
única concepção. Há nesse processo uma excitação que denominamos emoção, daí podermos
dizer que a hipótese produz o elemento “sensual” do pensamento e a indução o habitual. (CP
2.643).
Numa outra passagem (CP 2.643) Peirce afirma que um dos méritos da distinção entre
os tipos de raciocínio está no fato de que algumas ciências apresentam o predomínio de algum
destes tipos, por exemplo as ciências classificatórias como botânica e zoologia seriam
puramente indutivas, enquanto que outras como geologia e biologia seriam ciências de
hipóteses.
116
Segundo Santaella é muito comum que comentadores extrapolem os limites da abdução
confundindo-a com a indução abdutiva, uma espécie de indução vaga121, já que a indução
abdutiva (CP 6.526) consiste em testar uma hipótese de que S é P, observando-se se S tem
caracteres peculiares a P.
Para Sebeok (1991:47) testar uma hipótese, bem como a identidade de uma pessoa
(através de um conjunto de pistas a partir da aparência física do indivíduo ou dos padrões de
fala e coisas semelhantes) sempre envolve certa dose de adivinhação, razão pela qual Peirce
chamou-a 'indução abdutória' (ou, em outras ocasiões, modelação especulativa.
A teoria dos três tipos de inferência foi o caminho que Peirce encontrou para a questão
dos métodos das ciências. Sendo assim, a palavra investigação não é usada para designar a
descrição de algum fenômeno mental, mas sim pelo fato de que algumas de nossas atividades
são guiadas por signos e símbolos, que podem ser submetidos a uma crítica lógica,
[...] o fato de a regra da indução sustentar-se a longo prazo pode ser deduzido do
princípio de que a realidade é apenas o objeto da opinião final à qual conduziria uma
investigação adequada. (PEIRCE, CP 2.693)..
2.3.1. Abdução:
A abdução está sujeita a algumas condições, ou seja, a hipótese não pode ser admitida,
mesmo enquanto hipótese, a menos que se suponha que ela presta contas dos fatos ou de
alguns deles. Mas o estímulo para advinhar foi derivado da experiência. A ordem vem da
experiência para a hipótese.. (CP 2.755)
121
L. Santaella (1992), op. cit. p.97 cita como exemplo o texto de Umberto Eco "Chifres, Cascos, Canela, Algumas Hipóteses
Acerca de Três Tipos de Abdução", em que o autor confunde a abdução com outros tipos de argumentos.
117
A forma da inferência, portanto, é esta:
Por hipótese eu entendo não meramente uma suposição sobre um objeto observado
(...) mas também qualquer outra verdade suposta da qual resultariam tais fatos como
foram observados (...). O primeiro impulso de uma hipótese e sua acolhida quer
como uma simples interrogação ou com algum grau de confiança, é um passo
inferencial que eu proponho chamar de abdução. Isto incluirá a preferência por uma
hipótese com relação a outras que explicassem igualmente os fatos, sempre que esta
preferência não seja baseada em algum conhecimento prévio imperando sobre a
verdade das hipóteses, nem em qualquer teste de qualquer das hipóteses após terem
sido admitidas em prova. Eu chamo tal inferência pelo nome peculiar de abdução
porque sua legitimidade depende de princípios diferentes dos outros tipos de
inferência. (PEIRCE, CP 6.526)123
Numa outra passagem, Peirce explica que a hipótese pode ser definida como um
argumento que se desenvolve a partir da suposição de que um caráter do qual se sabe que
envolve necessariamente certa quantidade de outros caracteres, pode ser provavelmente
predicado de qualquer objeto que possua todos os caracteres que se sabe envolvidos por esse
caráter.” (CP 5.276)
122
idem p. 221.
123
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “By a hypothesis, I mean, not merely a supposition about an
observed object, as when I suppose that a man is a Catholic priest because that would explain his dress, expression of
countenance, and bearing, but also any other supposed truth from which would result such facts as have been
observed...(...) The first starting of a hypothesis and the entertaining of it, whether as a simple interrogation or with any
degree of confidence, is an inferential step which I propose to call abduction. This will include a preference for any one
hypothesis over others which would equally explain the facts, so long as this preference is not based upon any previous
knowledge bearing upon the truth of the hypotheses, nor on any testing of any of the hypotheses, after having admitted
them on probation. I call all such inference by the peculiar name, abduction, because its legitimacy depends upon
altogether different principles from those of other kinds of inference.” (CP 6.526)
124
ibidem p. 221.
118
Peirce distingue dois momentos na fase abdutiva125: o primeiro momento é
simplesmente a origem de todas as conjecturas que podem compor a lista de possíveis
explicações para o fenômeno em questão, não é nada mais que simples advinhação.
Numa outra passagem Peirce enfatiza a afinidade genética entre a mente humana e as
leis da natureza:
É certo que a única esperança de que o raciocínio retrodutivo possa alguma vez
alcançar a verdade está no fato de que pode haver alguma tendência natural de
acordo entre as idéias que se apresentam à mente humana e aquelas que dizem
respeito às leis da natureza. (PEIRCE, CP 1.81) 127
125
C. F. Delaney, op.cit. p. 15.
126
T. Sebeock, (1991) “Você conhece meu método” em O signo de três , p.23.
119
Este instinto que explica porque as pessoas fazem suposições corretas de modo tão
freqüente, é descrito como “uma salada peculiar...cujos elementos-chave estão em sua falta de
fundamento, sua ubiqüidade e sua confiabilidade”(Ms 692:24)128.
Olhando, através de minha janela, nesta linda manhã de primavera, vejo uma azaléia
em plena floração. Não, não! Eu não vejo isto, embora seja essa a única maneira que
eu tenho para descrever o que vejo. Isso é uma proposição, uma sentença, um fato;
entretanto, o que percebo não é proposição, sentença, fato, mas apenas uma imagem,
a qual torno parcialmente inteligível por meio de uma enunciação do fato. Essa
enunciação é abstrata; o que vejo, porém é concreto. Realizo uma abdução quando
procuro expressar em uma sentença algo que vejo. A verdade é que todo o edifício
do nosso conhecimento é uma estrutura emaranhada de puras hipóteses, confirmadas
e refinadas pela indução. O conhecimento não pode avançar nem um pouco além do
estágio do olhar que observa despreocupado se não se fizer, a cada passo, uma
abdução. (PEIRCE, Ms 692)129
“...seja como for que o homem tenha adquirido sua faculdade de adivinhar os caminhos da
Natureza, certamente não o foi através de uma lógica crítica e autocontrolada.” (Peirce, CP
5.173)
Por outro lado, não é possível entender a abdução sem nos remetermos à cosmologia
peirceana. Quando Peirce diz que o homem tem um certo instinto130 para a verdade, significa
que a mente humana, como resultado dos processos evolutivos está predisposta a fazer
suposições corretas sobre o mundo. Este instinto é uma faculdade que dirige a mente em
direção ao verdadeiro mesmo à luz do acaso e do erro.
127
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “It is certain that the only hope of retroductive reasoning ever
reaching the truth is that there may be some natural tendency toward an agreement between the ideas which suggest
themselves to the human mind and those which are concerned in the laws of nature.” (CP 1.81)
128
C. Eisele (1985) op.cit. p. 899.
129
idem p.20
130
“Instinto é uma espécie de fio permeando as inferências da vida, ligando analogicamente o homem a todas as outras
formas vitais, inclusive vegetais. (...) Nos seres humanos, não apenas algumas ações primitivas, reflexos são insitintivos,
mas também o são alguns tipos de crenças (...) Além disso, todos os instintos tem caráter de hábitos, sendo por
implicação interpretantes num processo sígnico” (Santaella, 1993 b:104)
120
A conecção entre abdução, instinto e o processo de evolução é um ponto crucial na
teoria peirceana. Para Ibri, 131se nós formos entrar no mérito do instinto, nós temos que entrar
no mérito da idéia da própria evolução do organismo humano, da própria evolução do homem.
Como foi que o homem foi levado a adotar aquela teoria como verdadeira? Você não
poderá dizer que aconteceu por acaso, porque as teorias possíveis, se não
estritamente inumeráveis, excedem de qualquer modo, um trilhão ou a terceira
potência de um milhão; e, portanto, as chances são esmagadoramente contra uma
simples teoria verdadeira, em vinte ou trinta mil anos durante os quais o homem tem
sido um animal pensante, ter passado pela cabeça de qualquer homem. Alem disso,
você não pode seriamente pensar que todo pinto que é chocado tem de investigar
todas as possíveis teorias até que ele tenha a boa idéia de bicar algo e comê-lo. O
pinto, diria você, bica por instinto. Mas se você é levado a pensar que toda galinha é
dotada de uma tendência inata para uma verdade positiva, por que pensaria que só ao
homem esta dádiva é negada? (PEIRCE, CP 5.591)
Para Peirce, de acordo com a doutrina das possibilidades, seria praticamente impossível
supor a causa de qualquer fenômeno como puro acaso. Assim, não pode haver nenhuma
dúvida de que existe uma afinidade entre a mente humana e a natureza. Considerações sobre a
estrutura do universo não deixam dúvidas acerca do fato de que a mente do homem, tendo se
desenvolvido sob a influência das leis da natureza, e por esse motivo, de certo modo, pensa
naturalmente segundo o padrão da natureza. (CP 5.604, e 7.39) Este é um dos fatores de
sobrevivência do homem. O evolucionismo torna-se central na lógica da investigação de
Peirce. É a "âncora mestra da ciência" (CP 7.220).
131
I. Ibri, (1996) “A abdução e o evolucionismo”, palestra ministrada na Puc.
121
É evidente que, a menos que o homem tenha tido uma luz interior que tornasse suas
suposições muito mais verdadeiras do que seriam por mero acaso, a raça humana
teria há muito sido exterminada, devido a sua absoluta inépcia nas lutas pela
existência... (PEIRCE, MS 692)132
Parece-me que a formulação mais clara que podemos fazer a respeito da situação
lógica - a mais livre de toda a mescla questionável de elementos - consiste em dizer
que o homem tem uma certa Introvisão (insight), não suficientemente forte para que
esteja com mais freqüência certo do que errado, mas forte o suficiente para que
esteja , na esmagadora maioria das vezes , com mais freqüência certo do que errado,
uma Introvisão da Terceiridade , os elementos gerais, da Natureza. Denomino-o de
Introvisão porque é preciso relacioná-la com a mesma classe geral de operações a
que pertencem os Juízos Perceptivos. (PEIRCE, CP 5.173)
A abdução não necessita de razões, porque simplesmente apresenta sugestões, ela sugere
que alguma coisa pode ser. (CP5.171). O homem não consegue dar uma razão precisa para as
suas melhores conjecturas (CP 5.173), por isto Peirce qualifica como mágica esta faculdade.
(CP 6.476) Em outras passagens ele usa os termos “il lume natural”, luz natural, luz da
natureza, “insight” instintivo. (CP 5.604, 6.477, 1.80).
Segundo Peirce os processos pelos quais temos intuições sobre o mundo dependem dos
julgamentos perceptivos, que permitem a dedução de proposições universais. Os juízos
perceptivos são juízos impostos em termos absolutos à nossa aceitação através de um
processo no qual somos incapazes de controlar e, por conseguinte criticar. (CP 5.157)
132
T. Sebeok, (1991) op.cit. p. 22.
122
A inferência abdutiva se transforma no juízo perceptivo sem que haja uma linha
clara demarcação entre eles: ou em outras palavras, nossas primeiras premissas, os
juízos perceptivos, devem ser encarados como um caso extremo das inferências
abdutivas, das quais diferem por estar absolutamente além de toda crítica. (PEIRCE,
CP 5.181)
Por outro lado o julgamento perceptivo tem algo de insistente, compulsivo que somos
obrigados a reconhecer enquanto que o abdutivo nasce em momentos mais soltos, mais lúdico,
e por isso mesmo são destituídos de certeza. Por isso nossas abduções devem ser submetidas à
crítica, o que não acontece com os julgamentos perceptivos. Outra diferença, portanto, entre
os juízos percetivos e as inferências abdutivas é que os primeiros não estão sujeitos à análise
lógica.
123
qual ele ou percebe completamente ou suspeita que o fenômeno desconcertante seria
133
uma conseqüência necessária e provável. (PEIRCE, CP 8.229)
É importante ressaltar que Peirce formula a abdução como uma inferência que deve ser
posterior a algum estado da mente, “mas defini-la como formulação inferencial é função da
dedução e da indução, (...) nem a dedução, nem a indução contribuem com o menor item
positivo à conclusão de uma investigação. Elas tornam o indefinido definido; a dedução
explica; a indução avalia”. (CP 6.475)
Para alguns comentadores a abdução ao ser relacionada com instinto, não teria forma
lógica, e sendo o instinto uma questão psicológica, Peirce estaria confundindo lógica com
134
psicologia. Para Anderson que faz a defesa desta questão, a abdução é da mesma natureza
do instinto (CP 5.173), é um ato de introvisão (“insight”) (CP 5.181), mas mesmo assim
possui uma forma lógica perfeitamente definida. (CP 5.188).
133
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “When one contemplates a surprising or otherwise perplexing
state of things (often so perplexing that he cannot definitely state what the perplexing character is) he may formulate it
into a judgment or many apparently connected judgments; he will often finally strike out a hypothesis, or problematical
judgment, as a mere possibility, from which he either fully perceives or more or less suspects that the perplexing
phenomenon would be a necessary or quite probable consequence.” (CP 8 229)
134
D. Anderson, (1986) "The Evolution of Peirce's Concept of Abduction", Transactions of the Charles S.Peirce Society, vol
XXII,n.2 p.145-64 e R. Roth, (1988) "Anderson on Peirce's Concept of Abduction: Further Reflections", Transactions of
the Charles S.Peirce Society, vol. XXIV, n.1 p.131/139, P. Forster, (1989) "Peirce on the Progress and Autorithy of
Science", Transactions of the Charles S.Peirce Society, vol. XXV, n.4, p.421-452.
135
CP 7.220; 6.530; 5.591; 5.604; 6.476.
124
Por outro lado é necessário enfatizar a distinção feita por Peirce entre abdução e intuição
(CP 5.213). Ao contrário da intuição, a abdução tem lugar em “media res”, sendo
influenciada por pensamentos prévios, necessitando uma determinada experiência e um
problema a ser resolvido, para ter início. (CP 2.755)
O segundo momento da abdução leva em conta o fato de que poderão surgir várias
hipóteses que podem explicar os fatos. Quantas hipóteses podem ser levantadas sobre um
determinado fato? Inúmeras, mas a grande pergunta é como é que se dá o processo de
formação de hipóteses, ou seja, que interação existe na mente humana com o objeto
investigado. O que faz com que o homem levante algumas hipóteses alternativas para as quais
a história tem mostrado que uma delas se mostra aproximadamente verdadeira?
A seleção das hipóteses está sujeita a algumas regras. A primeira regra diz que aquela
hipótese que parecer mais simples deve ser levada em consideração em primeiro lugar. (CP
6.532) A hipótese mais simples para Peirce seria aquela mais fácil e natural, aquela que o
instinto sugere que deveria ser a preferida. A simplicidade natural está ligada àquelas
hipóteses que se recomendam a si mesmas, isto é, aquelas que são mais facilmente
compreensíveis em termos de aptidão, de razoabilidade e de bom senso (CP 7.220).
A regra da simplicidade traz algumas vantagens, entre elas a de que as hipóteses mais
simples são as mais fáceis para se começar, o que permite investigar com mais eficiência,
125
como também determinar o melhor modo testá-las e de deduzir suas conseqüências. Assim se
estiverem erradas podem ser eliminadas com menos despesas do que outras. (CP 6.532)
Mas a principal justificativa deste critério reside no fato de que a ênfase não está
colocada em um investigador individual e sim numa comunidade. O critério de simplicidade
pode ser também inserido num contexto mais amplo do que Peirce chamou de "economia da
pesquisa", no artigo "A Note on the Theory of The Economy of Research", de 1876, (CP
7.139-161).
Sob a designação geral de economia da pesquisa, Peirce organiza alguns princípios que
regulam o segundo momento da abdução referente à escolha de hipóteses: economia de
dinheiro, tempo, pensamento e energia. (CP 5.600).
O termo economia abrange todos os recursos humanos que são escassos, e que são
investidos em diligências cognitivas. Deste conceito de economia, resultam algumas regras
para a seleção de hipóteses:
4. A quarta regra estabelece a preferência para aquela hipótese que alargue o campo de visão
da investigação, ou que jogue luz quanto a veracidade ou falsidade das questões (CP 7.221)
Este conjunto de regras permitirá ao investigador realizar uma análise de custo benefício
de todos os caminhos a serem percorridos, considerando-se que os recursos são escassos, que
126
o número de possíveis explicações pode ser considerável, como também o custo do processo
de verificação pode ser alto. O critério de economia deve sobrepujar quaisquer outros, mesmo
que haja outras considerações sérias. (CP 5.602)
1. aqueles que, quando a hipótese é levantada, referem-se a fatos não observados, mas que são
passíveis de serem observados;
3. as hipóteses que se referem a entidades que, no presente estado de conhecimento, são tanto
fatualmente quanto teoricamente não observáveis. 136
1. A hipótese deverá ser claramente colocada como uma pergunta antes de ser testada. Em
outras palavras devemos tentar predizer quais serão os resultados da hipótese (a predição a
partir da hipótese pertence à fase dedutiva);
2. O aspecto em relação ao qual são observadas semelhanças deve ser tomado aleatoriamente,
não considerar apenas um tipo particular de predição no qual a hipótese seja boa;
136
CP 6.488, CP 5.547, CP 6.259.
127
3. Tanto os fracassos como os sucessos devem ser honestamente anotados, os procedimentos
devem ser claros e imparciais. (CP 2.635)
Portanto, a abdução pode ser entendida num contexto de eficiência, como um modelo
para explicação da escolha de uma dada hipótese colaborando para tornar a investigação
convergente com a verdade no menor tempo possível. A abdução seria apenas uma condição
necessária para a investigação ter início. 137
Uma abdução é um método de formar uma previsão geral sem qualquer garantia
positiva de que vai obter êxito, seja naquele caso especial ou usualmente, sua
justificativa estando no que seja a única esperança possível de regular nossa futura
138
conduta. (PEIRCE, CP 2.270)
Peirce considera o pragmatismo como a lógica da abdução, então neste contexto indaga
o que deve ser uma boa abdução, ou como deveria ser uma hipótese explanatória a fim de
merecer a classificação de hipótese? A resposta está contida na seguinte passagem:
Naturalmente ela deve explicar os fatos. Mas que outras condições deve preencher
para ser boa? A questão da excelência de alguma coisa dependa de se essa coisa
preenche seus objetivos. Portanto, qual é o objetivo de uma hipótese explanatória?
Seu objetivo é, apesar de isto estar sujeito à prova da experiência, o de evitar toda
surpresa e o de levar ao estabelecimento de um hábito de expectativa positiva que
não deve ser desapontada. Portanto, qualquer hipótese pode ser admissível, na
ausência de quaisquer razões especiais em contrário, contanto que seja capaz de ser
verificada experimentalmente, e apenas na medida em que é passível de uma tal
verificação. É esta, aproximadamente a doutrina do pragmatismo. (PEIRCE, CP 5.
197)
Por outro lado, a função de uma hipótese é explicar fatos, sob este ponto de vista o
pragmatismo vai atuar como fator de escolha e decisão entre hipóteses alternativas ou
concorrentes, posteriormente por um processo indutivo irá transformar “o meramente
137
N. Rescher, (1978) Peirce's Philosophy of Science-Critical Studies in His Theory or Induction and Scientific Method, p.
48.
138
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “An Abduction is a method of forming a general prediction
without any positive assurance that it will succeed either in the special case or usually, its justification being that it is the
only possible hope of regulating our future conduct rationally.” (CP 2.270).
139
B. Serson, (1996) op. cit. p. 24.
128
hipotético em meramente possível”. Em resumo, das hipóteses à crença numa teoria, há a
passagem necessária do possível para o provável.
Peirce também usa o termo retrodução como sinônimo de abdução. Segundo ele
retrodução, que para Aristóteles era “apagoge” foi mal interpretada em virtude de uma
deturpação em seu texto e é geralmente traduzida nesta forma errônea. (CP1. 65)
140
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “The function of retroduction is not unlike those fortuitous
variations in reproduction which played so important a r“le in Darwin's original theory. In point of fact, according to
him every step in the long history of the development of the moner into the man was first taken in that arbitrary and
lawless mode. Whatever truth or error there may be in that, it is quite indubitable, as it appears to me, that every step in
the development of primitive notions into modern science was in the first instance mere guess-work, or at least mere
conjecture. But the stimulus to guessing, the hint of the conjecture, was derived from experience. The order of the march
of suggestion in retroduction is from experience to hypothesis”. (CP 2.755)
141
N. Rescher, (1978) op.cit., p.8 e 41.
129
1. abdução: elaboração de hipóteses provisórias de possíveis explicações para a solução de
problemas científicos e,
O que a abdução tem de poderoso, "o quase raciocínio" responsável por todas as
descobertas, ela tem também de incerto e limitado, visto que não possui qualquer força
probativa. (CP 8.210) A conclusão de uma hipótese é problemática ou conjectural. (CP 5.192)
Peirce enfatiza esta característica da abdução ao usar expressões tais como: adivinhação
(“fair guess”), um “insight” extremamente falível, "não suficientemente forte para que esteja
com mais freqüência certo do que errado".142 Ou então ele afirma categoricamente que não há
segurança no que diz respeito à abdução/retrodução:
Retrodução não propicia segurança. A hipótese deve se testada. Este teste, para ser
logicamente válido, deve começar honestamente não como a Retrodução começa
com a análise dos fenômenos, mas com o exame das hipóteses e o conjunto de todos
os tipos de conseqüências experienciáveis condicionais que poderiam seguir à sua
verdade. (PEIRCE, CP 6.470).143
Por outro lado, segundo Santaella (1993 b: 95), a abdução sendo o tipo mais frágil de
argumento lógico, serve com perfeição às necessidades da arte, pois esta não tem nenhum
compromisso com a verdade da ciência. No seu núcleo central ela se refere ao ato criativo de
invenção de uma hipótese explicativa, sendo conseqüentemente, “o tipo de raciocínio através
do qual a criatividade se manifesta na ciência e na arte, do que decorre que é aí, justamente
nesse ponto de encontro, onde os caminhos de ambas se cruzam.”
Analisando a abdução do ponto de vista da criatividade, Anderson em "Scientific
Creativity"144 mostra que existem diferentes níveis de criatividade na abdução. Embora Peirce
tivesse interesse por toda a gama de abduções, ele tinha especial interesse pelo aspecto
abdutivo "como único tipo de raciocínio que fornece novas idéias", particularmente ligado à
142
CP 2.623, CP 5.181, CP 5.173.
143
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “Retroduction does not afford security. The hypothesis must be
tested. This testing, to be logically valid, must honestly start, not as Retroduction starts, with scrutiny of the phenomena,
but with examination of the hypothesis, and a muster of all sorts of conditional experiential consequences which would
follow from its truth” (CP 6.470)
144
D. Anderson (1987), op. cit. p. 12-53.
130
criatividade científica, ou seja, o que levaria cientistas como Copernico, Kepler, Newton a
serem particularmente criativos? Esses são os exemplos de abdução mais criativa,
constituindo teorias evolucionárias, que mudaram de forma radical o padrão de explicação da
realidade.
Mas é possível admitir que nem todas as abduções são originais, ou seja, uma pessoa
pode ter uma abdução que já ocorreu para outra, embora a abdução seja criativa "não quer
dizer que já não tenha ocorrido antes." Há o caso também de abduções que ocorrem a duas ou
mais pessoas mais ou menos no mesmo espaço de tempo. (CP 2.714)
Existe também uma forma de abdução que Peirce chama de indução de caracteres que é
criativa no sentido de ser sintética e inteligente, mas não gera uma nova idéia. (CP 2.626, 2.629,
2.632)
Peirce afirma numa passagem que a abdução é o tipo mais importante de raciocínio.
146
(NEM 3.206) Pode-se dizer que a importância da abdução não se restringe ao nascimento
das hipóteses de uma investigação, mas suscita outras questões tais como a teoria da
percepção (CP 5.181), tem um papel importante na memória (CP 2.265), é essencial para a
história (CP 6.606 e 2.714), além de ser a essência do pragmatismo, que Peirce vê como a
lógica da abdução (CP 5.195-205)
2.3.2. Dedução:
145
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “Hypothesis has been called an induction of characters. A
number of characters belonging to a certain class are found in a certain object; whence it is inferred that all the
characters of that class belong to the object in question” (CP 2.632)
146
L. Santaella (1993 b) op cit p.113.
131
A primeira coisa que deve ser feita, assim que uma hipótese for adotada, é traçar
suas conseqüências experimentais necessárias e prováveis. Esse passo é a dedução.
(PEIRCE, CP 7.203)
A dedução tem a ver com a elaboração lógica das hipóteses, a dedução prova que "algo
deve ser" a partir do "pode ser" da hipótese. (CP 5.171)
1. Explicação, ou seja, a análise lógica das hipóteses representando-as da forma mais distinta,
compacta e consistente possível e,
2. Demonstração, ou seja, derivar certas previsões experienciáveis que possam ter influência
em sua veracidade. (CP 6.471)
147
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “The third elementary way of reasoning is deduction, of which
the warrant is that the facts presented in the premisses could not under any imaginable circumstances be true without
involving the truth of the conclusion, which is therefore accepted with necessary modality. But though it be necessary in
its modality, it does not by any means follow that the conclusion is certainly true.” (CP 2.778)
148
T. Shanaghan, (1986), "The First Moment of Scientific Inquiry", Transactions of the Charles S.Peirce Society, vol XIII,
n.2, p.112-121. Neste artigo Shanaghan desenvolve alguns pontos referentes à abdução tais como o instinto e seu valor
adaptativo, sinequismo, leis da natureza e o pensamento de Deus.
132
cometida em relação à lógica das relações por ter imaginado que todo raciocínio necessário
fosse do tipo silogismo em Bárbara.
Nada poderia estar mais ridiculamente em conflito com fatos que são bem
conhecidos. Pois se esse tivesse sido o caso, qualquer pessoa com uma boa cabeça
lógica seria capaz, instantaneamente, de ver se uma dada conclusão derivava ou não
das premissas dadas; e, além do mais, o número de conclusões a partir de um
pequeno número de premissas seria muito moderado. (PEIRCE, CP 4.417)
Portanto, uma das principais características da dedução está no fato de que se for
corretamente empregada, a partir de premissas verdadeiras não poderá levar a conclusões
falsas. Sendo verdadeiras as premissas, a conclusão deve ser verdadeira. Por outro lado isto
não significa que o raciocínio dedutivo seja infalível, pois para Peirce todo raciocínio é
falível.
133
Segundo Peirce, partimos de um estado de coisas hipotético, “definidos certos aspectos
abstratos", a dedução tira as conclusões necessárias. Admite-se a hipótese e daí se verifica o
que dela decorre. Não devemos nos preocupar com a possibilidade de nossa hipótese se
adequar ou não ao estado de coisas hipotético do mundo externo. Se a hipótese está certa ou
não, nossa inferência será válida, apenas se houver realmente tal relação entre o estado de
coisas suposto nas premissas e o estado de coisas enunciado na conclusão. (CP 5.161)
O fato de isto ser ou não realmente assim é uma questão de realidade, e nada tem a
ver com o modo pelo qual estamos inclinados a pensar. Se uma dada pessoa é
incapaz de ver a conexão, mesmo assim o argumento é válido, desde que essa
relação de fatos reais realmente subsista. (PEIRCE, CP 2.110-2.266-2. 649)
Para Peirce, todo raciocínio necessário, sem exceção, é diagramático, isto é, construímos
um ícone de nosso estado de coisas hipotético e passamos a observá-lo. (CP 5.162)
149
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “We form in the imagination some sort of diagramatic, that is,
iconic representation of the facts, as skeletonized as possible (...) This diagram, which has been constructed to represent
intuitively or semi-intuitively the same relations which are abstractely expressed in the premisses, is then observed , and a
hypothesis suggests itself that there is a certain relation between some of its parts -or perhaps this hypothesis had already
been suggested. In order to test this, various experiments are made upon the diagram, which is changed in various ways.
This is a proceeding extremely similar to induction, from which however, it differs widely, in that it does not deal with a
course of experience, but with whether or not a certain state of things can be imagined . Now since it is part of the
hypothesis that only a very limited kind of condition can affect the result, the necessary experimentation can be very
134
O pragmatismo também está implicado na dedução, pois a idéia de significado envolve
a idéia de dedução, "aquilo que chamamos significado de uma proposição abarca toda
dedução necessária e óbvia que dela resulte."150 Pode-se dizer, portanto, que uma outra
maneira de se dizer a máxima do pragmatismo seria que o significado de um conceito é o
conjunto de suas conseqüências dedutivamente extraídas. A dedução é o estágio da
investigação que começa com uma hipótese e a torna mais precisa ao lhe dar uma definição
pragmática, ou seja, numa dada situação ou contexto de fatos a dedução fornece o significado
da hipótese demonstrando suas conseqüências necessárias. (CP 7.203)151
No texto "A Tricotomia dos Argumentos" (CP 2.266-270), Peirce divide e classifica a
dedução em necessária e provável. (CP 2.266-270) As deduções necessárias são aquelas que
não se relacionam com qualquer relação de freqüência, mas afirmam (ou os seus interpretantes
afirmam por elas) que de premissas verdadeiras invariavelmente se produzirão conclusões
verdadeiras. Uma dedução necessária é um método de produção de símbolos dicentes através
de um diagrama. (CP 2.267)
quickly completed; and it is seen that the conclusion is compelled to be true by the conditions of the construction of the
diagram”. (CP.2.778)
150
C. S. Peirce (1990), op. cit. p. 217.
151
D. Anderson (1987) op. cit. p.51-52.
135
Peirce chega a dizer que sua primeira descoberta real em procedimentos matemáticos foi
a distinção entre dois tipos de raciocínio necessário: o corolarial e o teoremático. (NEM 4:49),
que ele julga também de extrema importância para a teoria da cognição (NEM 4:56).
Então através da faculdade de observação, algumas relações são percebidas. Mas estas
relações poderão ser usadas em todos os casos possíveis? O mero raciocínio corolarial às
vezes nos dá esta segurança.
152
L. Santaella (1993b) op. cit. p. 139, S. Rosenthal (1994) op. cit. p.24-25, K. Ketner, (1985) "How Hintikka Misunderstood
Peirce's Account of Theorematic Reasoning" em Transactions of The Charles S.Peirce Society, vol XX1, n.3, p.383-406.
136
Para Hintikka153, a possibilidade de generalizar a distinção geométrica para todos os
raciocínios dedutivos é o que justifica o orgulho de Peirce com esta descoberta. No entanto,
para Hintikka esta generalização só serve para formulações da teoria da quantificação.
Rosenthal155 discorda dos dois autores acima mencionados. Para ela, embora o
raciocínio teoremático envolva a introdução de novos postulados, ele deveria ser entendido
como uma construção criativa para a descoberta daquilo que já contido nesta construção.
As deduções são prováveis porque são as premissas que tornam a conclusão provável e
não porque a conclusão em si mesma expresse um julgamento de probabilidade. "Deduções
Prováveis ou, mais precisamente, Deduções de Probabilidade, são Deduções cujos
Interpretantes as representam como ligadas a razões de freqüência." (PEIRCE, CP 2.268)
153
J. Hintikka, (1983) "C.S.Peirce's First Real Discovery and Its Ccomtemporary Relevance", em The Relevance of Charles
Peirce.
154
K.Ketner (1985). op. cit. p. 409.
155
S. RosenthaL (1994) op. cit. p.24-25.
156
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “But when it comes to proving a major theorem, you will very
often find you will have need of a lemma, which is a demonstrable proposition about something outside the subject of
inquiry; and even if the lemma does not have to be demonstrated, it is necessary to introduce the definition of something
which the thesis or the theorem does not contemplate” (CP 7.204).
157
L.Santaella, (1993 b) op. cit. p. 139.
137
freqüências associadas às premissas e chegam a conclusões tal como: se a proporção p de M's
é P's. S é um M. Então se segue que dada a probabilidade p, S é um P. (CP 2.265)
Uma Dedução Provável Propriamente Dita é uma dedução cujo interpretante não
representa sua conclusão como certa, mas sim que raciocínios exatamente análogos
conduziriam na maioria das vezes partindo-se de premissas verdadeiras, a conclusões
verdadeiras, no decorrer do tempo. (PEIRCE, CP 2.268)
Já a dedução estatística requer amostra maior, que obedeça à lei dos grandes números, a
proporção de r dos M's é P's, Si, Sii, Sii, etc. são numerosos conjuntos tirados aleatoriamente
dentre os M's. Então, provavelmente e aproximadamente, a proporção r dos S's é P's. (CP
2.700). "Uma dedução estatística é uma Dedução cujo interpretante a representa como ligada a
razões de freqüência, porém vendo nela uma certeza absoluta". (PEIRCE, CP 2.268)
Deve-se fazer uma distinção entre a noção puramente mecânica de uma explicação
dedutiva158 em que a conclusão é tirada diretamente das proposições sem "o uso de qualquer
outra construção do que aquela sugerida pelo enunciado das proposições" ou daquele processo
mais criativo que é extrair alguma conclusão surpreendente de premissas, "experimentando
imaginativamente a imagem das premissas."
Para Peirce, a validade da dedução foi devidamente explicada por Kant: Este tipo de
raciocínio tem a ver exclusivamente com PURAS IDÉIAS vinculadas primariamente a
símbolos e derivadamente a outros signos de nossa própria criação, e o fato de que o homem
tem o poder de explicar seus próprios significados torna a dedução válida. (CP 6.474).
2.3.3. Indução:
158
NEM 4:228, 4:38.
138
resultados, e, se forem favoráveis estendendo certa confiança à hipótese, eu
159
denomino indução (PEIRCE, CP 6.256)
Pelo contrário, o único procedimento correto para a indução, cuja tarefa consiste em
testar uma hipótese já recomendada pelo procedimento retrodutivo, é em primeiro
lugar receber suas sugestões da hipótese, tecer previsões da experiência que faz
condicionalmente, e então testar o experimento e ver se ele se comporta com o que
havia sido virtualmente previsto pela hipótese. Ao longo da investigação é bom ter
em mente somente aquilo que nós estamos tentando obter naquele particular estágio
do trabalho ao qual chegamos. Quando chegamos ao estágio indutivo nós vamos
conhecer quão verdadeira nossa hipótese é, e que proporção de suas antecipações
será verificada. (PEIRCE CP 2.755)160
159
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “The operation of testing a hypothesis by experiment, which
consists in remarking that, if it is true, observations made under certain conditions ought to have certain results, and then
causing those conditions to be fulfilled, and noting the results, and, if they are favorable, extending a certain confidence
to the hypothesis, I call induction.” (CP 6.526)
160
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “On the contrary, the only sound procedure for induction, whose
business consists in testing a hypothesis already recommended by the retroductive procedure, is to receive its suggestions
from the hypothesis first, to take up the predictions of experience which it conditionally makes, and then try the
experiment and see whether it turns out as it was virtually predicted in the hypothesis that it would. Throughout an
investigation it is well to bear prominently in mind just what it is that we are trying to accomplish in the particular stage
of the work at which we have arrived. Now when we get to the inductive stage what we are about is finding out how much
like the truth our hypothesis is, that is, what proportion of its anticipations will be verified.” (CP 2.755)
139
E a indução, como inversão da dedução estatística pode ser ilustrada da seguinte forma:
A indução é o modo de raciocínio que adota uma conclusão como aproximada por
resultar ele de um método de inferência que, de modo geral, deve no final conduzir à
verdade [...] Tudo o que a indução pode fazer é determinar o valor de uma relação.
(PEIRCE, CP 1.67)
Assim, a indução pode ser definida, em termos precisos como a inferência virtual de
uma probabilidade. Peirce enfatiza que a própria noção de probabilidade não pode ser definida
sem a idéia da indução, e alerta para a imprecisão da idéia de probabilidade, que exige "no seu
uso, toda a precaução do pragmatismo". (CP 2.101)
161
L. Santaella (1993b ), op. cit. p. 122.
162
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “But in so far as these conditions are not known to be complied
with, the above figures cease to be applicable. Random sampling and predesignation of the character sampled for should
always be striven after in inductive reasoning, but when they cannot be attained, so long as it is conducted honestly, the
inference retains some value. When we cannot ascertain how the sampling has been done or the sample-character
selected, induction still has the essential validity which my present account of it shows it to have.” (CP 6.42)
140
A justificativa da indução reside no fato de que ao seguirmos firmemente este método,
devemos descobrir, a longo prazo, como é que o problema realmente se apresenta. (CP 5.170)
A verdadeira validade da indução é que é um método para se chegar a conclusões, que a longo
prazo, seguramente vai corrigir qualquer erro temporário.
É interessante observar que para Peirce, a abdução é um método de formar uma predição
geral sem nenhuma certeza positiva, mas é a indução, "que a partir de experiências passadas
nos encoraja fortemente a esperar que ela seja bem sucedida no futuro." (CP 2.270)
163
A questão da auto-correção do método científico está ligada ao processo de indução (Ver CP 2.588, 2.703, 2.729, 2.776,
2.781, 5.384, 5.385, 5.582, 5.590, 6.40 e 6.41)
164
Tradução nossa, a citação completa original é a seguinte: “The truth is that induction is reasoning from a sample taken at
random to the whole lot sampled. A sample is a random one, provided it is drawn by such machinery, artificial or
physiological, that in the long run any one individual of the whole lot would get taken as often as any other. Therefore,
judging of the statistical composition of a whole lot from a sample is judging by a method which will be right on the
141
Se a conclusão da investigação for errada, ela será corrigida pela aplicação continuada
do método e deverá se confrontar com o curso posterior da experiência, sofrendo assim, um
processo auto-corretivo. Portanto, para Peirce o método indutivo utilizado nas ciências leva
inevitavelmente à verdade, por ser auto-corretivo.
A indução também é definida como um argumento estatístico, que leva a uma conclusão
provável, e, portanto tem a característica adequada para lidar com aqueles objetos sujeitos ao
acaso.
average in the long run, and, by the reasoning of the doctrine of chances, will be nearly right oftener than it will be far
from right. (CP 1.93-94)
165
T. Shanaghan, op. cit. p. 451 e L.Santaella, (1993 b), op. cit. p.146.
142
3. Sentencial- em que o investigador avalia cada comprovação isoladamente, depois suas
combinações então faz uma auto-avaliação dessas avaliações, passando então ao
julgamento final do resultado total. (CP 6.468-73)
Nas conferências de Lowell, em 1903 Peirce apresenta a distinção entre três modos de
indução: a indução rudimentar ou crua, a indução qualitativa e a indução quantitativa. 166
O primeiro e mais fraco tipo de indução é aquele que presume que a experiência futura
com respeito a uma dada questão não será diferente do que ocorreu no passado. Como
exemplo, Peirce explica que se até agora nenhum poder de clarividência foi claramente
estabelecido, então se pode presumir que não existe tal tipo de coisa. (CP 2.756)
É a única forma de indução que conclui uma proposição logicamente universal. Segundo
Peirce, é possível dizer que a indução crua é o único tipo de indução capaz de inferir a
verdade a partir de uma proposição universal, mas isto seria apenas uma forma de ver a
questão, já que qualquer proposição concernente ao caminho geral da futura experiência pode
ser encarada como universal, porque o que é denominado indução completa não é o raciocínio
indutivo, mas sua dedução logística. (CP 2.757)
Embora seja a forma mais frágil de indução não pode ser dispensada nos assuntos
práticos.
166
Segundo Santaella, (1992) op. cit. p. 94, Peirce chegou afirmar que descobriu mais oito formas de indução além das
formas lógicas, mas que seriam utilizadas exclusivamente por pensadores que não são adestrados em lógica.
167
Idem p. 3.
143
Para Peirce a indução rudimentar tem pouca importância para a ciência, principalmente
porque sua característica auto-corretiva está condicionada às observações realmente feitas. Se
faltarem algumas observações, não há garantias de que não se chegará a uma falsa crença no
final da investigação. O método corrigiria a si mesmo desde que a série de experimentos não
fosse descontinuada, ou se subseqüentemente se começasse outra série. (CP 7.215)
As duas formas de indução mais usadas em ciência são a quantitativa e a qualitativa. A
indução quantitativa é por Peirce vista como um poderoso instrumento na investigação. É a
forma mais forte de indução e corresponde à inversão da dedução estatística.
A indução então presume que o valor da proporção entre os S's da amostra, daqueles que
são P, provavelmente se aproxime, com certo limite de aproximação, do valor da real
probabilidade em questão. (CP 2.758)
Numa carta a W.James (1909), Peirce diz que a indução quantitativa é a espécie mais
perfeita de indução.168
168
apud L. Santaella, (1993 b) op cit. p.238.
144
A indução qualitativa é considerada por Peirce em geral, como de maior utilidade do
que os outros tipos de indução, embora intermediária entre eles à segurança e valor científico
de suas conclusões. Consiste naquelas induções que não são baseadas nem na experiência
sobre uma massa, nem numa coleção enumerável de elementos de valores evidenciais iguais,
mas numa experiência nas qual os valores relativos das evidencias de diferentes partes tem
que ser estimados de acordo com o sentido das impressões que elas produzem sobre nós. (CP
2.759)
145
6. finalmente aquelas que embora não sejam verdadeiras apresentam alguma analogia com a
verdade de tal forma que os resultados da indução possam ajudar a sugerir uma hipótese
melhor. (CP 2.759)
Há uma passagem no artigo "Minute Logic" (CP 2.96) onde Peirce faz uma explícita
correlação entre:
Numa outra passagem do texto os "Três Tipos de Raciocínio" (CP 5.171), Peirce diz que
a "Dedução prova que algo deve ser", portanto ligada à necessidade da Segundidade. Já a
"Indução mostra que alguma coisa é realmente operativa", seria o would be da Terceiridade e
a "Abdução simplesmente sugere que alguma coisa pode ser", o may be, a possibilidade da
Primeiridade. 171
Peirce atribui somente à abdução um poder heurístico originário (CP 5.171). Parece não
haver dúvida quanto à importância que Peirce dava à criatividade científica (CP 1.46) e neste
contexto, a relação da abdução com a Primeiridade fica bastante clara quando se compara
algumas idéias típicas de Primeiridade (frescor, novo, original, espontâneo, livre... CP 1.357),
com algumas passagens que falam sobre abdução. (A abdução formula hipóteses explanatórias
para fatos que permanecem inexplicados, CP 2.777), o termo abdução indica as operações
pelas quais teorias e conceitos são engendrados (CP 5.590), é a única operação lógica que
apresenta uma idéia nova (CP 5.171 ), existe um elemento de liberdade e de criatividade na
forma como as idéias se associam na mente (CP 6.302).
170
os grifos e negritos são meus.
147
Anderson em "Scientific Creativity"172 faz uma análise bastante interessante sobre a
correspondência categorial com a abdução. Para ele, a chave para se entender a investigação
está nas categorias. Assim, se pensarmos a abdução como uma forma de raciocínio, ela é
essencialmente um terceiro, mas sendo o primeiro estágio da investigação científica e fazendo
parte da metodêutica, é um primeiro de um terceiro.
Em segundo lugar, a abdução também é mais livre no sentido de que é um processo até
certo ponto livre do trabalho da própria pessoa que raciocina, no momento em que está sob
influência das idéias (MS. 442). Ambos os aspectos da liberdade, do ponto de vista do agente
e do processo, são indicativos de sentimento - um agente do sentimento que é impresso na
consciência pela imaginação é pouco sujeito às regras da inferência, além do que os
sentimentos se forçam (“insist upon”) o agente.
A abdução busca uma teoria (CP 7.218), isto é, na abdução quem raciocina deve deixar
que as idéias ou fatos da percepção gozem de liberdade, ou seja, o autocontrole começa
somente no momento em que a pessoa se abre para as idéias. As hipóteses são meras
173
possibilidades. Peirce justifica estas idéias em "Humble Argument" em que ele descreve o
surgimento das hipóteses, como um devaneio, um jogo livre de sentimentos e idéias, com
infinitas possibilidades:
Existe certa ocupação agradável da mente que, por não ter um nome distinto, eu
infiro não ser comumente praticada como deveria; se adotada moderadamente -
digamos, uns cinco a seis por cento da vida consciente de alguém, talvez num
passeio - ela é bastante refrescante para compensar os desgastes. Por não envolver
nenhum propósito senão o de deixar de lado todo propósito sério , tenho algumas
vezes me inclinado a considerá-la como um devaneio, mas com alguma qualificação,
171
C. S. Peirce, "Possibility, Impossibility, Possible".(CP 6.364)
172
D. Anderson (1987) op.cit. p.41-50.
173
D.Anderson (1987) op. cit. p.42-43.
148
mas para um estado da mente antípoda ao vazio e falta de sonhos, tal designação
seria inadequadamente dolorosa... Ela é de fato Puro Jogo. Mas o Jogo, nós
sabemos, é um exercício vivo de nossos poderes. O Jogo Puro não tem regras, exceto
esta genuína lei da liberdade. (PEIRCE, CP 6.458)
Peirce desenvolve esta idéia de devaneio como um estado da mente em que desfilam
perante nós os três elementos da experiência, subsumidos às três categorias: o primeiro
evidencia as meras qualidades na sua diversidade; o segundo, a existência das coisas na sua
particularidade e o terceiro, aquele aspecto de ordenação, permanência e regularidade das
coisas maravilhamento. (CP 6.458)
174
Para Staat, no artigo "On Abduction, Deduction, Induction and the Categories” ,
Peirce é bastante claro quanto à relação da Primeiridade com Abdução e claramente o termo
qualidade é sugerido como correlato da natureza hipotética do raciocínio abdutivo.
1. do ponto de vista das inferências, a seqüência abdução, indução, dedução apresenta grau
de certeza crescente e simultaneamente "uberty" decrescente;
2. do ponto de vista da Teoria da Investigação a seqüência seria abdução, dedução, indução,
isto é, em primeiro lugar a hipótese, depois a formulação das condições de aceitação das
hipóteses e finalmente o teste destas conseqüências de tal forma que novas hipóteses
possam ser sugeridas, obviamente resultando num novo ciclo de investigação.
Por outro lado, Staat enfatiza que a abdução não pode ser estudada sem se entender o
pragmatismo peirceano, já que "a questão do pragmatismo não é nada mais do que a lógica
da abdução". Assim, a questão sobre o que seria o pragmatismo leva à pergunta sobre o que é
a Lógica da abdução. Esta pergunta por sua vez remete à Teoria da Investigação, em que
abdução, dedução e indução são explicadas em termos de modos da realidade,
174
W.Staat (1993), "On Abduction, Deduction, Induction and the Categories", Transactions of The Charles S.Peirce Society,
Spring. Vol.XXIX, n.2.p.225/236
149
respectivamente - “can be- real- possibility" da Primeiridade, os existentes da Segundidade e
o "would be" da Terceiridade.
Dado que o conhecimento não pode mais ser visto como um conjunto de proposições
verdadeiras, mas sim como um processo, a epistemologia de Peirce é dinâmica, então o
contexto da investigação determina a seqüência abdução, dedução e indução. Mas esta mesma
seqüência pode ser considerada para a representação do processo de crescimento do
conhecimento, como aparece nos trabalhos da maturidade de Peirce.
Staat se diz cada vez mais convencido de que a seqüência categorial para as três fases da
investigação é abdução-Primeiridade, dedução-Segundidade e indução-Terceiridade.
Ele conclui seu artigo argumentando que, do ponto de vista da Teoria da Investigação de
Peirce, deveríamos atribuir a categoria do "would be", ou Terceiridade à representação
completa da investigação, ou seja, a abdução, indução e dedução consideradas em conjunto.
Se nós entendermos a indução como posterior à dedução e abdução, então ela está relacionada
à Terceiridade e da abstração da Terceiridade chega-se à Segundidade da dedução. Segundo
ele, a partir de 1896 não há mais dúvida quanto à Primeiridade da Abdução.
175
Apud W. Staat (1993) op. cit. p. 227-229.
150
observacional, cuja estratégia corresponde à Segundidade, enquanto que a dedução seria da
ordem do pensamento e, portanto corresponderia à Terceiridade.
Continuando, Apel argumenta que a teoria icônica dos predicados perceptuais tornou
possível, pela primeira vez, introduzir na estrutura da representação conceptual a comparação
quantitativa do conhecimento formulado na linguagem e as características do que é real, e
mais do que isto, tornou possível levar em conta sua percepção inicial como uma função da
informação empírica. Mesmo o entendimento antropomórfico de próprio mundo, a que Peirce
se refere repetidas vezes, a "afinidade da alma humana à alma do universo"177, como o
horizonte heurístico de todas as hipóteses, deve ser baseado na função icônica, a cognição
concebida em termos semióticos.
Segundo Staat, há ainda outra linha de comentadores, tais como o autor americano
O'Donnell e o italiano Ponzio180. Para O'Donnell, a indução traz os habituais elementos do
176
K. Apel, (1981) CHARLES S. PEIRCE From Pragmatism to Pragmaticism, Amherst: University of Massachusetts Press.
p. 104.
177
CP 5.47, 5.212, 5.536 e 6.477.
178
CP 6.474.
179
CP 5.171, 5.145 e 6.475.
180
apud W. Staat (1993) op. cit. p. 229.
151
pensamento ou da Terceiridade e a dedução está relacionada com os elementos de rotina da
Segundidade. Para Ponzio, na dedução, sendo as premissas aceitas, a conclusão se impõe
compulsoriamente, e portanto relaciona-se com a Segundidade, enquanto que na indução, a
conclusão não é imposta pelas premissas, estando sujeita a modificação e portanto está ligada
à mediação da Terceiridade.
Por outro lado, segundo Ibri 181 podemos associar dedução com lei (Terceiridade), já que
a dedução tem o caráter de uma inferência necessária, "observa-se por diversas vezes que o
universo da lei, ou seja, o universo da terceiridade real configura-se como uma
potencialidade cujo tecido lógico é a necessidade", como é explicitada nesta passagem:
Peirce mostra que a lei em si mesma não é um argumento dedutivo, mas dela participa
como sua premissa maior e sob esta ótica, então a regra ou lei poderia se traduzir como causa
formal do silogismo.
182
Kruse, no artigo "Indexicality and the Abductive Link" sugere que "há certo sentido
no qual a indexicalidade é a função semiótica mais fundamental, baseada na relação singular
entre a função indexical dos signos e o modo de inferência que Peirce chama de abdução".
Para Kruse, a idéia de abdução como "a única operação lógica que apresenta uma idéia nova,
relacionada a uma capacidade instintiva do homem para escolher a alternativa mais correta
que explique alguns fatos surpreendentes", está relacionada ao processo de interpretar índices
cuja relação com seu objeto dinâmico é ainda desconhecida e portanto relativa à Segundidade.
Por outro lado, para Ibri183, conquanto parecesse não haver quaisquer regras que
condicionem a formulação de uma hipótese explicativa, o processo pelo qual surge uma nova
181
I. Ibri, (1992), op. cit. p. 116.
182
F. Kruse, (1986) "Indexicality and the Abductive Link", Transactions of The Charles S.Peirce Society, vol XXII, n.4,
p.435-448.
183
I. Ibri, (1992) op. cit. p.118.
152
idéia está subsumido à terceira categoria. Para Ibri, esta explicação está contida na cosmologia
peirceana: o evolucionismo configurou o crescimento da terceiridade sob a forma de aquisição
de hábitos, ou seja, na forma de generalizações de natureza indutiva. Todavia na natureza
modal da abdução existe uma intencionalidade que evidencia um paralelo entre o caráter
originário das representações e aquele do próprio universo.
Não tenho sido bem sucedido em persuadir meus contemporâneos a crer que a
Natureza também efetua induções e retroduções... Assinalo que a Evolução , onde
quer que ela ocorra, é uma vasta sucessão de generalizações, pela qual a matéria está
se tornando sujeita a leis cada vez mais elevadas; e aponto para a infinita variedade
da natureza como testemunho de sua Originalidade ou poder de Retrodução.
(PEIRCE, NEM 344)184
186
Turrisi em "Peirce's Logic of Discovery” argumenta que se podem reduzir todas as
formas lógicas abdução, dedução e indução a combinações de Terceiridade na concepção de
inferência; combinações de Segundidade na concepção de alteridade e combinações de
Primeiridade na concepção de caráter. Todas as formas lógicas, assim como todas as formas
de existência real e todos os elementos do julgamento perceptivo consistem em última análise
em formas das três categorias.
184
Idem, os grifos são de Ibri.
185
T. Kapitan, (1990), "Peirce's Logic of Discovery", Transactions of the Charles S. Peirce Society vol. XXVI, n.4, p. 499-
512.
186
P. Turrisi, (1990), "Peirce's Logic of Discovery", Transactions of the Charles S. Peirce Society vol. XXVI, n.4, p. 465-497
187
L. Santaella, (1993b) op.cit. p. 88. Ver item 2.3 deste capítulo.
153
aqui não mais do grau de força de cada um dos argumentos lógicos, mas da sua
ordem de interdependência no processo. (SANTAELLA, 1993 b: 88)
3. A Lógica da Investigação:
“Apenas ressalto que, apesar do muito que se possa aprender por outras
formas quanto ao método de abordar um problema incomum, algo pode
ser acrescentado a esse conhecimento se levar em consideração a teoria
geral de como a pesquisa deve ser realizada.” (PEIRCE, CP 2.106) 188
Um dos textos peirceanos que trata da Lógica da Investigação é o "Lógica de 1873" (CP
7.313-326). Este texto começa trazendo algumas distinções entre crença e dúvida, que
merecem ser analisadas face à importância da teoria dúvida-crença no contexto da
investigação.
Dúvida e crença são dois estados da mente que podem ser distinguidos pela sensação
imediata. Quase sempre sabemos quando estamos em dúvida e quando estamos convencidos.
É a mesma diferença entre vermelho e azul, entre prazer e dor (CP 7 313).
Mas existe uma diferença fundamental de ordem prática entre dúvida e crença. Quando
nós acreditamos, há uma proposição de acordo com certas regras, que determina nossas ações.
Portanto, se conhecermos a crença na qual acreditamos, o modo como nos conduziremos pode
ser deduzido. Já a dúvida tem efeito diferente, a dúvida nos faz hesitar.
Mas este acordo de opiniões através da investigação é bem diferente dos outros tipos de
acordos. Na investigação não fixamos a resposta para uma questão, ao contrário, começamos
com várias opiniões, que vamos mudando até que possamos estabelecer alguma conclusão,
que dependa unicamente da própria natureza da investigação.
188
Traduzido em C.S.Peirce (1990) op. cit. p. 35.
154
O argumento básico da teoria dúvida-crença é o seguinte: o conhecimento das leis que
governam o comportamento das coisas tem pelo menos um efeito prático, que é o de permitir
predizer quais experiências sensíveis receberemos de um objeto em conseqüência de nossas
ações. Assim, se desejarmos obter determinadas experiências, então o conhecimento daquelas
leis nos permitirá moldar nossas ações para atingir um fim desejado.
Mas isto só é verdadeiro para investigações que forem levadas a cabo em concordância
com regras apropriadas. Portanto, devemos encontrar regras para conduzir bem a investigação.
Esta é uma tarefa para a lógica como doutrina da verdade e sua natureza da maneira pela qual
é descoberta. (CP 7.321.) É a lógica que descobre as regras para se conduzir a investigação
com sucesso.
A verdadeira investigação começa com a dúvida genuína e termina quando esta dúvida
cessa. Assim o fundamento racional para se dar preferência a um método se refere à sua força
189
para fixar crenças e este método é o método da ciência. Toda investigação pressupõe a
passagem de um estado de dúvida para um estado de crença, há, portanto uma sucessão de
tempo nas mentes que estão aptas a inquirir.
Toda mente capaz de investigar tem que ser capaz de sensações, daqui resulta a
distinção entre boa e má investigação. Determinados pensamentos são produzidos por
pensamentos prévios, e a faculdade de produzir determinados pensamentos a partir de outros
189
ver item 2 deste capítulo, "A questão do método".
155
deve ser própria da mente que investiga para a qual esta sucessão de idéias no tempo é
essencial.
A Lógica da Investigação pode ser entendida como um “mapa” a ser seguido em todos
os tipos de pesquisa. É constituída por um ciclo que começa com a abdução/ dedução/
indução/ nova abdução..., estes três estágios da investigação são harmonicamente e
interdepentemente ligados, de forma que do nascimento das hipóteses, de sua seleção nas
considerações de economia, dos métodos de construção teórica e do teste comprobatório das
hipóteses delineia-se a investigação, sem que nos esqueçamos dos erros, acertos, sucessos e
fracassos deste processo.
1. juntar e considerar fatos que não nos haviam ocorrido (que Peirce chama de interessante
coligação dos fatos).
2. experimentar, observar e analisar,
3. generalizar os resultados obtidos. (CP 7.276-7).
A hipótese remove o estranhamento dos fatos, colocando-os numa forma ou aspecto sob
os quais eles se assemelham a outros que nos são familiares. Qualquer proposição que tenda a
esclarecer os dados de forma diferente pode ser chamada de hipótese.190
190
Segundo Peirce, em “Valid Hypotheses and Miracles”, para grande parcela dos antigos filósofos, o conhecimento em parte
se deve aos sentidos em parte à razão, para outros, no entanto, o conhecimento é derivado exclusivamente dos sentidos
enquanto uns poucos acreditavam que já nascemos com o poder de conhecer. Peirce discorda da primeira opinião e
concorda em parte com as duas últimas. Para Peirce, o fato de nosso conhecimento estar fundado na observação é
verdadeiro no sentido que tudo depende dos perceptos, isto é, do conhecimento direto das coisas percebidas. Para Peirce,
além dos perceptos a crítica lógica não pode ir. Segundo ele, a psicologia prova que os perceptos são eles próprios
156
Quando surgem fatos contrários a nossa expectativa, somos obrigados a procurar
uma explicação. Tal explicação será uma proposição hipotética que deve nos
permitir prever, em circunstâncias semelhantes, fatos surpreendentes semelhantes,
seja como conseqüência necessária, seja como conseqüência muito provável. Toda
teoria científica deve começar por este momento hipotético, relacionando
experiência prévia e previsão. (SERSON, 1993:9)
operações mentais e diferentes das impressões dos sentidos. Nossos perceptos e observações diretas são relacionados
exclusivamente às circunstâncias que os cercam e não às ocasiões futuras em que poderíamos estar em dúvida como agir.
Conseqüentemente os fatos observados não contem neles mesmos qualquer conhecimento prático e para obter
conhecimento é necessário adicionar dados àqueles da percepção. Perceber é estar diante de algo, naquele ato de estar,
enquanto acontece. Assim, qualquer proposição que adicionada aos perceptos tende a esclarecer os dados de forma
diferente pode ser chamada de hipótese.
191
I.Ibri (1996 c) “Abdução e Evolucionismo”, palestra proferida na PUC, anotações de aula.
157
É a adoção da hipótese que vai nos permitir passar para os outros estágios da
investigação. A seguir, o investigador vai indagar da plausibilidade desta explicação. Começa
o processo de verificação que se divide em dedução e indução. As hipóteses construídas e
selecionadas na abdução devem passar pelo processo de verificação, que é fundamental para
aceitação dessas hipóteses, mas a verificação se dá segundo algumas regras, porque o teste das
hipóteses é dispendioso, envolvendo tempo, energia e dinheiro, daí que somente algumas
hipóteses podem ser testadas.
Quando uma hipótese explanatória, capaz de ser testada, for escolhida, o investigador
dela extrai predições virtuais. Uma predição virtual é uma conseqüência experimental
deduzida da hipótese selecionada e escolhida entre possíveis conseqüências,
independentemente de ser conhecida, ou acreditada, de ser verdadeira ou não. Ao ser
escolhida, o investigador se encontra em estado de ignorância quanto a se irá comprovar ou
refutar a hipótese (CP 2.96). Se a hipótese estiver correta, todas as suas predições serão
confirmadas.
Tendo sido sugerida uma teoria na abdução, cabe agora à dedução obter desta teoria
uma multiplicidade de conseqüências que nos permitem prever se nós realizarmos
certos atos, nós nos confrontaremos com certas experiências. (SERSON, 1993:9)
Como é que se pode comprovar uma hipótese? A hipótese tem que ser testada
experimentalmente para se saber se é verdadeira. Aqui começa a indução. A dedução só tira
158
da hipótese uma conseqüência necessária e observável, para que a indução ao testá-la, legitime
a hipótese. O que tem a indução de especial? Observando fatos isolados e particulares, nós
generalizamos. Examino alguns fatos e digo que esta estrutura de fatos vai permanecer no
futuro. A indução difere da dedução porque sua força depende, em parte, da linha de conduta
escolhida pelo pesquisador, o que afeta a indução porque está relacionada com o curso da
experiência.
Para Peirce esta é a estrutura de toda investigação, tanto da ciência, quanto da vida
quotidiana. Nós operamos na vida quotidiana com estes mesmos três estágios de raciocínio.
No quotidiano, acontece um fato surpreendente, para ser explicado este fato levanta-se uma
hipótese da qual decorrem algumas conseqüências, vou verificar estas conseqüências, se elas
se confirmarem, a hipótese é verdadeira.
159
examinada e suas conseqüências derivadas. Este estágio também tem duas partes: a primeira
consiste na análise lógica para explicar a hipótese e torná-la tão perfeitamente distinta quanto
possível. A “explicação” é seguida da “demonstração”, quando o pesquisador examina mais
aproximadamente as considerações já introduzidas ou envolvidas na explicação a fim de
derivar suas conseqüências experimentais. Tendo isso sido conduzido suficientemente, a
pesquisa entra no terceiro estágio, aquele de se verificar se as conseqüências estão de acordo
com a experiência, e julgar se a hipótese está sensivelmente correta, ou se requer alguma
modificação não essencial, ou se deve ser inteiramente rejeitada. (CP 6.472) Este estágio
indutivo, conforme foi visto anteriormente tem três fases após o que o pesquisador passa o
julgamento final dos resultados obtidos. (CP 6.464-73).
Não escolheu esta verificação pelo fato dela proporcionar um resultado favorável.
Kepler não sabia que o resultado seria favorável. Escolheu-a porque era a
verificação que a Razão exigia que fosse aplicada. Se este caminho for seguido, só
permanecerão de pé aquelas teorias que são verdadeiras. (PEIRCE, CP 2.97)
Em cada etapa de sua longa investigação, Kepler tinha uma teoria aproximadamente
verdadeira, que ele ia modificando, após “cuidadosa e judiciosa reflexão, de maneira a torná-
la mais racional ou próxima do fato observado.”
192
Ver CP 1.71-78. Este texto está traduzido em C.S.Peirce, (1990) op.cit. p. 7.
160
Assim, nunca modificando caprichosamente sua teoria, pelo contrário, tendo sempre
um motivo sólido e racional para qualquer modificação que fizesse, tem-se que
quando ele finalmente procede a uma modificação - da mais notável simplicidade e
racionalidade - que satisfaz exatamente as observações, essa modificação firma-se
sobre uma base lógica totalmente diferente da que apresentaria se tivesse sido feita
ao acaso, ou de outro modo que não se sabe qual seja e se tivesse sido encontrada
para satisfazer as observações. Kepler demonstra seu aguçado senso lógico no
detalhamento do processo total através do qual ele finalmente chega à verdadeira
órbita. (PEIRCE, CP 1.74)
161
CONCLUSÕES:
Procuramos mostrar também que uma metodologia semiótica nos moldes peirceanos
consiste em usar a própria definição de signo ou forma lógica de pensamento como um
modelo epistemológico ou como um mapa orientador que serve para qualquer espécie de
investigação. Esta especificação nasce da concepção de semiótica peirceana como uma lógica
que leva em consideração todos os tipos possíveis de signos e seus específicos modos de ação
ou semiose.
162
A Semiótica, além de ser a ciência de todos os tipos de signo é também, como
conseqüência da relação triádica signo-objeto-interpretante, uma teoria da significação (da
relação do signo consigo mesmo), uma teoria da objetivação (da relação do signo com seu
objeto) e uma teoria da interpretação (da relação do signo com seu interpretante).
Cada signo diz respeito a certo tipo especial de raciocínio. É um postulado da Semiótica
peirceana não existir mecanismo de raciocínio possível, e conseqüentemente, método de
investigação que prescinda do uso de signos.
Por outro lado, da própria vagueza e falta de precisão do signo, decorre uma lógica que
pode tratar de problemas de indeterminação e incerteza, o que coloca a Semiótica em sintonia
com a ciência contemporânea. Para Peirce, "todo avanço importante no campo da ciência tem
correspondido a uma lição de lógica." (CP 5.365)
193
H. Murphey, op. cit. p. 159.
194
L.Santaella, (1993 b) p.175.
163
argumentos e assim caminhamos para frente e para trás, até que alguma solução seja
encontrada que leve em conta os méritos de cada possibilidade. A habilidade para imaginar
situações diferentes, para ser sensível a objeções, constitui a verdadeira força do pensamento.
Do ponto de vista da doutrina dos signos, a Teoria da Investigação pode ser pensada
como um processo triádico de interpretação de signos guiada pelo objetivo de se conhecer o
caráter real dos objetos dos signos.
164
A necessidade da Metodêutica como estudo dos procedimentos apropriados a qualquer
tipo de pesquisa se justifica, pois métodos baseados na experiência, sem este estudo teórico,
estão fadados a equívocos, pois se forem aplicados erroneamente não poderão se auto-
corrigir.195 A Teoria da Investigação também pode ser chamada de Teoria do Método
Científico.
Peirce aceita os argumentos de Berkeley e Hume, mas rejeita tanto suas premissas como
as conclusões. Peirce parte do princípio de que, de fato, temos conhecimento e o problema
filosófico consiste em explicar como este conhecimento é possível. Portanto, para Peirce, o
ponto de partida é muito diferente: começar daquelas coisas das quais não duvidamos é muito
diferente de começar de certezas absolutas. Partimos das nossas crenças, e da definição de
crença como aquilo em função do qual o homem está preparado para agir. As crenças são
tratadas como uma disposição para a conduta.
Descarte começa duvidando de tudo para livrar-se do “espírito maligno do engano”. Ele
quer começar por um ponto indubitável e acaba começando pela certeza da existência, mas
195
B.Kent (1987), op.cit.p.178.
165
Descartes nunca duvidou da existência de uma linguagem através da qual ele duvida e que
tem significado para outras pessoas. A dúvida, portanto não é cabal.
Para Peirce não se pode duvidar do conceito de existir, não se pode reduzir o saber a
zero. É uma ilusão cartesiana reduzir o saber a zero, e partir de uma certeza absoluta. Peirce é
totalmente avesso a este início de filosofia, que é um duvidar acadêmico: por uma decisão,
passo a duvidar.
Isto não é possível na prática científica. Na prática científica ninguém duvida por uma
questão pessoal, duvidar é um evento extraordinariamente complicado para o espírito, uma
operação complicada entre sujeito e objeto. Crer ou duvidar não é uma decisão unilateral.
Segundo Peirce, existe uma idéia comum de que uma demonstração deve se apoiar em
certas proposições últimas e absolutamente indubitáveis. Peirce recusa esta idéia de último e
indubitável, para ele a pretensão de verdades últimas beira a “comicidade”.
Se o fato for previsível, a teoria dá conta. Se o fato não é previsível, está no universo da
possibilidade, é como se fosse um jogo de dados, é aleatório. Ser previsível é estar contido
numa teoria operativa.
166
A investigação começa, portanto, a partir de uma dúvida genuína. O objetivo da
investigação é recuperar o estado de calma e equilíbrio que caracteriza a crença. A decisão
quanto à verdade e falsidade de uma crença se coloca, para Peirce, em termos do que está
disponível ao conhecimento do investigador.
A investigação tem por objetivo único o acordo de opiniões. Para Peirce, não deveria
haver nem subjetividade nem opinião pessoal implicada na investigação. A investigação deve
levar a um acordo de opiniões e, quando Peirce fala em crença, ele está se referindo à crença
coletiva, o que dá sustentação à investigação é o acordo de opiniões.
Mas a preocupação de Peirce não é o sujeito individual. A crença coletiva é para aqueles
que crêem uma verdade. Buscamos não apenas uma opinião, mas uma opinião verdadeira, que
é de certa maneira este acordo de opiniões. Este acordo não é tão somente um acordo
opinativo, mas um acordo em torno do verdadeiro. Pode-se então, perceber a relação entre
crença, dúvida e acordo de opiniões verdadeiras, embora para Peirce não exista algo que seja
verdade última, verdade final.
A relação entre crença e dúvida é um problema coletivo, é um problema de
conhecimento coletivo, que é efetivamente o estatuto do conhecer. Evidentemente tudo aquilo
que se aplica à coletividade também pode ser aplicável ao individual.
167
Para Peirce há dois modos de bloquear o caminho do conhecimento: presumir a
impossibilidade de conhecer a verdade ou assumir que a verdade já é conhecida.
A crença coletiva só pode evidentemente ser rompida por uma dúvida de fato, gerada
não por um discurso, mas por uma experiência de fato. A experiência só vai abalar uma crença
se estiver em desacordo com o que o meu saber prevê. É assim que se dá a ruptura de crença:
o fato entrou em conflito com a previsão, e instaura a dúvida. Passa a existir um conflito entre
o evento previsto e o evento ocorrido, ocorre uma desarmonia de eventos.
A experiência é o agente que nos faz pensar, o agente que provoca o pensamento. Existe
um mundo que resiste ao nosso pensamento e nos obriga a pensar diferentemente, que nos
obriga a corrigir concepções e nos obriga a duvidar e a crer. Por detrás de tudo isto está o real,
a realidade. O real não é só uma palavra, existe o objeto que permanece indiferente ao que
dele pensamos, que permanece indiferente aos nossos atos de vontade.
Esta é a condição de verdade. Se a representação não se balizar por algo fora dela, como
é que se pode definir verdade? A verdade é um acordo de opiniões, mas o que sustenta o
acordo de opiniões é o real. Realidade é externa à mente humana e algo que esteja fora do
alcance da investigação não é real. (CP 5.311)
Este é um ponto muito importante, porque para algumas correntes filosóficas, nós é que
criamos a realidade, a realidade é constituída pelo nosso pensamento. Mas é nossa idéia de
mundo que condiciona nossas condutas, existe certo arbítrio na formulação de idéia de
mundo. Portanto, está excluído destas filosofias certo diálogo com o mundo, está excluída
uma visão da alteridade do mundo, da alteridade da nossa experiência.
Para idealistas como Berkeley e Fichte, o mundo é o que acontece dentro de mim. Não
existe mundo externo. Mas para Peirce, "o que afeta o espírito é suscetível de ver-se
168
transformado em motivo de esforço mental”, e este objeto que afeta o espírito, é
compreendido como mundo externo, mundo real.
Quando o objeto apresenta uma radical alteridade e liberdade, nós não conseguimos
pensar, não conseguimos reduzir sua conduta nenhuma representação. Aqui está embutida a
idéia peirceana de que os universais são reais, isto é, dizer que a linguagem, o pensamento e o
conhecimento requerem “ordem no mundo”. Isto significa uma posição realista, as leis como
entidades gerais, como regras, são reais, isto é, existe um mundo que contém regras reais.
Da doutrina de que a ciência progride assumindo que existem leis da natureza, que estas
leis são reais, Peirce chega à conclusão que o nominalismo tem impedido o progresso da
ciência, bloqueando a investigação, ao “proibir a investigação da realidade implícita no
fenômeno.” Existem filosofias que dizem não acreditar em leis da natureza. As leis da
natureza seriam simples palavras que nós criamos, são determinadas regras que nós
inventamos para lidar com os fatos. Para estas filosofias o mundo é desorganizado e nós é que
organizamos o mundo segundo nossa linguagem.
No entanto, muitos que defendem estas idéias são flagrados fazendo planos para o
futuro. Para Peirce, fazer planos para o futuro revela uma crença na continuidade das
regularidades e a continuidade das regularidades se chama lei. Ao formular planos para o
futuro, estes planos só são possíveis de serem realizados, desde que as regularidades do
passado permaneçam regularidades no futuro. Não é possível fazer nenhuma previsão se o
objeto não estiver submetido a determinadas leis.
Para o ser humano é angustiante não poder fazer previsões. O que significa não
conhecer? Significa que o objeto não está submetido a nenhuma regra, não é redutível a teoria
nenhuma, não é redutível à previsibilidade. Se tudo fosse aleatório, a vida não seria possível.
169
Por isso não se pode dizer que lei é uma invenção nossa, não se pode dizer que é a inteligência
humana organiza a experiência e que a linguagem humana dá ordem à experiência ou o que
ordena o mundo é a linguagem humana.
O mundo não é um aglomerado de fatos, mas é também uma relação ordenada destes
fatos e esta relação é real, não é uma invenção da nossa linguagem. Aliás, a linguagem só é
possível porque a relação é real. A linguagem não pode dar gênese a esta relação.
A primeira distinção básica entre ficção e real está na alteridade do mundo. É crucial
reconhecer a impotência dos nossos pensamentos e da nossa linguagem em dar formas às
coisas. Criar condições de significação para nós não significa ordenar as coisas. As coisas têm
uma ordem que é delas.
O discurso pode desacreditar a lei, mas a conduta revela a crença na lei, temos que nos
fiar na conduta que revela a crença. Neste caso a filosofia se torna um jogo de faz-de-conta.
Peirce se insurge contra o vício de se desligar a filosofia da vida comum. Só que a vida está
impregnada de especulação, de desafios ao imaginário e ao hipotético, a tudo aquilo que
tomamos como cabais, definitivos, desafio ao senso comum. Devemos observar a alteridade
como espelho e buscar a verdade.
170
Já a natureza do discurso científico implica o acordo de opiniões. Sem acordo de
opiniões não há ciência. No mundo da ciência, a experiência efetivamente feita baliza o
acordo de opiniões. Não há verdade nem falsidade no discurso da arte, mas isto é essencial no
discurso da ciência.
Quando se diz que uma determinada teoria funciona, significa dizer que o que ela prevê
dá certo, isto é, os fatos combinam com a previsão. Uma experiência pode fugir a uma
previsão por um erro de medição, um erro de constituição da própria experiência. Peirce,
como cientista, tem consciência de que as noções de experiência, de reprodutibilidade de
fenômenos e repetições experiências são complicadas porque o observador não consegue
realizar as mesmas observações, “mesmo as observações que fiz ontem não são as mesmas
que fiz hoje”(W1 :55).
Este é um dos problemas mais sérios da indução: quantas experiências serão necessárias
para que aquilo se instaure como fato notável e não só como fato acidental? Eliminados todos
os fatores possíveis de erro, ou conhecendo o erro provável da experiência, assim mesmo ela
pode se mostrar discrepante da previsão. As conclusões tiradas sobre as amostras são
generalizadas para o todo, através da indução as propriedades da amostra são generalizadas
para o todo. Obviamente, atrás da coleta da amostra, há toda uma teoria das probabilidades e
estatística.
A investigação científica é uma atividade voltada para um fim, este fim é a descoberta
da verdade. Este é um elemento muito importante, porque a própria validade da indução está
relacionada com as previsões, mas não como base para ação, mas com a validade do método
científico como um caminho para a descoberta da verdade.
Por outro lado, a convergência não pode ser explicada pelo acaso. Existe uma força no
crescimento da inteligência e esta força é de tal ordem que alguém, em algum momento iria
171
conjecturar a respeito de uma determinada condição da experiência. Para Peirce o fato de que
um determinado cientista tenha feito uma descoberta não é tão importante. O importante é
que, em algum momento, algum outro também chegaria a esta descoberta. A experiência é
sempre particular, mas ela pode acontecer para diversos sujeitos.
“Buscamos não apenas uma opinião, mas uma opinião verdadeira, que além de ser um
acordo de opiniões, seja uma opinião verdadeira”. Quando atingimos um estado de crença, nós
nos sentimos completamente satisfeitos, seja esta crença verdadeira ou falsa. Nós só cremos
naquilo que tomamos como verdade, embora no futuro a crença possa se mostrar falsa.
Isto não quer dizer que uma vez atingida a crença, ela se constitua em verdade final.
Basta perguntar a uma comunidade científica se isto que eles agora tomam como verdadeiro é
a verdade última? Se a teoria na qual eu creio funciona, por mais esforço que se faça não há
como duvidar dela. Isto não quer dizer que não se possa admitir que amanhã a teoria se mostre
falsa. À medida que aumenta o espectro e o horizonte da experiência humana, aquele modelo
antigo que era aplicado, pode estar incompleto.
Para Peirce a crença é verdadeira, senão não seria motivo de crença. Há uma
equivalência entre crença e verdade. Crença é sempre verdade para nós e quando atingimos
um estado de crença estamos satisfeitos seja ela verdadeira ou falsa. Ela é verdadeira para nós,
embora possa se mostrar falsa futuramente. Porque você acredita nela? Porque não consigo
duvidar, só vou duvidar quando a crença efetivamente se mostrar falsa. Quem é que denuncia
a falsidade de uma crença, aquilo que instaurou a crença, o fato.
Se as nossas crenças são para nós verdadeiras, é muito importante refletir sobre o fato de
que as nossas crenças moldam nossas ações. As nossas ações são balizadas, dirigidas,
moldadas por aquilo que consideramos verdade. As falsidades não moldam nossas ações, se
crença tem equivalência com verdade e crença molda conduta, verdade molda conduta. Então,
172
há uma relação íntima entre aquilo que consideramos verdadeiro e o modo como nós nos
conduzimos.
Este é um dos pontos mais importantes que ilustram a íntima relação entre razão teórica
e razão prática em Peirce, entre ética, como a ciência da conduta e a lógica, como a ciência do
verdadeiro. Esta relação entre crença e verdade é extraordinariamente importante, como é
também a relação entre crença, realidade e conduta.
Para Peirce, a ciência não é um caminhar sobre um leito de pedras, mas sim sobre um
pântano (CP 5.589). Contra o dogmatismo e o ceticismo, ele propõe sua doutrina do
falibilismo e sua doutrina do senso comum.
As investigações lógicas de Peirce são dirigidas para mostrar quais devem ser os
princípios guia para aquele investigador que acredita existirem coisas reais e cujo objetivo é a
descoberta das propriedades daquilo que é real.
173
Se nós adotamos a hipótese da realidade, estamos nos comprometendo com uma busca
única e desinteressada da verdade, estamos aptos a sacrificar opiniões a curto prazo pelo
consenso estável e duradouro. A aceitação deste critério para avaliação do método pressupõe
uma visão realista contra a visão nominalista da realidade e também contra o ceticismo, "faz
emergir uma nova concepção de raciocínio em termos de algo que deve desenvolver-se
estando de olhos abertos, com manipulação de coisas reais, em vez de manipulação de
palavras e fantasias". (CP 5.363)
Quando avaliamos uma ação com respeito a uma intenção, supomos que a intenção seja
boa. Quando testamos nossas intenções com nossos ideais, assumimos que nossos ideais
sejam válidos. Isto também acontece quando adotamos a hipótese da realidade e queremos o
estabelecimento de nossa opinião tal que corresponda à verdade.
Para ser racional é necessário ter preocupações altruístas. Assim, nós procedemos de
uma discussão sobre o que é admirável, para uma consideração do que pode ser adotado como
fim da conduta incondicionalmente e, daí para uma especificação do que pode ser adotado
como o padrão final para direcionar nossos raciocínios e nossas investigações.
174
Quando um agente exerce o autocontrole, ele o exerce de forma variada e complexa, que
só é unificada na busca de um fim último. Quando o agente reflete sobre o fato de que suas
ações são unificadas por um objeto guia, que pode ser sustentado sob determinadas
contingências, isto é o admirável “per se”.
Mas é o Belo que aparece na conduta, não é o mesmo Belo das belas formas, das belas
cores. É um Belo aprisionado a uma temporalidade, é um Belo que não se revela na
imediatidade, só se revela no tecido do tempo. Só a temporalidade revela a beleza de uma
conduta. O Belo tão somente como aparência é dado na imediatidade. A contemplação de uma
conduta só é possível no tempo, só então podemos traçar um diagrama daquilo que foi exibido
temporalmente.
Existe um Belo que não aparece de modo imediato. Aprendizado e ciência requerem
tempo. O Belo que aparece não é garantia do Belo que é revelado depois. A conduta moral
não é só um conjunto de regras contingentes.
A reflexão ética também passa pela escolha do método, quantas vezes a escolha do
método não tem como objetivo o ocultar-se, o fugir da experiência, embora haja evidências de
que estamos errados, mantemos por conveniência tenazmente, a mesma crença embora tudo
nos mostre que devemos mudar.
196
I.Ibri, (1997) “Crença, Verdade, Interpretante Final”, anotações em aula.
175
A escolha do método (que não o método da ciência), pode indicar uma decisão moral de
nos mantermos no quadro teórico de uma crença cristalizada da qual o sujeito, seja ele
individual ou coletivo não quer abrir mão.
À luz dessa discussão sobre o fim último da deliberação auto consciente pode-se indagar
se o fim último para a investigação pode ser diferente do autocontrole do raciocínio, já que
para Peirce o autocontrole do raciocínio não é diferente da adoção do método científico.
Uma das respostas pode ser encontrada na própria natureza da ciência proposta por
Peirce. A ciência não é um corpo de verdades estabelecidas certificadas, nem um
conhecimento sistematizado. Também para o "homem científico" que a adotou como modo de
vida distintivo, o objetivo crucial para o controle crítico do raciocínio, à luz do objetivo
último, é a descoberta da verdade, qualquer que ela seja.
Para Peirce,197 todos os grandes cientistas foram movidos pela devoção à busca da
verdade pela verdade, assim o cientista se vê contribuindo para o crescimento do
conhecimento que transcende tudo o que conseguiu ou vai conseguir.
197
C. Hookway (1992) op. cit. p. 68.
176
O "homem científico" não tem como objetivo último ganhar dinheiro, ou melhorar de
vida, ou beneficiar seus colegas. (CP 1.45) O homem prático e o cientista têm motivações
muito diferentes. Para o cientista a “realidade é sagrada, bonita, e eterna”. (CP 5.589) O
verdadeiro investigador perde completamente de vista a utilidade daquilo que procura.
Para Peirce, está, “sem dúvida em lamentável estado de espírito a pessoa que admite a
existência de uma coisa chamada verdade, distinta da falsidade simplesmente pelo fato de que,
se agirmos fundados nela, de olhos abertos, chegaremos ao ponto desejado e não nos
perderemos e que, não obstante convencida disso, ousa desconhecer a mesma verdade e busca
evitá-la.” Há um elemento de admirabilidade que está na gênese do trabalho de lógica.
Um homem é levado a procurar a crença para se livrar da dúvida, mas se esta busca for
guiada apenas por aquilo que leve à satisfação imediata, ele vai se desapontar inevitavelmente
a longo prazo. Seus critérios não deveriam ser dominados apenas por uma satisfação imediata
individual, mas sim de conformidade com aquelas normas que levam à satisfação duradoura, à
busca da verdade.
178
escolhe um caminho, esta escolha envolve uma questão lógica, que é a de traçar a melhor
estratégia para se atingir um fim.
Para Peirce, o custo de termos um objetivo último é o desdém aos ganhos individuais. A
totalidade das ciências funciona com uma substância ética, o indivíduo se vê como parte de
um todo, suas ações só tem valor quando contribuem para o bem do todo.
Tendo escolhido o método científico, trabalhará e lutará por ele, não se queixando
dos golpes que deva suportar, (....) e se empenhará por fazer-se o cavaleiro e
campeão digno da chama de cujos esplendores retira sua inspiração e sua coragem.
(PEIRCE, CP 5.247)
Na verdade, nós podemos errar e erramos muito, mas a verdade vai surgir porque
ninguém permanece indefinidamente no erro, e o real acaba se impondo de maneira correta.
Esta é uma visão evolucionária.
179
Neste contexto, a investigação nunca é completamente fechada (CP 7.185). Dessa
unidade genética entre homem e natureza, decorre a harmonia que deve existir entre a teoria e
o fato, portanto o objeto último da investigação seria conhecer “um fragmento do pensamento
divino“, conhecer os desígnios do “geômetra divino”, porque o fundamento último da
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180
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