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5 { dos das conquistas germnicas como um processo de “interaga Em busca de uma sintese A sintese histérica que naturalmente ocorren foi 0 feudalismo, O termo preciso — sintese — é de Marx, junto com os de outros histo- riadores de seu tempo.! A catastr6fica colisio dos dois modos anterio- res de producfio em dissolugio — o primitivo ¢'0 antigo — produziu a ‘ordem feudal que se disseminouw por toda a Europa medieval. J4 estava | evidente para.os pensadores do Renascimento, quando esta génese foi \debatida pela primeira vez? que o feudalismo ocidental era resultado ‘especffico de uma fusio dos legados romano e germanico. A controvér- sia moderna sobre a questo data essencialmente de Montesquieu, que declarou serem germanicas as origens do feudalismo no Numinismo. | Desde entio, o problema das “proporgdes” exatas da mistura de ele- mentos romanos e germnicos que geraram o feudalismo levantou pai- x6es de sucessivos historiadores nacionalistas. Na verdade os tons do final da Antiguidade eram freqiientemente alterados, dependendo do Patriotismo do cronista. Para Dopsch, que esereveu na Austria depois da Primeira Guerra Mundial, 0 colapso do Império Romano foi apenas a culminagao de séculos de pacifica absorco pelos povos germanicos: foi vivido como uma calma libertagio pelos habitantes do Ocidente. “O mundo romano foi gradualmente conquistado do interior pelos ger- . Marx falou dos result (Wechselwirkung) etn io" (Verschmelzung) que gerava um nove “modo " (Produktionsweise), que era uma “sintese” (Synthese) de seus dois predécessores: Grudrisse der Kritik der Pol tischen Okonomie (Einleitung), Berlim, 1953, p. 18. (1) Em sua afirmagio principal sobre o método histori 124 PERRY ANDERSON manos, que o haviam penetrado pacificamente por muitos séculos e assi- milado sua cultura, € realmente assumido a responsabilidade de sua administragao, de maneira que a remogio de seu dominio politico foi somente a conseqiiéncia final de um demorado processo de mudanga, como a retificagiio da nomeénelatura de uma empresa cujo nome hd muito deixou de corresponder aos verdadeiros diretores do negécio... Os ger- manos ndo eram inimigos para destruir ou varrer a cultura romana, ao contrario: eles a preseryaram e desenvolveram.”? Para Lot, escrevendo na Franca i mesma época, o final da Antiguidade foi um desastre ini- maginavel, o holocausto da propria civilizagao: a lei germanica era res- ponsavel pela “‘violéncia perpétua, sem rédeas, e frenética” e pela ‘‘in- seguranga da propriedade"’ da época seguinte, cuja “terrivel corrup- Gio” fez dele “um periodo realmente maldito da histéria”.4 Na Ingla- terra, onde nao houve um confronto, mas somente uma pausa entre as ordens romana e germanica, a controvérsia foi desviada para a invasio inversa da conquista normanda, e Freeman e Round sucessivamente polemizaram sobre os relativos méritos das contribuicSes anglo-sax6- nicas e latinas ao feudalismo local. As cinzas desta disputa ainda bri- Iham hoje; os historiadores soviéticos trocaram farpas sobre elas em uma conferéncia recente na Rissia.* Naturalmente, na verdade, a pre- (2) Para um debate sobre o Renascimento, ver D. R, Kelley, “De Origine Feu- dorum: The Beginnings of a Historical Problem", Speculum, XXXIX, abril de 1964, n? 2, pp. 207-228; a discussdo de Montesquieu estd em De !'Esprit des Lois, livros XXX eXXXL, (3) Alfons Dopsch, Wirtschafilicke und Soziale Grundlagen der europaischen Kulturentwicklung aus der Zeit von Caesar bis auf Karl den Grosse, Viena, 1920-1923, vol. 1, p. 413, (4) Ferdinand Lot, La Fin du Monde Antique et le Début du Moyen Age, Paris, 1952 (reedigdo), pp. 462, 463 e 469. Lol terminou seu livro no final de 1921, (S) Para Freeman, “a conquista normanda foi a derrota temporaria de nosso ser nacional. Mas foi apenas uma derrota tempordria. Para um observador supertis opovo inglés pode ter parecido por um momento estar fora do toque de reunir da ow apenas existir como escravos de governantes estrangeiros em sua propria terra. Mas, em poucas geragdes, fizemos de cativos nossos conquistadores, a Inglaterra era a Ingla- terra mais uma vez". Edward A. Freeman, The History of the Norman Conquest of En- gland, Its Causes and Results, Oxlord, 1867, vol. 1, p. 2. Ao panegirico de Freeman sobre a heranga anglo-saxdnica opde-se Round com uma exallagiio um pouco nienos vee mente sobre a chegada dos normandos. Em 1066, “o longo canero da paz fizera a sua pais estava maduro para o invasor, ia aparecer 0 salvador da sociedade"; a con es trouxe A Inglaterra “algo melhor do que as entradas em "J. W. Round, Feudal England, Londres, 1964 (reed.), aes, obra quista normanda pelo m nossa frugal cronica nativa pp. 247, 304-305, (6) Vera longa diseussiio em Srednie Veka, 1, 1968, do relatério de A. D Liublinskaya, “Tipologiya Rannevo Feodalizm v Zapadnoi Ryrope i Problema Romino- Germanskovo Sinteza", pp. 17-44. Os participantes foram O. L. Vainshtein, M. Ya. Sivziumov, Ya. L. Bessmertny, A. P. Kazhdan, M. D. Lordkipanidze, E. V. Gutnova, 5. PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO 125 cisa mistura de elementos romanos ou germAnicos no puro modo feudal de produgao em si € de importancia muito menor do que sua respectiva distribuigaio nas formagées sociais variantes que emergiam na Europa medieval. Em outras palavras, como veremos, uma tipologia do feuda- lismo europeu é necessaria — em vez de um simples pedigree. A deriva¢ao original de instituigdes feudais especificas muitas ve- zes parece emaranhada em qualquer caso, dada a ambigilidade das fontes e 0 paralelismo de desenvolyimentos dentro dos dois sistemas sociais antecedentes. A vassalagem assim pode ter tido suas principais” raizes tanto no comitatus germAnico quanto na clientela galo-romana: as duas formas de corte aristocratica que existiram em cada lado do Reno bem antes do fim do Império, ambas tendo contribuido para o surgimento definitivo do sistema de vassalagem.’ O dominio, que no ~ devido tempo se fundiu para formar o feudo, pode ser tragado a partir | das ltimas praticas eclesiasticas romanas e das distribuigSes tribais germanicas de terras.* O manor, por outro lado, certamente é derivado do fundus ou yilla galo-romanos, que nao tinham equivalente barbaro: imensas propriedades auto-suficientes e cultivadas por coloni, queentre- gavam a produgio em espécie a grandes proprietarios, esbogo claro de uma economia senhorial.? Os enclaves comunais da aldeia medieval, de sua parte, eram basicamente uma heranga germanica, sobrevivente dos sistemas rurais originais da floresta apés a evolugio do campesinato barbaro do regime alodial para o de rendeiros dependentes. A propria Servidio provavelmente descende tanto do classico estatuto do colonus como da lenta degradagio de camponeses germAnicos livres por “reco: M, Stam, M. L. Abramson, T. I. Desnitskaya, M. M. Friedenberg e V. T. Sirotenko. Note-se em particular o tom das intervengSes de Vainshtein e Siuziumov, respectivamente defensores das contribuigdes barbaras e imperiais ao feudalismo, sendo que o iiltime — um historiador bizantinista — inequivocamente desferindo uma nota antigermanica na- cional. Em geral, os bizantinistas soviéticos parecem ocupacionalmente inclinados a pri- vilegiar o peso da Antiguidade na sintese feudal. A réplica de Liublinskaya & discussio é tranqiiila e sensata, (7) Compare Dopsch, Wirtschafliche ud Sozial Grundlagen, 11, pp. 300-302, com Bloch, Feudal Society, vol. 1, 147-151. Formas intermediarias eram os bucellarit galo-romanos ov guarda-costas, € 0s antrustiones francos (guardas palacianos) ov leudes (partiddrios militares), Para este tiltimo, ver Carl Stephenson, Mediaeval Institutions, Ihaea, 1954, pp. 225-227, que considera os leudes ancestrais diretos dos vassi carolingios. (8) Dopseh, Wirtschafiliche und Soziale Grundlagen H, pp. 332-336. (9) Dopsch, Wirtschafiliche und Soziale Grundlagen... 1, pp. 332-339. A etimo. avras-chave do feudalismo europeu pode langar uma frdgil luz sobre sua variada origem. Fief (feudo) & derivada do germano antigo viek, a palavra para herdade. Vassal (vassalo) ver do celia kwas, que originalmente significava escravo. Por outro lado, village (aldeia) vem do latim villa, serf (servo) yem de servus € manor (dominio) do latin mansus. logia das 126 PERRY ANDERSON mendagio” meio coercitiva a guerreiros de clas. O sistema legal e cons- titucional ‘desenvolyido na Idade Média era hibrido da mesma forma. . Uma justiga de carater realmente popular e uma tradigio de obrigagées formalmente reciprocas entre governantes e governados numa comuni- dade tribal ptiblica deixaram marca muito difundida nas estruturas juridicas do feudalismo, mesmo quando as cortes populares n&o sobre- yiveram, como aconteceu na Franga. O sistema de propriedades que surgiu mais tarde nas monarquias feudais deveu muito a este Ultimo, em particular. Por outro lado, o legado romano de uma lei codificada e escrita foi também de importdncia central para a sintese juridica espe- cifica da Idade Média; a heranga conciliar da Igreja Crista classica foi também sem diivida decisiva para o desenvolvimento do sistema de propriedade.” No auge da forma de governo medieval, a instituigdo da propria monarquia feudal representou inicialmente um amalgama mu- tavel do Nder de guerra germanico, semi-eletivo ¢ com fungdes secula- res rudimentares, e o governante imperial romano, que era um auto- crata sagrado de ilimitados poderes e responsabilidades. : O complexo infra e supra-estrutural que iria compor a estrutura geral de uma totalidade feudal na Europa teve assim uma dupla ori- gem, depois do colapso ¢ confusdo da Idade Média, Entretanto, uma nica instituigdo abarcou toda a transigio da Antiguidade 4 Idade Mé- dia em continuidade essencial: a Igreja Crista, Ela foi, realmente, o principal e fragil aqiieduto sobre o qual passavam agora as reservas cul- turais do Mundo Classico ao novo universo da Europa feudal, onde a _escrita se tornara clerical. Assunto histérico singular par excellence, cuja peculiar temporalidade jamais coincidiu com a de uma simples se- qiéncia de uma economia ou forma de governo 4 outra, mas que se justapés e sobreviveu a muitas em seu préprio ritmo, a Igreja nao re- cebeu nunca uma teorizacio dentro do materialismo histérico."" Aqui nao se pode fazer nenhuma tentativa para remediar esta omissio, Mas (10) Hinize enfatiza esta filiagiio em sew ensaio “Weltgeschichtliche Bedingungen der Reprisentativverfassung”, em Otto Hintze, Gesammelte Abhandlungen, vol. 1, Leip- tig, 1941, pp. 134-135. (11) Safda de uma minoria étnica pés-tribal, triunfante no final da Antiguidade, dominante no feudalismo, decadente e renascendo no capitalismo, a Igreja Romana so: breviven a qualquer outra instituigdo — eultural, politica, juridica ou lingiiistica — his- toricamente coeva. Engels fez uma breve reflexio sobre sua longa odisséia em Ludwig Feuerbach and the End of German Classical Philosophy (Marx-Engels, Selected Works, Londres, 1968, pp. 628-631; mas limitou-se a registrar a dependéncia de suas mutagdes sobre as da histéria geral dos modos de produgio. Sua propria autonomia ¢ adaptabi lidade regional ~ extraordinaria para quaisquer padroes comparativos — ainda tém de ser seriamente exploradas. Lukaes acreditava que ela estivesse numa relativa permanén- PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO 1 4 silo necessfrios alguns comentarios breves sobre o significado de seu { papel na transi¢iio da Antiguidade ao feudalismo, j4 que isto tem sido alternativamente exagerado ou negligenciado em muitas discuss6es his- térieas da época. No final da Antiguidade, a [greja Crista, como ja | vimos, contribuiu indubitavelmente para o enfraqhecimento dos pode- res de resisténcia do sistema romano imperial. Conseguiu isto, nao des- moralizando doutrinas ou valores extramundanos, como acreditavam os historiadores do Iluminismo, mas por seu absoluto peso temporal. O vasto aparato clerical que ela desovou no tiltimo Império foi uma das \ principais razSes'da sobrecarga parasitica que exauriu a economia sociedade romana. Foi ainda agregada uma segunda superburocracia ao j4 opressivo Snus do Estado secular. Por volta do século VI, os bis- { pos eo clero no Império remanescente eram em muito maior nimero i que os agentes administrativos e funcionarios do Estado, e recebiam | salarios consideravelmente mais altos. A carga intolerdvel deste edifi- ‘cio desequilibrado foi uma determinante central do colapso do Impé- rio. A tese clara de Gibbon de que o cristianismo foi uma das causas fundamentais da queda do Império Romano — um resumo final ex- pressivo do idealismo iluminista — desta maneira permite uma refor- mulacio materialista nos dias de hoje. Ainda assim, a Igreja foi também o terreno movedigo dos pri- meiros sintomas da libertagiio de técnica e cultura a partir dos limites de um mundo construido sobre a escraviddo. As realizagdes extraor- dinarias da civilizagio greco-romana haviam sido propriedade de um pequeno estrato governante, inteiramente divorciado da producgao. O trabalho manual era identificado com a servidio e era eo ipso degra- dante. Economicamente, 0 modo de produgio escravo leyou a estagna~ ¢ko técnica: ndo havia estimulo para técnicas que economizassem 0 trabalho. Assim, a tecnologia alexandrina, como vimos, persistiu atra- vés de todo o Império Romano: foram feitas poucas invengoes signifi- cativas, ¢ nenhuma jamais foi aplicada extensivamente. Por outro lado, _ culturalmente, tornou possivel a iluséria harmonia entre o homem e 0 universo natural que marcou a arte e a filosofia de grande parte da Anti- guidade classica: 0 estar inquestionavelmente isento do trabalhocrauma das precondigées 4 sua serena auséncia de tensio em relagao 4 natureza. cia do homem em relagio A natureza, invisivel substrato do cosmos religioso. Mas ele nunca se aventurou a mais do que tocar na questo. Ver G. Lukécs, History and Class Consciousness, Londres, 1971, pp. 235-236. (12) Jones, The Later Roman Empire, vol. 11, pp. 933-934, 1046. 18 PERRY ANDERSON Alabuta da transformagio material ou mesmo de sua supervisio geren- cial era um substrato consideravelmente excluido desta esfera. A gran- deza da heranga cultural e intelectual do Império Romano nio foi acompaithada apenas de uma imobilidade técnica: ela estava resirita por suas préprias precondi¢des A camada mais fina das classes gover- nantes provinciais e metropolitanas. O indice mais notavel de sua limi- tagio verticalizada foi o fato de que a grande massa da populagao no Império pagiio nfo conhecia o latim. A prépria lingua do governo e das letras era monopdlio de uma pequena elite. A ascensio da Igreja Crista foi o que primeiro assinalou uma subversio e alteragiio deste padrio. O cristianismo rompeu a unido entre o homem e a natureza, entre o espi- rito e o mundo carnal, potencialmente distorcendo 0 relacionamento entre os dois em direcdes opostas e atormentadas: 0 ascetismo e o ati- vismo. De imediato, a vitéria da Igreja no final do Império nada fez? para alterar as atitudes tradicionais em relagio A tecnologia ou a escra- viddo. Ambrésio de Milao expressou a nova opiniao oficial ao conden. ar como. impias até as puramente tedricas ciéncias da astronomia e da geometria: “Nao conhecemos os segredos do imperador e mesmo assim reivindicamos conhecer os de Deus”’.!1 Os Padres da Igreja, de Paulo a Jerénimo, também aceitavam de modo uninime a escravidio, apenas aconselhando os escravos a serem obedientes a seus senhores, € os’ se- nhores a serem justos com seus escravos — a verdadeira liberdade nio seria encontrada neste mundo, de qualquer maneira...!5 Na pratica, a (13) Esta ruptura, naturalmente, nao era peculiar 4 nova religidio, mas esiendeu- se 20 paganismo tradicional também. Brokes o evoca caracteristicamente: “Depois de geragées de aparente satisfarer a atividade publica, era como se uma corrente que pas sasse suavemente da experiéncia interior do homem ao mundo exterior tivesse sido cor- tada, O calor sugado do meio ambiente familiar... A mascara cléssica jf no servia mais 20 aparecimento do vulto indistinto do centro do universo”. The World of Late Ant quity, pp. S1-52. Mas, como ele mostra, a resposta pagi mais intensa a isto foi o neopla- tonismo, tiltima doutrina de reconciliagio interior entre o homem ¢ a natureza, primeira sensual, redescoberta ¢ apropriada em outra época pelo Renascimento. A. Thompson, 4 Roman Reformer and Inventor, Oxford, 1952, pp. teoria da bel a4) 44-48, (5) Engels observou ironicamente que “a cristandade é perfeitamente inocente ste gradual desaparecimento da escravidao. compurtithado os frutos dit vidio no Império Romano por séculos e afinal nada fez para impedir 0 comér cm escravo de cristtes”, Manc-Engels, Selected Works, p. 570. Este julgamento foi nente peremptorio, como se pode ver da andlise sutil de Bioch sobre aati xem “Comment et Pourquoi init MEscliage Antique?” (esp. pp. 37- W substanela, as conefusdes de Bloch nao divergem muito das de Engels, apesar Ses mais recentes e confir titudes crisis primitivas em relagio & eseravidio, ver Westermann, The terns af Greek and Roman Antiquity, pp. 149-162; A. Hadjinicolaou-Marava, vu ta Vie des Exclaves dans fe Monde Byzantin, Atenas, 1950, pp, 13-18 Gunde ata Tyr Ht Masse Le nee PA, SAGENS DA ANTIGUIDADE AO FFUDALISMO 129 Ipreja destes séculos era muitas yezes uma grande proprictaria insti- tucional de escravos, e seus bispos, quando fosse 0 caso, poderiam ir a0 enealgo de seus direitos legais sobre uma propriedade fugitiva com um pouco mais do que um zelo punitivo comum."* Entretanto, 4 margem do préprio aparato eclesidstico, o cresci- mento da vida monaca! apontava para uma possivel diregio diferente. Os camponeses egipcios tinham uma tradicao de eremitério solitario no deserto, ou anachoresis, como forma de protesto contra a coleta de im- postos ou outros males sociais; isso foi adaptado por Anténio numa reli- giosidade anacoreta ascética no final do século II! d.C. Foi entio de- senvolvido por Pacdmio no inicio do século IV na forma de cenobitismo comunal nas Areas cultivadas proximas ao Nilo, onde eram recomen- dados 0 trabalho agricola e a leitura, assim como a prece eo jejum:.” no ano 370, Basilio reuniu o ascetismo, o trabalho manual e a instrugdo intelectual num regulamento monastico pela primeira vez. Entretanto, embora esta evolugao possa ser vista retrospectivamente como um dos primeiros sinais de uma Jenta maré de mudanga nas atitudes sociais em relag¢io ao trabalho, o desenvolvimento da vida monacal no final do Império Romano apenas agravou o parasitismo econémico da Igreja, afastando ainda mais a mio-de-obra da produ¢io. Nem teve também dai em diante qualquer papel especialmente t6nico na economia bizan- tina, onde o monasticismo oriental logo se tornou contemplativo na melhor das hipéteses, e, na pior, ocioso e obscurantista. Por outro lado, transplantado ao Ocidente, e reformulado por Benedito de Nurcia du- rante as sombrias profundezas do século VI, 6s principios mondsticos revelaram-se organizacionalmente eficazes e idcologicamente influen-~ ciadores da Idade Média em diante. Nas ordens monasticas do Oci-~ dente o trabalho manual e o intelectual estavam unidos providencial- mente a servigo de Deus. O pesado trabalho agricola adquiria a digni-- dade do culto divino, e era desempenhado por monges letrados: labo- rare est orare. Com isto caia uma das barreiras 4 invengio técnica e ao progresso, Seria um erro atribuir esta mudanga a qualquer poder auto- suficiente dentro da [greja “— 0 curso diferente dos acontecimentos no (16) Por exemplo, ver Thompson, The Goths in Spain, pp. 305-308, (17) D. J. Chitty, The Desert a City, Oxford, 1966, pp. 20-21, 27. 6 lame que 0 que aparenta ser o tnico estudo recente completo dos primérdios do monasticismo seja to obtusamente devocional na abordagem. Os comentirios de Jones sobre o registro misturado do monasticismo no final da Antiguidade sto agugados ¢ pertinentes: The Later Roman Empire, 1, pp. 930-933. (18) Este € 0 defeito principal do ensaio de Lynn White, “What Accelerated Technotogical Progress in the Western Middle Ages?”, em A. C. Crombie (ed.), Scien tifie Change, Londres, 1963, pp. 272-291 — uma arrojada exploragao sobre as conse PERRY ANDERSON Oriente e no Ocidente apenas seria o bastante para deixar claro que foit todo 0 complexo dos relacionamentos sociais, ¢ nio a prépria institui- ¢4o religiosa em si, que definitivamente fixou os papéis econdmicos e culturais do monasticismo. Sua carreira produtiva sé poderia iniciar uma vez que a desintegracio da escravidio classica houvesse liberado os elementos para uma outra dindmica, a ser completada com a forma- Go do feudalismo. E a flexibilidade da Igreja nesta dificil Passagem que impressiona, e naoo seu rigor. Ao mesmo tempo a Igreja, sem a menor duvida, também foi di- retamente responsavel por uma outra formidavel transformagio si- lenciosa nos titimos séculos do Império. A propria vulgarizacio e cor- tup¢do da cultura classica, que Gibbon denunciaria, era na verdade par- te de um gigantesco processo de assimilagdo e adaptacio dessa cultura Por uma populacao mais vasta, que iria arruind-la e salvaguarda-la no colapso de sua infra-estrutura tradicional. A mais impressionante ma- nifesta¢do desta transmissio foi ainda outra vez a da linguagem. Até o século III, os camponeses da Galia eda Espanha falaram suas préprias linguas célticas, impermeaveis a cultura da classe governante classica: qualquer conquista germanica dessas provincias a esta altura teria con- seqiiéncias incalculiveis para a Histéria da Europa mais tarde. Com a cristianizagao do Império, os bispos eo clero das provincias ocidentais, assumindo a conversio da massa da populagdo rural, latinizaram per. manentemente sua fala durante os séculos IV e V." As linguas rom: ncias do sistema monastico, em alguns aspectos superior a seu Mediaeval Technology and Social Change, em que a técnica nao é apresentada como a primeira causa histérien, mas pelo menos esta ligada a instituicdes sociais. A afirmagio de White da importincia da desanimizacio ideoligica da natureza pela eristandade como uma condigio prévia de suas transformagdes tecnoldgieas subseqientes parece sedutora, mas ele passa por cima do fato de que o Ista era responsavel por uma ainda mais decisiva Entzauberung der Welt pouco depois, com nenhum impacto notive! sobre a tecnologia muculmana. O signifi- ¢ado do monasticismo como um solvente premonitério do sistema de trabalho classic nao deveria ser exagerado. (19) Brown, The World of Late Antiquity, p. 130, Este trabalho em muitos as- Peetos & a reflexdo mais brilhante em muitos anos sobre o fim da época classica. Um de seus temas centrais é a erlatividade vital da transmissio adulterada da cultura classica pela cristandade, que produziu a tipica arte do final da Antiguidade, a ordens sociais mais ® eras posteriores. O aviltamento social ¢ intelectual foi a provacao salutar que a salvou. A semelhanga entre este conceito, muito mais poderosamente expresso por Brows! do que par qualquer outro escritor, ea nogio tipiea de Gramsci do relacionamento entre © Renascimento ¢ a Reforma, é notavel. Gramsci acreditava que o esplendor cultural do Renascimento, o refinamento de uma elite aristocrética, teve de tornar-se grosseiro ¢ embacado no obseurantismo da Reforma, de maneira a passar As massas ¢ assim ress. sir Finalmente sobre fundamentos mais amplos e mais livres. I Marerialismo Storico, Turim, 1966, p. 85 PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO. 1 nas foram 0 efeito desta popularizagao, um dos elos sociais mars essen- is de continuidade entre a Antiguidade e a Idade Média. As conse- qgiéncias de uma conquista germianica destas provincias ocidentais sem sua anterior latinizagio deve apenas ser encarada pela importincia momentosa que seria evidente no caso de ser realizads Esia realizactio essencial da Igreja primitiva indica seu verda- deiro lugar e fungo na transigao ao feudalismo. Sua eficdcia auténoma nao seria encontrada na esfera das estruturas de relagdes econdmicas ou sociais, onde As vezes tem sido equivocadamente procurada, mas na esiera cultural acima destas relagdes — em toda sua limitagiio e imen- sido. A civilizagio da Antiguidade clissica foi definida pelo desenvol- { vimento de superestruturas de sofis icagdo e complexidade sem prece- dentes sobre estruturas materiais de uma relativa rusticidade e simpli- cidade: existe sempre uma desproporeio dramatica no mundo greco- romano entre o exagerado firmamento intelectual e politico eo aca- \, nhado mundo econémico que Ihe era subjacente. Quando chegou o ~ colapso final, nada era menos Obvio que o fato de que esia heranga Superestrutural — agora impossivelmente distanciada das realidades sociais imediatas — iria sobreviver a ela, embora de forma comprome- tida. Era necess4rio um recipiente especifico para isto, suficientemente distanciado das instituicdes classicas da Antiguidade e ainda assim moldado por elas, e por isto capaz de fugir ao desmoronamento geral para transmitir as misteriosas mensagens do passado ao futuro pré- ximo. A Igreja desempenhou objetivamente este papel. Em certos as- pectos essenciais, a civilizagado superestrutural da Antiguidadé perma- neceu superior 4 do feudalismo por um milénio — até a época em que passou a chamar-se conscientemente de Renascimento, para assinalar a regressAo que se interpunha. A condigio para este poder omisso atra- vés dos séculos caéticos e primitivos da Idade Média foi a resisténcia da -Igreja. Nenhuma outra transi¢do dindmica de um modo de produgio a outro revela a mesma obliqiiidade em seu desenvolvimento superestru- tural: nenhuma outra transigio engloba uma institui¢to de aleance | comparavel. A Igreja foi a indispensdvel ponte entre duas épocas, numa pas- agem “‘catasirOfica’’ € niio “eumulativa” entre dois modos de produ Gao (cuja estrutura assim diferia necessariamente in toto da transi¢io entre 0 feudalismo eo capitalismo). Significativamente, foi o mentor oficial da primeira tentativa sistemdtica de fazer “renascer" 0 Império } no Ocidente — a monarguia carolin { « mega a historia do feudalismo propriamente dito. Este esforco macico ideoldgico © administrative de “recriar’ 0 sistema imperial do velho I ee gia. Com o Estado Carolingio, eo-> PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO 133 1? PERRY ANDERSON Mundo Antigo, na verdade, por uma inversio caracteristica, incluia ¢ ocultava o involuntario assentamento das fundacdes do novo. Na era foram dados os passos decisivos para a formagao do feuda- carolingia lismo. A imponente expansao da nova dinastia franca forneceu, entre- ~ tanto, pouca sugestio imediata de seu legado definitive & Europa. O tema manifesto dominante era a unificagao polftica e militar do Oci- dente. A derrota dos Arabes em Poitiers, em 733, infligida por Carlos Aartel, deteve o avango do Isla, que acabara de absorver o Estado visigodo na Espanha. Dai em diante, em trinta répidos anos, Carlos Magno anexou a Italia lombarda, conquision a Saxdnia e a Frisia e incorporou a Catalunha. Tornow-se entio o tinico governante do conti- ‘ymente cristdo além das fronteiras de Bizncio, com excegao do inaces- © sivel litoral das Astiirias. No ano 800, ele assumiu: 0 titulo — extinto ha muito — de imperador do Ocidente. A expansio carolingia nao foi um simples acréscimo territorial. Suas reivindicagSes imperiais correspon- deram a um verdadeiro renascimento administrativo e cultural através dos limites do Ocidente continental. O sistema de cunbagem de moe- las foi padronizado, e recuperado seu controle central. Em muito prd- xima coordenagio com a Igreja, a monarquia carolingia patrocinou uma renovacao da literatura, filosofia, arte e educacdo, Missdes religio- sas eram enviadas as terras pagas além do Império. A grande nova ~ zona de fronteira da Germania, ampliada pela sujei¢do das {ribos saxd- nicas, pela primeira vez foi cuidadosamente atendida e sistematica- mente! convertida — um programa facilitado pela mudanga da corte carolingia mais para o leste, em Aachen, a meio caminho entre o Elba ¢ © Loire. Além disto, uma rede administrativa elaborada e centralizada desceu sobre toda a massa, da Catalunha a Schleswig e da Normandia a Estiria. Sua unidade basica era o condado, derivado da yetha civitatis romana. Nobres de confianga eram nomeados condes com poderes ju- / dictais e militares para governar estas regides, numa clara e firme dele- el pelo imperador. Havia uns gagho de autoridade publica, revogé 250 a 380 destes agentes’ pelo Império; eles ndo tinham salario, mas recebiam uma porgao dos rendimentos reais locais e dotes em terras no condado.” As carreiras cortesis no estavam confinadas a um tnico distrito qualquer: um nobre competente podia ser transferido sucessi- vamente a diversas regides, embora na pritica as revogagdes ow mu- dangas de condado nao fossem freqiientes. Os cruzamentos por casa- (20) F. L. Ganshof, The Carolingians and the Frankish Monarchy, Londres, 1978, p94 mentos & a migragao de familias proprietarias de terras das varias re- gides do Império criaram uma certa base social para uma aristocracia “supra-Gtnica”’ imbuida com a ideologia imperial.” Ao mesmo tempo, ~ o sistema regional de condados estava sobreposto por um grupo central menor de magnatas clericais e seculares, oriundos principalmente da Lorena e da Alsfcia, muitas vezes até mais proximos do circulo pessoal do proprio imperador. Estes proporcionaram os misst_dominicé, uma _ reserva méyel de agentes imperiais diretos enviados como plenipoten- cldrios para lidar com problemas especialmente dificeis ou reclamagdes em provincias distantes. Os miss? se tornaram uma instituigfo regular do governo de Carlos Magno a partir do ano 802; tipicamente enviados aos pares, cada vez mais passaram a ser recrutados entre os bispos abades, para isolé-los das pressdes locais em suas missdes, Foram cles que no principio garantiram a integragio efetiva da imensa rede cor- tesa. Passou-se a fazer um uso crescente de documentos escritos, em esforsos para melhorar as tradigdes de total iliteralidade herdada dos merovingios.” Na pratica, sempre havia brechas ¢ atrasos neste maqui- nario, cujo funcionamento era sempre extremamente lento e desaje- tado, na auséneia de alguma burocracia palatina séria para proporcio- nar uma integragio impessoal do sistema. Contudo, dadas as condigdes la Epoca, os objetivos e a escala dos ideais administrativos carolingios foram uma realizagao formidavel. As inovagses embriondrias reais deste periodo, entretanto, esto” em outra parte — no surgimento gradual das instituicdes fundamentais do feudalismo subjacentes ao aparato do governo imperial. A Galia merovingia conhecera o juramento de lealdade ao monarca reinante ¢ a concessdo de terras aos Hobres seividores. Mas éstes’nutica estavam combinados num sistema tinico ou significativo. Os governantes mero- vingios habitualmente distribufam propriedades diretamente a parti- Garios leais, recorrendo ao termo eclesidstico beneficium para tais doa- Goes. Mais tarde, muitas das propriedades assim disiribuidas foram confiscadas da Igreja pela linhagem dos Arnolfos com o objetivo de reerutar tropas adicionais para seus exéreitos;” enquanto isso, a Ipreja era compensada com a introdugao do dizimo por Pepino III, doravante a tinica forma mais aproximada a uma taxagao geral no reino franco. Mas foi a época do préprio Carlos Magno que anunciou a sintese critica entre as doagées de terras e as ligagdes de servign. No decorrer do sé- (QU) Hi. Fiehtenau, The Carolingian Empire, Oxford, 1987, pp. 110-113. (22) Ganshof, The Carolingians and the Frankish Monarchy, pp, 125-135. (23) D, Bullough, The Age of Charlemagne, Londres, 1965, pp. 35-16. Id PERRY ANDERSON culo VIL, a vassalagem (homenagem pessoal) e 0 beneficio (conce: de terras) lentamente fundiram-se, ao passo que, durante o século TX, 0 beneficio, por sua vez, se tornou cada vez mais assimilado honra (oficio ¢ jurisdig¢io publica).* Desde entao, as concessdes de ter- ras pelos governantes deixaram de ser doagdes, para totnarem-se arren- damentos condicionais, mantidos em troca de servigos juramentados; € as posigSes administrativas inferiores com isso tendiam a equiparar- se-Ihes legalmente. Uma classe de vassi dominici, imperador, que recebiam seus beneficios diretamente de Carlos Magno, agora se desenvolvia no campo, formando uma classe proprietaria de local disseminada por entre as autoridades cortesis do Império. is que proporcionavam o niicleo do exército caro- terras Eram estes vasst re: lingio, chamado ano apés ano para servigo nas constantes campanhas de Carlos Magno no exterior. Mas o sistema se estendia bastante além da direta lealdade ao imperador. Outros vassalos eram beneficidrios de principes, que por sua vez eram vassalos do governante supremo. Ao mesmo tempo, imunidades legais, inicialmente peculiares A Igreja — isengdes juridicas concedidas com base nos eddigos germanicos hostis no inicio da Idade Média — comecaram a estender-se aos guerreiros se- culares. Dai por diante, os vassalos equipados com tais imunidades estavam imunes 4 interfergncia da corte em suas propriedades. O re- sultado desta evolugdo convergente foi o surgimento do “feudo”, como uma concessio de terra delegada, investida de poderes juridicos e poli- ticos, em troca de servigo militar, O desenvolvimento militar, pela mesma época, com a cavalaria pesadamente armada, contribuiv para a consolidagao deste novo vinculo institucional, embora nao tenha sido responsdvel por seu aparecimento. Levou um século para que o sistema feudal se tornasse amoldado e enraizado no Ocidente; mas seu niicleo inequivoco era ja visive! durante o dominio de Carlos Magno. Entretanto, as constantes guerras do reino tendiam cada vez mais a oprimir a massa da populagio rural. A condigio prévia do campe- sinato guerreiro livre da sociedade germanica tradicional havia sido 0 cultivo mével, e as guerras eram locais e sazonais. Uma vez estabilizada a colonizagio agricola e tendo as campanhas militares se tornado de maior alcance e mais demoradas, a base material para uma unidade social de futas ¢ cultive estava inevitavelmenie quebrada. A guerra se tornou a prerrogativa distante da cavalaria nobre, enquanto um cam- { para manter um ritmo perma- pesinato sedentario trabalhava em ca (24) L. Halpen, Charlemagne et I'Empire Carolingien, Paris, 1949, pp. 198-206, 486-493; Boutrache, Sefgneurie et Féodalité, 1, pp. 150-159. vassalos diretos do, MA \ PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO. 138 nente de lavouras, desarmado e sobrecarregado com o abastecimento para os exércitos reais. O resultado foi uma deterioragdo geral na posigio da massa da populagdo agraria. Assim, foi também neste pe- riodo que tomou forma a unidade feudal caracteristica de producdo, cultivada por um campesinato dependente. O Império Carolingio era,” na pratica, um imenso trato de terra fechado, com um minimo comér- cio exterior (apesar de suas fronteiras com o Mediterraneo e o Mar do Norte) e com uma circulagiio de dinheiro morosa: a resposta econdmica ao isolamento foi o desenvolvimento de um sistema senhorial. A villa do reino de Carlos Magno ja antecipava a estrutura do senhorio do inicio da [dade Média — uma imensa propriedade autarquica com- posta de uma mansio senhorial e uma multiddo de pequenos lotes cam- poneses. O tamanho destes dominios nobres ou clericais era muitas vezes bastante consideravel — de uns 800 a 1 600 hectares de extensio. A produgao agricola permanecia extremamente baixa; mesmo propor- goes de 1:1 eram inteiramente desconhecidas, tio primitivos eram os métodos de cultivo.® A propria reserva senhorial, 0 mansus indomini- catus, poderia cobrir talvez um quarto da rea total; o restante era geral- menie cultivado por servi ow mancipia instalados em pequenos man- ses. Estes formavam 0 maior volume da fora de trabalho rural depen- dente; embora sua denominagao legal ainda fosse a da palavra romana para “escravo"’, sua condigto na verdade estava agora mais préxima A do futuro “servo” medieval, uma mudanga registrada semanticamente com 0 uso do termo servus no século VIII. O ergastulum desapare- cera, Os mancipia carolingios eram geralmente familias ligadas ao solo, prestando obrigagées em espécie e servigos a seus senhores: exploracdes que possivelmente eram na verdade ainda maiores que as do colonato galo-romano. As grandes propriedades carolingias podiam também conter rendeiros camponeses livres (em manses ingenuiles), prestando obrigagies e servigos, mas sem uma dependéncia servil; no entanto, estes eram bem menos comuns.*? Com mais freqiiéncia, os mancipia seriam reforgados para servigo na casa senhorial por trabalhadores contratados e auténticos escravos como bens méveis, o que ainda nio havia desaparecido de maneira alguma. Dada a ambigua terminologia da époea, é impossivel fixar com alguma preciso o volume real da forga de trabalho eseravo na Europa carolingia; mas, em todo caso, ja (25) Ver as sensiveis observagdes de Duby: Guerriers et Paysans, p. 55 (26) J. Boussard, The Civilization of Charlemagne, Londres, 1968, pp. 57-60; Duby, Guerriers et Paysans, p. 38 (27) R.H. Rautier, The Econonric Development of Mediaeval Europe, Londres, 1971, pp. 44-45 He PERRY ANDERSON foi estimado em torno de 10 a 20 por cento da populaedo rural.28 O sistema de villa naturalmente nao significava que a propriedade em terra se tivesse tornado exclusivamente aristocratica. Ainda subsistiam pequenas propriedades alodiais cultivadas por camponeses livres — pa- genses_ou mediocres —~ enireras grandes faixas de propriedades se- nhoriais. Sua quantidade relativa ainda est4 por ser determinada, embora esteja claro que j4 nos primeiros anos de Carlos Magno, uma parte significativa da populagio camponesa permanecia acima da condigdo servil. Mas as relagdes rurais basicas de produgio de uma nova era estavam dai em diante ficando cada vez mais manifestas. A época da morte de Carlos Magno, as instituicdes centrais do feudalismo jA estavam presentes, sob 0 dossel de um Império centrali- zado pseudo-romano. Na verdade, logo tornou-se claro que a répida > disseminagio dos beneficios e a crescente possibilidade de hereditarie- dade tendiam a minar por baixo todo o canhestro aparato do Estado carolingio — cuja expansio ambiciosa jamais correspondera a suas reais capacidades de integragdo administrativa, dado o nivel extrema- _mente baixo das forgas de produgio nos séculos VIII e IX. A unidade - interna do Império logo desmoronou, entre guerras civis de sucessiio ea cente regionalizagao da aristocracia que o mantivera coeso, Uma* uesexternos j ar € por. ter- yeres ‘preciria divisio tripartite do Ocidente ocorren. perados ¢ selvagens, de todos os pontos cardeais, por 1 "ra, por invasores vikings, sarracenos ¢ magiares, pulverizaram en- 1 imperial de governo cortes’o que permane- lira ) todo o sistema para: cia. Nao existia um exército ou marinha permanente para resi L esies ataques violentos; a cayalaria franca era lenta ¢ desajeitada para s¢ mobilizar; a flor ideolégiea da aristocracia carolingia perecera nas guerras civis. A estrutura politica centralizada legada por Carlos Mag: ) no desagregou-se. Por volta de 850, os beneficios eram hereditarios vittualmente em todas as partes; por 870, os tiltimos missf dominict haviam desaparecido; pelo ano 880, os vassi dominici estavam sujeitos a potentados locais; por 890, os condes j4 haviam se tornado senhores regionais hereditarios.” Foi nas tillimas décadas do século IX, quando bandos vikings © magiares assolavam o continente na Europa Ociden- tal, que o termo feudum (feudo) entrou em uso. Foi entao também que 28) Boutruche, Seigneurie et Féodalité, 1, pp. 130-131; ver também a arpumen- tagdo de Duby, Guerriers et Paysans, pp. 100-103. Ha uma boa andlise da mudanga geral Prange carolingia da escravidao da servidao a uma sitiagio legal em C. Verlinden, “Esclavave dans Europe Médiévate, 1, pp. 133-747 (29) Boussard, The Civilization of Charlemagne, pp. 227-229; L. Mussel, Les In vasions. Le Second Assaut contre l'Europe Chrétienne, Paris, 1965, pp, 158-165 iS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO 137 PASSAGE: tal, que o termo feudum (feudo) entrou em uso} Foi entao também que toda a Franga, particularmente, ficou cheia de castelos e fortificagoes privados, erigidos por senhores rurais sem nenhuma permissio impe- rial, para resistir aos novos ataques barbaros e consolidar o seu po- 1 2O Mesmo tempo uma der local. Essa paisagem cheia de casielos e proteg%o e uma prisfo para a populagao rural. Os camponeses, ja vi- timas de uma sujei¢ado progressiva nos anos finais do reinado de Carlos Magno, marcados pela depressio e por guerras, agora eram levados a uma serviddo generalizada. O enraizamento dos condes e dos senhores focais nas provincias, através do nascente sistema feudal, a consolidacio de suas propriedades senhoriais ¢ a suserania sobre o campesinato pro- yaram ser a pedra fundamental do feudalismo, que lentamente foi soli- fieado por toda a Europa nos proximos duzentos anos. O modo de producio feudal O modo de produgao feudal que surgiv na Europa Ocidental foi caracterizado por uma_unidade complexa. Suas definigdes tradicionais muitas vezes 0 interpretam parcialmente, e tornou-se dificil fazer al- gum relatério sobre a dinaimica do desenvolvimento feudal. Foi um | modo de produ to regido pela terra.e poruma.economia natural, na | qual nem o tral alho nem os produtos do trabalho eram bens, O_prd- dutor imediato — 0 camponés — estava unido ao meio de producto — © solo_—. por uma.especifica relagio social. A formula literal. deste relacionamento era_proporcionada pela defini¢ao legal da servidio — gleba adscripté ou ligados a terra: os servos juridicamente tinham mobi- lidade restrita.' Os. camponeses que acupavam e cultivavam a terra nao eram.seus proprietirios. A propriedade agricola era controlada priva- damente por uma classe de senhores feudais, que extraiam um exce- dente de produgio dos camponeses através de uma relagao politico- legal de coagao. Esta coergio extra-econémica, tomando a forma de servigos, arrendamentos em espécie ou obrigagdes consuetudinarias a0 senhor individual pelo camponés, era exercida tanto na propria terra senhorial diretamente ligada 4 pessoa do senhor, como nas faixas pe- a (2) Cronologicamente esta definigfo legal surgiu muito mais tarde que o fend- meno factual que designava. Foi uma definigao inventada por juristas da lei romana noe séculos XI ¢ XII © popularizada no século XIV, Ver Mare Bloch, Les Caractéres Ori naux de (‘Histoire Rurale Francaise, Paris, 1952, pp. 89-90. Repetidamente encontrare- mos exemplos deste movimento retardatario na codificagio juridica de relagoes econd. mieas e soci —— RY ANDERSON ponés. Seu -nas de arrendamento (ou virgares) cultivadas pelo exploragio ¢ silo de seu se- qu cfeito foi neeessariamente um amadlgama de autoridade politica. O camponés estava sujeito A jurisd nhor, Ao mesmo tempo, os direitos de propriedade do senhor sobre apenas de grau: o senhor era investido neles por aria a dever servigos de ondmica © y terra geralmente era um nobre (ou nobres) superior, a quem pa’ cavaleiro — 0 fornecimento de um efetivo militar em tempo de guerra. Em outras palavras, suas propriedades eram mantidas como um feudo. O senhor feudal, por seu lado, muitas vezes seria vassalo de um outro senhor feudal superior,?e a cadeia de tais posses dependentes se esten- deria até o cume do sistema — na maioria dos casos, um monarca — de quem a principio toda a terra, em tiltima instdncia, seria o eminente dominio. Tipicas ligagdes intermedidrias de tal hierarquia feudal no époea, entre o simples senhorio e 0 monarca suscrano, stelania, 0 baronato, o condado ou o principado. A conse- ema era que a soberania politica nunca estava enfo- ado desagregavam-se em integradas as inicio des eram a ¢: qiiéncia deste sis cada num tinico centro. As funcdes do E concessées verticais sucessivas, ¢ a casa nivel estavam integrad relagdes econdmicas e politicas. Esta parcelarizagao da soberania ser constitutiva de todo o modo de producio feudal. Decorriam dela trés caracteristicas estruturais do feudalismo.oci- dental, todas de importancia fundamental em sua dinfimica. Em pri- 1s alde”is comunais ¢ lotes campo- meiro lugar, a sobrevivéncia das ter neses alodiais dos modos de producto pré-feudais ndo era incompativel com 0 feudalismo, apesar de essas formas nto terem sido geradas porele. A divisiio feudal das soberanias em zonas particularizadas, com limites justapostos e nenhum centro universal de competéncia, sempre havia permitido a existéncia de entidades corporativas “alogenas” em seus in- tersticios. Assim, embora a classe feudal tentasse por vezes reforgar a re- gra do nulle terre sans seigneur, isto na pratica jamais foi realizado em nenhuma formagio social feudal: as terras comunais — pastos, campos, florestas — e alddios disseminados permaneceram sempre um setor significativo da autonomia ¢ resisténcia camponesa, com importantes conseqiiéncias para a produtividade agraria total.? Além disso, mesmo QAvy a de homenagem que precedia to: das as outras, em casos onde um vassalo devia fidelidade a muitos senitores. Na p: tica, entretanto, os senhores feudais logo se tornaram sindnimo de qualquer superior feudal, ¢ a vassalagem perdeu sua distingdo original e especifica, Mare Bloch, Feudal Society, Londres, 1962, pp. 214-218. (3) Engels enfutizou sempre, com precisio, as conseqiiéncias sociais das comu- nidades aldeas, integradas pelas terras comuns e pelo sistema de trés campos, na con. salagem era teenicamente uma for PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO. 14s, dentro do proprio sistema senhorial, a estrutura escalar da propriedade era manifestada nao sé pela caracteristica divisdo da terra do senhor em herdades organizadas por seus administradores ¢ cultivada por seus vildes, como também pelas parcelas campesinas, das quais ele recebia um,excedente complementar, ficando, entretanto, a organizagao e con- trole da produgdo nas maos dos préprios vildes.1 Desta maneira, niio havia uma simples concentragao horizontal. das duas classes basicas da economia rural dentro de uma tnica forma de propriedade homogénea. As relagdes de produgiio eram mediadas através de um estatuto agrario dual dentro do senhorio. Muitas vezes ocorria um outro deseompasso entre a justiga a quem os servos estavam sujeitos nas cortes senhoriais de seu senhor e as jurisdigdes senhoriais do senhorio territorial. Os dominios nao coincidiam nermalmente com uma tinica povoagio, mas estavam distribuidos através de certo ntimero de yilas; portanto, in- versamente, poderia estar entrecruzado em determinada aldeia um certo nimero de propriedades de diferentes senhores. Acima deste complicado labirinto juridico, caracteristicamente estava a Aaute jus- tice dos senhorios territoriais, cuja competéncia nfo era senhorial, mas geografica.S A classe camp a extraido o excedente neste sistema habitaya ent&o_um mundo social de direitos @ poderes superpostos, e a propria pluralidade de cujas instancias de explo- ragdo criavam intersticios latentes e discrepancias que seriam insupor- taveis num sistema juridico.e.ecandémico mais unificado. A coexisténcia digo do campesinato medieval. Foram eles, observou em The Origin of the Family, Private Property and the State, que deram 2 classe oprimida, aos camponeses, mesmo sob as mais cruéis condigdes da servidila medieval, uma coesio local ¢ meios para resisténcia gue nem os escrayos da Antiguidade nem os modernos proletérios encontra- ram A mao. Marx-Engels, Selected Works, Londres, 1968, p. 375, Baseando-se no tra- balho do historiador alemao Maurer, Engels erradamente ucreditava que estas comuni- dades, que datavam mesmo do principio da dade Média, era “associagées de marcas"; na verdade, estas Gltimas eram uma inovagio do final da Idade Média, que apareceram pela primeira vez no século XIV. Maso erro nfo afeta seu argumento essencial. (4) Os dominios medievais variavam em estrutura conforme o felativo equilibrio entre estes dois componentes que continham, Em um extremo, havia (poucas) proprie dudes inteiramente devotadas ao cultive senhorial, como as “granjas™ cistercienses cul- tivadas por irmaos leigos; ¢, no outro extreme, havia propriedades inteiramente arren- dadas a foreiros camponeses. Mas o tipo modal era sempre uma combinagdo de terras ¢ arrendamentos, em diversas proporgdes: “esta composigao bilateral do castelo ¢ seus rendimentos era o verdadeiro sinete da tipica mansdo senhorial", M. M. Postan, The Mediaeval Economy and Society, Londres, 1972, pp. 89-94. (5) Hé um excelente relato sobre os tracos basicos deste sistema em B. H. Slicher Van Bath, The Agrarian History of Western Europe, Londres, 1963, pp. 46-51. Onde favam ausentes os senhorios territoriais, como em, geral na Inglaterra, muitas casas senhoriais com uma tnica aldeia deram A comunidade camponesa considerdvel espago patra uma autogestio: yer Postan, The Mediaeval Economy and Society, p. 117. 146 PERRY ANDERSON das terras comunais, alédios e parcelas camponesas com o dominio senhorial era por si constitutiva do modo de produgio feudal na Eu- ropa Ocidental e teve implicagdes criticas em seu desenvolvimento. 7 Entretanto, em segundo lugar e ainda mais.importante, a parce- larizacao feudal de soberanias produziu o fendmeno da cidade medie- val na Europa Ocidental. Aqui novamente a génese da producio de bens de consumo urbano nao deve ser situada dentro do feudalismo em si: naturalmente, ela é anterior a isto. Contudo, 0 modo de producio feudal foi o primeiro a permitir a esia produgSo um desenvolvimento Laut6nomo em uma economia agrria natural. O fato de as maiores cidades medievais jamais tenham rivalizado em dimensiio com as da An- tiguidade ou com as dos impérios asiaticos, muitas vezes tem alenuado a verdade de que sua funcio na formagio social era muito mais avan- sada. No Império Romano, com uma civilizagZo urbana altamente so- fisticada, as cidades estavam subordinadas ao governo de nobres pro- prietarios que viviam nelas, mas nao delas; na China, imensas aglo- meragées provinciais eram controladas por burocratas mandarins resi- dentes num distrito especial segregado de toda atividade comercial. Em feontraste, as cidades modelares cla Europa que praticavam 0 comércio » €as manufaturas eram comunidades autogovernadas, tendo uma auto- nomia incorporada politica e militar isolada da Igreja e da nobreza. Marx viu esta diferenga muito claramente e deu memoravel expressdo a ela: “A histéria antiga € a historia das cidades, mas de cidades ba- seadas na propriedade senhorial ¢ na agricultura; a histéria da Asia €a de uma espécie de unidade de campo e cidade nao diferenciada (a grande cidade, propriamente dita, deve ser encarada simplesmente como um acampamento militar do principe, sobreposto A estrutura eco- ndmica real); a Idade Média (periodo germanico) come¢a com o campo como local da histéria, cujo desenvolvimento continua até a oposigao cidade/campo; a historia moderna é a urbaniza¢aio do campo, ¢ nio -como entre os antigos, a ruralizago da cidade”’.® Assim, uma opo- | si¢do dindmica de cidade e campo s6 foi possivel no modo de pro- | dugao feudal: a oposigao entre uma economia urbana de crescente co- mércio de bens, controlada pelos mercadores e organizada em associa- | gdes e corporagdes, e uma economia rural de troca natural, controlada i pelos nobres e organizada em terras senhoriais e pequenas propricdades, | com enclaves camponeses individuais. Nao 6 preciso dizer que a prepon- _ derdncia deste Gltimo era enorme: o modo de produgio ruralera esmaga- Se (6) Karl Marx, Pre-Capitalist Formations, Londres, 1964, pp. 77-78. PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO. 147 doramente agrario. Mas as leis de sua dinamica eram determinadas pela complexa unidade de suas diferentes regides, e nio pela simples predo- minancia do dominio senhorial. Em terceiro lugar, havia uma ambigiidade ou oscilagao inerente no vértice de toda a_hierarquia das dependéncias feudais. O pico desta cadeia era, em certos aspectos importantes, seu elo mais fraco. A prin- cipio, 0 nivel mais alto da hierarquia feudal em qualquer territério da Europa Ocidental necessariamente era diferente — nao em género — mas apenas em grau, dos niveis subordinados de senhorio abaixo dele, O monarca, em outras palavras, era um suserano feudal de seus vas- salos, aos quais estava ligado por lagos de-feudalidade, e nao um sobe- rano supremo colocado acima de seus stiditos. Seus recursos econdmicos provinham quase exclusivamente dos seus dominios pessoais enquanto senhor, enquanto aos seus vassalos pedia contribuigdes de natureza essencialmente militar. Ele ndo teria acesso politico direto A populacio como um todo, pois a jurisdigdo sobre ela seria intermediada por muitas camadas de subfeudos. Na verdade, ele sé poderia ser o senhor de suas propriedades, sendo, fora delas, uma simples figura decorativa, O modelo acabado de tal forma de governo, em que o poder politico estava estratificado para baixo de tal maneira que seu pice nao de- tinha nenhuma autoridade qualitativamente separada ou plenipo- tencidria de forma alguma, jamais existira em parte nenhuma na Eu- ropa medieval.’ A auséncia de qualquer mecanismo real de integragao no topo de um sistema feudal que implicava este tipo de pelitica impu- nha uma ameaga permanente A sua estabilidade e sobrevivéncia. Uma completa fragmentacao da soberania era incompativel com a propria unidade da classe da nobreza, pois a(potencial anarquia que isto impli- cava era necessariamente disruptiva de todo o modo dé producio sobre © qual repousavam seus privilégios. Assim, dentro do feudalismo havia uma contradigdo ndo-definida, entre sua propria tendéncia rigorosa 4 (7) O Estado fundado pelos cruzados no Levante muitas vezes tem sido conside- fado a maior aproximagio a uma perfeita constituigdo feudal. As edificagdes ultrama. Finas do fendalismo europeu foram criadas ex nihilo num meio ambiente alienigena, ¢ assim assumiram uma forma juridica excepcionalmente sistemAtica. Engels, entre ou. {ros, observou a respeito desta singularidade: “O feudalism ter4 alguma yer correspon- dido este conceito? Fundado no reino dos francos ocidentais, mais desenvalvido na Normandia pelos conquisiadores noruegueses, continuada pelos franco-normandos na Inglaterra ¢ no Sul da Italia, chegou mais proximo deste conceito no efémero reine de Jerusalém, que deixou atras de sia mais elassica expressio da ordem feudal no Tribuncl de Jerusalém", Marx-Engels, Selected Correspondence, Moscou, 1965, p. 484, As realidades praticas até 0 reino cruzado jamais corresponderam a esta codificagao legal de sens juristas baronais, 18, PERRY ANDERSON decomposigio de soberania e a exigéncia absoluta de um centro final » poderia ocorrer uma recomposigao pr A. mo- nto, jamais foi redutivel a uma suserania do rei ico e juridico de autoridade onc narquia feudal, por sempre existiu, em alguma medida, em um Ambito ideoldg situado além daquele das relagdes de vassalagem cujos vértices; alias, poderiam ser ocupados por potentados, duques ou condes, e possuia direitos a que estes ultimos nio podiam aspirar. Ao mesmo tempo, 0 verdadeiro poder real sempre tivera de ser defendido e estendido contra feudal como um todo, em Juta cons: a ela a unidade espontinea da politic tante para estabelecer uma autoridade “piiblica” fora da teia compac das jurisdigdes privadas. O.modo de produgao feudal no Ocidente, por- tanto, originalmente especificava em sua propria estrutura uma tensdo Econtradigo dindmicas em relagio ao.Estado.centrifugo que organi- camente produziu ¢ reproduziu. ~ Talsistema politico, por forga, impedia a existéncia de uma buro- cracia numerosa e dividia as fungdes de dominacdo de_classe.de. novo modo. Por um lado, a parcelizagio da soberania no inicio da Europa medieval também levou a constituigio de uma ordem ideoldgica iso- lada. A Igreja, que no final da Antiguidade estivera sempre integrada A maquina do Estado imperial, ¢ a ela subordinada, agora se tornava uma instituigao eminentemente aut6noma dentro da forma de governo feudal. Unica fonte de autoridade religiosa, seu dominio sobre as cren- gas e valores da massa era imenso; mas sua organizacio eclesidstica era diferente da de qualquer nobreza ou monarquia secular. Devido a dis- persiio da coergio inerente ao feudalismo ocidental que surgia, a Igreja podia defender seus préprios interesses particulares, se necessario, a partir de um reduto territorial, e pela forga armada. Os conflitos insti- tucionais entre um senhorio leigo ¢ 0 religioso eram entdo endémicos no periodo medieval: seu resultado foi uma cisdo na estrutura da legiti- midade feudal, cujas conseqiiéncias culturais para o desenvolvimento intelectual posterior seriam consideraveis. Por outro lado, o préprio governo secular notoriamente foi vazado em novos modelos mais aper- tados. Tornou-se essencialmente o exercicio da justiga, que sob o feudalismo ocupou uma posigao funcional totalmente distinta da que hoje estA subjacente ao capitalismo. A jiistiga era a modalidade central a da forma de do poder politico assim especificado pela propria nature ierarquia feudal, como ja vimos, excluia abso- governo feudal. A pura lutamente qualquer “executivo” no sentido moderno de um aparato de Estado administrativo permanente para reforco da let: a parcelarizagiio da soberania tornava-o desnecessario ¢ impossivel. Ao mesmo tem- po, também nao havia espago para uma “‘legistatura” ortodoxa tipo PASSAGENS DA ANTIGUIDADE AO FEUDALISMO. 149 moderno, pois a ordem feudal nao possuia um conceito geral de ino- vagiio politica pela criagdo de novas leis, Os governantes reais preen. chiam seus cargos preservando as leis tradicionais, e nao inventando novas leis. Desta maneira o poder politico por algum tempo chegou a ser identificado realmente com a fungio meramente ‘“‘judicidria” de interpretar e aplicar as leis existentes. E mais, na auséncia de qualquer burocracia piiblica, coer¢ao e administracao local, os poderes de fisea- lizagio, decisdo, cobrangas de impostos e de fazer cumprir a lei inevi- tavelmente se lhe incorporaram. E ent&o necess4rio lembrar sempre que a “justiga’” medieval incluia um elenco muito mais amplo de ativi- Jades do que a justiga moderna porque estruturalmente ocupava uma posigiio bem mais central dentro de todo o sistema politico. Era este o nome comum do poder.

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