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ANTONIO PINERO JESUS A VIDA OCULTA Segundo os Evangelhos rejeitados pela Igreja a PROLOGO 200... e cette tees ee een eee 9 PRIMEIRA PARTE - O MARCO DA VIDA OCULTA DE JESUS SEGUNDO OS EVANGELHOS CANONICOS . 0.0... 080 5 13 15 Cépitulo U1 FAMILIA E FORMACAO DE JESUS ..... 0.0000 cc cece 22 SEGUNDA PARTE - A VIDA DE JESUS SEGUNDO 0S EVANGELHOS APOCRIFOS 2.0... 0c cece cece eee cece 33 Capitulo M1 MARIA, AELEITA 0... 0...00.0c0s0ceceececseeeaeeeees 35 Capitulo IV O NASCIMENTO DO SALVADOR... 0200000000000. 48 Capitulo V O REL HERODES 0.0.0. s cece eee ec eee cece eeu ees 63 Capitulo V1 REGRESSO A NAZARE oo... cececeeeeceeeeneeee ees 82 Capitulo VII AMORTEIDEJOSE: 3 os neaes oy ceiws 4 sa eee a4 peer, 0 Capitulo VIL O MINISTERIO PUBLICO DE JESUS .........0...0005 104 Capiculo IX JESUS: BO SERIO) ce ess sssceuenn we a sexseoeie 1m essceecy ea FoR TN RIE K 121 Capitulo X O FINAL TERRENO DE JESUS ......0. 650404 ceee eee 6 137 Capitulo XI DESCIDA AOS INFERNOS ........0.00.80sesees eee 150 Capitulo XII O FINAL DE ANTIPAS E DE PILATOS ........0.000055 166 Capitulo XII OTRANSITO DE MARIA oc. scs cess cee sees eee ee nee 171 Capitulo XIV OS ENSINAMENTOS SEGRETOS DE JESUS vo... 00505 178 FEPTLIIGO noe oor concrete un ore eceursae ne gassing 6 gle OTE TR RBE 195 BIBLIOGRABIA 0. scsceee woe nae eiesn ace ace eseon rae aus qrecannue tue sceceseen 203 PROLOGO Apareceu, ha cerca de treze anos, no mercado, O Ouiro Jesus. Vide de Jesus Segundo os Evangelhos Apécrifos. Depois de tanto tempo pareceu-me conveniente reformular esta obra, ou melhor, fazer, em parte, uma nova obra, aproveitando parcialmente os materiais titeis do antigo trabalho. O livro que o leitor tem entre as suas maos é 0 resultado desta tarefa de refor- mulagao: alteraram-se, consideravelmente, o prélogo € o epilogo, acrescen- tou-se uma primeira parte e reformularam-se os restantes capitulos, actes- centando mais material do que eliminando. Devo assinalar especialmente 0 capitulo dedicado & relagéo de Jesus com as mulheres, que foi substan- cialmente entiquecido. A intencfo da presente obra € a mesma que a anterior: mostrar 0 que se pode saber do que se denominou chamar a «vida oculta de Jesus», ou seja, 0 perfodo que vai desde 0 seu nascimento até ao momento da sua apari¢io pablica no palco da Galileia «no ano décimo quinto do reinado do imperador Tibétio» (Eyangelho de Lucas 3,1). A fiabilidade das fontes de que nos servimos para obter as informagées que necessitémos € muito variada. Para a primeira parte contémos com aquelas que nos foram proporcionadas, directa ou indirectamente, pelos evangelhos mais antigos, os chamados «sindpticosm: Mateus, Marcos ¢ Lu- cas, Estes s4o, sem dtivida, obra de propaganda religiosa ¢, portanto, sus- peitos de cortar informagées ou de exageré-las, mas 0 seu propésito é fun- damentalmente histérico: empenharam-se em dat aos seus leitores as in- formagées biisicas, histéricas ¢ reais da vida do her6i principal da histéria: Jesus de Nazaré, Pacientemente, com a ajuda das ferramentas e critérios da critica que se desenvolveram durante os tiltimos duzentos anos, é possivel obter algumas informagGes para enquadrar a vida oculta de Jesus. Ainda 2 10 que algumas, ou bastantes, informacoes sejam dedugoes hipotéticas, pode dizer-se, em linhas gerais, que os resultados correspondem ao nivel médio daquilo que a investigagao actual considera como razoayelmente seguro. Para a segunda parte, o que é jé propriamente a evida» de Jesus nesses anos ocultos, contamos com outro tipo de fontes: os evangelhos apécrifos. Estes so obras muito posteriores no tempo aos evangelhos sinépticos, ou seja, estéo muito mais afastadas cronologicamente dos factos que narram (a maioria procede dos séculos III ao VII), pelo que, os seus autores se dei- xaram levar frequentemente pela sua fantasia ¢ imaginagao. Uma mera lei- tura comparativa entre estes apécrifos e os evangelhos sindpticos é sufi- ciente para compreender isso. Salvo uns poucos dados dos evangelhos néo candénice \s mais antigos, 0 papiro Egerton 2, 0 papiro de Oxirrinco 840, 0 Evangelho copta de Tomé ¢ mais alguns quantos, as noticias sobre a vida oculta de Jesus devem considerar- escrutinio da erfti muitos deta com grande cnidado e submeté-las ao 2. Mas, por outro lado, os evangelhos apéctifos dio-nos hes da vida de Jesus que nao aparecem nos evangelhos cané- niicos primitivos, pelo que, juntando-os, se pode desenhar um quadro des- sa vida muito mais expressivo € rico em pormenores. Outra coisa € que se possam aceitar como histéricos. Em muitos momentos, estas fontes con- tém informagées cuja combinagao entre si se torna impossivel porque sio simplesmente contraditérias. Nestes casos, optamos por seguir a linha mais getal entre o labirinto de documentos ou a tendéncia mais sugestiva. ‘As «vidas de Jesus», segundo os relatos dos evangelhos canénicos; con- tam-se as centenas desde a Idade Média. As modernas vidas-ficgdo, autén- ticos romances ou histérias mais ou menos inventadas, quase sempre ou. na sua totalidade fruto da imaginagdo dos seus autores, sio também nu- merosas"” ¢, no nosso tempo, multiplicaram-se extraordinarlamente. Mas, no nosso:entender, nfo existe ainda nenhuma evida de Jesus» que se apoie quase exclusivamente nas fontes evangélicas apécrifas, ou seja, nao aceites como «canénicas» ou «inspiradas». A segunda parte deste livro pretende colmatar este espaco vario ¢ apresentar ao leitor, de um modo sistematico, a imagem global da vida oculta de Jesus que delas se depreende: como imaginavam que tinham transcorrido os avarares desses anos obscuros de Jesus os diversos autores cujos «evangelhos» nao foram aceites pelo cino- 1. CEE. Mirct Magdalena, «Modemos evangelios apscrifos. Fl Jests de fa ciencia-ficcidn», em A. Piticro (ed), Lar fuentes del Cristianismse, Tradiciones primizivas sobre Jesis. Cérdova (El Almen- dro) 1992, cap. 12. ne, Como j dissemos, alguns destes escritos, nao aceites na lista dos livros sagrados, sao realmente vetustos, uma ver que procedem do século IId.C., os scus autores puderam manipular tradigdes que, num ou noutto aspec- 10, competiam com as canénicas em relagao & sua venerdvel antiguidade. Ha, actualmente, um grande interesse em saber detalhes mais ou me- nos recénditos desta vida oculea de Jesus. Ao mesmo tempo, ha muita gen- te que de opinido que estes detalhes, ¢ as obras que os contém — os evan- gelhos apécrifos ~, foram escamoteados sistematicamente pelas igrejas cris- tas @, especialmente, pela catdlica. Posso adiantar ao leitor que isto nao é verdade, uma vez que parte dos escritos apécrifos — por vezes obras inteiras, noutros casos fragmentos delas, ¢ noutros ainda somente os titulos — foram publicados em todas as linguas culeas. ecles m muitas ocasiées foram autores cos, com as béngdos das respectivas igrejas, que editaram estes tex- tos, Portanto, so perfeitamente acessiveis ¢ legiveis por qualquer individuo que tenha por eles inceresse, Em castelhano remos duas colecgées que dio aos leitores évidos todo o material que esté disponivel actualmente”. Lendo as paginas que se seguem, o leitor observaré ¢ julgard, por si st mesmo, em que grau podem os evangelhos apéctifos entiquecer ow mudar a imagem que se pode formar de Jesus, lendo criticamente as fontes aceites como canénicas que informam sobre esta personagem, ou seja, funda- mentalmente os trés primeiros evangelhos: o de Mateus, 0 de Marcos € 0 de Lucas, Serd realmente mais attaente a imagem de Jesus dos evangelhos apéctifos do que aquela que nos é dada pelos evangelhos canénicos? Quan- do chegarmos as paginas finais deste livro voltaremos a colocar a mesma questo quase com as mesmas palavras. Tanto 0 autor como os leitores po- derao, sem dtivida, responder a essa pergunta, Na segunda parte, nao vou introduzir nada da minha imaginacdo que nao seja sustentado pelos evangelhos apécrifos. © leitor encontrard nas breves notas de rodapé uma sucinta informacao da fonte que apoia cada uma das nossas informagées; com isso poderd controlélas ¢, inclusive, amplié-las. Fiz um esforco para acrescentar um capitulo que nao se encon- trard de modo sistemdtico em nenhum dos nossos evangelhos apécrifos; com uma linguagem 0 mais didfana possivel — dada a densidade das ideias procurei esclarecer qual é 0 nticleo das doutrinas esotéricas que este 2. Vejase na Biblingrafia a mencéo a obra de Ausélio de Santos Qcera'¢ & edigio dos Textos ‘Gnésticos de Nag Hammadi dea, Piftero, José Menrserrar e F. Garefa Bazin. Esta obra encon- tra-se tradurida © publicada na Esquilo em «és volumes ll eee 12 ewer outro Jesus trouxe aos homens. Assim, no capitulo final «Os ensinamen- tos secretos de Jesus», o leitor encontrara uma sintese das chaves que ex- plicam a «gnose» — essa mensagem reservada ¢ oculta para a maioria trazi da pelo outro Jesus, o Revelador gnéstico — tal como a entenderam ¢ pro- palaram espécimes muito notaveis das obras apocrifas. ANTONIO PINERO Universidade Complutense de Madrid. PRIMEIRA PARTE O MARCO DA VIDA _ OCULTA DE JESUS SEGUNDO OS EVANGELHOS CANONICOS Cap(ruro I ANTECEDENTES E NASCIMENTO DE JESUS Quando nasceu Jesus? Segundo o Evangelho de Lucas, terfamos uma ideia bastante exacta de quando nasceu Jesus, uma ver que este foi dado & luz nos dias «em que saiu um édito de César Augusto para que se recenseasse toda a populacao. Este recenseamento teve lugar sendo Cirino, ou Quirino, 0 governador da Siria» (2,1). Mas a nossa satisfagao transform: se em dificuldade quando nos da- mos conta de que, com os dados da histéria antiga que possuimos, néo nos é possfvel datar este censo, tal como o apresenta 0 evangelista Lucas. Em primeiro lugar, os antigos anais do Império Romano nao conse varam nenhuma noticia deste censo universal durante o reinado de Augus- fo, 0 que o torna muito improvavel. E muito estranho que nenhuma fonte histética da antiga Roma imperial tenha feito eco de um acontecimenta to importante como um recenseamento universal. Lucas diz que este censo aconteceu sendo governador da Sitia Quiri- ho € que ao mesmo tempo era a época do rei Herodes. Ora bem, a situa- go que resulta desta dupla afirmagao ¢ inverosimil. Como ¢ que este mo- narca soberano ia permitir que um legado de Augusto fizesse um censo no seu territdrio? Segundo as leis romanas da altura, Herodes era um monar- ca ‘aliado e amigo do pove romano». Portanto, 0 Império nao podia fazer um censo no seu territério sem o seu consentimento. Conhecemos muito bem a vida de Herodes gracas ao historiador judeu Flivio Josefo, ¢ nao te- mos nenhuma noticia de tal censo. O tinico recenseamento que se levoua efeito foi precisamente quando Herodes morveu, Arquelau, seu filho, foi deposto por Augusto ¢ a Judeia 15 16 passou a ser provincia imperial. Entdo, houve necessidade de recensear toda a gente para que os seus impostos fossem pagos aos novos senhores. Isso aconteceu, cfectivamente, no ano 6 ou 7 d.C., ¢ esse tal censo foi exe- cutado pelo governador da Siria, Quirino. Portanto, cerca de dez anos de- pois do nascimento de Jesus, nado no mesmo ano! Por tiltimo, a razdo dada pelo evangelista (a necessidade de José se mu- dar para Belém, para o lugar de onde procedia a familia, ou seja, um cen- so tribal) é também inverosimil. Porqué? Porque um recenseamento tinha, fandamentalmente, motives fiscais, para que se fizesse 0 pagamento A fa- zenda imperial. Cada um devia registar-se ¢ pagar os seus imposcos preci- samente onde residia, nao de onde era oriunda a sua familia. Este conjunto de razdes leva-nos a estimar como provavel — por opo- si¢éo a0 que nos diz Lucas — que Jesus nao tenha nascido durante os anos em que Quirino fora governador da Siria, mas sim antes. Jesus nasceu «antes de Cristo» A formulacao deste subtitulo deve entender-se exactamente como se apresenta: 0 ano | da era cristé deveria ter comecado uns anos antes. Jesus hasceu, presumivelmente, a 25 de Dezembro do ano «zero» (0 anterior a0 primeiro) da era que toma 0 seu nome. Calculado de acordo com 0 cos- tume romano — ou seja, numerar os anos desde 0 momento da fundagao de Roma -, este ano seria 0 753 AUC (Ab Urbe condita: «desde a funda- a0 da Urbe»). O ano 1 da era crist seria 0 754 AUC. Este cdlculo, no entanto, é incorrecto. Q evangelho de Mateus diz-nos (2,1) que Jesus nasceu durante 0 reinado de Herodes, 0 Grande, ¢ que este demorou algum tempo (provavelmente pouco menos de dois anos) 2 tomar a decisio de acabar com todos os meninos de Belém pata afastar a hipétese de existéncia de um possivel pretendente ao trono (Ev, de Mateus, 2,16). A cronologia da histéria antiga mostra-nos que Herodes, 0 Grande, morteu no ano 27 do principado de César Augusto, ou seja, quatro anos antes de Cristo. Se a estes quatro anos acrescentarmos um out dois anos mais, os que Jesus viveu em Belém antes da matanga dos inocentes, verifi- camos que Jesus nasceu no ano 6 ou 5 antes de Cristo! Por que € que isto acontece? A resposta tem a ver com a mancira de contar os meses nas Igrejas do Ocidente ¢ do Oriente em relacéo & dara da P4scoa, porque cocxistiam dois calendirios: o solar para calcular os anos ¢ 0 judaico, lunar, para calcular a data da Sexta-Feira Santa, que devia coin- cidir com uma lua cheia nos meses de Margo ou de Abril. E as Igrejas nao se punham de acordo com os seus cémputos, pelo que celebravam a Pés- coa em dias diferentes. Por volta de 531 via-se que as diferengas cram j4 muito grandes. En- ‘Go, 0 papa Jiilio I pediu a um especialista cm cronologia, um monge que vivia em Roma, chamado Dionisio, © Exiguo, que fizesse os estudos per- tinentes para estabelecer um sistema comum de cémputo, de modo a que toda a cristandade celebrasse a Pascoa no mesmo dia. Até essa altura, a Igreja de Roma calculava os anos de acordo com 0 costume geral do Im- pério Romano, a saber desde o momento em que se tinha fundado a ci dade de Roma, com a variagio, no entanto, de que a partir do reinado do imperador Diocleciano (254-313 d.C.; imperador durante 284-313) se costumava numerar os anos nio desde a fundagao da cidade, mas desde o comeso do seu governo: a era diocleciana. Um certo dia, enquanto andava 4s voltas com as suas questées de cro- nologia, teve uma idcia que Ihe pareceu absolutamente feliz: por que é que 08 cristéos tinham de numerar os seus anos segundo 0 reinado de um im- perador pagao e, ainda por cima, um cruel assassino dos crentes? Por que no contar os anos comegando a partir do momento em que Jesus, 0 Sal- vador, tinha iniciado a sua vida terrena? A ideia pareceu-lhe acertadissima. Dionisio tomou como data de nas- cimento de Jesus 0 dia 25 de Dezembro, confiando numa tradicio j inve- terada na sua época. Através de estudos comparativos (6 procedimento usual) e retrocedendo no tempo, 0 Exiguo fixou a data do nascimento de Jesus nos tiltimos dias do ano 753 da fundagao de Roma (o dia 1 de Ja- neiro do ano 754 seria o primeiro da era cristis Jesus teria nese momento cite dias). Este foi o sen erro. De acordo com a ctonologia de Herodes, 0 Grande, que jé menciondmos, este rei morreu em 750 AUC. Portanto, Jesus devia ter nascido em 748 ou 749, um ou dois anos antes. Daf, os cin co ou seis anos de diferenca... que duram até hoje! Aparentemente, 0 monge Dionisio nao se apercebeu do scu engano € entregou os seus resultados ao papa Juilio L. A difusio da sua obra Sobre a Péscoa comegou a espalhar entre as pessoas a nova maneita de calcular o tempo de acordo com a data do nascimento de Jesus O eminente arquedlogo Dimas Fernandez Galiano acha que é pouco provavel que um erudito como Exiguo tenha cometido involuntariamen- te este erro. Segundo este estudioso espanhol, Dionisio deixou-se levar 17 18, econ por consideragées teolégicas sobre a simbologia dos ntimeros para es- colher voluntariamente o ano 754 da fundacao de Roma como primeiro ano da era crista. Exiguo teria dado todo o seu valor simbélico ao ntiimero 7, bem co- nhecido como santo ¢ de extraordindrias propriedades j4 desde a Babilénia ¢a0 27 (27 + 27 = 54). O ntimero 27, como miltiplo de 3 e de 9, desem- penhava um papel muito importante na Antiguidade no seio da explica- cio da constituicéo do mundo a partir da obra de Platéo, 0 Timex. E 0 nuimero 27 era fundamental em todas as proporcées dos edificios sagrados ¢ publicos na arquitectura romana. Sob este ponto de vista 7(00) + 27 + 27 era muito mais significativo que 0 748 ou 0 749 para designar essa mu- danga importantissima na histéria do mundo, a vinda do Salvador Jesus. Assim, Dionisio tomou a deciséo, contra a cronologia, de fazer coincidir o nascimento de Jesus com o niimero sagrado mais proximo Seja esta interpretacdo 0 que for, a verdade é que esta maneira de cal- cular os anos, de acordo com o presumivel nascimento de Jesus, se foi impondo lentamente ¢ até ao século 1X toda a cristandade tinha mudado asua maneira de contar os anos... aré hoje, em que mantemos esse desfa- samento de cinco ou seis anos em relacéo a data exacta em que devia ter nascido Jesus O dia do naseimento de Jesus Nio saberos estritamente nada a este respeito, porque a data de 25 de Dezembro é arbitraria. No século TIT, a Tgreja de Roma tomou a decisao de designar como dara de nascimento de Jesus o dia do Sol invicto, o solsticio de Inverno, o momento em que o Sol — 0 dia — comega a ter mais minutos que as trev: da falta de crenca. Além disso, os crentes no deus Mitra celebram também o nascimento desta divindade a 25 de Dezembro. Ao adoptar oficialmente a noite: a luz vencea escuridao. Cristo, a luz, derrota as trevas como dia do nascimento de Jesus essa data, estava a dizer-se &s pessoas que Jesus eta verdadeiramente 0 Sol vitorioso, o verdadeiro deus Mitra. Assim, obrigava-se os tecém-convertidos do paganismo a esquecerem os deuses pagios ea celebrar nesse dia o nascimento de Jesus. Se tivermos em conta o Evangelho de Lucas (2,8), no momento do nas- cimento de Jesus havia ali perto uns pastores «que petnoitavam ao relento, fazendo turnos de noite para velarem pelo seu rebanho». Se dormiam ao ar livre era porque nao faria muito frie; porvanto nao seria Inverno rigoroso (25 de Dezembro). Jesus deve ter nascido num outro més do ano. Onde nasceu Jesus? Mateus e Lucas dizem-nos que Jesus nasceu em Belém, enquanto os outros dois evangelistas pressuipdem que o seu nascimento ocorreu em Nazaré. Esta era uta tradic#o bem assente, uma ver quea Jesus nunca lhe chamaram Jesus de Belém», mas sim «de Nazaré», e esta era a maneira de expressar, na Antiguidade, o lugar de nascimento. Jodo (7,41-42) relata que alguns dentre a mulridao duvidavam que Jesus fosse o Messias precisa- mente porque nao tinha nascido em Belém: «Acaso vird da Galileia o Mes- sias? Nio diz.a Escritura que o Cristo (= Ungido; Messias) vir da descen- déncia de David e da cidade de Belém?» E mais veros{mil pensar que a verdade histérica se encontra na tradi- 40 represeatada por Joio e Marcos (Marcos 6,1.4; Joao 1,46; 741-42. 52; ef. indirectamente Mateus 13,54.57; Lucas 4,23-24, onde se fala de Nazaré como a «pétriay de Jesus): Jesus nasceu, muito segutamente, em Nazaré, ¢ s6 depois, quando pensou firmemente que era o Messias, se com- pés a histéria do sew nascimento em Belém, para fazé-lo coincidir com as profecias... ¢, assim, se cumpriram as Escrituras. Mas esta foi uma histéria que cada um contava como podia: Mateus faz. viver os pais de Jesus, nesses dias, em Jerusalém, enquanto Lucas 0s coloca a viver em Nazaré, mudan- do-se para Belém por causa de um censo imperial Nazaré Se aceitarmos que © lugar de nascimento de Jesus foi Nazaré, pode- mos questionar-nos sobre o que sabemos, na antiguidade, desta vila. A res posta é decepcionante ja que Nazairé nao aparece nomeada uma tinica vez no Antigo Testamento nem na literatura judaica da época (tanto em escri- tos apéctifos da Biblia como noutros, textos de Qumran, etc.), nem nos historiadores, tanto judeus como pagios. $6 sabemos, pelas escavagées ar- queolégicas, que era um lugar de assentamento humano desde a Idade do Bronze, de tradicao agricola, ¢ que, na época de Jesus, teria, no méximo, cerca de mil ¢ quinhentos habitantes. 19 20 Quem exam os antepassados de Jesu Nos evangelhos afirma-se repetidas vezes que Jesus era «filho», ou seja, descendente de David. Para fundamentar a verdade desta afirmagao, uma ver que alguns dos seus contemporaneos tinham sérias dtividas (veja-se Marcos 12,35-37), os eevangelhos da infanciw apresentam duas genealo- gias de Jesus. Uma descendente, que parte de Abraio (a de Mateus); outra endente (de Tuucas), que parte de José e chega até Adio e Deus. Mas es- tas duas genealogias so tao diferentes que contém graves problemas do ponto de vista histérico. As diferencas sio, brevemente, as seguintes: De Abraao até David ambas as listas coincidem. Mas Lucas introduz aqui duas personagens, Arni ¢ Admin, absolutamente desconhecidas na Biblia. De Dayid até & época do exilio da Babilénia, Mateus menciona 15 nomes ¢ Lucas 21. Mas, para além de David, nao coincidem em nenhum! Do exilio até ao momento do nascimento de Jesus, Mateus inclui 14 nomes ¢ Lucas apresenta-nos 22. Neste bloco sé ha coincidéncias na no- meagao de duas petsonagens, Sealtiel ¢ Zorobabel. Mas es pais, ou os fi- Thos, dessas personagens sio diferentes nas duas genealogias. Nem uma nem outta lista (Mateus-Lucas) coincidem com as yenealogias do Antigo Tes- tamento para as personagens que se nomeiam. A genealogia de Mateus, composta por trés grupos de catorze, pare- ce totalmente artificiosa, tanto que se pensou que o evangelista utiliza aqui um procedimento usual judaico de interpretagao da Escritura que se chama gematria, ou seja, o jogo com o valor numérico das letras he- braicas. As trés consoantes que constituem o nome de David represen- tam em hebraico o ntimero 14, Mateus compés, entao, artificialmente, a sua genealogia para demonstrar que os trés grupos de antepassados — em niimero de catorze, precisamente — indicam que Jesus € descendente de David. E evidente, portanto, que nos enconttamos perante duas genealogias totalmente diferentes cujas contradicées muito preocuparam a Igreja em tempos passados ¢ que suscitaram muitas tentativas de solucao. Mas em yao. O melhor é pensar num problema irresoliivel em termos de pura his- téria. Aqui, vé-se claramente que 0 importante eta apenas a intencao teo- ldgica dos evangelistas, nao a verdade histérica. Da mesma mancira que outras genealogias tendenciosas que encontramos no Antigo Testamento — mais artistico-literarias do que histéricas —, Mateus pretendia mostrar com a sua que Jesus era o Messias davidico; Lucas, por seu lado, que Jesus cra Filho de Deus. Mas as duas genealogias sao ficticias. Portanto, nao sabemos se a tradicao crista de que Jesus era #filho de David» € rigorosamente histérica. 21 ween 22 eee Cariruo IL FAMILIA E FORMAGAO DE JESUS Os pais de Jesus Apesar das diividas sobre as genealogias ndo ha raz6es de peso para duvidar que os pais de Jesus se chamaram José ¢ Maria ¢ que habitaram na povoagio de Nazaré, Outra coisa, do ponto de vista da histéria, é que se possa demonstrar que Jesus nasceu virginalmente, ou seja, s6 de Maria por intervengéo divina, sem a paternidade natural de José. A doutrina do nascimento virginal apenas aparece no Novo Testa~ mento, s6 em Mateus 1,18-25 ¢ em Lucas 1,26-38 ¢ nestes textos assina- la-se apenas a concepco extraordindria de Jesus; ndo se fala absolutamen- te de que Maria continuasse a ser virgem depois do nascimento do seu primogénito. E, lido de uma maneira normal, o texto de Mateus 1,25 pa- rece Sugerir 0 contririo: «E (José) néo conheceu (indo teve relagdes) a sua mulher até que deu & luz um filho ¢ lhe deu por nome Jesus». Para um historiador — e tendo em conta que os evangelhos candnicos da infincia (os dois primeiros capftulos de Mateus ¢ de Lucas) s4o antes «narragées teoldgicass, ou seja, relatos que pretendem inculear uma ideia religiosa, do que narragao histérica no sentido moderno do termo — é impossivel precisar se a concepeao virginal rem um fundamento histético ou nao. Mas, antes, adoptard uma atitude céptica, uma vex que o facto, 0 nasci- mento sobrenacural de uma personagem ilustre, néo é susceprivel de ve- rificagao histérica. O historiador pode dizer, além disso, que na Antiguidade se repetiam histérias nao s6 sobre o nascimento de deuses ou fundadores de teligides, como Zoroastro, Buda e Krishna, como também de personagens humanas destacadas, como Pitégoras, Platéo ¢ Alexandre, 0 Grande. Fra, portanto, quase um lugar comum atribuir um nascimento especial e sobre-humano a personagens destacadas. Com Jesus pode ter acontecido o mesmo. A formacao de Jesus Uma vez que Jesus foi um mestre de éxito na Galileia ¢ em Jerusalém, que Lucas (4,16-30) afirma que Jesus leu e comentou as Escrituras num oficio religioso, num sdbado, numa sinagoga de Nazaré, podemos deduzir que o Nazareno nao era um camponés analfabeto, mas que sabia, pelo me- nos, ler ¢ escrever, No Evangelho de Joao (7,15: «Como € que este tem co- nhecimento da Escritura [literalmente «sabe letras»] se nao estudou?») pa- rece indicar-se que era do conhecimento piblico, por um lado, que Jesus nao tinha frequentado nenhuma escola rabinica e, por outro, que devia sa- ber ler ¢ escrever porque utilizava bem os textos da Escritura como argu- mentos teoldgicos. Como argumento complementar pode actescentar-se que parece su- ficientemente provada a tese de que na época de Jesus quase todos os ju- deus vardes — que tiveram pais minimamente religiosos — sabiam ler € es- crever ¢ que 0 aprendiam normalmente nas escolas sinagogais. Juntando estes dois textos pode deduzir-se, razoavelmente, que Jesus devia ter tido interesses religiosos desde muito pequeno, que frequentou a escola de Nazaré (que costumava ser como um apéndice da sinagoga), ¢ que assistia com assiduidade as leituras dos oficios religiosos dos sdbados, na sinagoga, onde se liam os textos sagrados, com 0 que aprendeu 0 que necessitava para a sua posterior vida de pregacdo. Veremos, também, a seguir, que se Jesus exercia um oficio, tetia de sa- ber alguma coisa de contas ¢ de letras, pelo menos para passar recibos. Que lingua falava Jesus? Os Evangelhos, sobretudo 0 de Marcos (5,41: zalirhd kum: «Rapatiga, levanta-ter; 7,34: ephattd: vabre-tens abi, «pain de 14,36 € 15,34: Eloi, Eloi lemmd sabachwhdni: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonas- tele), transmitem-nos palavras aramaicas que Jesus pronunciou. Embora haja alguns estudiosos que defendam que Jesus podia ter tido como lingua materna o hebraico ¢ que esta lingua nunca deixou de ser maioritdria em 24 Israel, a maioria opina que nos tempos de Jesus o povo judeu filava ara- maico tanto na Judeia como na Galileia. O abandono do hebraico teve lu- gat, paulatinamente, desde 0 século VI a.C., a partir do momento que Is- rae] caiu sob o dominio do Império Persa, cuja lingua franca cra o aramai- co, na zona ocidental do Império. Jesus, consequentemente, devia ter uti- lizado esta lingua pata uso normal e veiculo da sua pregagéo, nfo sé na Galileia, como também em Jerusalém, onde os habitantes, ¢ a maioria dos peregrinos, tinham também como lingua materna 0 aramaico. Contudo, hd muitos estudiosos que opinam também que Jesus podia saber hebraico, jd que entre a gente judia que estudava a Biblia era normal continuar a conservar esta lingua, nio s6 para ler o texto sagrado, mas tam- bém para manter, inclusive, discussdes sobre o sentido das passagens da Es- critura. A questao continua em aberto por falta de dados ptecisos. Pensa-se, também, geralmente, que dada a proximidade de Nazaré das cidades de Séforis ¢ Tiberiades, cheias de gentes pagas que falavam grego, era natural pressupor que Jesus deveria ter tido alguns conhecimentos des- ta lingua, pelo menos para fins profissionais. O offeto de Jesus ‘Também nao ha raz6es para duvidar dos Evangelhos quando afirmam que Jesus era um artesao, filho de artesdo. A palavra grega empregue € tek- ton (Marcos 6,3, para Jesus; ¢ Mateus 13,55, para o seu pai), cujo signifi- cado é amplo; referia-se normalmente a artes4os que trabalhavam em ma- deira e pedra; portanto, zekzan pode significar carpinteiro, entalhador ou pedreiro-construror. A tradicao antiga da Igreja grega entendeu sempre o etmo como «arpinteiro>, no sentido de alguém que tem a sua propria ofi- cina e que constréi todo o tipo de instrumentos ou méveis de madeira, des- de cangas ¢ arados até camas on vigas. A situagao social de um carpinteiro deste géneto, na época de Jesus, é discutida entre os especialistas. Para alguns estudiosos tratava-se de um ni- vel social bastante pobre, inferior ao de muitos camponeses, obviamente abaixo dos préprios proprietarios; para outros, era uma classe média baixa. A questao est aberta, embora seja de supor que na Galileia présper lativamente tranguila do reinado de Herodes Antipas um bom art ta classe devia ter lucros suficientes. ere: ao des- Outros estudiosos concentram-se na linguagem de Jesus, sobrerudo nas suas parébolas, para deduzir que o Nazareno tinha uma boa compo- nente de camponés: as suas comparagées referem-se sempre ao mundo da agriculcura ou da pesca € nao ao da indiistria. Daf deduzir-se que a familia de Jesus, que era numerosa como veremos, tivesse algumas propriedades ¢ que a sua subsisténcia se conseguisse também, pelo menos em parte, do cul- tivo de um pouco de terra ou de gado doméstico. A familia de Jesus. Jesus tinhu irmitos? O Novo Testamento nao fala muito dos irmaa 0 faz expressa-se com grande naturalidade e simpli sagens mais importantes: de Jesus, mas quando dade. Estas so as pas- 1. Evangelho de Jodo 2,12: Apés a boda de Canaa, Jesus muda-se com a suia mae e com os seus irmaos para Cafarnaum. 2. Evangelho de Marcos 3,31-35 (¢ lugates paralelos): a mae ¢ os it- mios de Jesus querem falat-the, mas Jesus nao os recebe e diz que 0s seus yerdadeiros irmaos so os que fazem a vontade de Deus. 3. Evangelho de Marcos 6,3: apés um setmao de Jesus na sinagoga da cidade, 0s habitantes de Nazaté, admirados, exclamam: «Nao é este © carpinteiro, 0 filho de Maria e 0 irmao de Tiago, José, Simao e Judas? Nao esto as suas irmas entre nés?». 4. Evangelho de Joao 7,3.5.10: apés a festa dos Taberndculos, os ir- mos de Jesus instam-no que va a Judeia 5. Actos dos Apéstolos 1,14: apds a ressurreicéo, os apéstolos esto reunidos numa sala em Jerusalém com diversas mulheres, com a mie de Jesus e suas irmas. 6, Carta aos Gélatas 1,19: Paulo afirma que esteve em Jerusalém trés anos depois da sua conversao visitando Pedro ¢ que nao viu ne- nhum apéstolo a nao ser Tiago, 0 irmao do Senhor. “I . Primeira carta aos Corintios 9,5: Paulo pergunta: «Nao tenho o di- reito de levar comigo (como mulher) uma irma na fé da mesma maneita que os outros apéstolos, os irmaos do Senhor e Pedro? 25 een 26 Ouzros dados margem de Nove Testamento Fora do Novo ‘Testamento, o historiador judeu Flivio Josefo, na sua obra Antiguidades Judaicas 20,9,1 & 200, afirma que o sumo sacerdote Ands convocou uma reunigo do sinédrio ¢ obrigou a apresentar-se peran- te ela Tiago, 0 irméo de Jesus, chamado o Cristo. Entre os evangelhos apécrifos, 0 Evangelho dos Hebres (citado por Sito Jerdnimo na sua obra Contra Peldgio I 2) afirma: «A sua mae e 0s seus ir- maos diziam a Jesus: ‘Joao estd a baptizar para a remissao dos pecados, Va mos ¢ baptizemo-nos’». Um leitor normal tiraria naturalmente destes textos diversas conclu- s6es: Maria e José tiveram, para além de Jesus, outros quatro filhos e, pelo menos, duas filhas; estes irmaos nao estavam inclufdos no néimero dos apés- tolos, para além disso, nao acreditavam em Jesus ¢, num qualquer mo- mento, teriam procurado obstar a sua carreira. Outros testemunhos da Igveja antiga Um tedlogo cristio, Hegesipo, que escreve por volta do ano 160, faz também uma referéncia a estes irmaos de Jesus. A sua obra perdeu-se, mas o historiador Eusébio de Cesareia (/istéria Eelesidstica M1 22) conservou- -nos alguns fragmentos. Numa dessas citacées diz-se que um tal Simedo sucedeu a Tiago, 0 irmdo do Senhor, como bispo de Jerusalém. Posteriot- mente, em TV 22, Hegesipo afirma mais concretamente: «Depois de Tia- g0, 0 Justo, ter sido martirizado sob as mesmas acusacées que Jesus, Si- medo, 0 filho do seu tio paterno Clopas, foi nomeado segundo bispo de Je- rusalém ina vez que era o primo do Senhor». Hegesipo escreve em grego ¢ emprega duas palavras distintas, distinguindo claramente entre primo (gtego anepsios) ¢ irmao (adelfis). Por volta do ano 220, Tertuliano afirma claramente que os itmaos de Jesus eram exactamente isso, irmaos do Senhor no pleno sentido da pala- vra. Contra o herege Marciao, que utilizava o texto do Evangelho de Mar- cos 3,31 («Quem s4o a minha mie e os meus irméos...2») para provar que Jesus nao era um verdadeiro homem, expressa-se assim: «Nés dizemos em primeiro lugar que nao podiam anunciar a Jesus que [d fora estavam a sua mic ¢ os scus irmaos, porque néo os tinha..., ¢, na verdade, a sua mae € os seus irmaos estavam Id fora...» (Contra Marcido IV 19). Outros textos do mesmo Tertuliano dao por assente que Maria deixou de ser virgem apés 0 nascimento de Jesus: «Dois protectores temos da san- tidade cristé, a monogamia ¢ a continéncia. Como virgem, Maria deu cer- tamente & luz Cristo, reservando o seu mactiménio para depois do parton (Sobre a monogamia 8) ¢ noutro lugar acrescenta: «Maria tem todos os ti- tulos: € mae, virgem ¢ mulher de um s6 homem». Com a mesma ou maior transparéncia se expressa Tertuliano em Sobre 0 véu das virgens 6. Tertuliano era um asceta, muito pouco dado a ser indulgente em ma- téria de sexo ¢ matriménio € ao falar assim da nao virgindade de Maria dos irmaos de Jesus ndo manifesta que esté a transgredir uma tradicao bem assente jd na Igreja sobre a virgindade perpétua de Maria, Em nenhum mo- mento pensa estar a substituir esta crenga por uma teoria mais «naturalis- ta». Da a impressio, pelo contrdtio, de expressar a opiniéo normal em re- lacdo ao seu grupo cristao, No século TV, outro autor, chamado Helvidio, sustenta com todo 0 tipo de argumentos que Maria, depois de tet tido virginal e milagrosamen- te Jesus, teria vivido com o seu marido como qualquer outra mulher, Origenes, pelo contrario (morto por volta de 253 d.C.), ja defende a virgindade perpétua de Maria nas suas obras teoldgicas e critica Tertuliano por nfo ter suficientes argumentos para provar a sua posicao. Mas, a0 mesmo tempo, © prdprio Origenes confessa que a sua defesa pessoal da virgindade de Maria é mais uma teoria plausivel, nao algo jé totalmente aceite nas igrejas (Comentdrio ao Ev. de Mateus X11 55). Origenes faz eco, também, de uma teoria que tinha comecado a cir- cular hé uns tempos (€ que, a propésito, se defendia em dois evangelhos apdcrifos, o de Pedro e.0 chamado Protocvangetho de Tiago): que esses ir- méos de Jesus eram filhos de um matriménio anterior do patriarca José. Este tinha envinvado cedo e ao casar-se com Maria em segundas niipcias tinha trazido com ele esses filhos do anterior casamento. Eram, portanto, «meios irmaos» de Jesus. Esta opiniao era minoritéria até ao momento em que intervém Sao Jeronimo. As difteuldades de Sao Jerénimo No ano 383, Sao Jerénimo escreveu uma dura réplica a Helvidio, Ar- gumentava que a palavra «irmaos» nos evangelhos devia ser entendida de um modo mais abrangente, a saber como «primos» ou «patentes». E isto pela seguinte razdo: nos textos gtegos escritos por gente de mentalidade se- 27 28 mitica (como sao os autores dos evangelhos) pode-se esperar que se utilize 9 vocdbulo «irmaos» deste modo to amplo. A lingua hebraica nao tem uma palavra propriamente usual para «primoy» ¢ existem diversos textos na Biblia (por exemplo Génesis 14,14-16, Livro Primeiro das Crénicas 23,21 ou Levitico 10,4) que utilizam o vocibulo «irmios» quando na tealidade se referem a «primos» ou «parentes», Sao Jerénimo acrescentava uma série de combinagées de textos dos evangelhos através das quais identificava os pretendidos «irmaos» de Jesus com outros personagens de idéntico nome que aparecem nas narragoes evangglicas. Deste modo, esses presumiveis «irméos de Jesus» passavam a set outtas pessoas perfeitamente localizadas como «parentes» do Nazareno. Assim — afirmava Séo Jerénimo — Tiago, o chamado «irmao do Senhor», €o mesmo «Tiago, um dos Doze», na verdade filho de Alfeu, a quem Sao Paulo chama apéstolo na Epistola aos Glatas 1,19. Juntando Marcos 6,3 ~ lista dos nomes dos irmaos de Jesus — com Marcos 15,40 — relacdo de mulheres que estéo ao pé da cruz, entre as quais se encontra uma tal «Ma- ria, mae de Tiago, o Menor, e José» — ¢ com Joao 19,25 — onde se diz que esta Maria era a mulher de Cleofas ~, afirma Sao Jernimo que José ¢ Tia go, chamados «itmaos de Jesus» em Marcos 6,3, sao filhos desta tal Maria de Cleofas, por sua vez irma da Virgem com o mesmo nome. Perante a dificuldade de Alfeu e Cleofas serem dois nomes diferentes ~ essa tal Maria poderia ser a mulher de dois homens? — escritores poste: riores sustentarao, apoiando Sao Jeronimo, que Alfeu ¢ Cleofas sao varian- tes do mesmo nome aramaico, Calfai. Resolvida esta dificuldade, os dois sirmaos» que restam (Simao ¢ Judas) sio identificados por sua vez com Simao, o Zelota (um discipulo de Jesus nomeado no Ey. de Lucas 6,15) e com 0 autor, do mesmo nome, da Epistola de Judas. O resultado é claro: os pretensos «itmaos» de Jesus nao so outra coi- sa sendo «primnos» ou «parentes». A virgindade perpérua de Matia fica jus- tificada. O que pensar da angumemagito de Sia Jerénimu? Em primeito lugar, aceitar que é verdade tudo o que se diz.de que nos textos influenciados por um ambiente semitico a palavra grega irmao» (adelfos) é de uso amplo e que pode significar também «primo» ou «paren- te», Esta possibilidade, em boa verdade, nao se pode excluir, Mas uma razoavel margem de diwvida contra este argumento obrém- -se da seguinte conviccdo: todos os investigadores sérios afirmam que os evangelhos actuais nao foram traduzidos do hebraico, mas sim compostos directamente em grego. Assim, nesta lingua existe, de facto, uma palavra propria para «primo» (anepsios). Se os autores dos evangelhos queriam di- zer «primos», por que é que nunca nenhum deles emprega este vocibulo? Parece concebivel que sempre ¢ consistentemente se chame irmios aos «primos» de Jesus no Novo Testamento? Nao se tornard suspeito que estes tais «primos» ou «parentes apare- gam sempre no Novo ‘Iestamento juntamente com a mie de Jesus ¢ com as suas «primas», as quais s4o tratadas também por

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