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NOSSOS FEMINISMOS REVISITADOS LUIZA BAIRROS Certa vezem Salvador, Bahia, vina televisao um quadro sobre culindria, Era um, programa matinal dirigido ao puiblico feminino, onde se demonstrava como preparar um prato do qual ja nem lembro. Naquele momento, o que prendia minha aten¢do estava atrds da imagem imediatamente visivel na tela de TV. O cendrio era uma cozinha, e o personagem principaluma apresentadora que ndo parava de dar instrugdes e conselhos. Em contraposico, uma jovem negra participava da cena no mais completo mutismo. Naquele programa, o esteredtipo que nos associa 4 boa cozinheira foi redefinido pela redugdo da mulher negra ao papel de coadjuvante, mesmo no limitado espacgo imposto pelo racismo. Para mim, entretanto, tao poderosa quanto © siléncio era nossa outra “fala”, transmitida pela pele negra e realcada pelo penteado de trangas da ajudante Uma.imagem posta em nossos préprios termos, desligada das representags de stibmissdo atribuidas a n mulheres e homens negros. Se, por..um» Jado,, Os” Produtores de TV acham. que: nado possuimos a autoridade ea seguran¢a necessarias para ensinar, até mesmo: que suposta- mente fazernos melhor, por outro, 6 evidente que o racismo ja nao. pode mais ser praticadosem contestagao, sem que de algum:modo emerjam os contradiscursos que (re)eriaitiés nas duas Ultimas décadas. _ Ossignificadesembutidosna cenando param por ai. Opapeldesempenhado pela opresentadra - branca - era superior apenas na aparéncia, pois ela estava restrita aoespagageraiente desvalorizado da atividade doméstica,Logo, sua ?autoridade” s6 {0 contraposta ao papel: secundario da ‘ajudante negra. Numa sociedade racista, sexista; marcada| Por profundas desigualdades sociais, 0 que poderig existi de comum @hite.mulheres.de diferentes grupos raciais e Classes socials? Esta é tina uestdo | orrenté Nao totalmente resolvida pelos varios feminismos, que interpretam a opressao sexista com base num diferenciado espectro teérico-palitico-ideolégico de onde o movimento feminista emergiu. Conceitos fundamentais do feminismo De acordo com Judith Grant", as vers6es mais conhecidas do feminismo | GRANT, Judith. Fundamental Feminism. Contesting the Core Concepts of Feminist Theory. Nova larque, NY: Routledge, 1991. ANO3 ABQ 2 SEMESTRE 95 - radical, liberal, socialista - nao foram capazes de dar conta de quest6es como as que me foram sugeridas pelo programa de TV porque herdaram do feminismo tadical trés conceitos basicos (¢ problematicos): mulher, experiéncia e politica pessoal Num determinado momento, os conceitos foram dteis para definir uma coletividade e seus respectivos interesses, assim justificando o estabelecimento de uma organiza¢Go politicaindependente. Mas, por outro lado, mostraram-se inconsis- tentes quando usados para definir o que nos une a todas enquanto mulheres. Para a autora, fal convergéncia conceitual é chave para entender-se porque certos feminismos desconsideram categorizagdes de raga, de classe social e de orienta- ¢o sexual, favorecendo assim discursos e praticas voltados para as percepgées @ necessidades de mulheres brancas, heterossexuais, de classe média. Vejamos como esse argumento € elaborado. O uso do conceito mulher traz implicito tanto a dimensGo do sexo biolégico como a construgdo social de género. Entretanto, a reinvengdo da categoria mulher frequentemente utiliza os mesmos esteredtipos criados pela opressdo patriarcal - passiva, emocional etc. - como forma de lidar com os papéis de género. Na pratica, aceita-se a existéncia de uma natureza feminina e outra masculina, fazendo com que as diferengas entre homens e mulheres sejam perce- bidas como fatos da natureza?, Dessa perspectiva, a opressdo sexista é entendida como um fendédmeno universal, sem que no entanto fiquem evidentes os motivos de sua ocorréncia em diferentes contextos histéricos e culturais, Para definir opressdo, 0 feminismo langa mao do conceito experiéncia, segundo 0 qual opressiva seria qualquer situagao que a mulher defina como tal, independentemente de tempo, regido, raga ou de classe social’. Cabe notar que essa definic¢do, ao mesmo tempo em que refor¢a um dos aspectos definidores do feminisrmo em relagGo a outros sistemas de pensamento - a importancia da subjetividade em oposi¢do 4 objetividade -, também abre a porta para as genera- lizagées, Isto, associado ao maior acesso aos meios de propaga¢ao de idéias por certos grupos, sem diivida contribuiu para que experiéncias localizadas fossem tomadas como pardmetro para as mulheres em geral. Ha duas versdes do pensamento feminista que explicitamente tentam definir a mulher com base em experiéncias tidas como universais. A primeira coloca amatemidade como a experiéncia central na identidade das mulheres. Ao respon- der porque constituimos um grupo diferente, coloca em destaque valores ligados & pratica das mGes: altruismo, carinho, cuidado com os interesses do outro. A énfase num aspecto compartilhade apenas em cardter bioldgico como parte integral da identidade feminina, reforca no¢ées patriarcais do que € tradicional ou naturalmen- te feminino, apenas atribuindo a estas caracteristicas um valor superior Gquelas 2.GRANT, op. cit. p. 21 ¢ 24. SIbidem, p. 30. © exemplo mais classico da abrangéncia do conceito experiéncia refere-se as mulheres dos setores sociais dominantes, cuja opressao se manifestaria peloslimites a que estGo sujeitas, quando colocadas No “pedestal” que os privilégios de classe Ihes garantem. ESTUDOS FEMINISTAS 1 Q) NN. 2/95 geralmenteassociadasachomem*. Poroutrolado, ndoevitaal imanifestacdo de interesses contraditérios, como bem demonstram as dificuldades que se tem, ainda hoje, de definir umentendimento comumparatemascome aborto cu até mesmo direitosreprodutivos. A segunda toma a sexualidade, entendida como forma de poder que transforma a mulher em objeto sexual do homem, como a experiéncia capaz de unificar todas as mulheres, Dessa perspectiva, a mulher tende a ser interpretada como vitima de um poder definido como intrinsecamente masculine. Também nesse caso, a tentativa de generalizar experiéncias fracassa. Prova disto sGo as diferentes percepedes sobre estupro, assédio sexual e, mais recentemente, a discussdo sobre pomografia e violencia que tem dividido opinides sobre o que é,0u nao, a submissGo da mulher @ vontade do macho. Veja-se a esse respeito a colocagdo das homossexuais norte-americanas que reivindicam 0 sado-masoquis- mo como uma forma legitima de exercicio da sexualidade, assim opondo-se a interpretagdes que problematizam essas mesmas praticas em relagdes| heterossexuais. A énfase na experiéncia levou & afirmagdo de que o pessoal é politico, 0 terceiro conceito basico do feminismo. A idéia de que problemas de mulher sao meramente pessoais foi descartada quando o movimento feminista propds-se a agir no sentido de estabelecer solug¢des comuns. Politica, entao, seria qualquer relagao de poder mesmo fora da esfera publica, da agdo direta do Estado ou da organiza- ¢Go capitalista da sociedade. Dai a importancia da nogao de dominagao mascu- lina, de acordo com a qual poder-se-ia definir como instituigdo politica qualquer atividade estruturada para perpetué-la, como no caso do casamento e da familia’, Transtormando os conceitos fundamentais Ha pelo menos duas teorias feministas que procuram superar aslimitagdes dos conceitos fundamentais sem, no entanto, abandoné-los totalmente, Uma € 0 feminismo socialista, que parte do referencial tedrico marxista para analisar a base material da dominagado masculina. Entretanto, como as categorias feministas fundamentais foram estabelecidas em oposi¢ao dos postulados marxistas, forna-se dificil atribuir equivaléncias para conceitos como produgao e reprodu¢ao (frequentemente tratados no feminismo como esferas separadas), assim como introduzira andlise de temas como sexualidade e socializagao de crian¢as definindo patriarcado nao como ideologia, mas enquanto uma estrutura com, base material’. Associalistas, entretanto, pelo menos ofereceram alternativas para que se entendesse a intersecgao entre género, raga, orientagGo sexual e classe. Contudo, mantém a experiéncia como o principal elemento para definir a opressdo sexista, € entendem esta como mais importante, Pensaram as outras dimensdes como parcelas que se somam 4 de género, dando assim margem ds nossas conhecidas formulagdesem termosde dupla outripia opressGo -sexismo + racismo +homofobia + etc... 1b. p. 59, Sib. p. 34, *lb., p. 53. ANO 3 AG() 2° SEMESIRE 95 A aceita¢do, mais ou menos acritica, de que existiriam grupos “mais’ discriminados que outros, resultou da incapacidade de oferecer uma formulagao que evidenciasse como somos, todas e todos, afetados pelo sexismmo em suas diversas formas - homofobia, machismo, misoginia. A percep¢do de que o homem deve ser, por exemplo, o principal provedor do sustento da familia, o ocupante das posi¢des mais valorizadas do mercado de trabalho, o atleta sexual, 0 iniciador das relagdes amorosas, 0 agressivo, ndo significa que a condi¢do masculina seja de superioridade incontestavel. Essas mesmas imagens cruzadas com o racismo reconfiguram totalmente a forma como homens negros vivenciam género. Assim, o negro desempregado ou ganhando um saldrio minguado é visto como o pregui¢oso, o fracassado, o incapaz. O atletasexual é percebido comoum estuprador em potencial, oagressivo toma-se 0 alvo preferido da brutalidade policial. $6 que estes aspectos raramente sGo associados aos efeitos combinados de sexismo e racismo sobre os homens, que reforgam 0 primeiro na ilusGo de poder compensar os efeitos devastadores do segundo. A outra tentativa, mais recente, de transformar as categorias mulher, experiéncia e politica pessoal é 0 ponto de vista feminista (feminist standpoint) Segundo essa teoria, a experiéncia da opressGo sexista € dada pela posigdo que ocupamos numa matriz de domina¢do onde raga, género € classe social intercep- tam-se em diferentes pontos. Assim, uma mulher negra trabalhadora nao 6 triplo- mente oprimida ou mais oprimida do que uma mulher branca na mesma classe social, mas experimenta a opressdo a partir de um lugar, que proporciona um ponto. de vista diferente sobre o que é ser mulher numa sociedade desigual, racista e sexista. Raga, género, classe social, orientagao sexual reconfiguram-se mutua- mente formando 0 que Grant chamade um mosaico que s6 pode serentendidoem sua multidimensionalidade. De acordo com o ponto de vista feminista, portanto, no existe uma identidade nica, pois a experiéncia de ser mulher se dé de forma social € historicamente determinadas. Considero essa formulagdo particularmente importante, néo apenas pelo que ela nos ajuda a entender diferentes feminismos, mas pelo que ela permite pensar em termos dos movimentos negro e de mulheres negras no Brasil. Este seria fruto da necessidade de dar expressdo a diferentes formas da experiéncia de ser negro (vivida “através” do género) e de ser mulher (vivida “através” da raga), o que torna supérfluas discussdes a respeito de qual seria a prioridade do movimento de mulheres negras - luta contra o sexismo ou contra o racismo? -, ja que as duas dimensdes ndo podem ser separadas. Do ponto de vista da reflexdo e da agao politicas, uma nGo existe sem a outra’. 7 Como salientado no paragrofo anterior, homens também vivenciam raga através de género, mas, ‘a0 contrério das mulheres, ndo percebem os efeitos opressives do sexismo sobre sua propria condi¢ao. Dai tenderem a confundir o combate ds desigualdades de género cam antagonismo entre homens e mulheres, ou com ume tentativa destas de acabar com “privilégios da condigao masculina”, que eu duvido possam ser desfrutados plenamente por homens negros numa sociedade racista, Até por isto, omovimento negro, um dos pouces espagos que se oferecem para a expressdo plenade pessoas Negras, também é paico para o exercicio de um sexismo que ndo poderia manifestar-se em outras esferas da vida social, especiaimente aquelas dominadas por homens) brancos. ESTUDOS FEMINISTAS J]. 2/95 Feminismo negro Nos Estados Unidos, 0 feminismo negro é uma das principais expressdes da teoria do ponto de vista (standpoint theory). A discussGo sobre as categorias mulher, experiéncia e politica pessoal, delineada nas segdes anteriores, ja havia sido antecipada por escritoras negras, cuja perspectiva feminista prescinde de uma identidade comum para todas as mulheres. E este tipo de abordagem que permitira responder de forma mais satisfatéria as quest6es que coloquei inicialmente, a partir do programa de TV para mulheres, onde a assimetria nas relagdes de brancas € negras era mostrada como se nado fosse problematica. bell hooks, destacada feminista afro-americana, corretamente afirma que oque asmulheres compartilham nado éamesmaopressGo, mas alutaparaacabar com 0 sexismo, ou seja, pelo firm das relag¢des baseadas erm diferen¢as de género socialmente construidas. Para nés negros 6 necessario enfrentar esta questo, nao apenas porque a dominagao patriarcal conforma relagdes de poder nas esferas pessoal, interpessoal e mesmo intimas, mas também porque o patriarcado repousa em basesideolégicas semelhantes ds que permitem a existéncia do racismo: a crenga na dominagGo construida com base em nogées de inferioridade e superioridade’. Nesse sentido, a frase “o pessoal € politico”, para hooks, nao significa, como muitos ainda a interpretam, a primazia de uma dimensdo sobre a outra, mas a compreensao de que 0 pessoal pode constituir-se em ponto de partida para a conexdo entre politizagdao e transforma¢dao da consciéncia. Logo, ndo se trata de uma simples descrigGo da experiéncia de opressdo de mulheres por homens, mas do entendimento critico sobre o terreno de onde essa realidade emerge®. importante notar que essa afirmagco j4 contém a compreensdo que, mais tarde, Grant sintetizou. Feminismo € 0 instrumento tedrico que permite dar conta da consirugao de género como fonte de poder e hierarquia que impacta mais negativamente sobre a mulher. £ a lente através da qual as diferentes experiéncias das mulheres podem ser analisadas criticamente, com vistas & reinven¢ao de mulheres e de homens fora dos padrdes que estabelecem a inferioridade de um em relagao ao outro. E desse modo que a afro-americana Patricia Hill Collins desvenda uma longa tradi¢Go feminista entre mulheres negras, com base no pensamento daquelas que desafiaram idéias hegeménicas da elite masculina branca, expressando uma consciéncia sobre aintersec¢do de raga e classe na estruturagGo de género. Taltra- di¢do constituiu-se em toro de cinco temas fundamentais que caracterizariam o ponto de vista feminista negro: 1) 0 legado de umahistéria de luta; 2) anaturezainterligada de raga, género e classe; 3) o combate aos esteredtipos ou “imagens de controle”; 4) aatuagGo como mées, professoras e lideres comunitarias; 5) a politica sexual”, *® HOOKS, bell. Tatking Back. Thinking Feminist, Thinking Black, Boston. MA; South End Press, 1989. 1.23. ° HOOKS, op. cit., p. 106 @ 108. "°COLLINS, Patricia H. Black Feminist Thought. Knowledge, Consciousness, andPalltics ofEmpowerment. Nova lorque, NY: Routledge, 1991 ANOS 46D 2% SEMESTRE 95 A autora considera como contribui¢gao intelectual ao feminismo, nado apenas 0 conhecimento externado por mulheres reconhecidas no mundo acadé- mico, mas principalmente aquele produzido por mulheres que pensaram suas experléncias didrias como mes, professoras, lideres comunitarlas, escritoras, empre- gadas domésticas, militantes pela aboligdo da escraviddo e pelos direitos civis, cantoras e compositoras de musica popular. Assim, através de depoimentos, documentos, letras de musica, autobio- grafias, novelas e textos académicos de mulheres negras, Collins traga um perfil de umatradigao intelectual, subjugada também em fun¢ao de critérios epistemolégicos que negam a experiéncia comobaselegitima para aconstru¢Go do conhecimento. O pensamento feminista negro seria, entao, um conjunto de “experiéncias e idéias compartilhadas por mulheres afro-americanas que oferecem um Gngulo particular de visGo do eu, dacomunidade e dasociedade...ele envolve interpretacdestedricas da realidade de mulheres negras por aquelas que a vive"! Acontribuigdo de Collins é particularmente util para entendermos que a forma como a mulher negra foi mostrada naquele programa sobre culindria é paradigmdtica da contradig¢do que enfrentamos nas varias esferas de relagdes sociais. A supressdo ou aceitagao condicional do nosso conhecimento € sempre uma possibilidade, mesmo nos contextos que dependem de nossa atua¢ao", Mais especificamente, nossa posigao pode ser melhor compreendida através do lugar ocupado pelas empregadas domésticas. Um trabalho que permitiu 4 mulhernegra “ver a elite branca a partir de uma perspectiva a que os homens negros, e nem mesmo os prdprios brancos tiveram acesso”"*, O que se espera das domésticas é que cuidem do bem estar dos outros, que até desenvolvam lagos afetivos com os que dela precisam, sem no entanto deixarem de ser trabalhadoras economicamente exploradas e, como tal, estranhas ao ambiente do qual participam (outsider within). Contudo, isto nado deve ser interpretado como subordinagao. No limite, essa “marginalidade peculiar 6 que estimula um ponto de vista especial da mulher negra, (permitindo) uma visGo distinta das contradi¢des nas agées e ideologias do grupo dominante”". A grande tarefa € potencializ-la afirmativamente, através da reflexao e da a¢do politicas. "ibidem, p. 26. "2 Vérias militantes tm ressaltado que da forma como se propagaram as idéias e realizagdes dos movimentos negro e feminista tem-se a impressdo de que todos os negros sGo homens e todas as mulheres sGo brancas. Para combater essa crenga, Paula Giddings escreveu When and Where | Enter...he (mpact of Black Women on Race and Sex in America, Nova lorque, NY: William Morrow and Co. 1984, Uma fascinante reconstru¢éo da lideranga desempenhada por mulheres negras nas lutas feministas e contra 0 racismo nos Estados Unidos. "8 COLUNS, op. cit. p. 11 '* Ibidem, ESTUDOS FEMINISTAS 43 N. 2/95

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