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A estranha ordem geométrica de tudo

Daniel Soares Duarte

A poesia de Carlos Drummond de Andrade tem sido estudada das mais variadas
formas, desde o início de sua publicação até o presente momento. Drummond é, sem dúvida,
um “clássico moderno”, e ainda um dos poetas brasileiros mais lidos, ou mais reconhecidos,
dentro e fora da academia, embora não tão lido como poderia ser. Os trabalhos de investigação
de sua obra avolumam-se ano a ano, o que mostra, entre outras coisas, a amplitude e a
capacidade de sua poesia de responder questões presentes em momentos históricos diferentes,
para pessoas certamente diferentes. Por outro lado, um grande volume de fortuna crítica
dificulta a inserção total de pontos de vista vários em um único trabalho. Drummond é, ainda,
objeto de estudo. De Antonio Candido a Hélcio Martins, de Donaldo Schüler a John Gledson,
muitos já escreveram sobre Drummond, em trabalhos seminais para a compreensão da poesia
do itabirano. Tal ampliação (de textos teóricos) não encerra a interpretação, por outro lado.
Torna possível desdobrá-la, auxiliando a responder certas questões que se colocam frente à
poesia de Drummond, no decorrer do tempo.
O presente trabalho tem como centro um outro centro: o da poesia drummoniana. Qual
seu foco central, se houver? É certo que procurar um eixo central, seja temático ou formal, em
uma poesia tão extensa quanto a do itabirano, e com uma fortuna crítica igualmente extensa
(e cada vez mais), pode parecer perigoso, dada a incompletude certamente advinda do estudo.
Mas tal incompletude não necessariamente significa erro. Do mesmo modo que em matemática
pode-se chegar a vários resultados com poucos itens à disposição, algum eixo formal-temático
central, ainda que não único, pode ser inferido da análise poemática de um ou poucos itens. No
caso presente, busco um eixo na poesia drummoniana com a análise dos poemas “Sonho de um
sonho” e “Cantiga de enganar”, ambos do livro Claro enigma, lançado em 1951.1 O uso de dois
poemas é parte da estratégia do trabalho: mostrar que não apenas os poemas em si são fontes
de conhecimento do(s) eixo(s) formal-temático(s) de Drummond, mas que também a relação
entre eles propicia um campo de investigação coerente, um modo de expansão para os temas
elencados em cada poema e um terreno onde esses temas se cruzem e formem outros temas. No
caso, sua sequenciação é um processo relevante para melhor se chegar a possíveis cernes.
Há que ter em mente o lugar da crítica, antes de iniciar a análise por si. Partilho do
ponto de vista explicitado por John Gledson, de que a poesia de Drummond é a melhor fonte de
interpretação para ela mesma. Segundo ele, é preciso entender a poesia de Drummond

nos seus próprios termos, e não à luz de qualquer ideologia ou contexto exterior a este
mundo complexo mas coerente. Não cremos que seja a única maneira de abordar a
poesia de Drummond, nem muito menos a literatura em geral, mas cremos que neste
caso é tarefa necessária, talvez sobretudo porque Drummond é nosso contemporâneo,
empenhado no projeto de entender um mundo que também é nosso (mais ou menos). É
preciso entender o que ele diz, sem categorizá-lo a priori como amostra de uma espécie
ou prova de uma teoria filosófica ou literária.2

É preciso ter confiança de que a poesia, de que a literatura em geral, pode dar suas
respostas. É certo que a literatura pode ser abordada por outros campos, do mesmo modo que
constantemente os aborda. No entanto, manter o discurso crítico baseado no literário propicia o
conhecimento das especificidades literárias, e do que elas podem trazer para a compreensão dos
processos humanos. Pois se há especificidades filosóficas, matemáticas ou históricas, também as
há literárias, tais como a necessidade de narrar, ou o uso da metáfora, para remeter a processos
simples. Mesmo “apenas” a literatura já é capaz de dizer muito dobre o mundo daqueles que a
produzem, nas mais variadas instâncias, políticas, sociais e emocionais.
Portanto, o papel da crítica, e da teoria, aqui será o de auxiliar o desenvolvimento da
investigação na relação entre os poemas abordados. Principal é entender o que as conexões
entre as partes visíveis na obra de Drummond podem propiciar para o entendimento tanto da
obra do poeta quanto do mundo que a cerca.
O poema “Sonho de um sonho”3 inicia com uma viagem do eu através de planos ideais,
oníricos e auto-referentes.

Sonhei que estava sonhando


e que no meu sonho havia
um outro sonho esculpido.
Os três sonhos superpostos
dir-se-iam apenas elos
de uma infindável cadeia
de mitos organizados
em derredor de um pobre eu.
Eu que, mal de mim! sonhava.

Em uma dessas cadeias, talvez na última – mas o poema não deixa claro – o eu-lírico
diz o que é sonhado. Os elementos sonhados dentro das camadas de sonho, elencados ao longo
do poema, formarão o corpo dos versos. Já desde o início, aparece certa expressão lamentosa,
no “pobre eu”, e no “mal de mim!”. No longo poema, as estrofes falam do sonho.

Sonhava que no meu sonho


retinha uma zona lúcida
para concretar o fluido
como abstrair o maciço.
Sonhava que estava alerta,
e mais do que alerta, lúdico,
e receptivo, e magnético,
e em torno a mim se dispunham
possibilidades claras,
e, plástico, o ouro do tempo
vinha cingir-me e dourar-me
para todo o sempre
um sempre que ambicionava
mas de todo o ser temia...
Ai de mim! que mal sonhava.

Nessa paisagem de sonho, irreal, o eu dá vazão a formas impossíveis, fora dos limites
físicos. O eu ambiciona o impossível. Tal categoria foi até agora pouco investigada na poética
drummoniana, embora esteja perenemente presente em sua poesia. Se Drummond é o poeta
das coisas, do finito e da matéria, é também o poeta da circunscrição do Nada4. Não por acaso,
no poema “Memória”, também de Claro enigma, que pode servir de definição para uma obra
poética tão apegada ao tema, a última estrofe liga-se ao que não existe: “Mas as coisas findas/
muito mais que lindas,/ essas ficarão.” Findo é o que não existe mais, o que ficou, o não-
presente reapresentado na memória e na palavra, o impossível de reter. Essa necessidade de
lidar com categorias humanas escorregadias, para as quais não há classificação, e no entanto
sempre presentes, é central na poesia de Drummond. É algo presente em todos seus livros
de poesia, em todas suas fases. Assim como a convivência e o choque dos opostos. Segundo
Donaldo Schüler, na poesia de Drummond, “os recursos incorporados ou inventados enfileiram-
se como opções negadas e constantemente retomadas. A amplitude temática reside toda nas
proximidades da profundidade ausente. O paradoxo não é rebuscado. Traduz uma obra que
criou um território para a convivência do sim e do não” 5.
A profundidade ausente pode parecer problema de poesia, instância longe da vivência
do mundo. No entanto, ela é o fundo sobre o qual o mundo humano se constrói. Nas teorias
econômicas e históricas, pouco ou nada se fala dos interesses por trás de processos históricos
e problemas sociais, dos desejos como moventes das transformações e processos pelos quais a
sociedade forma-se e transforma-se. No entanto, são esses desejos não-prováveis, no entanto
presentes, as causas e os motes das decisões humanas. É com esse fundo embaçado que
Drummond trabalha. É, nesse poema e em tantos outros, o território que ele irá explorar. A
concreção do que é fluido, a abstração do maciço, a entrada do ser na eternidade, instante ao
mesmo tempo temido. O sonho em vários níveis é o sonho da paz, da perfeição nos vários níveis,
de percepção, social, mental e emocional.

Sonhei que os entes cativos


dessa livre disciplina
plenamente floresciam
permutando no universo
uma dileta substância
e um desejo apaziguado
de ser um com ser milhares,
pois o centro era eu de tudo,
como era cada um dos raios
desfechados para longe,
alcançando além da terra
ignota região lunar,
na perturbadora rota
que antigos não palmilharam
mas ficou traçada em branco
nos mais velhos portulanos
e no pó dos marinheiros
afogados em mar alto.

Nas redondilhas maiores vem então o desejo “de ser um com ser milhares”, um desejo
apaziguado, segundo o eu. No território do sonho, aqui feito território poético, pode-se fazer na
língua esse feito impossível. Longe de textualizar isso como um problema social-econômico, o eu-
lírico propõe um vocabulário matemático: “pois o centro era eu de tudo,/ como era cada um dos
raios/ desfechados para longe”. A metáfora visual paradoxal remete ao modo de percepção
humano. Centro e raio não se confundem, um fundamenta o outro ao mesmo tempo em que é
sua negação (o centro não é o raio, etc). Torná-los ambos, algo fisicamente impossível, resolveria
o problema da alteridade, do outro, estranho frente ao qual nos definimos e a quem tantas vezes
(vezes demais) nos opomos. Não é algo que o eu pensa apenas para si próprio. Lembra da
matemática como disciplina, e a atribui a outros, os “entes cativos/ dessa livre disciplina”.
Em um nível do sonho, o eu o buscará e o sonhará “como a realidade mesma”.

Sonhei que meu sonho vinha


como a realidade mesma.
Sonhei que o sonho se forma
não do que desejaríamos
ou de quanto silenciamos
em meio a ervas crescidas,
mas do que vigia e fulge
em cada ardente palavra
proferida sem malícia,
aberta como uma flor
se entreabre: radiosamente.

Na sutileza da imagem da flor, novamente vem a matemática, somada à metáfora da polissemia


da instância literária. “Radiosa” aqui remete tanto ao brilho e à alegria quanto aos raios
matemático, emergentes do centro do círculo. Esse emprego das palavras “em estado de
dicionário” parece ser outro procedimento corrente na poesia de Drummond: as palavras
centrais apresentam, recorrentemente, a qualidade de remeter a vários de seus sentidos de
dicionário, simultaneamente. Essa expressão, retirada de “A procura da poesia” de A rosa do
povo, ecoa por toda a poesia drummoniana, e lança luz sobre os processos de leituras possíveis.
A próxima estrofe, mais curta, dá outro passo na descrição desse sonho transposto, em outro
sonho, para a realidade.

Sonhei que o sonho existia


não dentro, fora de nós,
e era tocá-lo e colhê-lo,
e sem demora sorvê-lo,
gastá-lo sem vão receio
de que um dia se gastara.

Estrofe curta, traz o sonho, agora também um desejo, para fora do homem. Terreno onírico, em
uma camada se sonho o eu pode tocá-lo e sorvê-lo, alusão a essa necessidade do impossível, do
sonho, tão rente à natureza humana e parte essencial do ser, e tão negligenciada quando se
pensa no entrave com o mundo. Talvez por isso, talvez por outras instâncias, à medida que
avança para o fim do poema, o eu vai desfazendo a onírica atmosfera de sonho, e vai dando
espaço à obscuridade do real.

Sonhei certo espelho límpido


com a propriedade mágica
de refletir o melhor,
sem azedume ou frieza
por tudo o que fosse obscuro,
mas antes o iluminando,
mansamente o convertendo
em fonte mesma de luz. (...)
Esse “melhor” incrustado na redondilha é abrangente, pode incluir qualquer aspecto que se
queira. Pensando na poética das palavras em estado de dicionário, “melhor” é palavra indefinida,
dependente de outras palavras para ser superlativo. Essa propriedade de reflexão é dita mágica,
adjetivo que já não se aplica ao reino onírico. Nele, o que adjetivamos mágico é acontecimento
ordinário. Infere-se a partir daí um “baixar”, gradual, ao reino cotidiano da percepção, até chegar
à estrofe final, com tonalidade de clímax mas referente a um anti-clímax, ou a uma percepção de
desgosto frente à realidade.

Sonhava, ai de mim, sonhando


que não sonhara... Mas via
na treva em frente a meu sonho,
nas paredes degradadas,
na fumaça, na impostura,
no riso mau, na inclemência,
na fúria contra os tranqüilos,
na estreita clausura física,
no desamor à verdade,
na ausência de todo amor,
eu via, ai de mim, sentia
que o sonho era sonho, e falso.

O sonho era falso. Sempre foi, sempre fora. Após construir um mundo de sonho, elencando os
tópicos de um mundo em paz, de uma perfeição ideal, no sentido literal da palavra, o eu lista
eventos que se contrapõem a esse ideal: a treva, a impostura, o riso mau, a inclemência. Em
todos esses eventos, o eu vê o que chama de falsidade do sonho. Sobre essa palavra, é
sintomático que o eu tenha chamado o sonho de “falso”, não de irreal, ou de inexistente, nem de
mentira. “Realidade”, diz John Gledson sobre o período de poesia de Drummond em que inclui
Claro enigma, “pode ser um conceito relativo e escorregadio, e que o poeta ridiculariza, mas a
sua poesia ajudará outros a construir dela a sua versão. A flor que evoca em “Contemplação no
banco” tem que existir, mesmo que, na verdade, não exista”6.
Aqui, conceitos como realidade, sonho, verdade, mentira, ampliam-se e tendem a parecer
desfeitos. O sonho falso não significa sonho irreal, ou uma mentira. Ele existe, e é uma estrutura
presente e partilhada, embora imponderável e apenas indiretamente intersubjetiva – quando
falamos de um sonho, outros conseguem entendê-lo, mas apenas indiretamente, sem
experienciação. Sua falsidade é contraponto à dureza da realidade do mundo, essa inegável,
ponderável e diretamente intersubjetiva. Mesmo essa dureza, no entanto, vem de um sentimento
e de uma percepção moldados subjetivamente. O riso mau, a muitos não o parecerá, será apenas
riso. A inclemência é vista como tal, em geral, com os olhos de quem a sofre, não de quem a
produz. Transparece, assim, um poema com preocupações morais, e principalmente sociais, sem
no entanto apontar casos específicos, ou ditames sociologicamente enviesados. Muito ao
contrário do que tantas vezes se disse, as preocupações de Drummond permanecem as mesmas,
apenas mudaram de foco, de ponto de vista: o objeto “mundo” ainda continua. Gledson, ainda
analisando “Contemplação no banco”, e Claro enigma como um todo, dirá o mesmo: “este
poema, mostrando que o seu idealismo não está inteiramente morto, também prova que não
rejeita qualquer assunto a priori; os vê todos a uma nova luz”7.
Vendo-se desencontrado na falsidade do sonho, pensando e sentindo uma realidade que não
necessariamente o contradiz, mas que não apresenta o que foi apresentado no sonho, o eu-lírico
drummoniano continuará sua escavação poética (simultaneamente uma construção) no poema
seguinte a “Sonho de um sonho”. Após cantar o sonho e vê-lo reduzido à falsidade frente à
verdade ruim do mundo, “Cantiga de enganar”8 aumenta a distância do mundo e estabelece uma
espécie de luta para fazer o mundo deixar de existir. Nesse embate, chegará à dissolução
completa de tudo. Como “Sonho de um sonho”, é um poema em redondilha maior, com aspecto
de canção, com apenas uma estrofe. Há elementos típicos das canções antigas, como o segundo
verso, “meu bem”. É o primeiro que dará o tom e o assunto do texto: “O mundo não vale o
mundo”. Os versos seguintes também remetem ao poema anterior.

Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
Se me cortei nelas todas
e se todas se tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.

A referência ao sonho como “pé-de-sono” inicia uma metáfora com as roseiras que dele brotam.
Mantendo a linha da metáfora, o corte do eu nas roseiras do que foi sonhado remete à decepção
pela falsidade do sonho. Do corte brota um sangue vago e jorrado, metáfora dos versos do poema
anterior. Mas se jorra o sangue, ninguém é culpado. “O mundo/ meu bem/ não vale/ a pena, e a
face serena/ vale a face torturada”. Desse encontro do sonho (e do sonhador) com o mundo,
resulta uma desilusão neste último, que se põe não a negar o sonho (ainda que falso), mas a
desfazer o mundo – e o sonho – com a poesia. Os versos que se seguem dão o tom dos versos,
irônico, contrapeso à seriedade dos versos do poema anterior: “Há muito aprendi a rir,/ de que?
de mim? ou de nada?”. Retomando a citação de Donaldo Schüler, as opções de tom, como todas
as opções para Drummond, são escolhas feitas e desfeitas. O tom sério cede lugar à ironia mais
solta. Essa ironia, no entanto, retornará à seriedade. Depois de elencar o que o mundo não é, o
eu sentencia, bastante concisamente: “O mundo não tem sentido.”

O mundo e suas canções


de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.

Há vários aspectos interessantes a se abordar nesses versos, relativos a procedimentos usados


na poética de Drummond. Primeiramente uma ambiguidade entre seriedade e ironia: pode-se ler
os versos de ambas as maneiras, e ambas são válidas. Em segundo lugar, a repetição. Aqui é
importante lembrar o livro de Gilberto Mendonça Teles, Drummond, a estilística da repetição9.
Sobre ela, diz o crítico:

tratando-se de elementos de estrutura interna, a repetição gera imediatamente uma


corrente intensiva cuja maior significação depende não só do valor semântico da massa
repetida como também da extensão e da categoria gramatical a que pertença o vocábulo.
O mesmo ocorre com a reiteração de segmentos melódicos, cuja função é também a de
atuar como grupos de força, em movimento, desencadeando uma consciência rítmica em
que o leitor se vê lançado, como num torvelinho. 10

Apesar de corretíssimo acerca da natureza e do efeito da repetição no texto poético,


infelizmente, ao longo de seu livro, Teles reduz a investigação do procedimento à repetição de
palavras isoladas11, diminuindo assim em muito o escopo onde o procedimento é válido. A
repetição em Drummond acontece em todos os níveis, morfológico, sintático e principalmente
semântico, ao mesmo tempo como um índice da insuficiência de processos isolados, e como um
procedimento formal, artístico. Sobre isto, diz Iuri Lotman, em “Os elementos e os níveis da
paradigmática do texto artístico”12: “todos os tipos de equivalências secundárias suscitam no
texto unidades semânticas suplementares. O fenômeno da estrutura no verso é sempre um
fenômeno de sentido ”13. Esse sentido nunca é um sentido apenas do texto, por mais que se
possa advogar uma independência da literatura. É sempre um sentido do mundo para o mundo,
mediado e, por vezes, ampliado na literatura. No caso da repetição, a estruturação do verso e do
poema se faz em espiral, nunca saindo para longe do tema primeiramente abordado. Como eixo,
esse procedimento de repetição nunca é isolado; está sempre acompanhado da busca pelo
impossível, pelo que é inexprimível, e que apenas nos limiares extremos do ser humano pode ser
pensado/sentido. Davi Arrigucci Jr. pensa tal procedimento, na obra de Drummond, como
aparentado da reflexão romântica, e à certa altura diz que “por certo, o esforço exigido pela
decifração, conforme se deixa claro desde o começo, parece estar além de toda capacidade
humana ”14. É para esse além que o eu-lírico drummoniano sempre se dirige. Como o áporo,
inseto/enigma/orquídea, e também nome de um de seus poemas centrais, Drummond é o poeta
que escava os campos pertinentes e sensíveis ao ser, campos externos e internos, na maior parte
das vezes jungindo ambos os lados numa unidade poemática – daí o sabor de paradoxo, um
sabor mais de aparência do que de essência.
Quando parte da síntese “O mundo não tem sentido”, começa uma espiral que simultaneamente
afirma a inexistência e a existência do mundo.

O mundo é talvez, e é só.


Talvez nem seja talvez.
O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe.
(…)
Façamos, meu bem, de conta
— mas a conta não existe —
que é tudo como se fosse,
ou que, se fora, não era.
Deixemos o mundo aos outros,
já que o querem gastar.
Meu bem, sejamos fortíssimos
— mas a força não existe —
e na mais pura mentira
do mundo que se desmente,
recortemos nossa imagem,
mais ilusória que tudo,
pois haverá maior falso
que imaginar-se alguém vivo,
como se um sonho pudesse
dar-nos o gosto do sonho?
Mas o sonho não existe.

Nesses últimos dois versos, mostra-se o retorno anafórico ao poema anterior: o sonho não
existe. Mas antes deles, o apontamento de que a imagem é ilusória, “pois haverá maior falso/ que
imaginar-se alguém vivo,/ como se um sonho pudesse/ nos dar o gosto do sonho?” Com esses
versos, no poema seguinte a “Sonho de um sonho”, o eu-lírico lança-se novamente às coisas,
atacando-as, escavando-as, e principalmente contrapondo-as. No caso presente, não contrapôs a
falsidade do sonho à realidade do mundo, mas retirou o mundo de seu lugar ponderável e o
esvaziou, dentro do mundo da poesia. Note-se que o tom não é necessariamente irônico; há
seriedade nas considerações, na mesma medida que há a ironia. Daí o tom duplo do final do
poema:

Meu bem, assim acordados,


assim lúcidos, severos,
ou assim abandonados,
deixando-nos à deriva
levar na palma no tempo
— mas o tempo não existe —
sejamos como se fôramos
num mundo que fosse: o Mundo.

Caindo em direção ao mundo ao fim do poema, acontece finalmente o descenso que se iniciou
em “Sonho de um sonho”. Nele, o eu-lírico construiu degraus de palavras e níveis de significação
para um mesmo processo: partiu do mundo e narrou o sonho onde sonhou outro sonho, em que
sonhava um mundo perfeito e pacífico. Colocou-se, portanto, do mundo factual para o mundo
onírico. O choque com a realidade fê-lo pouco a pouco descer, uma descida que inicia um pouco
antes de “Cantiga de enganar”. Nessa descida, no entanto, o eu fala partindo não do mundo
factual, mas do onírico. Os versos finais desse segundo poema exibem a mesma estrutura em
espiral, autorreferente, de três passos: ser como se fora num mundo que fosse. Esse último
mundo que é, é o Mundo, com maiúscula. Mundo fora do ser, além de sua percepção, com o qual
o ser humano não tem contato. Partindo do campo do sonho em direção a esse Mundo, nunca o
alcança. Estabelece-se assim um campo, que não é sonho nem é mundo, o campo do humano,
equidistante de ambos, e moldado por ambos os campos: mundo e sonho. Ao mesmo tempo, são
mundos que o ser busca irremediavelmente. Antonio Candido, que investigou breve mas
brilhantemente a poesia de Drummond buscando os motes da inquietude, disse, sobre essa
busca polar, que

“A consciência crispada, revelando constrangimento da personalidade, leva o poeta a


investigar a máquina retorcida da alma; mas também a considerar a sua relação com o
outro, no amor, na família, na sociedade. E as relações humanas lhe parecem dispor-se
num mundo igualmente torto.
(…) não há dúvida que para o poeta o mundo social é torto de iniquidade e
incompreensão. Seja uma deformação essencial, seja uma deformação circunstancial (o
poeta parece oscilar entre as duas possibilidades), o fato é que ela se articula com a
deformação do indivíduo, condicionando-a e sendo condicionada por ela.15
Independentemente de o mundo ser torto pela percepção do indivíduo, ou ser a causa da
percepção, decerto torta, do mesmo indivíduo, aparece então um terceiro campo, o da
interioridade, da subjetividade, não dominada pelo eu, mas relativamente independente dele,
embora facilmente identificada com ele. Assim como o eu humano (e o eu-lírico) não pode
apreender o todo exterior e abarcá-lo, também se frustra com a tentativa de abordar com clareza
seu mundo interior. A poética de Drummond é também a lida com esse outro aspecto
impossível, com a insuficiência da expressão, seja advinda do mundo interno, seja do mundo
externo. Gilberto Mendonça Teles, em seu livro, diz que

O poeta sente mais do que pode realmente exprimir. Tem que limitar-se aos elementos da
língua. Além disso, vê-se preso às solicitações do vocabulário e dos temas de sua época e
deseja imprimir neles a sua marca pessoal e autêntica. E nessa ânsia de originalidade, o
poeta se atira contra as fronteiras do idioma, ampliando-as e tornando maleáveis as
estruturas que as convenções gramaticais haviam “fixado” num “plano ideal”, mas
estático.16

É no processo de atirar-se contra as fronteiras que se apresenta o movimento ao impossível, ao


que está além do que se vê e mesmo se compreende. Mas não é apenas contra as fronteiras do
idioma, mas também dos conceitos, comportamento, instituições. A crítica social em
Drummond, por exemplo, embora advenha da vontade de destruição, sugere também um desejo
de durar além de si, portanto de manutenção de algo. Não poder dinamitar a ilha de Manhattan
(no poema “Elegia 1938) não impede o poema “Mundo grande”, em que o grande mundo cresce
todo dia17. Os dois poemas aliás, se seguem, estabelecendo entre si um diálogo que é
contrastante ao mesmo tempo que complementar. Curiosamente, a proposta de análise, a tese de
John Gledson é bastante similar à afirmação de Gilberto Mendonça Teles, com a diferença de se
propor como teoria.

A nossa teoria, que vamos expor brevemente (…) [enfoca] a relação entre o poeta e as
múltiplas estruturas objetivas – sociais, linguísticas, familiais, literárias, existenciais,
econômicas, históricas – pelas quais se sabe limitado, mas que é – naturalmente –
incapaz de descrever, e menos ainda de dominar. Os poemas, nas suas estruturas
variadas, representam etapas diversas na tentativa de capturá-las e compreendê-las (…).18

Em ambas, a consciência da limitação como um fator composicional e estético. Limitação,


impotência, impossível. Teles faz referência ao domínio da língua, continente físico da poesia,
enquanto Gledson parte dos processos que envolvem o eu, remetendo à língua como “descrição”.
Bem drummonianamente (perdão pelo neologismo, mas ele é exato), a poesia de Drummond
situa-se entre esses pontos de vista, por vezes como ponto de partida, outras como ponto de
chegada, outras como território a se explorado. Nem da língua para o mundo, nem do mundo
para a língua, mas mundo/eu/língua, mais os processos internos ao eu, tantas vezes alheios e
além do próprio eu, como no caso do par “Sonho de um sonho”/Cantiga de enganar”.
É no espaço entre coisas e processos aquele que o eu Drummoniano parece sempre colocar-se,
mas sempre a partir dos extremos, ou pelo menos sem nunca desconsiderá-los. Ainda Antonio
Candido, pensando sobre a família como tema de poesia, diz: “é sem dúvida curioso que o maior
poeta social da nossa literatura contemporânea seja, ao mesmo tempo, o grande cantor da
família como grupo e tradição. (…) pois a família pode ser explicação do indivíduo por alguma
coisa que o supera e contém”19. Pelo exemplo da relação entre os poemas apresentados, vê-se
que as instâncias que superam e contêm o indivíduo não são presentes apenas no tema da
família – grupo colocado entre o indivíduo e a sociedade – mas em toda e qualquer relação, de
qualquer ordem. Se um objeto qualquer estiver presente, o direcionamento da poética
drummoniana é sempre o que pode ser inferido pela não-presença desse objeto ou processo, ou
lhe é complementar. No movimento de aproximação desses opositivos abre esse campo de ser,
ou modo de ver e de estar, entre o ser e o mundo.
E o mundo na poesia de Drummond é fonte de tão várias considerações. Que incluem a vontade
de transformação social, a investigação do amor, da pessoa no mundo, das irracionalidades
humanas, das relações familiares, de cinismo e de candura20. Nas palavras de José Guilherme
Merquior, Drummond se elevou ao nível de significação universal, sem deixar de ser brasileira
nem por uma linha: “sua obra nada tem de exótica; não é sequer regionalista, se bem que se trate
de um escritor que não pudesse ser mais obcecado por suas origens”21. Nestas linhas, outra
observação que aponta o estar-entre-as-coisas característico da poesia de Drummond. E nesse
ponto, que fica entre as origens interioranas e o cosmopolitismo, é que sua poesia pode ser
brasileira em profundidade. Como se lê em Machado de Assis, em Drummond encontramos uma
experiência de profundidade do que é ser brasileiro, longe do óbvio, da praia, do carnaval, do
típico samba e do céu carioca – todos eles, é claro, presentes na poesia do itabirano, mas como
motes para a escavação do que há internamente ou além do que é visível, e, quando descoberto o
que ali jaz, é trazido de volta ao mundo de fora, para ser pesado e admitido ou rechaçado:
vide “Um homem e seu carnaval”, de Brejo das almas, ou “Canto do Rio em Sol”. A obra de
Drummond é brasileira e universal, simultaneamente. Não poderia deixar de ser, dada a
tendência a coligir qualquer coisa (todas as coisas) e o que essas coisas não são – o mesmo
servindo para processos.
Quando considerada em sua face histórica ou relativa à sociologia da literatura, a poesia de
Drummond comporta-se similarmente, sob o ponto de vista de centro imponderável entre
mundo interno e externo. Publicando uma poesia de profundidade e erudição incontestes num
país com uma expressiva taxa de analfabetismo, e ainda maior de analfabetismo funcional,
Drummond ainda é um dos poetas mais lidos e reconhecidos – como disse, carecendo ainda de
uma leitura maior e mais ampla. Mantém diálogo com estratos sociais e intelectuais dos mais
vários, seus versos são lembrados e viraram expressões populares. Nas palavras de Gilberto
Mendonça Teles, o trabalho de Drummond ajudou a ampliar e renovar as fronteiras da língua
portuguesa22. Pensando na relação entre Literatura e subdesenvolvimento, Antonio Candido
refere a obra de Drummond como um passo na superação da dependência cultural, entre outras.

Isto significa o estabelecimento do que se poderia chamar um pouco mecanicamente de


causalidade interna, que torna inclusive mais fecundos os empréstimos tomados às outras
culturas. No caso brasileiro, os criadores do nosso Modernismo derivam em grande parte
das vanguardas européias. Mas os poetas da geração seguinte, nos anos de 1930 e 1940,
derivam imediatamente deles — como se dá com o que é fruto de influências em Carlos
Drummond de Andrade ou Murilo Mendes .23

O termo de Candido, sobre tornar mais fecundos os empréstimos culturais, é feliz, pois o que há
na obra de Drummond são empréstimos das mais variadas ordens. Da balada romântica, que
pode ser vista nas redondilhas dos dois poemas analisados, à poesia metafísica e mística de San
Juan de la Cruz, à ironia, inglesa e brasileira. Merquior conecta a ironia drummoniana à “análise
social”, ao mesmo tempo inserida nos procedimentos da arte moderna: “a recusa do patético, o
espírito de paródia, a substituição de uma ótica trágica e idealizadora da vida por uma ótica
grotesca”24. Devo concordar, embora inclinando levemente o pensamento de Merquior em
direção à não-absolutização. Como há essa inserção, há ao mesmo tempo tempo a tonalidade
séria, pesada e profunda, não apenas entre poemas, mas num mesmo poema, como é o caso
de “Cantiga de enganar”. Do mesmo modo, Drummond vai também buscar as fontes mais
antigas e clássicas para sua poesia, sem furtar-se.
Depois de considerar, muito brevemente, a posição da poesia de Drummond em alguns tópicos
(sociologia da literatura, formais e conteudísticas entre poemas, insuficiência da expressão
linguística, crítica social através do distanciamento), é preciso reiterar o ponto central, de onde
parte o processo de investigação emocional e intelectual da poesia de Drummond. Seu centro
movediço constrói-se não da forma da coisas, ou mesmo da sua ausência, em si, mas dos espaços
(se é que se pode chamar assim) entre as coisas, entre as pessoas, e mesmo entre as ausências.
Outros versos conhecidos seus, “Como fugir ao mínimo objeto/ ou recusar-se ao grande?”,
apontam esse procedimento, deixando implícito o terceiro elemento: entre o pequeno objeto e o
grande, o que existe? Esse deixar implícito não é acaso, nem esquecimento. É parte da estratégia
de uma poesia construída tanto com o que é quanto com o que não é. Entre o grande e o
pequeno, há um espaço. E se se pensa que o que ali existe é o eu, também ele se furta, pois não é
algo a ser pego, ou avistado. O eu drummoniano está entre, sempre. Daí, talvez e sempre
paradoxalmente, sua presença tão forte e sua confessionalidade. Drummond não se furta. O urso
polar25 está todo entregue, e sumiu.

Bibliografia
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
ARRIGUCCI JR., Davi. Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond. São
Paulo: Cosac & Naify, 2002.
CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: ____. Vários escritos. São Paulo:
Duas cidades, 1977.
____. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo:
Ática, 1989.

LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Tradução de Maria do Carmo Vieira Raposo e
Alberto Raposo. Lisboa: Estampa, 1978.
MERQUIOR, José Guilherme. Verso universo em Drummond. Rio de Janeiro: José Olympio,
1976.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: análise da obra. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
SCHÜLER, Donaldo. A dramaticidade na poesia de Drummond. Porto Alegre: Ed. da UFGRS,
1979.
TELES, Gilberto Mendonça. A variante expressiva: “Cammond e Drummões”. In: _____.
Camões e a poesia brasileira. Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos, 1979.

1 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
Todos os poemas citados pertencem a essa edição.

2 GLEDSON, John. Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Duas cidades,
1981, p. 11.

3 ANDRADE. Op. Cit., p. 256.


4 SANT’ANNA, Affonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: análise da obra. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980 , p. 235.

5 SCHÜLER, Donaldo. A dramaticidade na poesia de Drummond. Porto Alegre: Ed. da UFGRS,


1979 , p. 117.

6 GLEDSON. Op. Cit., p. 217.

7 Idem, ibidem, p. 213.

8 ANDRADE. Op. Cit., p. 258.

9 Rio de Janeiro: José Olympio, 1976 .

10 Idem, ibidem, p. 71.

11Gledson já o diz. Op. Cit., p. 13.

12 In: A estrutura do texto artístico. Tradução de Maria do Carmo Vieira Raposo e Alberto
Raposo. Lisboa: Estampa, 1978.

13 Idem, ibidem, p. 209.

14 ARRIGUCCI JR., Davi. Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond.
São Paulo: Cosac & Naify, 2002 , p. 121.

15 CANDIDO, Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: ____. Vários escritos. São
Paulo: Duas cidades, 1977 , p. 103. Grifo meu.

16 TELES. Op. Cit., p. 171.

17 Ambos os poemas pertencem ao livro Sentimento do mundo. Na Poesia completa (Op. Cit.)
estão nas páginas 86 e 87.

18 GLEDSON. Op. Cit., p. 17.

19 CANDIDO. Op. Cit., p. 110.

20 Em poemas como “A mesa”, “Os mortos de sobrecasaca”, entre tantos.

21 MERQUIOR, José Guilherme. Verso universo em Drummond. Rio de Janeiro: José Olympio,
1976 , p. 244.

22 TELES, Gilberto Mendonça. A variante expressiva: “Cammond e Drummões”. In: _____.


Camões e a poesia brasileira. Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos, 1979, p . 243.

23 CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite e outros


ensaios. São Paulo: Ática, 1989, p. 153.

24 MERQUIOR. Op. Cit., p. 244.

25 Expressão do poema “Apelo aos meus dessemelhantes em favor da Paz”, de Viola de bolso.
Op. Cit., p. 356.

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