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MARCELO LOPES DE SOUZA igues € Rafael mmanuscrito. Por wralmente, ndo sem sua ajuda, ps de duas telas 1 Espaco geografico, espaco social, organizacdo espacial e produgao do espaco que € 0 espago geogrfico? Em uma primeira aproximasio, pode-se dizer que ele corresponde & superficie terrestre, Veremos, contudo, que Si primeira aproximacdo € muito insuficiente. Se nos limitarmos a ela, sxaremos de perceber diversas sutilezas cruciais, E preciso, antes de prosseguir, fazer uma outra adverténcia. Tem sido al, pelo menos para aqueles que nio sio geégrafos de formasio, tomar o adjetivo “geogrifico” como sinénimo, em primeiro lugar, de algo que diz respeito aos processos e feigdes “naturals” da superficie ter- Festre (formacio do relevo, hidrografia, clima etc.), e apenas secundaria- mente 4 “ocupagio humana”. Essa interpretagio “naturalizante” ndo é descabida, e nio se pode culpar os leigos por permanecerem aferrados a ela; afinal, durante muitas décadas ela foi preponderante no interior da propria disciplina académica denominada “Geografia”, ¢ isso marcou a maneira como os conhecimentos da disciplina chegaram as escolas‘e aos livros didaticos. (05 CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA PESGUISA SOciO-EsPaCiAL | 21 De alguns decénios a esta parte, a maioria dos ge6grafos, ou pelo menos a maioria daqueles identificados com a “Geografia Humana” (¢ que vém se esforgando para serem reconhecidos como cientistas sociais), vem se mostrando grandemente desconfortével com aquele tipo de interpreta¢do tradicional. Nao é & toa que, sob inspiracdo principal mente do filésofo neomarxista Henri Lefebvre," muitos passaram a ver no espago social, e no mais no espaco gengrifico, © conceito central de seu arsenal. Esse tipo de opcio merece, no entanto, algumas pequenas res- salvas. Pode-se entender o espaco social como aquele que é apropriado, transformado e produzido pela sociedade. Com isso, fica claro que no se esti falando de um nivel de abstragio como 0 das conceituagdes de espaco dos matemiticos, dos fisicos ¢ de varios fildsofos (como Immanuel Kant, por exemplo). Assim como o espago geogréfico, em uma primeira aproximagio, corresponde a superficie terrestre, o espago social, aqui, corresponde, também em uma primeira aproximagdo, € que igualmente precisaré ser complementada, & superficie terrestre apropriada, transfor- mada ¢ produzida pela sociedade, (Como ficard claro mais a frente, a adverténcia quanto & insuficiéncia e incompletude da primeira aproxi- macio referente ao conceito de espaco geogrifico tem a ver, sobretudo, com certas peculiaridades do espaco social.) Contudo, no poucas vezes, as sociélogos tém utilizado a expresso “espaco social” em um sentido diferente, A saber, em um sentido que, para um gedgrafo de formagio, soa como metaforico)De fmile Durkheim. a Pierre Bourdieu, “espago social” 6, frequentemente, sindnimo de um, “campo” de atuacio, de uma teia de relagSes ou de posigées relativas em numa estrutura social, sem necesséria vinculagdo direta com um espago Consulte-se, sobretudo, LEFEBVRE (1981) geogrifico concreto, preciso delimitado. Isso, por si s6, a partir de uma perspectiva que se preocupa com o dislogo interdisciplinar (e, quem sabe, até mesmo com o desafio das artificiais fronteiras disciplinares, tendo por horizonte uma tansisplinaridede, para usar uma expresso piagetiana, ‘ou uma adiscipinaridade, sugestivo termo usado pelo ge6grafo Massimo Quaini), jé 6 motivo suficiente para problematizar um pouquinho (0 que nada tem a ver con dscartar!) © conceito de espaco social. Endo € 36 isso. Para um socidlogo de formagio, o vinculo com 0 estudo da natureza muito mais distante ¢ indireto que para um ge grafo. Muito embora as peculiaridades epistemologicas da Geografia venham sendo, ha muito tempo, fator de preocupagio e mesmo anguistia, com muitos gedgrafos “humanos” recusando, nas titimas décadas, classificagio de sua disciplina como algo eclético, na “charneira” entre ciéncias naturais e sociais, seria precipitado e lamentivel ver a densidade ea intensidade da relagio da Geografia com o estudo da natureza como apenas um fardo, um obsticulo, um estorvo. Hlas podem ser uma ver- dadeira riqueza, um trunfo, Depende da maneira como se encararem a8 coisas. Eis que surge, entio, a essa altura, quase inevitavelmente, ao menos para os gedgrafos de formagio, a dilaceramte questio: Geografia ou "\Geografias”? Sera legitimo falar da Geografia como uma eiéncia social, Pura e simplesmente? Ou seré ela, como sempre insistiram os cléssicos, yma '‘ciéncia de sintese”, “de contato”, na “charneira” das ciéncias natu- als ¢ humanas, sendo ambas essas coisas a0 mesmo tempo? Como acabei de dizer, essas interpretagdes vém sendo rechagadas. ‘As ideias da “sintese” ¢ da “ciéncia do concreto”, no sentido tradicional ‘05 CONCLTOS FUNDAMENTAI DA PEsaUsa stcromtsPaciaL | 29 (tal como com quase arrogincia e certa quase ingenuidade professadas, por exemplo, por Jean Brunhes, que implicitamente colocava a Geografia em um patamar diferente das disciplinas “abstratas”), se acham, ha muito tempo, bastante desacreditadas. Ora: outras ciéncias também praticam sinteses, no apenas andlises; e nfo hé ciéncia que repudie, impunemente, © exercicio da construgio teérica, fazendo de uma (pseudo)concretude empirista profisséo de fé. Com tantas necessidades de aprofiundamento, nio de hoje que a resposta dos cléssicas, muito inspiradora decerto, mas um tanto datada, nio mais satisfaz. Entretanto, nio teria o legado que compreende o longo arco que vai de um Carl Ritter ou de um flisée Reclus, em meados ou na segunda metade do século XIX, até um gedgrafo brasileiro como Orlando Valverde, na segunda metade do século XX, sido amplamente renegado em favor de uma compreensio da Geografia (por parte dos geégrafos humanos posteriores a “virada critica” da década de 1970 — mica turn, como preferem os anglo-saxénicos) um pouco exclu- sivista, ainda que largamente correta e fecunda? Nao pretendo “resolver” esse problema secular da “identidade da Geografia", mas vou propor, aqui, duas andlogias, que talvez soem es- wanhas, Milton Santos, com a sua teoria dos “dois circuitos da economia urbana dos paises subdesenvolvidos” (SANTOS, 1979), logrou superar as interpretagGes dualistas, no estilo “setor moderno”/“setor tradicional”, por meio de uma visio dialética da bipolerizagio entre dois “circuitos” (inferior” e “superior") que, apesar de distintos ¢ volta ¢ meia atri- tarem entre si, do, sem embargo, em tiltima instincia interdependentes Arrisco-me a pensar que seria produtivo ver a Geografia de modo seme- Ihante: em vez de traté-la dicotémica e dualisticamente (como se fosse realmente razodvel “descolar” sociedade e natureza uma da outra, ou como se nio se achassem dinamica, processual ¢ historicamente entrelagadas 24 | wanctio vores ve souza de modo complexo), e também em vez de apenas decretar que a Geografia “social” e que a Geografia Fisica é uma ilusio ou um anacronismo, nio seria uma questio de sensatez, mais até do que se simples “tole- rincia”, reconhecer que a Geografia é, diferentemente da Sociologia, da Ciéncia Politica ou da Hist6ria, mas também da Fisica, da astronomia ou da Quimica, epistemologicamente bipolarizada? Dois “polos epistemolégicos"-se abrigam no interior desse com- plexo, vasto © heterogéneo campo denominado Geografia: 0 “polo” do conhecimento sobre a natureza e o “polo” do conhecimento sobre a sociedade. Hi gedgrafos que fazem sua opgao preferencial (¢ tém sua identidade profissional definida) pelo primeiro, © que ters conse- quéncias em matéria de formagio ¢ treinamento tedrico, conceitual e metodolégico; e hi gedgrafos que fazem sua opgio preferencial (e tém sua identidade profissional definida) pelo segundo, o que também terd consequéncias em matéria de formacdo ¢ treinamento teérico, conceitual metodol6gico. E ambas as opc6es sao legitimas, assim como legitimo saudavel sera aceitar que as especificidades metodolgicas, tedricas e conceituais exigem que, para que se possa falar em coopera¢io (ou, no minimo, em respeito miituo), os dois tipos de geégrafos — uns, identi- lariamente herdeiros por exceléncia da tradigao dos grandes gedgrafos- haturalistas, € os outros basicamente identificados com a tradigio de um, estudo da construgio do espago geogrifico como “morada do homem”, desembocando mais tarde na andlise da produgio do espaco pela socie~ dade — possuem interesses ¢, por isso, treinamentos ¢ olhares diferentes, Havendo essa compreensio, base de uma convivéncia produtiva, pode-se chegar, ¢ & desejavel que se chegue, ao desenho de problemas de pes- qiuisa e & construgdo de objetos de conhecimento especificos que pro- movam, sem subordinagdes e sem artificialismo, colaboragio e diilogo. (0S CONCETDS FUNDARENTAIS OA PESQUSA SOcIO-ESPACIAL | 25; Que promovam, pode-se dizer, a unidade na dversdade, sem o sacrificio nem. a primeiza nem da segunda. Gerat-se-iam, com isso, sinayias extraordi- nirias, atualizando-se e modernizando-se, sobre os fundamentos de um esforgo coletivo, 0 projeto intelectual de um Elisée Reclus (ver RECLUS, 1905-1908) © projeto intelectual do grande gedgrafo e anarquista francés, mar- Binalizado pelo mundo universitério durante muttas décadas por motivos Politicos, néo era, diga-se de passagem, exatamente idéntico 20 que se tomou hegeménico nos marcos da Geografia clissica, e que jé trazia em Si, por assim dizer, o bacilo da dicotomizacao, O espirito que se tomou Preponderante no ambito da Geografia cléssica (século XIX ¢ primeira metade do século XX) foi bastante marcado pela contraposisio de uma ““Geografia Fisica’, no estilo de um Emmanuel de Martone e seu famoso Tuamado (DE MARTONNE, 1973) a uma “Geografia Humana" (ou, para os alemies, “Antropogeografia”), no estilo de um La Blache (ou de um Ratzel). No interior desse tipo de concepsio do campo de estudos, a “Geografia Humana” ou “Antropogeografia” se valeria de conhecimentos da “Geografia Fisica”; contudo, a “ eografia Fisica”, desde os tempos do Tratado martonniano, revelava um interesse muitissimo limitado pelo tipo de conhecimento que seus colegas “da Humana” produziam. F isso 86 fez se agravar com o tempo, Diferentemente, Reclus, que no inicio, em sua juventude, até mesmo tomava a Geografia praticamente como sinénimo de “Geografia Fisica"? aos poucos foi recontextualizando Note-se que, em La Tene (RECLUS, 1968-1869:98-9) Reclus diz que a Geografia Hsica caberia cuidar das “harmonias terrestres", sendo que & Histéria (¢ no Geografia!) estaria reservado o papel de analisar as relacdes da humanidade com © planeta. Mesma no primeiro volume da Noutelle Gégraphie Unive, jé de 1876, seus referenciais terminolégicos, embora tivessem se modificado, ainda trafam 26 | wanceto LoPes ve Souza © conhecimento sobre a natureza nos marcos do que passou a chamar dde “Geografia Social” (Géoguphie social), em que sociedade naturcza se acham concebidas como dialeticamente interligadas. A expresso Géoguaphie sociale atuava, em Reclus, ao fim e a0 cabo, como a denominagio de um. conhecimento integrador do espago geogrifico com os seres humanos, sem qualquer respeito de reveréncia por fronteiras disciplinares (basta ver © entrelagamento denso da Geografia com a Historia e outras cifncias dda sociedadle em sua magnifica obra-prima ['Homme et Lo Tere). Embora 0 p com a época em que publicou La Tere — fundamentalmente uma obra de "Geografia Fisica” e com apenas alguns magros capitulos, ao final, sobre © homem e a a¢do humana sobre a natureza (de todo modo, muito mais do que faria, mais tarde, Emmanuel de Martone em seu Tatada!) — fosse ‘a busca da construgio de um saber sobre a relagio entre sociedade e natu- Teza, podemos admitir, pragmaticamente, que éertos gedgrafos, legitima- mente, podem, mesmo nos marcos de uma integra¢o mais profunda, inanter um forte interesse pela construgio de conhecimentos também ncipio norteador do projeto intelectual reclusiano tardio, em contraste sobre a naturer (enguanto epag terreste) sob o eto da sacedade (uma espécie de "cogeografia”, para usar o termo de Jean Tricart) e nao somente sobre a maneira como a socieade conceb ee apropria da natures a trunsforme, transformando «si pripria (a “Geografia Social” sticto sensu). A veia de naturalista poders, Assim, estar legitimamente presente em virios gedgrafos, sem prejuizo de uma visio de conjunto ¢ sem alimentar uma dicotomizagio nefasta, marcada pela hostilidade entre aqueles que deveriam cooperar uns com 0s outros, hitidamente o peso de uma visio naturalizante, pois ele ainda distinguia entre uma Geografia “propriamente dita” (que seria a Geografia Fisica!) ¢ uma "Geografia Historica e Estatitica” (RECLUS, 1876-1894, vol. 1 pp. 7-8) (0S CONCETOS FUNOANENTAS DA PesQUISA SocIO-ESPACIAL |. 27 cf sar em um ciclo Para “integrarmos” esforgos dessa forma nao basta, entretanto, imagi- tris o desconhecimento reciproco para se ingressa 0x0. Creio ser frutifero encarar 0 espago geogrifico, incluindo as facetas primeira natureza” e da “sequnda natureza” (ainda que com o interesse por narmos, abstratamente, que o “espaco” ou 0 “raciocinio espacial”, por si 36, jd uniria, pois a propria maneira como 0 “espago” é construido como: objetohé deser diferente, dafderivando conceitos-chave preferenciais bem distintos: em um caso, bioma, (geo)ecossistema, nicho ecolégico, habitat Wo se confunda inteiramente com a sociedade, ela esti, ao mesmo tempo, na socie- Wile (a materialidade da natureza tansformada pelas relacdes socials); €, quanto a Wocivdacle, mesmo que ela néo se confunda inteiramente com a natureza, ela et, 4) mesmo tempo, na matureza (a dela de natireza como cultural ehistoricamente Jordueida)Tomemos os seguintes pressupostos de um enfoque comtemporineo da Whylo entre soctedade e natureza, a um sé tempo socialmente crtico ¢ (seguindo Ws pogadlas de Reclus) lbertario: 1) a natureza ndo pode ser reduzida a algo pure- Jie exterior 20 homem; 2) a prépria dela de narureza tem de ser recombeca {mo sendo histérico-culturalmente condicionada (mesmo a ideia de uma “natu- Yous primeira”); 3) a “hominizagio” da natureza no pode ser fundamentalmente Jodurida a sua transformacio pela sociedade por meio do trabalho, na base de uma uma vez que é essencial levar em (natural)... Em outro, territério (como espaco politico), lugar (espaco per- " cebido/vivido), bairro.,, Partindo para a minha segunda analogia, poder- se-ta, 4 luz disso, dizer que a Geografia seria uma “confederagdo”, devendo abdicar da pretensa homogeneidade ideologicamente postulada pelos idedlogos de um “Estado-nagi A Geografia & irremedifvel e eston- teantemente plum. Na medida em que os gedgrafos “fisicos” admitam que a propria ideia de “natureza" & histérica e culturalmente construida (ou seja, compreendendo que o conhecimento ecogegiifco s6 adquire pleno sentido a luz da dinémica social) e que a “natureza” que Ihes interessa nio deveria, em diversos niveis, ser entendida em um sentido “laboratorial” illo pritica mais ou menos “desculturalizad 2 : font 0 cnjanto ds dimes das ays ss, nos marcos de imantos eps: que Ako setae significado & natureza e & sua transformacdo material; 4) € preciso com- Preender que, ainda que as relagbes sociais sejam condicionadas, em certo grau, pela “natureza primeira”, esse condicionamento é, sempre, histérica e cultural: tnente relativo (a sujeicdo do homem as “forgas da natureza" varia historicamente e, s}én disso, cada cultura especifica atribui um significado particular a qualquer con ilicionamento; 5) as fronteiras entre natureza ¢ cultura sio reais, mas suas relagdes bp interpenetagSes so cindimeas, uma vez que a tenica constantements influencia (0 imaginirio socal constaemente redefine o que é “natural” © 0 que é “art ficial"; 6) & necessério questionar o ideal moderno de uma “dominagio da natu- feza", o qual trai um compromisso com o imaginério capitalista 20 exterlorizar a htureza dentro de uma concepeio produtivista da histéria, do espago e da soci: dcle que, em um sentido profundo, € antiecol6gica ¢ antissocal,A luz desses pres- supostos, Reclus se sat muito bem no que tange zo primeiro, mas sua abordagem presenta limitagBes a propéstio dos demais (mesmo um pouco no caso do tiltimo,, rellexo da crenga no progresso tipica do século XIX). e “desumanizado” (no miximo recorrendo a conceitos-obstéculo como “fator antr6pico”), e na medida em que os gedgrafos “humanos”, de sua parte, reconhecam que os conceitos, raciocinios e resultados empfricos da Pesquisa ambiental (em sentido estrito) podem Ihes ser muito titeis (arti- culando esses conhecimentos, sejam aqueles sobre ilhas de calor, poluigio ‘ou riscos de desmoronamentos/deslizamentos, aos seus estudos sobre segregacio residencial ou problemas agrérios), em um estilo inscrito, 20 fim ¢ ao cabo, na linhagem da Géographiesocielereclusiana,’ entio deixar-se-& 0 que nio significa que a visio rechisiana de uma dialética entre sociedad e nan- reza (ou, para empregar o par terminol6gico mais fiequentemente utlizado pelo proprio Reclus, entre homer e meio) no necesste ser atualizada ¢ aprimorada, De certa maneira, Reclus tatava a matureza como exterior 4 soctedade, ainda que dela fosse indissociivel. Pode-se propor, em contraste, que, muito embora a natureza 28 | wanceao vores ve souza (0 CONCHTOS FUNDAMENTAS DA PESOUISA SOcia-eSeACAL | 29 aquela subordinado ao interesse por esta iiltima), como um verdadeiro «onctito-matri Marx utilizava, como é sabido, as expresses “natureza primeira” € natureza segunda” para designar, respectivamente, a “natureza natural”, intocada pelo homem (na segunda metade do século XX, o fildsofo Comelius Castoriadis chamaria isso de 0 “estrato natural originério”), ¢ a natureza ji transformada pela sociedade. Entretanto, mesmo ge6grafos de formario parecem desconhecer que o gedgrafo e anarquista flisée Reclus igualmente utilizou as expresses premiéte nature e seconde nature com 08 mesmos sentidos — ¢, ao que parece, tendo chegado a essas nogdes Por conta propria e sem ter sofrido influéncia de Marx. Neste livro, por- {anto, tals expressées serdo associadas aos nomes tanto de Marx quando de Reclus, por uma elementar questio de justiga, © espaco da “natureza primeira”, a rigor, se refére 4 natureza com- pletamente exterior ao homem e nio captada por sua consciéncia. Ora, © simples fato de se observar e estudar a natureza, mesmo dentro de ‘um enfoque “laboratorial”, tipico das ciéncias naturais, j4 implica uma * Reclus utiliza essas expressées ji no primeiro volume de Ia Tere, publicado em 1868. Conquanto ele tenha conhecido Marx e sido até mesmo sondado por ele sobre a possibilidade de traduair Ds Kept para o francs — projeto que nio pros- Perou, porque Marx nfo concordou com a sugesti de Reclus de adaptar ¢ abreviar 2 obra para o piiblico francés —, esse encontro e 0 contato de Reclus com o refe- ‘ido trabalho de Marx s6 se deram no verdo de 1869 (FLEMING, 1988:57-8) Desconheso evidéncias de que Reclus conhecesse bem ou acompanhasse detida. ‘mente a produgio intelectual de Marx anteriormente a esse momento. O mais pro- ‘vivel € que ambos tenhiam chegado is mesmas expressées por terem compattilhado determinadas fontes filos6ficas, como a Natupilouphie de Schelling (o alemo, nio zhos esquesamos, era uma lingua que Reclis, por ter estudado na Alemanka,falava ffuentemente) concepgao (e até uma valoragio) da natureza; ou seja, até essa forma laboratorial” de lidar com a natureza, na qual esta ndo.é diretamente inves- ligada como uma “natureza-para-a-sociedade”, é, também, expressio do fhto inarredével de que, para o homem, a relagdo com a natureza sempre ¢ mediada pela cultura € pela histéria, Pgmaticamente, porém, & possivel entender a “natureza primeira” como correspondendo aos processos € ambientes do “estrato natural”: bacia hidrogrifica, ecdtopo, ecétono. que podem ser e so, muito frequentemente, estudados sem a preo- (upagio priméria de se levar em conta, a0 menos aprofundadamente, a ua relagio com a sociedade (impactos, apropriagdes), sendo o estudo ‘onduzido com base em métodos e técnicas inerentes as ciéncias naturals, JAo espao da “natureza segunda” abrange desde a materialidade transfor- mada pela sociedade (campos de cultivo, infraestrutura, cidades etc.) até ‘08 espagos simbélicos e as projegdes espaciais do poder, que representarn ‘ entrelagamento dos aspectos imaterial e material da espacialidade social. Desse ponto de vista, a natureza que importa ndo é, em primeiro lugar, aquela das forgas naturais (processos fisicos, quimicos e biolégicas, e sin concretizagio como processos de modelagem da superficie terrestre), nas sim a “natureza-para-a-sociedade". Aqui, 0 espago geogrifico é, por- Janto, um espaco verdadeira e densamente social, ¢ as dindmicas a serem Hensaltadas so as dindmicas das relagdes sociais (ainda que sem perder de vista as dinamicas naturals e seus condicionamentos relativos) Feltas essas ponderagdes, ¢ posstvel valorizar 0 conceito de espago socal tom, por outro lado, abrir mio do de espago gegrifco. Da perspectiva da Pesquisa sdcio-espacial, é como se tivéssemos duas “camadas” ou dois nivels de conceitos primordiais, sendo o conceita de espago geogréfico um pouco mais amplo, e o de espaco social (que equivale a uma qualifi- tagilo do de espago geogréfico) podendo ser compreendido como mais espectfico e, a rigor, mais central. Das interfaces do espaco social com as diferentes dimensdes das relagdes sociais emergem os conceitos de terti- Norio, ugar € muitos outros, que podem ser vistos como coneitos driados, Esses conceitos derivados serio objeto de exame ao longo do presente! livro. Comece-se, entio, ainda neste capitulo inicial, com os conceitos de ‘xganizagao espacial e produsio do espago, que também admitem ser entendidos como conceitos derivados do de espaco social Porém, antes de se passar a discussio dos conceitos de organizacio espacial e producio do espaco, faz-se necessirio explicar a razio de eu ter salientado que identificar a superficie terrestre com espaco social (6, por tabela, com o espago geogrifico) constitui somente uma primeirs € Insuficiente aproximacio conceitual. Pormenores serio examinados nos capitulos 4 © 5, quando tratarei, respectivamente, dos conceitos de territrio e lugar. Contudo, 0 bisico pode e deve ser explicado jé agora O espaco social é, a principio, algo material, tangivel, palpével. Campos de cultivo, pastagens; casas, prédios, cabanas, ocas; estradas, rua, vielas, Picadas; barragens, represas, usinas... lista é imensa, quase infinita, Cad uma dessas “coisas” pode ser chamada de um objeto gegrifico particular Muitos ge6grafos, durante geragdes, explicita ou implicitamente asso- claram o espago, exclusivamente, i materialidade, Para Milton Santos, em seu célebre livro Por uma Geografia nova, “o espago é a matéria trabalhada por cexceléncia”; “uma forma, uma forma durével, que nio se desfaz paralela- mente 4 mudanga de processos” (cf: SANTOS, 1978:137, 138). No entanto, sera que a materialidade egota a ideia de espago social? ‘Tomemos, antes mesmo de adentrarmos 0 conceito de territério, aquilo que pode ser denominado a nogio intuitiva de territério, Ela tem a ver com: limites, com fronteiras... enfim, com a projegio, no espago, de um poler que se exerce © que demarca espagos bem diferentes: “mew (nosso) ‘ypago”/“seu espago (espago de vocts)" Os fatores que estimulam essas demarcagdes (econdmicos, estratégico-militares etc.), a maneira como jo chega a clas (argumentagio, negociagio, intimidagio, imposi¢io pela foyga) € 0 modo como elas sio implementadas (menos ou mais exchi- Algntes, menos ou mals soidérias): tudo Isso pode varia tremendaments “Aisin como nio hé um tinico ipo de poder, tampouco ha um tinico {ipo de territério, No entanto, uma coisa permanece: 0 territ6rio, mesmo ‘sondo sempre considerado relativamente a uma poreio material da supei- tie terrestre, niio se confunde inteiramente (ou propriamente) com ela, ‘Tomemos dois exemplos. O primeiro, em escala diminuta, parece brincadeira, mas € uma analogia séria. Dois colegas de escola (ou piversidade) divide, em carter tempordfio (uma aula especial) permanente (todo o ano ou periodo letivo), uma mesa ou bancada. uum deles espalha o seu material (cadernos, livros, canetas, lapi- , borracha...) pela bancada, ocupando um certo espago. Com isso, ‘ot ela esta, no fundo, estabelecendo um territério. Se for uma pessoa quele tipo que, popularmente, € chamado de “pessoa espacosa”, um studantes poderd, intencional ou inconscientemente, acabar ocu- ido um espaco Util bem maior do que aquele ocupado por seu ou colega — digamos, dois tergos da mesa ou bancada. No fundo, para (0, bastaria ele ou ela, por exemplo, posicionar uma de suas canetas ‘mesa de um tal jeito — ea si proprio, com sua cadeira, de uma janeira —, ou utilizar um arranhio no tampo da mesa ou marca da ira como “marco fronteirigo”, que fearla claro que aqueles dois foram “apropriados” por ele ou ela. (“Apropriados”, no caso, é orto abuso de linguagem, j4 que nenbum deles detém a proprielede da ‘ou carteira; cada estudante detém somente o direito a posse, durante H)po em que estiver ali —se bem que, € esse é 0 problema, a pessoa mais “espacosa” nio esteja exercendo a posse det de todo o espaca que ela “reivindica”.) Consideremos, agora, a possibilidade de que d estudante prejudicado nio aceite imposicdes ¢ resolva deslocar a cancta do “espacoso” e reposicionar a sua cadeira ou o seu material. Ao faze “isso, ele (ou ela) modificou a “fronteiza” ¢ criou, potencialmente, tu ~situagdo de tensio. Resta ver se o “espagoso” engoliré o desafio... O qué importa € que, sem alterar uma tinica molécula da mesa ou bancada, @ somente por meio de indicagées simbélicas (uma caneta simbolizande uma divisa, um limite —e, a rigor, nem seria necessdrio usar uma caneti ara isso, bastando o préprio posicionamento do corpo da pessoa), foram definidos territérios. Podemos passar a uma escala mais abrangente, mas mesmo as bem acanhada, como a do trecho de uma rua que “cabe” a um grupa de prostitutas que fazem “ponto” em certo local, & noite. Em determi nado momento, travestis podem resolver fazer “ponto” na mesma rua, comecando a disputar espago com as prostitutas, Estas, depois de u Certo tempo ¢ apés varios incidentes — digamos que as prostitutas so, além de menos fortes, nesse caso hipotético também menos agressivas o “territorialistas” —, clas se deslocavam com desenvoltura ¢ sem serem incomodadas. Sem que a mua, em si mesma (suas érvores, sua calcada, seus postes, suas casas...) tenha sofrido, materialmente, qualquer modificacdo, 0 territério d prostitutas encolheu significativamente, Percebe-se, assim, o quanto a ideia de territ6rio, se levada as tltimas consequéncias, se distingue da de espago social material, Nao digo que: © territério “se separe” completamente da materialidade; afinal, sem: a materialidade para the servir de referéncla (em varios sentidos, nao inte demarcatério), © que seria o territério senio, uma abstracio sya? Entretanto, uma distingao se estabelece € se impde. Uma distingio We realidades entrelagadas, mas em que cada uma mantém uma indivi- Jidade, O interessante, em seguida; é notar que, como projegio espa- uma ielacio de poder, o territ6rio 6, no fundo, em si mesmo, uma {ocial. Mais especificamente, uma relagio socal diretamente espacalzada. hos sugere que a distingdo entre “espaco (Social)”, de um lado, € lagdes sociais”, de outro, no é muito precisa. O espago sé seria facil- e distinguivel das relagdes sociais se ele fosse redutivel 4 materia~ ule, Por exemplo: uma civilizaggo pré-colombiana, como os maias, Iti uma cidade e nela habita por vérios séculos, até 0 momento que, por alguma razio, ela € abandonada e fica vazia. Aos poucos, a de vai sendo encoberta pela selva tropical e caindo no esquecimento, ser “descoberta” por algum arquedlogo ou explorador, pasando a posteriormente, objeto de exame cientifico ¢/ou visitagio turistica ‘ante 0 longo periodo em que esteve “esquecida”, como verdadeira dlade-fantasma”, aquele conjunto de construgdes de pedra se achava Wado das relagdes sociais que a criaram — relagdes de poder in- das, As construgdes foram produzidas pela mao humana, mas as mos unas haviam desaparecido, Ao menos na escala da cidade € de suas Wiyas subdivisées nao havia mais territérios, somente “natureza pri- a" que fora transformada em “natureza segunda” pelos constru- da cidade e que, agora, entregue a si mesma, estava abandonada as smipéries, retornando & condigio de matéria apartada da consciéncia ina, desintegrando-se e reintegrando-se, muitissimo lentamente, 20 ibiente natural circundante, ‘A moral da histéria 6:se disséssemos que o espago social (e, por tabela, \pago geogréfico, em geral) corresponde, sem maiores discusses, a superficie terrestre, haveria sempre a possibilidade de se reduzir 0 espago 4 sua expresso material (crosta terrestre e matéria bruta, além das matérias-primas transformadas pelo trabalho em bens méveis ou imévels). Todavia verificamos, com a ajuda da ideia de territério, que a materlalidade nio esgota o espaco social, e que as préprias relagdes socials sio, em determinadas circunstancias ou a partir de uma deter- minada perspectiva, espago — mesmo que, a rigor, uma certa distinggo entre espaco e relagdes sociais continue sendo itil e valida, Analogamente, 0 mesmo exercicio poderia ser feito com rela¢io & dela de “lugar”. O “lugar”, aqui neste livro, nio é “qualquer lugar”, lum sin6nimo abstrato de localidade; ele & um espaco dotado de signifi ado ¢ carga simbélica, ao qual se associa imagens, muitas vezes con- flitantes entre si: lugar de “boa fama” ou de “mi fama”, hospitaleiro ou erigoso, e assim segue. O lugar é em principio, um espace vivido: vivido, claro, pelos que ld moram ou trabalham quotidianamente, Mas ‘imagens de lugar também sio criadas de fora para dentro, ou entio com base em uma vivéncia mais frouxa, mais esporddica, nio quotidiana. O que é uma’ imagem de lugar? Uma “ideia” (ou.“ideias") e um “sentimento” (ou “sentimentos”), que se expressam por representagdes, por uma topo- nimia, por um conjunto de indicasses (tabus, recomendagoes, digées: inter inio va 18, é perigoso”; “ah, como eu adoraria morar naquele lugar!”...). Uma imagem de lugar (e, no limite, a ideia de “lugar” em: si), assim como um territério, se “decalca” sobre um espaco material, ‘mas ndo se confunde inteiramente com ele. A imagem, de lugar pode se ‘modifica, sem que o espaco, em sua materialidade, tenha se modificado; €0 inverso também é verdadeiro: alteragdes materiais podem nao alterar a imagem de um lugar (podendo, as vezes, no méximo, reforgécla) Uma vez fornecidas as explicagdes necessirias para se completar a expla- 10 bisica dos conceitos de espago geografico e espagd social, podemos passar 4 exposig¢ao dos conceitos de organizagao espacial e produsao do espago. ‘: O que &, afinal, a oxganizagio espacidl? Para Roberto Lobato Corréa, a organizagio espacial é “o conjunto de objetos criados pelo homem e dispostos sobre a superficie da Terra” (CORREA, 1986:55). “[C]onstituida pelo conjunto das imimeras cristali- zagbes criadas pelo trabalho social”, como o autor completa duas piginas adiante (CORREA, 1986:57), a organizagdo espacial tem a ver com a divisio espacial do trabalho, com a disposi¢io e distribuicao espacial da Afraestrutura técnica (malha vidria, redes técnicas de abastecimento de iigua e energia, de esgotamento sanitrio etc.) e social (escolas, postos de hide etc.), com o padrao de segregacdo ¢ autossegregacio residencial, € ysl segue. Também tem muito a ver, por exemplo, com as centralidades (na escala intraurbana — Central Busines District, subcentros de comércio # jervigos — € em escalas supralocais — a rede urbana, vista na escala Hoglonal, nacional ow internacional). _ Porém, 6 muito restritivo limitar a organizacio espacial apenas aos ‘Mobjetos criados pelo homem”, Ainda que a ideia de organizagio (assim ‘tomo as de ordem € desordem) seja, em ditima andlise, subjetiva e cultu- ‘Valmente enraizada, portanto nao fazendo nenhum sentido em relagio. lima “natureza-sem-o-homem" € que nao seja objeto de percepgio it, nio parece muito defensive excluir do conceito de organi- plo espacial formas espaciais nao criadas (mesmo que possam vir a ser wlormadas) pela sociedade. Como descrever ¢ compreender a orga- Ao espacial de ribeirinhos ¢ seringueiros, na Amaz6nia, sem levar Gonta os rios ¢ entender o seu papel? Como descrever e compreender 8 organizacao espacial de caigaras, de faxinalenses ou de quilombolas sem tomar em consideraro o papel de feigdes da “natureza primeira”? Eo mesmo raciocinio se aplica a numerosissimas outras situagdes, ¢ inclusive 4 espagos urbanos, em que — para ficar em um tinico tipo de exemplo — topografia, ocupacdo e segregagao residencial sio indissocidveis uma das outras. Ademais, seria empobrecedor restringir a organizacio espacial tio somente 4 materialidade do espago, ou seja, is estruturas diretamente tangiveis. A malha territorial, com suas fronteiras € divisas, seja entre entidades territoriais estatais (entre blocos internacionais de poder, entre paises, entre estados ou provincias, entre municfpios etc.) seja entre ter- t6rios nio estatais (limites territoriais entre gangues de jovens ou qua- drihas de criminosos, por exemplo), por acaso também nao constituem expressdes de organizagdes espaciais determinadas? ‘A organizagio espacial esti sempre mudando, As vezes, mais rapi- damente; is vezes, mais lentamente. E nio apenas mudando: esta, também, sendo constantemente éesatiada, em diferentes escalas, Para cada “ordem” sdcio-espacial aparecerd, mais cedo ou mais tarde, 20 menos em uma sociedade injusta e heterénoma, um contraprojeto (ou varios contraprojetos concorrentes) que propord ou pressuporé, explicita ‘ou implicitamente, novas estruturas socioespaciais, para agasalhar novas relagdes sociais. A implosio ou corrosio de uma “ordem”, gerando em: certos observadores a impressio de um estado de “desordem”, pode ser vista com pessimismo ou otimismo, dependendo dos interesses, do papel social e, por conseguinte, da perspectiva ou visio de mundo. “Ordem" e “desordem” sio ideias subjetiva intersubjetivamente relativas, ¢ quase sempre aparecem carregadas com forte carga ideoldgica, (a “ordem” é, para muitos, algo bom em si mesma, ¢ a boa “ordem’” 64 “ordem” sécto-espacial em vigor e hegem6nica; a “desordem’, inde- pendentemente de ter origem em protestos legitimos é justas reivindi- ayes, & amitide vista como problemética, porque perigosa, podendo Alé ser vista como patolégica). © planejamento urbano (e regional) pro- movido pelo Estado costuma ser um ‘guardido e reprodutor intelectual ‘de uma visdo altamente ideologizada da ideia de “ordem” (e de ideias Yorrelatas, como “ordenamento”, “gerenciamento” ete.). Os movimentos Aociais emancipatérios, muito especialmente aqueles realmente imbuidos dos princfpios de autonomia e autogestio (¢ “autoplanejamento”, como {enho adicionalmente sugerido), costumam desafiar a ideia hegeménica tle “ordem”, para mostrar, na pritica, que da aparente ou tempordria Mesordem” pode, precisamente, surgir uma nova “ordem” (ou novas “orslens"), menos injusta, desigual e assimétrica, Quanto 4 “produgio do espaco”, de que falamos quando falamos . ‘Trata-se, essa, de uma expressio indescolavel, hoje, da obra de Lefebvre, ‘$i) particular de seu influente livro Le production del'space (LEFEBVRE, 1981) "Weise livro, que dé continuidade a um veio que jé vinha sendo explorado ile obras anteriores (ver, p. ex., LEFEBVRE, 1983), 0 filésofo francés lomatiza o insight sobre a imporcincia crescente da producio do espaco lo somente no espago) para a acumulagio capitalista, Segundo ele, ‘Wa Verdade, a sobrevivéncia do capitalismo dependeria, cada vez mais, sisamente disso. Vale a pena registrar que, na década de 1980, David yj desdobrando a contribuicdo original de Lefebvre, discutiu a rele- ii do que chamou de “eircuito secundério” da acumulagio de capital. W# clreuito é aquele que se vincula nao a produgio de bens méveis, mas A produgio de bens iméveis, isto é, do proprio ambiente construido, ‘tapital imobiliério (fragio do capital um tanto hibrida, que surge da confluéncia de outras fragdes) tem, nas iltimas décadas, assumido mais estritamente econdmica. Com effito, ji por af se descortina a significado crescente na interface com 0 capital financeiro — as veze Jbilidade de ver a “produgio” como sendo nio apenas a produgio com consequéncias globalmente catastréficas, como se pode ver pelo ens materiais (méveis ou iméveis), mas também a produgio sim- papel das “hipotecas podres” na crise mundial que eclodiu em 2008, ici © de relagdes de poder O termo “produg30” & suficientemente E, em todo o mundo — das Docklands, em Londres, a Puerto Madera, lo e plastico para comportar, essa multiplicidade de dimensdes. No em Buenos Aires —, “revitalizar” espacos obsolescentes tem sido um do jlanto, é conveniente lembrar que uma produgio nao é, necessaria~ expedientes principais na criagio de novas “frentes pioneiras urbanas! | uma criagéo radical, no sentido atribuido a essa expressio por ius CASTORIADIS (1975), que foi o mais profundo renovador do jumento Libertario’ no século XX: criagdo de novos signifindos (“sig para o capital. (O uso ostensivo do termo “revitalizacio”, diga-se d passagem, sugere que se esté a presumir ou se quer fazer acreditar qu os espagos a serem “revitalizados” se achavam antes “sem vida", isto {ages imagindrias sociais”, nos seus termos), ¢ a prépria histéria, na “mortos”, além de “deteriorados” — discurso ideolégico que escamo isso, como um processo de autoinstituigdo da sociedade e criagio teia o fato de que, nesses espagos, quase sempre, hi pessoas, via de reg pobres, morando, trabalhando e até mesmo produzindo cultura. Volt Vas significagdes e imaginérios; um processo radicalmente aberto 3 \yencla, A emergéncia do now, ¢ infenso a interpretagdes teleol6gicas, a esse assunto, rapidamente, no Capftulo 10, para propor uma subvers {as (justamente do tipo que infestou © pensamento marxista desde do uso da palayra “revitalizagio",) No Brasil, megaprojetos como o d “Nova Luz”, em Sio Paulo, ¢ 0 do “Porto Maravilha”, no Rio de Janeira se inserem no mesmo contexto de causas e motivagées. Jogo, © nao esteve ausente também do anarquismo cléssico), Uma ulugiio” pode ser, muitas vezes, essencialmente, repetigi, reprodugdo. Por De toda borte; nip ‘existe apenas‘uima dita manelralds thier idoro como liberties, para além das correntes e subcorrentes do anarquismo focalizar a “produgio do espago”. Do predominio de uma visio estreit (ou, como venho propondo,enaguisme cisco, que foi bastante influente na In metace do século XIX ena primeira metade do século XX, mas cujos insights 10a servir de inspiracio para intelectuais ¢ ativistas pelo mrundo afora), oie: 1) as tentativasinternas de renovacio do legedo dos clssicos (emtativas, jie podem ser chamadas de neomarquss) e 2) aquelas vertentes que, mesmo simultaneamente 20 status quo capitalista e 8s premissas e estratégias reflexio lefebvriana (0 pensamento de Marx), varias sio as possibilidad Re cris seng/ comma oepanizapio partidériac a erenga.na posd- Note-se, alids, que é bem verdade que o préprio Lefebvre fez reparos, @ desejabilidade de um "Estado socialista” (oposigio simultinea essa que Ihigir dos ovos, a caracteristica mais essencial da atitude libertéria, em sua ‘viscera is hierarquias rigdas, ao autoritarismo, a hetcronomia), no se veem, mruzlo (Como 0 no compartilhamento de algumas premissas), como da ideia hegeliana de “produgio” em favor de uma interpretagio = como pode ser exemplificado, alts, pelo préprio Castoriadis ‘mente “materialista” (redutora do espago a sua materialidade), e mesimt economicista — 0 que pode ser entendido, inclusive, como uma Iel tura empobrecedora dos insights de Lefebvre —, a uma visio mais abr gente € mais radical, que desafie o préprio pano de fando filos6fico passagem, a um certo reducionismo embutido no pensamento que tornou predominante em Marx, o qual teria eliminado parte da riqu varias razdes, ligadas 4 compreensio da perpetuacio da ordem sécio- espacial vigente, é muito importante reter esse significado de “producio"; mas é igualmente importante, tendo como horizonte a reflexéo critica sobre a realidade, ir além dessa acepeSo, abrindo-se para a reflexio sobre a criagdo em sentido forte.* No presente livro, a produgio do espaco pode se referir tanto a sua (te)produgio, nos marcos do modelo social hegeménico, capitalista e heterénomo, quanto 4 emergéncia de novas significagdes, novas formas © novas praticas (que, em alguns casos, desafiario explicitamente o status quo heterénomo) * Castoriadis, infelizmente, nao revelou, diferentemente de Lefebvre, muita sensic bilidade espacial, ¢ esse pode, inclusive, ser considerado um dos pontos fracos de sua, apesar disso, genial obra, Para ele (que, nesse ponto, se mostrava mais contro= Jado por um preconceito tipicamente marxiano que o proprio Lefebvre!), 0 espago, ontologicamente, seria, basicamente, repeticio, e mio o campo de visualizacio da verdadeira alteridade. Esse privilégio & reservado, de modo bem marxiano (ou. bergsoniano), & histéria (privilégio que nio era, por exemplo, aceito por Michel Foucault). No entanto, Castoriadis estava falando, essencialmente, do tempo dos ‘matemiticos € dos fisicos; somente mais para o final de sua vida € que ele comegou, de forma claudicante, a vislumbrar, no terreno da reflexio propriamente filosé= fica, as possibilidades e particularidades oferecidas por uma reflexia sobre 0 espaco especificamente social (e, entdo, comegou a admitir que também 0 espaco, e nio. somente o tempo, seria um terreno propicio 4 visualizagio da diferenga radical, di alteridade...) 42 | wanceto LoPEs ve Souza 2, Paisagem enhum dos conceitos contidos e discutidos neste livro é trivial ou iN isento de controvérsias, por mais basico que seja. O conceito de July, definitivamente, nfo é uma excesao. Se tomarmos um dos livros que, a partir do comego da década de 1980, foram dedicados por “ gedgrafos fisicos” e bidlogos ao campo cha- Wyado de “Ecologia da Paisagem” (landscape eclogy), verificaremos que a “paisagem” (landscope) & definida de modo tio abrangente que, no fundo, jiaticamente se torna um sindnimo de “espaco geogrifico” (visto através ‘lis lentes de cientistas naturais e engenheiros, bem entendido) ou, sim- ‘lesmente, de “érea” Isso nao seria problema e no se prestaria a certas Wonfusdes nio fosse o fato de que, no ambito da pesquisa scio-espacial, ¥ 4 comesar pela Geografia, o conceit de paisagem tem, tradicional- ‘niente, um escopo mais especifico, ligado, primordialmente, ao epago Es 7 We now can define landscape as a heterogeneous land area composed of a cluster “ul nveracting ecosystems that is repeated in similar form throughout” (FORMAN #GODRON, 1986:11). ‘05 CONCHTOS FUNOAMENTAS DA PESQUISA SBCO-ESFACAL | 43)

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