You are on page 1of 9

IMPUTACAO OBJETIVA

Um modelo visual de aprendizagem

Rogério Roberto Gonçalves de Abreu

Logo no primeiro parágrafo, quero registrar um aviso ao leitor: se você já


entende de imputação objetiva, vai morrer de tédio ao ler esse texto. As linhas que
seguem não trazem um estudo sobre funcionalismo ou sobre teorias penais. Minha
única preocupação aqui é compor um modelo que transforme a imputação objetiva
como teoria em algo “visual”, bem mais simples e mais fácil de entender, inclusive
por quem está começando a estudar direito penal. A utilidade disso? Facilitar a
compreensão da imputação objetiva em seu nível mais básico.

Quando estudamos a teoria da imputação objetiva na faculdade de direito,


disciplina de direito penal, parte geral, o assunto parece tão complexo que fica difícil
ver alguma utilidade prática no aprendizado daquilo. Em outras palavras, parece ser
“viagem demais” para a cabeça do estudante de terceiro período.

Gosto muito da forma como nosso Rogério Greco aborda a matéria no seu
CURSO DE DIREITO PENAL. Explicando o assunto, ele trata de quatro vertentes da
teoria segundo Claus Roxin e de outras quatro segundo Gunther Jakobs. Confesso
que, não obstante a clareza habitual do autor, precisei de algumas boas lidas para
entender alguma coisa. Para o estudante de segundo ano, continua sendo uma
tarefa no mínimo notável entender a imputação objetiva como algo diferente de pura
teoria, o que dificulta muito a compreensão.

Então, tive uma idéia: que tal criar um modelo “visual” para ensinar imputação
objetiva? Eu sei que, para não aprofundar o estudo teórico, deveria ser suficiente
dizer que:

a) A teoria da imputação objetiva tem como um de seus objetivos estabelecer


limites à demasiada extensão da teoria da equivalência dos antecedentes causais
(conditio sine qua non);
2

b) Funciona como um meio de evitar a imputação dos elementos objetivos do


tipo a determinado comportamento ou resultado produzido por um sujeito,
independentemente do exame do elemento subjetivo do tipo;

c) Pauta-se por critérios (risco juridicamente permitido, papel desempenhado


na sociedade etc.) que deverão orientar o julgador a excluir ou reconhecer a
imputação desses elementos objetivos do tipo ao autor;

d) Embora possa ser utilizada pelos juízes brasileiros para a resolução de


problemas práticos no julgamento de causas penais, nem todas as vertentes
estudadas encontram aceitação de acordo com o direito nacional.

O problema é que isso nunca foi suficiente.

Sendo assim, tive a idéia de compor um modelo “visual” e simplificado daquilo


que, penso eu, seja a teoria da imputação objetiva. Como se trata de um ponto de
vista bem pessoal, um verdadeiro insight, o leitor dirá se lhe terá ou não sido útil, se
o achará ou não tecnicamente correto.

Vamos lá, amigos.

Se (1) a teoria da imputação objetiva procura conter a mania de grandeza da


teoria da equivalência dos antecedentes causais (aquela segundo a qual o mineiro
que retirou da terra o minério de que fora feita a arma utilizada no crime teria
colaborado causalmente para o crime) e (2) a teoria da equivalência dos
antecedentes causais é uma teoria do nexo de causalidade, então (3) a teoria da
imputação objetiva é uma teoria que procura limitar o nexo de causalidade. É,
portanto, também ela mesma uma teoria do nexo de causalidade.

Para essa teoria (segundo as vertentes de Roxin e de Jakobs, tal como


apresentado por Rogério Greco em seu Curso), ao lado da causalidade material,
existe uma espécie de causalidade normativa que, segundo os critérios adotados,
poderá ou não existir, mesmo que fique comprovada a causalidade material no caso
concreto.

Vamos um exemplo (inspirado no multicitado livro do professor Rogério


Greco) para clarear a cabeça: você compra uma passagem de avião para sua sogra
visitar o Iraque e torce para que ela seja seqüestrada e morta. Ela, de fato, vem a
ser seqüestrada e morta na viagem. Agora, algumas perguntinhas: você agiu de
3

forma a provocar a morte de sua sogra? Sim. Logo, houve conduta. Ela morreu?
Sim. Logo, houve resultado. Sua conduta teve uma colaboração causal para o
evento morte de sua sogra? Para responder a essa pergunta, podemos utilizar o
Processo Hipotético de Eliminação de Thyrén, em plena sintonia com a teoria da
equivalência dos antecedentes causais: suprimindo mentalmente a conduta, o
resultado é modificado ou mesmo evitado? Sim. Isso indica que sua conduta foi
causa do resultado. Talvez não a única, mas uma das causas. Finalmente, você quis
a morte da sua sogra? A resposta também deve ser afirmativa, o que significa que
você agiu com dolo.

Recapitulando, mediante uma conduta dolosa, você acaba de dar causa à


morte de sua sogra. O reconhecimento do nexo de causalidade nesse caso adotou a
teoria da equivalência dos antecedentes causais, pois se você não houvesse
presenteado sua sogra com uma passagem de avião para o Iraque, ela fatalmente
(perdoem o trocadilho...) ainda estaria aí com você.

Outro bom exemplo (e até mais simples) é aquele do sujeito que, percebendo
a iminência de um pesado vaso cair na cabeça de um terceiro, empurra-o,
causando-lhe lesões nas mãos com a queda, mas salvando-o da morte certa pela
lesão na cabeça. Mediante uma conduta não necessariamente orientada à causa de
um dano, efetivamente se deu causa a lesões corporais nas mãos do terceiro. Se
suprimirmos a conduta do sujeito salvador, é óbvio que as mãos do sujeito lesionado
continuarão intactas, o que demonstra o nexo causal entre a conduta e o resultado,
ainda segundo a teoria da equivalência dos antecedentes causais.

Nos dois casos, vemos claramente a relação de causalidade que liga a


conduta do protagonista ao evento lesivo. No primeiro caso, com dolo; no segundo,
com culpa. Em ambos os casos, o nexo causal é confirmado pelo processo
hipotético de eliminação de Thyrén, eis que adotada a teoria da equivalência dos
antecedentes causais.

E segundo a teoria da imputação objetiva, haveria nexo de causalidade?


Resposta: não necessariamente.

Vejam que, linhas acima, registrei o entendimento da doutrina de que a teoria


da imputação objetiva enxerga duas causalidades: ao lado da causalidade material
existe uma causalidade normativa. Como seria possível “enxergar” literalmente essa
4

realidade? Muito simples, se prestarmos bem atenção ao fato de que, em se


tratando de conceitos e institutos jurídicos, há dois mundos bem distintos a serem
examinados: o mundo dos fatos e o mundo do Direito.

Se Antônio mata Paulo, o que temos? Resposta: um fato. Um fato que


ocorreu no mundo real, no mundo dos fatos. Entre os disparos de arma de fogo de
autoria de Antônio e a morte de Paulo existe uma relação causal ditada pelas leis
das ciências naturais (física, química, biologia). Trata-se de uma causalidade
material, puramente factual, restrita ao mundo dos fatos.

Esse fato somente poderá ser considerado um homicídio se e quando o


Direito o incorporar a seu mundo com essa qualidade. O fato, portanto, pode ser
assimilado pelo mundo do Direito e assumirá a forma que esse Direito quiser. Nesse
outro mundo, o mundo do Direito, é o Direito quem dita as regras. Embora as leis
naturais da física, da química e da biologia possam produzir alguma influência, não
são elas que mandam aqui: são as regras ditadas pelo Direito, como regente
supremo de tudo aquilo que poderá ser assimilado pelo mundo jurídico e a
denominação que receberá também conforme as normas assim ditadas.

Pois bem. Ao lado do mundo natural (mundo dos fatos) temos o mundo
normativo (mundo do Direito). Se Antônio, com seus disparos de arma de fogo,
desencadeia os processos naturalísticos que culminam na extinção da força vital de
Paulo, podemos dizer que há uma relação de causa e efeito também naturalística
entre a conduta e o resultado.

O Direito – supremo regente do mundo jurídico – verá esse evento ocorrido


no mundo dos fatos e decidirá se poderá ou não ser absorvido por seu mundo. Em
decidindo que será absolvido, decidirá também com que qualificação ingressará no
mundo jurídico: homicídio, lesão corporal seguida de morte, latrocínio, legítima
defesa, estado de necessidade etc.

O ingresso do fato no mundo do direito significa o juízo que se deve fazer


sobre a relevância jurídica do fato. Sendo juridicamente irrelevante, não será
incorporado; do contrário, entrará nesse mundo com a qualificação que o Direito
entender que lhe deva atribuir.
5

E se o supremo regente do mundo jurídico se negar a aceitar o ingresso em


seus domínios de determinado aspecto do fato, a exemplo do nexo material ou real
de causalidade? Ele poderia fazê-lo?

É claro que sim.

O senhor Direito rege completamente o que diga respeito a seu mundo.


Seleciona os fatos materiais que devam ou não entrar em seus domínios e receber a
qualificação de “fato jurídico”, com todos os efeitos que o próprio Direito lhe atribuir a
partir dessa qualificação.

Sendo assim, observando um determinado fato no mundo real, ele pode


simplesmente dizer: “tudo bem, eu reconheço que, segundo as leis naturais, existe
causalidade entre a conduta de Antônio e a morte de Paulo; contudo, como aqui
quem manda sou eu, simplesmente me recuso a aceitar o ingresso dessa
causalidade no mundo jurídico e, portanto, nego-lhe o ingresso no mundo jurídico
como relação de causalidade”.

O direito pode fazer isso? Sim, ele pode. Pode dizer que embora “aquilo” seja
nexo de causalidade segundo as leis naturais, somente será causalidade para
efeitos jurídicos (a partir de seu ingresso no mundo jurídico) aquilo que ele, o senhor
do Direito, disser que deva assim ser absorvido. E uma vez que o senhor do Direito
lhe negou essa qualificação, ela não poderá migrar para o mundo do Direito,
conferindo àquele fato a significação jurídica correspondente.

Lembrem-se: ao lado de uma causalidade natural (mundo dos fatos) existe


uma causalidade normativa (mundo do direito). A primeira é regida pelas leis das
ciências naturais; a segunda, completamente regida pelas regras que o senhor
Direito estabelecer. Assim, para que o nexo causal natural receba o status de nexo
causal normativo é preciso que assim o permita o senhor Direito. Do contrário,
aquele fato continuará um irrelevante jurídico e, portanto, não será incorporado ao
mundo do Direito, seja como crime, seja como qualquer outro instituto.

Vamos voltar aos exemplos.

Lembram-se da pobre sogra que ganhou como “presente” uma passagem


aérea para ir ao Iraque? Pois é. Aplicando a teoria da equivalência dos antecedentes
causais nós chegamos à conclusão de que ficou totalmente comprovado o nexo de
causalidade entre a conduta de presentear e o evento morte. Mas será que a
6

causalidade puramente natural ali encontrada pode migrar para o mundo do Direito
ao aplicarmos a teoria da imputação objetiva?

Vamos ver.

Claus Roxin estudou a imputação objetiva adotando um critério de análise


fundado no risco juridicamente permitido. Em linhas bem simples, somente será
causalmente relevante para o resultado aquele evento antecedente que criar um
risco não juridicamente permitido, desde que o resultado lesivo seja a realização do
perigo de dano traduzido por esse risco, ou seja, a confirmação do risco. Esse risco,
por outro lado, deve ser atribuído à conduta do agente, não ao simples acaso, pois o
acaso exclui a relação de causalidade entre a conduta e o resultado. Em vez que
haver causalidade entre a conduta/risco e o resultado (responsabilizando quem
praticou a conduta e criou o risco), a relação de causalidade se fixaria entre o acaso
e o resultado, isentando o autor da conduta.

Dessa forma, voltando ao caso da sogra que pega o avião para o Iraque,
sabemos que a supressão da conduta do genro em lhe presentear com a passagem
importaria na supressão do evento morte. Logo, no plano fático, material ou real,
houve relação de causa e efeito. Mas aqui devemos perguntar se o risco de que
decorreu a morte da sogra foi uma criação consciente e controlada da conduta
desse genro. Em outras palavras, é possível dizer que a morte foi decorrência direta,
consciente e controlada da conduta do agente, ou que ele simplesmente se
aproveitou de um mero acaso, que poderia, inclusive, nem ter ocorrido?

Parece-me óbvio que, embora o Iraque não seja lá o lugar mais seguro do
mundo, não creio que seja possível dizer que o agente manteve o controle do nexo
causal gerador da morte da vítima. Ele contou com um acaso e esse acaso produziu
a morte da vítima, sem que ele tenha agido de qualquer forma que pudesse
aumentar o risco juridicamente proibido.

Um bom exemplo, e bem mais simples, está em simplesmente imaginar o


evento em que alguém compra uma passagem aérea para sua vítima e torce para
que o avião caia. Apenas isso, sem sabotagem, sem bomba, sem terrorista.
Simplesmente a escolha da companhia, a compra da passagem, o presente e a
torcida (para o avião cair). Se o avião cai, é claro que houve causalidade
naturalística entre o “presente” (viagem) e a morte, pois a supressão da conduta de
7

presentear implicaria logicamente na supressão ou modificação do resultado da


forma que ocorreu. Mas será que isso significa a realização de um risco
conscientemente criado e controlado pelo agente? Parece óbvio que a resposta
deva ser negativa: afinal, o agente nada fez para que o avião caísse, apenas contou
com o acaso (isto é, com um pouco de sorte...).

Com relação às vertentes estudadas por Jakobs, são fundadas na visão de


que cada pessoa tem um papel a desempenhar no grande palco que é a sociedade,
sendo que do perfeito cumprimento desse papel não podem decorrer conseqüências
lesivas a quem quer que seja. Se, mesmo que os atores sociais cumpram
regularmente seus papeis na sociedade, um dano vem a ocorrer, deverá ser
atribuído ao acaso, não ao comportamento de quem quer que seja.

Quando lemos o professor Rogério Greco dissecando as vertentes de Jakobs


no seu livro, o raciocínio parece entalar na garganta. Não desce tão fácil quanto o
exame sobre a linha de pensamento de Roxin. Quando imaginamos uma mulher
comprando pães na padaria e confidenciando ao padeiro que os envenenará à noite
para matar seu marido, não conseguimos, pelo menos a priori, simplesmente aceitar
que o padeiro balance a cabeça, coloque os pães na sacola e diga à mulher que
volte sempre. Ainda assim, ele terá cumprido seu papel na sociedade – que é o de
vender pães – e, por isso, não terá colaborado causalmente para a morte do futuro
defunto, marido da futura viúva assassina.

Mais uma vez aqui a função da teoria da imputação objetiva é impedir a


imputação dos elementos objetivos do tipo a determinada pessoa através do
reconhecimento de que não houve nexo de causalidade normativa, embora possa
ter ocorrido causalidade no mundo dos fatos. Afinal, no caso do padeiro, se
suprimirmos mentalmente a venda dos pães, o resultado, em tese, não ocorreria
como ocorreu, ficando provada a colaboração causal do vendedor dos pães.

Sendo assim, intuitivamente constatamos a relação de causa e efeito no


mundo dos fatos entre a venda do pão pelo padeiro e a morte do marido da
compradora. Quando aplicamos a teoria da imputação objetiva na vertente de
Jakobs intitulada “proibição de retorno”, observamos que o papel do padeiro é
vender pães, e que se ele não houvesse vendido aquele pão, a compradora o teria
comprado na padaria mais próxima. Sendo assim, ele não teria como influir
verdadeira, duradoura ou eficientemente, seja no impedimento, seja na produção do
8

resultado. Basta ver que a mulher bem poderia estar brincando; se estivesse falando
sério, bem que poderia mudar de idéia sobre matar o marido, sobre matá-lo naquele
dia, sobre matá-lo por envenenamento com pães.

Diante disso, o senhor do mundo do Direito pode dizer o seguinte: “ah, claro,
estou vendo que no mundo dos fatos a causalidade é um fator bastante visível;
contudo, uma vez que essa causalidade material traduziu o simples e regular
cumprimento de seu papel na sociedade, sem um controle efetivo da causalidade
em face do resultado, eu, senhor do Direito, me nego a aceitá-la como idônea a se
converter numa causalidade normativa para fins de imputação dos elementos
objetivos do tipo de um crime”.

E ponto final. Quem manda lá é ele.

O reconhecimento naturalístico da relação de causa e efeito no mundo dos


fatos pode inspirar e normalmente inspira a aceitação desse nexo no mundo do
direito, para que se converta em causalidade normativa e determine a imputação
dos elementos objetivos do tipo de um crime a quem tenha praticado a conduta. É
assim normalmente. O problema é que só é assim porque o senhor Direito diz que
deva ser. Desse modo, ele pode abrir exceções, como aquelas em que o nexo
causal naturalístico decorre do cumprimento do papel do sujeito na sociedade
(Jakobs) ou da ausência de um mínimo controle sobre a causalidade gerada pela
criação de um risco não permitido (Roxin).

Nesses casos, não importa se todos nós vemos causa e efeito no mundo
natural. O crime, como instituto jurídico, depende de essa causalidade natural ser
absorvida pelo mundo do Direito como uma causalidade normativa. É a causalidade
normativa, não a naturalística, o verdadeiro requisito do fato típico e, portanto, do
crime. Se o mundo jurídico não aceitar essa causalidade naturalística como
normativa, não haverá crime por ausência do nexo causal.

Moral da história: as “realidades” do mundo do direito são ditadas por ele


mesmo. Ele não pode, claro, deturpar as “realidades” do mundo real, mas tem o
poder de selecionar, conforme os critérios que adotar, os fatores reais que
determinarão a produção de efeitos jurídicos.

Em meu modo de ver, enquanto a teoria da equivalência dos antecedentes


causais nos ajuda a identificar as causas “reais” de determinada conseqüência no
9

mundo dos fatos, a teoria da imputação objetiva elege critérios para filtrar esses
resultados, permitindo o ingresso no mundo do direito – como causalidade normativa
– apenas daquilo que poderá, segundo seus próprios critérios, compor os institutos
do mundo jurídico.

Numa fórmula matemática: a teoria da equivalência dos antecedentes causais


estaria para o mundo dos fatos como a teoria da imputação objetiva estaria para o
mundo do direito. Pelo menos no que diz respeito à admissão de determinado fato
como causa de um resultado. Passando pelo filtro da primeira teoria, teremos uma
causalidade natural; passando também pelo filtro da segunda, teremos a
causalidade normativa, base para os institutos e conceitos jurídicos, como o crime.

You might also like