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Passado 0 susto, continuaram o caminho pelo deserto até chegarem & primeira cidade entre o Egipro ¢ a Judcia. Pelo caminho foram acompa- nhados por leées ¢ leopardos, que Ihes apontavam a rota por um lugar sem caminhos nem gente. Jesus dizia aos seus progenitores que nao tivessem medo desses animais, As feras caminhavam mansamente junto do jumen- to de Maria ¢ das bestas que transportavam as suas bagagens. José tinha, de facto, preparado um grande carro puxado por uma parelha de bois, que nao mostravam o mais pequeno medo diante dos ferozes carniceiros, con- vertidos pela presenga de Jesus em animais de companhia. Isto fez recordar a Maria a sentenga do profera: «Pastatdo lobos com cordeiros © 0 leao € 0 boi se alimentarao de feno»'"". Ao terceiro dia de caminho, Maria sentiu-se fatigada pelo tremendo calor que se fazia sentir. A atmosfera era insuportavelmente seca; brilhava um sol terrivel 0 ar, que mal se sentia, ndo refrescava absolutamente na- da, mas sim fustigava os rostos com mais calor ainda. Maria, que viu uma palmeira préxima do caminho por onde iam, disse a José: — Queria descansar um pouco 4 sombra dessa palmeira. José levou toda a récua para junto da drvore ¢ ajudou Maria a descer do jumento. A mie de Jesus tinha fome e sede. Olhou para a copa da palmeira e viu que estava cheia de apeteciveis frutos. «Se fosse possivel — disse ao ma- rido — adoraria comer uma tamara desta palmeiran. — A 4rvore é muito alta —respondeu ele. — E quase impossivel chegar até clas. O que me preocupa é a falta de agua, pois a que levamos nos odres estd a escassear, Entio, Jesus, quc repousava placidamente no regago de sua mae, disse a palmeira: «Abaixa-te, drvore, e refresca com os teus frutos a minha mac». E perante estas palavras, a palmeira inclinou as suas ramagens até aos pés de Maria. Esta apanhou alguns dos seus frutos para si, para José e para o menino. E assim se manteve a rvore inclinada até que Jesus lhe dissesse de novo que voltasse 4 sua posicéo. O infante disse depois: «A agua que circula pelas tuas raizes nao é necessaria. Faz com que essa veia de liquido escondida na terra loresca para que desse manancial nos possamos saciat ¢ encher as nossas vasilhas». E, nesse instante, brotou das raizes da palmei- ta um manancial de dgua fresca e cristalina, de modo que toda a comitiva 114, batas, 65.25. 7L eee 72 eee7 pode saciar a sede, assim como os animais. Os odres ficaram cheios. Per- noitaram, entao, debaixo da palmeira, protegidos do relento pelos seus ra- mos ¢, no dia seguinte, ao partirem, Jes — Este privilégio te concedo, palmeira: que um dos teus ramos s¢ja transportado pela mao dos meus anjos e plantado no paraiso do meu Pai. De agora em diante, além disso, sers o simbolo do triunfo, de modo que falou assim para a drvore: todo aquele que chegar & meta, tera conseguido a palma da vitéria. Perante o olhar de todos apareceu um anjo que cortou um belo ramo da palmeira, levando-o pelos ares para 0 paraiso. Os circunstantes prostra- ram-se, de rosto na terra, ¢ ficaram como mortos. Jesus wanquilizou-os com estas palavras — Nao sintais medo: esta palmeira trasladada para o Eden serd para vés um recordatério da vitéria que vos espera. E continuaram, assim, a sua rota. A comitiva caminhaya junto 4 bei- ra-mar para evitar o calor: Jesus, de facto, sem que ninguém desse por isso, estava milagrosamente a abreviat o caminho para que os seus pais e acom- panhantes nao sofressem aquelas adversidades. E, assim, aconteceu miste- riosamente; 0 caminho de quase quinze dias em marcha lenta fez-se pra~ ticamente numa s6 jornada, pelo que comegaram a divisar rapidamente as montanhas ¢ as cidades do Egipto, nao demorando muito a chegar aos confins de Hermépoli abrigo nas proximidades do templo, uma vez que pensavam que o lugar sagrado podia protegé-los dos bandidos'"”. Ao servico do templo € dos idolas que albergava havia um sacerdote . Ali, como nao conheciam ninguém, procuraram que se encarregava de transmitir 4s gentes daquele lugar quando Sarands falava pela sua boca. Pois hé que saber que os idolos sao uma espécie de roubo de Satanael'", ou Satands, que se apodera do nome e da honra da divindade, fazendo com trapacas com que os homens adorem os seus de- ménios: os fdolos nao sao outra coisa”. O sacerdote tinha um filho de trés anos, possuido por yérios deménios, 0 qual dizia muitas coisas ral co- mo 0 forcavam a isso os diabos. Quando se apoderavam dele & forca, o possesso rasgava as vestes ¢ lancava um sem mimero de pedras, com muita 115. Euangetho do Pseudo Tomé, 18-22. 116. Evangetho de Bartolome, 4, 25: «Ao principio chamava-me Satanael, que quer dizer mensa- gciro de Deus. Mas quando (me rebclei conera Deus) © nao quis reconhecer a sua imagem {adorar o homem recém-criado), 0 meu nome convertew-se em Satanés, que quer dizer anja guardido do Tartaron 117. Evangelho Arménio da Tnfincia, 15.18. forga, aos que visitavam o templo. Quando a comitiva de José montou as suas tendas perto do santudrio idoldtrico aconteceu um grande tremor de terra, Todo o lugar sagrado estremeceu, as suas paredes fenderam-se ¢ 0 grande idolo que se encontraya no seu interior comecou a’saltar sobre 0 pedestal. Também outros idolos menores, que havia em altares de menos importancia, comegaram a mover-se até que, com grande estrépito, caf- ram todos ao chao ao mesmo tempo, desfazendo-se em mil pedacos. E en- quanto caiam ouvia-se uma grande gritaria que nao safa de gargantas hu- eram os prdprios idolos que pediam aos gritos a morte de Jesus, "®. O sacerdote e as gentes dos arredores congregaram-se com curiosidade € susto em torno do templo e mana: indignados pelo watamentos que recebiam questionavam-se sobre 0 que podia ter acontecido ¢ por que motivos. O filho do sacerdote sentiu-se, precisamente nesse momento, presa dos deménios e comecou a deambular erraticamente por aquela zona. Dando voltas e voltas entrou casualmente no recinto onde se encontravam as ten- das da comitiva de José. Maria tinha acabado de lavar nesse momento uns panos que serviam de fraldas a Jesus e tinha-os pendurado num madciro. O possesso, enquanto andava as yoltas, espumando pela boca, agarrou vio- lentamente uma dessas fraldas e colocou-a em cima da cabega. Nesse ins- tante, os deménios comecaram a sair pela sta boca em forma de corvos € serpentes, ficando curado em apenas alguns momentos. O sacerdote, 0 pai do rapaz, que tinha safido & sua procura, encontrou-o ja tranquilo, sentado no chéo, muito pacifico, e perguntou-lhe: — Meu filho, 0 que € que te aconteceu? O menino contow-the 0 que se passara. O sacerdote alegrou-se muito pelo seu filho e pensou que aquela familia estrangeira guardava um deus ou uma forca poderosa que devia ter sido o causador de tantas anomalias. Louvou a divindade enquanto comentava a José ea Maria as coisas estra- nhas que estavam a acontecer naquele lugar desde que eles tinham chega- do e como tinham caido todos os deuses do templo. Aquela noticia nao satisfez muito os pais de Jesus, que ficaram a tremer. Pensavam de si para si: «Quando est4vamos em terras de Israel, Herodes tentou matar 0 meni- no € provocou uma grande carnificina entre os pequenos de Belém. Agora, n&o ha diivida que os egipcios ao saberem 0 que aconteceu com os seus {do- los tentarao acabar connosco. Certamente, queimar-nos-ao vivos»'"””. 118. Kvangellio Arménia da Infiincia, 15,17. 119. Evangelho Arabe da Inféncia, \2. 73 one 74 ene Efectivamente, passado pouco tempo aparecen Aftodisio, 0 governa- dor da regiéo, com todos os seus homens muito bem armados, uma vez que o tinham informado do que se acontecera com o santuario. O sacer- dote ¢ o proprio José pensaram que os soldados yinham vingar-se contra quem tinha provocado a queda dos idolos. Mas quando Afrodisio obser- you com os seus olhos 0 sucedido, e viu José com a sua familia, sentiu por dentro uma estranha sensagao de medo ¢ de respeito. Aproximou-se deles ¢ reverenciou-os. Depois, voltando-se para os seus homens, disse-lhes: — Se sio estes os causadores da queda dos fdolos, nao vamos fazer-lhes nada, pois o seu poder deve ser superior ao dos deuses do templo. Sao ju- deus ¢ eu li que em tempos passados um faraé desta terra foi sepultado no mar com todo o seu exército por nao acreditar nos sinais portentosos que lhes tinha dado 0 seu Deus. E sem mais palavras retirou-se, deixando-os em paz‘ ” José e Mari yo a caminho, nao fosse Afrodisio mudar de opiniao. Deviam passar, en- tao, por uma zona infestada de bandidos; ha bem pouco tempo que, tran- sitando por ali, outros viajantes tinham caido nas maos de um bando de salteadores. Estes tinham-nos despojado das suas vestes ¢ atado com fortes apressaram-se a abandonar aquele lugar ¢ a pér-se de no- amarras, enquanto pilhavam e dividiam os despojos, A comitiva de José ia-s¢ aproximando daquele lugar. Embora fossem poucos, Jesus fez com que produzissem um enorme ruido diante deles, como se um grande se- nhor fosse a passar pelo caminho com um grande séquito ou com um exér- cito. Os bandides ficaram consternados ¢ pensaram que seria melhor por- -se em fuga. Sairam a correr, cada um para seu lado, abandonando a presa que ha pouco tinham capturado, Ao aparecerem José € os seus, os cativos estayam j4 a tentar desatar-se uns aos outros € preparavam-se para reunir as suas bagagens. Ao verem chegar 0 pequeno grupo de José ¢ das suas gen- tes, perguntaram-lhes: — Supomos que sois os primeiros de um grande cortejo. Onde estio os outros? Nao vem, atras de vés, um grande senhor com grande estrépito de armas e tambores? José ficou admirado ¢ respondeu: — Nao sei; talvez venham efectivamente atrés de nés. Despediram-se e seguiram caminho, chegando pouco depois a outra 120. Fnangelho do Pseudo Matens, 24 cidade. Ali havia uma famosa endemoninhada. Era uma rapariga de uma familia importante que, ao sair uma noite para ir buscar 4gua, se viu asse- diada e vencida por Satands. Quando o diabo actuava nela nao havia ma- neira de permanecer vestida, correndo despida por todo o lado, acometen- do as pessoas com pedras ¢ insultos, Os seus familiares prendiam-na com cordas e correntes, mas a endemoninhada quebrava todas as suas amarras e ia para as encruzilhadas, entre os sepulcros, provocando terror entre as pessoas € 2 stia familia preocupagées sern conta. Aconteceu que Maria a viu, compreendeu imediatamente 0 que se passava e teve pena dela. Pe- rante a mera vontade da mae de Jesus o deménio fugiu do corpo da jo- vem. Esta percebeu a sua nudez e fugiu envergonhada para casa, onde en- trou sem que ninguém a visse. J4 decentemente vestida contou aos pais 0 que se passara. Sairam apressadamente 4 procura de Maria ¢ de José, per- guntando por todo o lado pelos estrangeiros e ao encontra-los pediram- -lhes que se dignassem a aceitar a hospitalidade de sua casa. Permaneceram, pois, trés dias na residéncia desta familia, que era das mais poderosas da cidade, €, depois, continuaram o seu caminho para 0 delta, bem provides de vitualhas oferecidas gencrosamente pelo pai da rapariga curada™”. © caminho atravessava outras pequenas cidades, onde a presenca de- les ia provocando o bem aos respectivos habitantes. Nao vamos relatar to- dos cles, mas os antigos anais falam-nos de curas de uma jovem muda, de varios outros possessos que, por virtude de Jesus, ficavam livres dos espi- titos, de leprosos curados ao tocar a 4gua com que Maria tinha layado as pecas de roupa de Jesus, etc.”, Talvez a mais surpreendente fosse a histé- ria de um macho que, comegando de uma forma estranha € curiosa, aca- bou num casamento ostentoso. Vejamos 0 que se passou neste caso: ao aproximar-se de outra cidade, Maria viu trés mulheres que se aproxima- vam deles a chorar. Préximo havia um cemitério, pelo que deduziu que ti- nha havido uma desgraca irreparavel e que acabavam de sepultar algum fa- miliar. Maria disse & rapariga que a acompanhava: — Pergunta-lhes 0 que é que se passa ¢ vé se podemos ajudar em al- guma coisa. A rapariga assim o fez, mas as mulheres nao responderam directamen- te, perguntando por sua vez 121, Evangellro Arabe da Infancia, 10-14, 122. Boangelbo Arabe da Infancia, Ves. 75 ene 76 eee — De onde vindes ¢ para onde ide — Somos uns camninhantes — respondeu a rapariga — que fugimos do rei da Judeia, Herodes, Dirigimo-nos para o delta e agora andamos a pro- cura de um sftio para pernoitar. Seguindo o costume oriental da hospitalidade, as mulheres ofereceram. a sua casa aos fatigados viajantes para passarem aia noite. Estes aceitaram a oferta e todos as seguiram com uma certa curiosidade. Entraram numa casa nobre e luxuosa, ampla e ricamente mobilada, onde os instalaram sem dificuldade. Ao entrarem num dos aposentos, a jovem que acompanhava Maria vin que nele nao havia nenhuma pessoa, mas sim um macho, limpo e coberto de brocados, que as trés mulheres cuidavam, dando-lhe saboro- sos alimentos ¢ beijando-o com ternura. A rapariga perguntou o que é que se passava com aquele macho. Uma das mulheres respondeu assim: — Acabdmos de enterrar 0 nosso pai e ainda temos em casa esta des- graga: este macho € o nosso tinico irmao. Quando chegou 4 idade prépria 05 meus pais procuraram-lhe um casamento conveniente. Mas antes dos esponsais, outra mulher que o desejava para si, servindo-se de artes malig- nas, enfeiticou-o. O jovem ficou adormecido e, finalmente, numa noite maldita transformou-se em macho. E aqui continua, sem remédio. Jé ten- témos tudo; jé visitamos curandeiros, feiticciros, sacerdotes ¢ magos, sem conseguir nada. A rapariga respondeu-lhes: — Creio que Senhor vos abengoou, porque nesta mesma casa en- contra-se 0 remédio. Eu propria era leprosa e, depois de ter tocado na gua que a senhora que albergais em vossa casa tinha utilizado, fiquei curada hesse mesmo instante. Ide ter com a minha ama Maria e mostrai-lhe a vossa infelicidade. ‘As mulheres ficaram muito satisfeitas ao pensar nas perspectivas de cura para 0 seu irmdo, indo ter com Maria ¢ contando-lhe toda a historia. A Virgem pegou, entao, no menino Jesus, levou-o ao quarto onde se en- contrava 0 animal e colocou-o em cima dele. «Meu filho — disse-Ihe — tem misericérdia desta famflian. E quando Maria pronunciou estas p: alavras, 0 macho mudou de forma € transformou-se progressivamente nur jovem sem macula, Apés intensos abracos ¢ felicitagSes, o rapaz ¢ as suas irmas cafram de joelhos e mantiveram-se assim durante muito tempo, dando gracas a Maria e ao menino pelo que tinham feito com eles. As trés irmas disseram entre si: «Tudo isto parece maravilhoso. J4 que recuperou © seu aspecto anterior e tem a idade conveniente por que nao levamos adiante os planos de casamento do nosso irmao? E que melhor proposta podemos apresentar serio a donzela que nos levou até Maria?» O jovem a rapariga, como se ficassem apaixonados de um stibito arreba- to de amor, aceitaram com satisfacao a ideia e preparou-se um casamento sumptuoso para os dois. E diziam a Jesus: — Foi a tua presenca que transformou a nossa tristeza em alegria e os fnossos lamentos em jubilot””. José ¢ Maria permaneceram dez dias naquela casa. Por fim, com certa pena, foram-se embora dali e chegaram cidade do delta, Durante um ano hospedaram-se em casa de uma vitiva, a quem pagavam uma boa ren- da. Jesus completow ali os dois anos € ia crescendo em graca ¢ sabedoria. A certa altura, vendo uns meninos brincar, pos-se a fazer 0 mesmo na sua companhia. Leyou de casa um peixe aberto, meteu-o num alguidar e ordenou-lhe que comegasse a nadar. Depois meteu € agitou 0 sal ¢ 0 peixe nadava como qualquer outro peixe vivo. Mas uma vizinha observava o que s¢ estava a passar. Nao demorou muito tempo a conté-lo 4 dona da casa. Esta — ainda que sentisse afecto pelo casal ¢ pelo menino ~ pensou que ti- mha albergado em sua casa um mago (a magia era julgada com severissimos castigos), pelo que expulsou a familia, sem contemplagées, de sua casa”. Nao foi dificil, para José, encontrar outra casa. Enquanto passavam os dias, o anciao praticava o seu oficio de carpinteiro, fazendo trabalhos em madeira para os judeus do delta, pelo que ganhava bem o seu sustento. Tudo isto se passava no Egipto 4 volta de Jesus. Entretanto, Joao ea sua mae continuavam escondidos no deserto de Judd. Os antigos arqui- vos nao nos dizem quanto tempo permaneceram cxactamente, mac e fi- Iho'*, entre os penhascos desérticos que rodeiam Jerusalém, mas dio a entender que pelo menos quatro ou cinco anos, até 4 morte de Herodes. ‘Transcorrido este tempo, a piedosa Isabel morreu, justamente no mesmo dia em que o odiado monarca abandonava também a vida. O pequeno Joao, sd e com apenas sere anos, chorava-a amargamente e nao sabia co- mo amortalha-la e enterrd-la. Simultaneamente, no Egipto, e sem causa aparente, o menino Jesus comegou a chorar com profunda amargura. E a sua mae perguntava-lhe: 123. Evangelho Arabe da Infitncia, 20-22. 124, Evangelhio do Preudo Tomé, latino 1,4. 125. Livro da Infincia de Salvador, 102. 77 ewes 78 — Por que choras? O teu pai repreendeu-te? —Nio — respondeu 0 menino —, choro porque a tua parente Isabel dei- xou 6rfao o Joao. Ele esta agora a chorar sobre o seu corpo, na montanha. Ao ouvi-lo, Maria comegou também a chorar, Jesus a0 vé-la recomen- dou-lhe que contivesse as lagrimas. O menino chamou uma nuvem e esta desceu sobre a terra, permitindo que a sua mae ¢ uma rapariga, de nome Salomé, entrassem nela. A nuvem subiu aos ares € transportou-os, suave e rapidamente, para o deserto onde se enconuava Joao. Todos abragaram 0 rapaz ¢ consolaram-no, ¢ a rapariga, juntamente com Maria, levaram 0 ca- dayver de Isabel ¢ enterraram-no. Maria pretendia levar com cla Joao, mas Jesus impediu-a, — Nao ¢ esse 0 desejo do meu pai. Jodo permanecerd no deserto até a0 momento oportuno. Mas nao te preocupes: o anjo Gabriel encarregar- -se-4 dele, alimenté-lo-d ¢ protegé-lo-a. Entao, a nuvem aproximou-se outta vez ¢ conduziu-os de regr seu lugar. Jesus estava quase a fazer trés anos, quando aconteceu.a morte de He- rodes e de Isabel. Contam as crénicas que o tei tinha uma doenga incu- ravel, que Ihe afectava todo o corpo, sobretudo o ventre, com grandes do- res. Nem sequer os banhos de Callirroe podiam alivid-lo nas suas afliges. Embora soubesse que os seus dias estavam contados, quis acabar 0 seu rei- nado com tanto sangue como tinha feito correr no comego do seu governo ¢ durante a maior parte dele: nos iiltimos momentos, Herodes ordenou a execugao do seu filho Antipatro, que uns meses atr4s tinha tramado uma conspiragao contra ele, e ordenou que trezentos personagens distintos, que estavam fechados no hipédromo simplesmente por serem figuras im- portantes, fossem executados no mesmo dia da sua morte, para que o luto sO a0 fosse ainda maior e geral. Nao € de estranhar que a morte do tirano fosse re- cebida com satisfacao em toda a Palestina ¢ a noticia se espalhasse, como mancha de azeite, mesmo até ao Egipto. Esta noticia chegow a José, no en- tanto, pela boca de um anjo, que lhe disse em sonhos: «Morreram aqueles que procutavam a morte do menino, Volta para a tua terra", José obe- deceu sem hesitar. Reuniu as suas pertengas, despediu-se de todos os que o tinham ajudado e voltou a preparar o seu carro. Pegou em Maria com 0 seu filho e comecou o regresso 3 Palestina, Como na Judeia reinava Arque- 126. Mateus 2,19. lau, filho também cruel do defunto Herodes, teve medo de voltar para Be- 1ém, pelo que determinou fazer uma volta ¢, logo que pudesse, assentar na Galileia, em Nazaré'””, como antanho, proximo de Cafarnaum, onde pen- sava que haveria trabalho abundante para um bom carpinteiro. Antes de se ir embora do pais, Jesus pensou que podia dar outra ligao aos adoradores de idolos, de modo que, na cidade de Mesten, por onde passava de regress 2 sua pattia, fet com que se desmoronasse outro tem- plo idolatrico"®. Nesta ocasiao tratava-se de algo importante, pois era 0 santuario de uma cidade grande ¢ circundada por altas muralhas. A fabrica do templo era magnifica ¢ no interior do primeiro Atrio hayia frescos de notavel qualidade; o santudrio tinha sido o primeiro templo do deus Amon e, depois, com a chegada dos gregos a0 Egipro, tinha sido dedicado a Febo Apolo. Aconteceu que, precisamente quando passaram pela cidade Jesus e asta familia, ram os dias de festa anual do deus. As gentes tinharn-se jun- tado em volta do recinto, chamado em grego #émenos, com dadivas ofe- rendas ao idolo representado por uma bela estatua de prata e ouro. No ex- terior preparavam-se hecatombes de bois ¢ sacrificios de brancas ovelhas, eas massas andavam de um lado para o outro em volta do recinto sagrado, Jesus, cheio de curiosidade, tinha-se aproximado do bulicio e observava aquela azéfama com muito interesse. De repente, leu uma inscrigio em Imgua grega, gravada numa parede do templo, que dizia: «A Apolo, dador de todo o bem, que dé a vida a todo 0 género humano», Jesus tremeu ¢ enfureceu-se terrivelmente, no seu foro {ntimo, pelo que a epigrafe tinha de injusto para com a gléria devida ao seu Pai. Dirigiu um olhar para o céu e disse em vou alta: «Pai, glorifica o teu filo», Alguns dos presentes olharam admirados para o menino, admirando-se que um tenro infante pudesse falar daquela mancira. Nesse instante, a cidade comegou toda a tremer ¢ 0 templo, juntamente com os sacerdotes e pontifices que estavam 14 dentro, nao demorou a desmoronar-se com grande estrépito; cerca de cento ¢ oitenta pessoas perderam a vida entre as ruinas. Os habitantes da cidade ficaram completamente estupefactos e doridos. Prontamente, ou- viu-se por toda a cidade um grande pranto, um pranto de dor pelos mor- tos que ficaram presos entre as pedras do santudrio. Alguém entre os pre- 127. Mavexs, 128. Bvangetho Arménio da Inféncia, 15,6-22. Outros desmoronamentos de tempos idolatricos: Ibident, 16,\-43 18,1. 129, Joao, 17,1. 79 enlfose 80 eee sentes lembrou o assunto do menino que tinha pronunciado uma estra- nha frase imediatamente antes do acontecimento € comegaram todos a procurd-lo. Por fim, encontraram-no, junto do seu pai, ¢ comecaram a in- tetroga-lo sobre 0 esconjuro que tinha safdo da sua boca, provocando se- melhante catdstrofe. Perguntaram a Jos — O gue nos escondes, pois suspeitamos que a vossa presenga nos trouxe uma grande desgraca? E continuaram a perguntar-lhe muitas coisas com grandes ameacas. Maria, que estava presente, caiu de joelhos diante do filho e suplicou-lhe que nao se iritasse contra aquelas gentes ignorantes ¢ que os perdoasse. O menino, inicialmente, nao queria, uma vez que continuava muito zanga- do por ter sido acribuido ao deus Apolo poderes que eram sé do scu Pai. Mas, por fim, cedeu aos pedidos da mae « mudou de opiniao. Aproxi- mou-se da multidao que chorava os seus mortos ¢ comecou a caminhar entre os cadaveres. Depois, eleyou a sua voz ¢ intimou assim os defuntos: — A todos vis vos digo, sacerdotes de um deus vao, levantai-vos. E nesse momento todos os ministros e pontifices de Febo Apolo le- vantaram-se do chéo e comegaram a caminhar como sondmbulos. A plebe gritava, abragava-se satisfeita e rodeava Jesus cheia de admiracio, fazendo tentativas para o adorar como um ser sobrenatural. Mas ele passou entre eles ¢ deixou-os sem pronunciar uma s6 palavra. José ¢ Maria jé estavam preparados para partir ¢, de facto, jé tinham deixado para tris as muralhas da cidade, quando um anciao de aspecto ve- neravel se aproximou apressadamente deles ¢ lhes pediu que nao se fossem embora da cidade sem passar antes por sua casa. Disse-lhes que tinha ou- vido dizer que eram judeus: também ele, cujo nome era Eleazar, procedia do pais da Judeia e também tinha abandonado a tetra por causa das injus- tigas do rei Herodes. Este argumento convenceu José e aceitou 0 convite para ir a sua casa. Ali conheceu os seus filhos, que se chamavam Lazaro, Marta e Maria’, As duas familias ficaram intimas... e foram passando os dias juntos, de modo que José permaneceu em casa de Eleazar trés meses. Os joven Jesus ¢ Lazaro brincavam como dois irmaos. As duas mais ve- Ihas cuidavam dos mais pequenos: Marta cuidava sobretudo de Lazaro Maria ocupava-se mais de Jesus. Foi nesta época, que Jesus caminhou por um raio de Sol. Com efeico, estavam um dia a brincar Jesus, L4zaro € ou- 130. CF Jodo, 11 tros meninos dentro de um quarto de tectos altos, Estava-se a meio da tar- de e 0 Sol ja estava um pouco baixo; a jancla estava meio aberta, entran- do por ela um raio de Sol, que entre as sombras do quarto formava um caminho luminoso. Jesus disse aos rapazes: — Quem é que se atreve a abragar este raio de Sol e subir por ele? Nenhum dos rapazes respondeu. Entio, Jesus envolveu com os seus bragos 0 raio ¢ comegou a subir para a parte superior da janela, trepando por ele”, Os outros meninos tentaram, mas, como é légico, nada pude- ram fazer. Ao voltarem para suas casas, cada um contou aos respectiyos pais © que tinham visto, Chegou aos ouvidos de José que os pais dos meninos sabiam do que acontecera com 0 raio de Sol e esse facto foi mais um argu- mento para levar Jesus daquele lugar por medo a novas complicagées ¢, por fim, empreenderam 0 caminho de regresso em direccao a Palestina. 131. Evangelho Arménio da Infiincia, 15,5. 81 eon 82 owe CapiruLo VI REGRESSO A NAZARE José tinha determinado fazer o caminho de volta evitando a passagem pela Judeia, de modo que tinha decidido atravessar o deserto do Sinai, até a extremidade inferior do Mar Morto e, depois, subir pela outra margem do Jordao, passando por Moab, Ammon e Galaad, para atingir, finalmente, a Galileia a oeste. Toda essa zona era territério de arabes, mas, nessa altura, nao havia problemas com eles ¢ a travessia podia ser segura. Maria, José 0 menino faziam a viagem de regresso lentamente, caminhando com 0 car- ro, os trés crindos e a rapariga que ajudava a mae de Jesus, parando quando thes parecia oportuno em lugares onde encontravam outras pessoas ¢ onde cra possivel reabastecerem-se de alimentos ¢ 4gua. E onde quer que paras- sem, Jesus juntava-se ao grupo de outros meninos ¢ brincava com eles. Numa ocasiao, quando tinham entrado ja em terras de Moab"””, esta- va Jesus com outros rapazes, no terrago de uma casa, a divertirem-se jun- tos. Um dos rapazes, sentindo-se fatigado, subiu para cima de um dos mu- ros do terraco ¢ sentou para descansar. Devido ao cansaco ¢ a forga do Sol, comecou a sentir sono ¢ adormeceu, Enquanto os outros meninos brinca- vam e corriam aos gritos pelo terraco, 0 rapaz que estava sentado resvalou do muro e caiu no chao. Magoou fortemente a cabega na queda contra 0 solo — era de pedra — ¢ abriu o cranio, espalhando-se 0 sangue pelas pe- dras; nesse instante a sua alma abandonou o corpo. Perante o forte grito do rapaz quando caiu, as brincadeiras pararam: o espectdculo era tremen- do e todos os meninos fagiram espavoridos. Os habitantes da cidade le- 132. Leangelbo Arménio da Infincia, V6.1 133. Eeangelbo Arménio da Infincia, 16,1. vantatam o morto, levaram-no para casa dos seus pais ¢ comegaram um grande luto por ele. Mais tarde, juntaram os meninos que tinham brinca- do com o defunto na acoteia e perguntaram-lhes o que tinha acontecido, Mas todos responderam: «Nao sabemos». Os pais do rapaz que tinha morrido nao ficaram contentes com esta resposta e fizeram com que todos os meninos se apresentassem perante 0 escriba local, que fazia as vezes de juiz. Pensavam que o rapaz nao tinha caido sozinho — parecia-lhes impossfvel — mas que alguém o tinha empur- rado ¢ que nao se atrevia a dizé-lo. O juiz foi interrogando uma um. Ao nao conseguir deles nenhuma informacao, comegaram as ameagas ao mes- mo tempo que lhes garantiam que nao sofreriam represdlias; 36 um paga- ria por isso: pela vinganca do sangue, o culpado deveria, em troco, entre- gar a sua vida. Cansados de ndo obter nada a limpo, os adultos fecharam as criangas num quarto até que se decidissem a contar a verdade. Os rapa- zes nao sabiam o que fazer, uma yer que ninguém acreditava nas suas pa- lavras de inocéncia. Entao, um dos mais velhos teve uma ideia ¢ expressou- -a assim aos seus companheiros — Todos sabeis que nao fizemos nada de mal; mas nao acreditam em nao é dos nossos; é um. nés. Deitemos a culpa a esse menino novo, Jesu estrangeiro. Que o condenem & morte a cle ¢ nds ficaremos livres. Todos os rapazes responderam unanimemente: — Bem dito! Boa ideia! Vamos fazer isso! Un dos rapazes avisou 0 juiz que estavam dispostos a dizer a verdade. O povo reuniu-se em assembleia, muito préximo de onde se encontraya 0 cadaver do rapaz e todos os meninos disseram em unissono: «Quem 0 fez foi um menino forasteiro, filho de um anciao; chama-se Jesus. Foi ele que empurrou 6 nosso amigo». Vérios sairam a correr 4 procura de José e tou- xeram-no aos empuirrées perante o juiz. Este perguntou-lhe: — Onde estd o teu filho? — Que quereis dele? — disse José — Nao sabes, porventura, o que fez 0 menino? Atirou do terrago abai- xo um dos nossos rapaves, que morreu — replicou indignadissimo o juiz. — Pelo amor do Senhor, que nao sei onde esta o meu filho! Mas te- por este sangue — disse José. E naquele momento Jesus apareceu por sua liyre yontade perante 0 tribunal. As pessoas ficaram admiradas pelo seu porte e pela sua maneira de andar. Parando no meio de toda a gente, o menino disse: nho a cetteza que nao somos responsivei — Estais & procura de quem? 83, eee 84 een O povo exclamou: — O filho de José,.o estrangeiro! O juiz comegou a interrogé-lo de imediato: — Diz-nos, como cometeste semelhante maldade? Entao, Jesus, serenamente, comegou por dizer perante o escriba: — Juiz! Nao julgues com parcialidade, porque é um pecado na posi- 40 que ocupas ¢ um erro contra ti mesmo. O escriba, um tanto assombrado, replicou: — Eu nao te julgo sem motivo, mas por uma razao. Os amigos do ra- paz que morreu, que estavam contigo, testemunham contra ti. — EB quem dé testemunho da sua sinceridade? — perguntou Jesus O juiz disse: — Eles mesmos testemunham que sao inocentes e que tu és réu de morte. — Se alguém testemunha contra mim é digno de fé? — continuou Je- sus. — E se apenas tém medo de morrer e se juntaram para darem um fal- so testemunho contra mim? Se isto é assim, 0 teu veredicto nao seria jus- to. Eles tiveram em conta que nao sou daqui, que sou um forasteiro e po- bre. Por isso, libertaram-se da sentenga de morte, lancando-a contra mim. E tu, juiz, s6 para agradar as pessoas, pensas que cles tém razéo ¢ que cu estou a mentir. O juiz ficou um momento pensativo e perguntou: — Entéo, 0 que devo fazer? — Queres julgar com justiga? — prosseguiu Jesus — Entdo, procura tes- temunhas para ambas as partes e a mentira aparecerd transparente. O juiz disse: — Fu nao sou como tw dives. Eu sé procuro um testemunho ranto de ti como deles. — Ese cu dou testemunho de mim, irds acreditar na minha pala- vra? — perguntou Jesus. O juiz continuou: — Como podes provar que isso ¢ yerdade? Nao sei se jura ceridade ou com mentita, ¢ eles sao muitos contra ti. com sin- Eao pronunciar estas palavras, os outros meninos leyantaram de novo as vozes e dis ram mais OU Menos ao mesmo tempo: 134. Jodo, 5.31 is mas contra nds € contra Outros ra~ paves da cidade e nés nao fizemos nada! O juiz, num tom triunfante, sentenciou: — Estés a ver quantos testemunham contra tie tu nfo podes replicar — Este rapa jé fez muitas cois nada. Jesus ficou muito zangado; olhou fixamente para o juiz ¢ disse-lhe com voz dura: — Muitas vezes falo-te e tu nao acreditas em mim, Agora vais ver ficards estupefacto E 0 juiz com ironia, respondeu: — Vamos lé ver, entao, 0 que ¢ que tens agora para dizer? Entao, Jesus, aproximou-se do lugar onde estava 0 rapaz morto, pegou- -o pela roupa € disse-lhe em voz alta: «Abias, filho de Tamar, levanca-te, abre os olhos desta gente e conta a todos como aconteceu realmente a tua morte». O rapaz levantou-se como se despertasse de um sonho; comegou a me- xet os olhos e reconheceu alguns, a quem tratou pelo seu nome. Os seus pais lancaram-se sobre ele e comecaram a dar-lhe muitos beijos e a pet- guntar-lhe: «O que € que se passou?s. Eo menino respondia: «Nada». Je- sus disse-lhe, enta — Conta-nos a todos como € que aconteceu a tua morte. E o rapaz, olhando fixamente para Jesus, para o juiz ¢ para os seus pais, falou assim: — Jesus, tu nao és 0 responsdyel pelo meu sangue, nem os rapazes que estavam comigo. Eu cai sozinho, vencido pelo cansago ¢ pela sonoléncia que o sol provocou. Mas os meus companheiros tiveram medo de morrer © acusaram-te a ti. Jesus, triunfante, disse ao escriba: — Acreditas, agora, em mim? E 0 juiz nada respondia, envergonhado. Do mesmo modo, a maioria das pessoas guardava siléncio, maravilhada com o que se passara, pergun- tando quem era esse menino com semelhantes poderes. Abias permaneceu com os seus pais cerca de trés horas, ali mesmo, sem se mexer. Ao fim des- se tempo, disse-lhe Jesus: — Abias: volta a dormir até que despertes na ressurr O rapaz inclinou suavemente a cabeca e dormiu de novo o sono da do universal. mofte. Todos 4s presentes comegaram a tremer.¢ olhavam com uia mes- cla de terror e admiragao como 0 jovem pai O juize ia morto outra vi 85 eo 86 ewe os pais puscram-se de joclhos perante Jesus ¢ suplicaram-lhe que se dig- nasse a conceder, de novo, a vida ao defunto. Mas Jesus nao acedeu e, di- rigindo-se ao juiz, disse estas palavras: — Indigno magistrado ¢ intérprete malvado da lei, como ousas falar- -me de equidade ¢ de justiga, enquanto tu, ¢ toda a cidade, hd instantes, estavam dispostos a condenar-me sem motivo? Uma vez que nao me es- cutaste eu também o farei contigo. E dando meia volta, sem ressuscitar de novo o menino, deixou todos mudos de assombro"**. José preparou 2 familia para empreender, uma ver mais, o caminho e, durante 0 trajecto, aconteceram outras coisas maravilhosas, mas que nao é necessdrio contar com tanto pormenor: numa cidade mais a norte, em terras de Galaad, brincando com uns meninos junto ao rio, Jesus transfor- mou a 4gua em sangue, de modo que os seus amigos se assustaram. Quan- do os seus amigos tiveram sede, Jesus pegou num cintaro, deu-lhes a be- ber ¢ a Agua retornou ao que era: fresca. cristalina e apetecivel. Mas ao sal- picar com ela as vestes, brincando de novo, estas ficaram manchadas de encarnado. E na seguinte cidade, onde a familia de José parou, Jesus curou milagrosamente um menino perdido no campo ¢ morto de sede e de in- solacio!®, Noutro lugat, ao passar Jesus junto & loja de um tintureiro, chamado Salém, entrou nela por curiosidade. Havia dentro da loja uma grande quantidade de panos para tingir, preparados a um canto em diver- sos mont6es. Jesus entreteve-se a pegar em todas aquelas pegas de tecido ¢ deitou-as sem qualquer distingéo num grande recipiente de azul indigo. Enquanto estava ocupado nesta fungao, Salém chegou e viu o estrago, pois todas as pecas jd estavam tingidas de azul. O tintureiro comecou a gritar desaforadamente ¢ pegou num pau, prepatado para dar com ele nas costas do tapaz. E dizia-lhe: — O que € que fizeste? Desonraste-me perante os meus clientes, pois cada um deles queria ter a cor a seu gosto e tu deitaste tudo a perder. Entio, Jesus, respondeu: — Estava sé a brincar. Nao te preocupes. Todas as cores que quiseres mudar, eu comprometo-me a mudé-las. E comegou a tirar as pecas do recipiente, tingidas cada uma da cor que o tintureiro queria. Este, naturalmente, ficou estupefacto e mandou o menino embora com gestos de assombro. 135. Evangello Arménio da Infinicia, 167-15. 136. Euangelbo Arménio da Infancia, 17,23. E, assim, entre diversos prodigios, se foi fazendo o caminho até chegar de novo a Nazaré. A vida, ali, nao teve complicagées, uma ver. que José regressava ao lu- gar ¢ as gentes conhecidas. Rapidamente, comecou a rotina do trabalho e da vida didria normal. Jesus tinha, na altura, cinco anos. Num certo dia, encontrava-se a brincar com outros meninos & beira de um arroio, que ti- nha crescido muito com as chuvas recentes. Num lugar inclinado e de pou- ca gua, 0 menino fez um pequeno desvio, de modo que o liquido corresse para ali. Com um pouco de barto fez sete charcos que se foram enchendo do liquido. A agua ia saindo turva do arroio, mas, com um gesto de Jesus, transformava-se em cristalina quando se estancava nos charcos. Depois, 0 menino juntou entre si as pequenas represas com pequenos canais ¢ com uma s6 palavra fez com que a agua corresse por umas e outras. Assim, se enuretinham Jesus e os seus amigos quando um dos rapazes fechou, por inveja, os orificios por onde ‘safa, finalmente, a 4gua, de modo que esta transbordou ¢ qucbrou alguns dos diques de barro, estragando a obra de Jesus. E este disse-lhe, zangad — Filho da morte, filho de Satanas! Como é que te atreves a desfazer © que eu acabo de construir? E, nesse momento, 0 rapaz. caiu, desvanecido, morto. Os outros me- ninos avisaram os pais que, apressadamente ¢ entre choros, transportaram o defunto para casa. Ali o deixaram e foram a toda a pressa ao lugar onde se encontrava José, para ver se podia José, an- gustiado de navo por uma histéria que Ihe era desagradavelmente conhe- cida, disse a Maria: — Eu nao me atrevo a dizer-lhes uma palayra. Trata wu disso. A.sua mie aproximou-se de Jesus e disse-lhe: ver alguma coisa por ele — O que € que este menino fez para merecer a morte? — Desfez com ma vontade o que eu tinha construido — respondeu Jesus. — Nao sejas assim, meu filho — replicou a mae. — Toda a gente pro- testa connosco. Eadmoestava-o com diversas razoes. Jesus deixou-se sossegar, nao que- rendo contristar a sua mae, e dirigiu-se a casa do menino morto, com mui- ta gente A sua volta. Ao chegar ali, bateu suavemente nas nddegas do ca- daver e disse-lhe: ~ Levanta-te, filho da iniquidade, nao és digno de entrar no descan- so do meu Pai por teres estragado 0 que eu construi. 87 enn Entao, 0 rapaz que estava morto levantou-se ¢ Jesus retirou-se sem dar inais explicages"”, Noutra ocasiéo, num sdbado, Jesus brincava com os seus amigos pré- ximo do mesmo riacho. Pegou num pouco de barro de um charco e fez doze passarinhos, Um vizinho que passava por ali ficou escandalizado que Jesus profanasse 0 stbado, moldando o barro e disse-o a José: «O teu filho esta no riacho — disse-lhe. — Estd a trabalhar o barro pelo que est4 a pro- fanar 0 dia sagrado». José ditigiu-se a cle ¢ repreendeu Jesus diante de to- dos. Mas © menino nao lhe fez caso nenhum, nem sequer Ihe respondeu, dirigindo-se, antes, as figurinhas, dizendo-lhes: «Voai, ide-vos». Nesse ins- tante, o barro tornou-se em ser vivo, em pequenas e belas criaturas. Os pas- sarinhos comegaram a gorjear, levantaram voo e foram-se embora. Os meninos contaram em casa o que aconteceu com grandes porme- nores. Alguns pais, ao ouvi-los, proibiram os seus filhos de brincar com Je- sus, dizendo-lhes: «Nao brinqueis com ele, nem fiqueis mais na sua com- panhia, pois é um feiticeiro ¢ um mago perigoso». O chefe da sinagoga, precisamente, era um dos mais furiosos opositores de Jesus, até al ponto que numa ocas que nao estivesse na companhia do filo de José. O arqui-sinagogo defen- dia convictamente 0 seu ponto de vista perante os outros fariseus, distin- tos membros da sinagoga. E dizia-lhes: «Este Jesus faz 0 mesmo que con- tam do egipcio Ne-neferka-Ptah, que pegava em barro, fazia um barco com remadores, langava-o ao Nilo ¢ com um esconjuro tornava-os vivos, de mo- do que iam pelo rio, remando'™”, Este rapaz 6 um mago. Nao me estranha que tenha aprendido estas artes quando esteve no Egipto». Mas mais de uma vez, Jesus enganou a obstinacao do pai. Ao passar préximo da torre onde estava fechado o rapaz ouvia a sua voz querendo sair e ficava com pe- na dele encerrado como numa prisao. A edificagao tinha uma janela mui- to estreita, por onde mal entrava um raio de luz. Jesus disse ao rapaz: — Poe uma mio, ou pelo menos um dedo, fora da janela. O rapaz favia-o ¢ Jesus, pegando no dedo, tirava o rapaz por aquela miniiscula jancla. Depois de brincarem juntos, voltava a meté-lo no seu quarto da mesma mancira'”, Uma vez, quando tinha uns cinco anos de idade, caminhava este Jesus o chegou a encerrar o filho numa torre da sua casa para 137. Bvangelho do Pseudo Mateus, 26: Evangetho do Pseudo Tomé, 2. 138. WB, 96, 139. Livro da Infiincia do Salvador, Ms lat. 11867 Paris 1. De Santos 221 88 ene por uma das ruelas da povoacéo, e um rapaz. que vinha a correr pela mes- ma rua foi contra as suas costas. Jesus sentiu uma forte dor pelo encontrao eirritou-se. O outro rapaz tinha parado de correr também um pouco con- The: fuso pela colisio. Jesus voltou furiosamente para ele ¢ dis — Nio prosseguirds 0 teu caminho. O distraido rapaz caiu imediatamente morto no chao. Os pais do menino defunto dirigiram-se enfurecidos a José e admoes- taram-no com dureza: — Tendo um filho como este — diziam-lhe — das duas uma: ou nao podes viver connosco nesta povoagao ou tens de acostumar o teu filho a nao amaldicoar as pessoas, mas sim a abencoar. Vé bem o que fez com 0 nosso filho. Os pais estavam téo indignados que poucos lhes falrou para bater em José, mas contiveram-se naquele instante ¢ dirigiram-se ao chefe da sina- goga. Outras pessoas, que participavam da indignacio dos pais do rapa- zinho morto, ficaram préximas da casa de Jesus, esperando os aconteci- mentos. Entdo, José, chamou o menino, que tinha regressado a casa ¢, a tremer, admoestou-o deste modo: Por que é que fazes tais coisas? Com isso s6 consegues que nos odeiem e nos persigam. Jesus respondeu-lhe: — Eu sei bem que essas palavras ndo vém de i; algum mau espirito as tera inspirado. Mas por respeito a tua pessoa eu ficarei calado. Mas es- ses, pelo contratio, receber’ao um castigo. E nesse mesmo momento todos os que tinham falado mal dele fica- ram cegos. As testemunhas desta cena ficaram cheios de pavor e perplexi- dade. José nao se conteve e pegou Jesus por uma orelha e puxou por ela fortemente. O rapaz indignou-se com ele ¢ disse-Lhe: — Tu jé tens muito que fazer, e em buscar e ndo encontrar. Ao faze- res-me isto, realmente, portaste-te com muito pouca cordura. Nao me se- jas causa de aflicao™” Jesus olhou em volta ¢ percebeu a indignagao de todos contra ele. Para evitar uma segunda altercacao, pegou o rapaz defunto pela orelha, suspen- deu-o no ar e pds-se a falar com ele, pelo que voltou o espfrito ao seu cor- po e reviveu"?, 140, Eeangelho do Pseudo Tomé, 41-5,3. 141. Boangelho do Prerido, Mateus, 29 89. eee 90 een Alguns visitantes que viram tudo isto disseram espantados: «De onde vird este rapaz que todas as suas palavras se tornam em factos consumados?». Jesus ja tinha, nessa época, idade para ir 4 escola € os seus pais ocupa- ram-se do assunto, como era usual entre os judeus. Na Palestina nao havia menino, por muito pequena que fosse a aldeia onde yivesse, que de algum modo nao tecebesse a instrugao necessdria para aprender a ler, escrever € entender os livros da Lei. Pelo menos 0 pai, sc nao havia um professor na sinagoga, era o encarregado de lhe ensinar, obrigatoriamente, as letras ne- cessdtias. Havia, em Navaré, uma escola na sinagoga ¢ 0 seu professor cha- maya-se Zaquew. Tinha ouvido muitas coisas sobre Jesus e tinha interesse que ele passasse pelas suas mos na escola. José, que conhecia de sobra a sabedoria do menino, tinha-se mostrado um tanto renitente em mandar Jesus para a Escola. Os outros meninos, mais novos um ano que Jesus, j4 tinham comegado a frequentar as aulas. O professor encontrou-se um dia com José e disse-lhe: — Serd que tu ndo queres mandar o teu filho & escola para que seja ins- trufdo nas letras ¢ nas boas maneiras? Vejo que tanto tu como Maria co- locam o vosso filho acima da tradigz0 dos anciaos. José respondeu: — Tu pensas que alguém sera capaz de governar e educar este rapaz? Ele daa impressao de saber tudo. Mas Zaqueu insistia na sua proposta ¢ Jesus acabou por ir para a es- cola, Comecava nessa altura um novo periodo de aulas. Zaqueu, diante de Jesus, esforcou-se com cuidado por lhe explicar os rudimentos das letras, comegando pelas gregas (na Palestina era necessdrio saber também a lin- gua da Hélade, uma vez que os vizinhos da Decapolis e da Sitia meridio- nal empregavam continuamente o grego para o comércio € para as mani- festacGes religiosas e culcurais, como 0 teatro) e, depois, pelas hebraicas. E, assim, foi-lhe explicando 0 som de todas as letras, com grande esmeto e transparéncia, desenhando-as numa ardésia, do alfa ao émega. Jesus olha- va-o fixamente e numa pausa das explicagdes disse ao professor: — Como € que te atreves a explicar aos outros 0 beta, se tu proprio ignoras a natureza do alfa? Hipécrita, explica primeiro a natureza intima e verdadeira do alfa ¢, depois, acteditarernos no que disseres em relagao as outras letras. Entao, o menino comegou a interrogar 0 professor sobre a natureza da primeira letra, por que razdo tinha esses wacos € nao outros; o que signi- ficava 0 trago transversal ¢ odo o conjunto e que sentido profundo tinham a sua homogeneidade, equilibrio ¢ proporcao. Tentou, depois, esclarecé-lo como a prépria Verdade esta presente espiritualmente em todas as letras do alfabeto: assim, o alfiz € a cabeca € 0 dmega o pescogo, 0 beta ¢ 0 psi, 0 om- bro eas mios, etc., e como todo © corpo ¢ conjunto da Verdade estd repre- sentado nas restantes letras”. O mestre Zaqueu nao conseguia sair do seu assombro ¢, desconcertado perante a erudicao que o menino manifestava, disse aos presentes: — Ai de mim! Nao sei 0 que fazer, pois eu mesmo sou a causa desta confuséo a0 trazer para a minha escola este rapaz Entao, devolyeu o menino ao pai com estas palavras: — José: nao consigo suportar a severidade do seu olhar nem consigo compreender o seu discurso. Enganei-me: cobigava ter um aluno e encon- "9. Mas José, tu sabes tao bem como eu trei um mestre, a quem nio sigo' que nao é bem visto que o menino deixe a escola. Eu conhego outro pro- fessor, que se chama Levi, na povoagao ao lado, que é muito mais sébio que eu. Por que é que nao 0 levamos a ele? Talvez lhe possa ensinar ou for- mé-lo em alguma coisa? José no se mostrava nada convencido. Mas, por outro lado, parecia- clhe bem que Jesus nao estivesse ausente da escola... assim, apés varias va- cilagées, voltou a consentir ¢ aceitou levar o menino a povoagio ao lado. No dia seguinte, Jesus foi conduzido 4 outra cidade e deixaram-no entre os outros alunos que esperavam fora do edificio o comego das aulas. Jesus entrou na escola € nZo se sentou no cfrculo dos outros meninos, no chao, ficando um pouco afastado, na extremidade da sala de aula. O professor Levi comegou a ligao também pelas letras e fazia frequentes pausas para fazer perguntas a Jesus. Mas nao obtinha dele resposta nenhuma. O pro- fessor tinha ouvido falar das peculiaridades do menino, pelo que decidiu ter um pouco de paciéncia ¢ continuar com as explicacées. Num momen- to da aula, Levi perguntou a Jesus: — Diz-me tu agora, qual é esta letra. O rapaz nao lhe respondeu. O professor perdeu, entao, a paciéncia, pegou numa vara de estoraque ¢ deu-lhe com ela na cabega. Quando Jesus sentiu a dor, voltou-se furibundo para o pedagogo ¢ amaldigoou-o. Nesse instante, Levi perdeu o conhecimento ¢ caiu ao chao de brugos. Nao che- 142, Ireneu, Adversus Haereses, 1 14,3. 143, Fnangetho do Pseudo Mateus, 6-7 91 geen 92 one gou a mortter,.mas ficou totalmente inconsciente ¢ nesse estado levaram- -no para casa, onde permaneceu assim dias e dias, As aulas foram inter- rompidas e Jesus voltou a casa de José sozinho e contou o que se tinha pas- sado. O ancido ficou muito constcrnado e decidiu nao deixa-lo sair de casa durante algum tempo, porque todos que incomodavam o menino ac yam por morrer”*? ou sofriam danos tremendos. Passados uns dias, José recebeu em casa a visita de um velho amigo, precisamente professor noutra localidade. Era um bom homem e com gran- de respeito pelos outros. Enquanto falava com José tinha colocado um li- vro de comentarios a Lei, que leyava consigo, em cima de uma mesa. Je- sus, ao vé-lo, pegou nele e sem sequer ler as letras nele desenhadas come- sou a explicar 0 contetido do volume aos que estavam em casa. Ficaram ba todos admirados pelas palavras de sabedoria que o menino proferia ¢ pelos seus raciocinios, to litcidos € tao bem encadeaclos uns nos outros. O pro- fessor visitante disse: «Este rapaz transborda graga ¢ sabedoriay. Jesus ou- viu-o, voltou-se para ele e disse-lhe: — Obrigado, falaste com rectidao e deste um testemunho justo. Por isso, o teu companheiro, que anteriormente foi castigado, vai ser curado. E, imediatamente — segundo contou quem viu—, 0 outro preceptor saiu do seu profundo coma e ficou totalmente restabelecido. Quando co- municaram a recuperacao de Levi, José sentiu-se extraordinariamente ali- viado, j4 que estava bem consciente da distorcida imagem que Jesus pode- ria dar a todos aqueles que nao 0 conhecessem profundamente: juntamen- te. com 0 assombro e a admiracao, o menino apresentava a imagem de um sapaz colérico, vingativo, insolente e malicioso; um aluno sabichao, mal- -educado e arrogante. Jesus tinha-se convertido, aparentemente, numa criatura altamente perigosa ¢ temida pelos seus companheiros, uma espé- cie de mariola, um velhaco raivoso ¢ insuportavel, € uma fonte de preocu- pacao para ele, José, que tinha toda a responsabilidade perante os vizinhos e as autoridades, assim como para a sua mae. Para além do aparente fracasso do episédio da escola, a vida decorria normalmente. Jesus costumava acompanhar © pai \ ci intaria, onde se entretinha a fazer coisinhas. As crénicas contam-nos pclo menos dois fac- tos interessantes em relacao ao trabalho de madeira e em ambos se tratava de como Jesus péde corrigir os erros de José em relagdo a umas pecas que 144. Evangelbo do Pseudo Tomé, 14. tinham medidas erradas, Num caso tratava-se de uma cama de grande os- tentacao, feira num tipo de cedro exético, que teve de vir expressamente através de uns mercadores sirios. O Jeito tinha sido encomendado por um jovem sico que ia desposar uma rapariga, também cla rica. Quande a ca- ma ficou concluida jé se tinha gasto todo o material, José abservou com horror que uma das varas ou trayes da estrutura inferior, onde se colocava o colchao sobre travessas, também de madeira, era mais pequena que a ou- tra. José meditava no que fazer, uma vez que nao podia reduzir as medidas todas da cama. Jesus, ao perceber, veio em sua ajuda e, com um simples gesto de cabeca, fez com que as duas traves ficassem exactamente iguais”. Uma coisa parecida aconteceu com um cadeirao especialissimo, uma espé- cie de trono, para uma figura muito poderosa de Jerusalém, que o tinha encomendado expressamente a José, apesar da distancia: tanta confianca tinha no seu trabalho! Terminada a complicada tarefa, que levou quase dois anos, verificou-se que as medidas nao cram totalmente correctas. Je- sus nao se apressou, mas disse ao pai que puxasse de um lado enquanto ele proprio puxava do outro, E num instante o imenso cadeirao adquiriu as justas proporgoes". Gerto dia, José chamou o seu filho Tiago que, como sabemos, vivia com Maria ¢ Jesus, ¢ mandou-o i a um horto préximo apanhar umas cou- ves para um guisado. Jesus prestou-se a acompanhé-lo. Enquanto Tiago andava a rebuscar no solo, tentando tirar as couves da melhor maneira possivel, uma vibora que serpenteava com dificuldade por entre as ervas mordcu-o na méa. Tiago sentiu uma dor muito aguda e, depois, pareceu- -Ihe que a mao lhe ardia atrozmente. Por momentos sentiu-se a desfalecer ¢ gritou a Jesus que se tina afastado um pouco para observar uns passa- ros. O menino aproximou-se dele a correr. Ao compreender 0 que se ti- aha passado, langou uma forte voz¢, nesse instante, o réptil apareceu dian- te dos seus olhos, humildemente, ¢ completamente rendido. Jesus orde- nou-lhe: «Chupa de novo todo o veneno que inoculaste no meu irmao». A serpente arrastou-se até ele ¢ chupou-lhe todo 0 veneno e, apds isto, 0 menino fulminou contra ela uma maldicdo e, nesse instante, o animal re- bentou: Depois, soprou sobre a mao de Tiago que, de repente, voltou a ficar como estava antes da mordedura™”. 145, Evangelho do Preuda Mateus, 41. 146. Evangeihe Arabe da Infitncia, 39. 147. Evangelhe do Pseudo Mateus, 41; Evangelho Arabe da Infiineia, 42. 94 eon Os anais contam, também, que, noutra ocasiao, Jesus restituiu mila- grosamente o pé a um jovem que o tinha cortado com um machado. O in- feliz. esvafa-se pela imensa hemorragia, mas a presenca de Jesus salvou-o, 0, mo- tibundo —, continua a cortar lenha e lembra-te de mim de ora em diante. E com estas palavras juntou 0 pé ao coto e ambos ficaram colados co- mo se nada tivesse acontecido. Do mesmo modo, ressuscitou de entre os mortos um menino muito pequenino € curou outros rapazes de diversas doengas, miudezas que nao vale a pena contar aqui”, Mais curioso foi, talvez, 0 caso do cantaro partido: uma vez a sua mae deu-lhe uma vasilha de barro para que fosse enché-la de 4gua a fonte e.a trouxesse para casa. Jesus fez 0 que cla Ihe pedira, mas, no regresso, wopegou no caminho com — Ki, levanta-te — disse ao rapaz, que estava estendido no c outro menino ¢ 0 cantaro partiu-se. Jesus voltou compungido a fonte. As- sim, ocorreu-se-lhe estender 0 manto com que ia coberto, encheu-o de agua assim transportou para casa a quantidade que a mae precisava. Esta, ao ver tal maravilha, comegou a beijar Jesus, ¢ ia guardando no coragio™ t dos os mistérios que o via realizar!™”. Os juceus piedosos, que viviam fora da capital, costumavam it até a0 Templo de Jerusalém uma vez por ano, por ocasiao de alguma das grandes festividades, sobretudo pela Pascoa ou pela festa dos Taberndculos. José nao era excepgao; costumava ir todos os anos, varias vezes, a partir da Ga- lileia. Frequentemente reuniam-se varias familias para que a viagem fosse mais agradavel e se protegessem mutuamente contra os bandidos que as- solavam os caminhos, sobretudo na Samaria (os samaritanos aproveitavam a passagem para despojar o mais que pudessem seus inimigos judeus). Num dos regressos dessas viagens, quando Jesus tinha oito anos, 0 grupo dos seus pais e vizinhos seguia 0 caminho que a partir de Jericd, ¢ j4 depois de Jerusalém, subia para norte, préximo do rio Jordso. Nao longe do ca- minho ¢ também muito perto do rio, num bosque de coniferas ¢ numa pequena cleyacao do terreno, havia uma profunda gruta, que era 0 escon- derijo onde uma leoa amamentava as suas crias, Aquela zona era famosa, porque frequentemente os caminhantes viam-se confrontados com a nao muito agradavel visita de alguns dos grandes felinos daquela drea. Quando Jesus passou por ali, a leoa tinha precisamente paride quatro crias, A vista 148. Evangetho do pred Tomé, 17 & Evangelho Arabe da Infincia, 27.28,30. 149. Lucas, 2,51 150. Evangelho do Preudo Mateus, V1 de todos, Jesus afastou-se do caminho e dirigiu-se resolutamente para 0 es- conderijo do animal. Todos os presentes ouviram os terriveis rugidos que os fizeram tremer. A vista de todos — encontrava-se num alto — Jesus en- trou na gruta sem pensar duas vezes, Os ledezinhos, ao yé-lo, correram pa- ra ele e puseram-se a brincar, mordiscando-o, saltando ¢ correndo. Fora da gruta, a certa distincia, havia um casal de ledes. Estes nao se mexeram do lugar onde repousavam, mas faziam festas a Jesus com as suas caudas. As pessoas, de longe, horrorizadas, observavam aquela cena. Alguns pensaram: «Se este rapaz, ou os seus pais, nao fossem uns grandes pecadores, nao se teria lancado tao espontaneamente aos ledes». Jesus saiu, por fim, da grura eas feras seguiam-no. Perante isto, muitos dos caminhantes comecaram a fugir, abandonando o caminho € escondendo-se por onde podiam. Jesus, em voz alta, disse para que todos 0 ouvissem: «S40 muito melhores estes animais que reconhecem e glorificam o seu Senhor, que muitos homens!», E deixou os animais para se juntar novamente ao grupo. O trabalho de José aumentou muitissimo em Cafarnaum, pelo que tinha de passar ali grandes temporadas ¢ fazer continuas viagens a Nazaré. A familia pensou que talvez fosse melhor mudar-se temporariamente para essa cidade para evitar ao chefe de familia ea eles prdprios tao incémodas auséncias e, de passagem, acabar com algumas maledicencias que os estra- nhos comportamentos de Jesus por vezes provocavam'™. Dito ¢ feito: José arrendou uma casa em Cafarnaum ¢ todos se mudaram para |4 com sa- tisfacao, pois a cidade era muito maior e alegre do que a aborrecida Naza- ré, Além disso, tinha o mar da Galileia as suas portas ¢ isto era uma atrac- Gio acrescentada, sobretudo pela possibilidade de pescar. Ali, Maria tes- temunhou um curioso caso com duas mulheres, casadas com 0 mesmo homem. Embora nao fosse frequente na época, a poligamia nao era de modo nenhum condenada na Palestina € até havia quem a tolerasse com certa condescendéncia, Nao era em vao que nas santas escrituras se lia que 1 patriarcas, camo Jacob, ¢ até certo panto Abraao, tinham sido po- ligamos, ¢ que Deus tinha tolerado ¢, inclusive, talvez abengoado esta pra- tica, Cada uma destas duas mulheres tinha um filho e aconteceu que am- bos tiveram febre ao mesmo tempo. Uma das mulheres, cujo filho se cha- sus ¢ da influéncia de sua mae sobre ele. Lembrou-se de visitar Maria ¢ pedir-lhe ajuda, ao mesmo tempo que antige mava Cleofas, sabia dos podcres de fae 151. Evangelbo do Peeude Mateus, 40. 95 eee 96 eee the oferecia um belo véu. A mae de Jesus deu-lhe, por sua yez, um dos len- ¢6is que utilizava para.a.cama do seu filho. Dele, a mulher fez uma espécie de tiinica e vestiu-a ao seu filho febril. O rapaz curou-se no instante da sua febre, 0 que nao aconteceu ao filho da outra mulher, que morreu poucos dias depois: a mae de Cleofas no se lembrou de emprestar, ainda que fos- se por um momento, a tinica feita com o lencol de Jesus, mas, antes, quis que o seu filho andasse sempre com cela vestida. Por este motivo, suscitou- -se entre as mulheres uma profunda inimizade. Era costume, na casa, que cada uma delas se encarregasse dos trabalhos domésticos em semanas alternadas. Numa das semanas era a vez da mac de Cleofas. Ocupada com os seus servigos domésticos, acendeu 0 forno para cozer pao ¢, deixando o filho junto dele, saiu para ir buscar farinha ¢ amas- s&la. A rival, ao perceber-se de que o menino estava s6, pegou nele e com grande édio ¢ ressentimento atirou-o para o forno. Depois, fugiu a toda a pressa, Quando a mae de Cleofas regressou viu que o filho nao estava ali, mas encontrou-o sorridente no meio das chamas, brincando entre clas, ¢ observou que tinha vestida, efectivamente, a ttinica feita do lengol que Ma- ria Ihe tinha dado. Fez sair imediacamente 0 menino do forno, com a segu- ranga absoluta de que a sua émula o tinha atirado para ali. Tomou o seu fi lho e foi, apressadamente, contar tudo a Maria. E esta disse-lhe: — Aconselho-te prudéncia e que nao digas nada; pois temo por tie pelo teu filho se contares isso a alguém. A mulher seguiu o bom conselho de Maria. Mas a sua rival ardia de desejos de acabar com a vida do filho da sua companheira. Num outro dia, numa altura em que o rapaz estava s6, préximo do poco da casa, ¢ vendo que nao havia testemunhas, pegou no pequeno e atirou-o para dentro do pogo. A seguir, fugiu dali e foi ao mercado. Mas as coisas nao correram bem ALassassina, porque o menino, que continuava vestide com a mesma tiinica, ndo sé magoou e brincaya com a agua a superficie do poco sem se afogar. Amie de Cleofas, entretanto, estava desesperada, procurando ¢ perguntan- do a todos pelo paradeiro do filho e temia o pior. Mas uns homens, que ti- nham ido buscar agua & casa, haviam testemunhado aquele episddio no fundo do pogo e, maravilhados, tinham retirado o menino para a superfi- cie. A mae de Cleofas foi novamente a correr falar com Maria ¢ contou-lhe mais uma vez 0 que se passara: temia que mais tarde ou mais cedo a sua rival conseguisse acabar com a vida do seu filho. E Maria disse-lhe: — Nao te preocupes porque Deus encarregar-se-d deste assunto ¢ vin- gar-te-d dela. Nao passou muito tempo até a outra mulher ter de ir ao pogo buscar gua. Sem saber como, os seus pés enredaram-se nas cordas € uma ver que 9 bocal era muito baixo, tropecou e caiu dentro do pogo. O s tava proximo e ao ouvir os gritos correu com outros homens para a tirar de 14. Conseguiram-no, néo sem um certo esforco, mas encontraram-na com a tu marido es- cabeca cheia de feridas e com alguns ossos fracturados, de modo que nao puderam curé-la com nenhum medicamento. Dois dias depois morreu. Nao sé as pecas de vestudrio, como também a Agua que tivesse tocado 9 corpo ou as roupas de Jesus tinha poderes especiais. As cenas de cura de lepra e de outras doengas da pele, que ja conhecemos desde a viagem ao Egipto, repetiram-se em Israel, assim como a expulsdo de diversos demé- nios que nos pouparemos de voltar a contar"”. O ultimo dos grandes prodigios da sua infancia, realizou-o Jesus por volta dos doze anos, tal como se conta no livro canénico de Lucas”: Jesus confrontou-se com os doutores ¢ eruditos de Israel, aos quais fazia pergun- tas relativas as suas proprias especialidades, até de astronomia ou de fisica, respondendo, por sua ver, 36 questées que os doutores Ihe propunham, Masa partir do seu regresso a Nazaré-Cafarnaum Jesus comecou a ocultar os seus milagres e a dedicar-se a viver sem chamar a atencdo nem dos ho- mens nem dos deménios, ecupado no seu trabalho de carpinteiro € no es- tudo da Lei’ Este € 0 motivo pelo qual desde os doze aos trinta anos nao se pode contar nada de especial sobre ele, uma vez que tinha decidido levar uma vida oculta aos olhos de toda a gente. 152. Eeangelbe Arabe da Infeneia, 22, 31-34. 153, Lucas, 2, 40-52. 154. Evangelbo Arabe da Infincia, 0-44, 97 eee 98 e277 CapiTuLo VIL A MORTE DE JOSE Quando Jesus cumpriu os dezoito anos, a vida de José chegou ao seu termo. Os seus tiltimos momentos foram contados pelo prdéprio Jesus aos seus discipulos numa longa conversa que teve com eles no Monte das Oli- veiras. Ali, relatou-lhes uma pequena parte da sua vida oculta, sobretudo no que se refere ao anciio que tinha cuidado dele e de sua mie. Houve um discfpulo que consignou por escrito uma parte desta histéria™’, pas- sou-a a limpo num belo manuscrito ¢ depositou-a na Biblioteca de Jeru- salém, indicando o dia em que o ancido se separou do seu corpo: a 26 do més egipcio Epep, que equivale ao nosso 20 de Julho do ano 42 do prin- cipado de Augusto. Embora José tivesse entao uma idade muito avangada, cerca de cento € onze anos, o seu corpo nao estava débil, nem tinha falta de vista, nem havia um 6 dente estragado na sua boca. Nunca lhe faltou a cordura nem a prudéncia e as suas decises eram sempre guiadas por uma sé inteliggn- cia. Mas, finalmente, sucumbiu a sorte de todo o mortal co scu corpo su- cumbiu, vitima da doenca. Um anjo, como tinha acontecido com Abraao, tinha-o avisado que nesse mesmo ano morreria. Mas, a propésito, José nao fora tio desobediente como se diz do préprio Abraao que, ao receber a noticia do seu préprio falecimento, fez saber categoricamente ao porta- dor dela, Miguel, nao estar disposto de modo nenhum a segui-lo para o outro mundo”*®. José, simplesmente, antes de ficar doente, fez uma via- gem a Jerusalém para se despedir do ‘Templo do Senhor. 155. Historia de José, 0 Carpinteiro. que ¢ 4 nossa base até ae final deste capitulo. 156, Téstamento de Abrado, 7, 11. Ali, diante da presenga de Deus, fez uma espécie de confissao de todos as seus pecados ¢ arrependeu-se de tudo aquilo que julgava ter feito mal. A sua delicada conscitncia exagerava, provavelmente, quando se acusava a si mesmo de algumas transgressées que na realidade nao tinha cometido. Depois suplicou a Deus que, perante o'amargo transe que se Ihe avizinha- va, 0 arcanjo Miguel nao se afastasse do seu lado. Assim, a sua alma sairia do corpo sem dor nem perturbagao e poderia percorrer com tranguilidade o caminho além-timulo até chegar 4 divindade. Tal como se pensava vul- garmente na época, José temia os deménios que se encontravam nesse tra- jecto, que mudando constantemente de face tentavam assustar a alma que transitava junto deles, e sentia pavor perante a proximidade do guardiao do inferno ou das ondas do rio de fogo onde as almas seriam acrisoladas, na outra vida, antes de aleangar Deus”, E tezou assim: — Oh, meu Deus! Nao consintas que a minha alma caia nas maos do guardiao do inferno ¢ nao me confundas no teu formidavel tribunal. Nao permitas que as ondas desse rio de fogo, que é 0 inferno, se voltem furiosas contra mim. Oh, meu Deus, que julgas a todos na verdade ¢ na justiga, oxald a tua misericérdia me sirva de consolo, j4 que tu és a fonte de todos os bens ¢ a ti se deve toda a gloria pela cternidade das eternida- des! Amen. O processo da doenca foi muito répido: em breve se alterou a sua ra- 240 e esqueceu-se de comer e de beber, ressentindo-se a destreza no desem- penho do seu oficio. Ao amanhecer do dia 26 do més Epep, José foi pre- sa de uma grande agitacdo enquanto estava no seu leita ¢ pés-se a gritar fora de si: Ai, miserdvel de mim! Ai do dia em que a minha mae me trouxe a este mundo! Ai do regaco em que fui embalado! O bom ancido continuava a agitar contra si mesmo os fantasmas de algumas imperfeigées da sua vida passaca, verdadeiros escripulos de uma consciéncia delicada, e temia o momento de se apresentar perante o tribu- nal divino. E comecou a gritar: — Ai da minha lingua e dos meus labios, que proferiram injtirias, enganos, detracgées ¢ caliinias! Ai dos meus olhos que viram escindalos! Ai dos meus ouvidos, que ouviram com gosto conversas frivolas! Dirigia, assim, duras queixas contra outras partes do seu corpo que podiam ter sido causa ou ocasiéo de pecado — como maos, yentre e pés — 157. Histiria de José, 0 Carpinteiro, V3. 99. eee 100 eee ¢ lamentava-se das suas imperfeitas accGes, uma por uma, praticadas num remoto passado, Mas, por fim, a sua alma tranquilizou-se ¢ disse: — Tu, Jesus, Deus, que és 0 meu advogado, cumpre em mim a tua divina vontade. Jesus apresentou-se & cabeceira da cama de seu pai e consolava-o, in- yocando a necessidade de todo 0 ser humano ter de efectuar em qualquer momento o trinsito para o Pai e que, no seu caso, nao ia ser de maneira nenhuma terrivel. Depois, sem que © seu pai o vise, também a Jesus The saltaram as lgrimas, vendo como a morte ia tomar conta de seu pai. E, naquele momento, veio-lhe ao pensamento a ideia de que também ele ha- yeria de sofrer uma morte cruel na cruz, as mos dos judeus, ainda que de- la resultasse a vida para o mundo. Maria, por seu lado, nao conseguia compreender muito bem a neces- sidade de que José se visse sujeito a esta obrigagéo como os outros mortais. — Porventura ira morrer— d teu pai adoptivo? Jesus respondeu-lhe: — Ninguém entre os humanos, nem sequer tu propria, escapard a es- ta sorte. Mas consola-te, j4 que a este momento nao se deveria chamar morte, mas sim passagem para a vida eterna. Também eu hei-de passar por este transe por causa da carne mortal com a qual me revesti. Durante toda a agonia, Jesus manteve-se 4 cabeceira da cama de José e ia—0 bom ¢ abengoado ancido do José, Maria aos seus pés. José cravava o olhar no costo de Jesus, por vezes sem poder articular uma palavra; outras, proferindo alguns gemidos. Jesus aca- riciava-lhe maos € pés e punha a mao, de vez em quando, no peito do an- ciao para the tranquilizar a alma. E José ficava por momentos tranquilo. De entre os filhos e filhas do anterior casamento do anciao vieram os que puderam para acompanhar 0 pai nesses momentos. Uma delas, cha: mada Lisia, atreveu-se a levantar a voz ¢ dizer aos seus irmaos: — Juro-vos, meus queridos irmaos, que esta éa mesma doenga que tomou conta da nossa m4e, que nao tinha voltado a aparecer até agora. Is- so mesmo acontece com 0 nosso pai José, para que nao voltemos a vé-lo até a cternidade. Entao, todos irromperam, de novo, em pranto ¢ a eles se juntaram Jesus e Maria, Ao fim de nao muito tempo, a Morte apareceu com um cortejo de de- ménios que olhavam para José com rosto colérico ¢ raivoso. Embora nao fossem visiveis ao homem normal, José péde ver, nesse momento, 0 hor- rivel cortejo que pretendia — inutilmente — apoderar-se-lhe da alma. Jesus interveio ante seu Pai celestial nesse instante e pediu assim: — Envia administrador dos teus bens, ¢ com Gabriel, o bom mensageiro da luz, pa- Ta que acompanhem a alma do meu pai José. Que nao se veja obrigado a empreender esses caminhos infernais, terriveis para o viajante por estarem infestados de génios malignos. me um grande coro de anjos, juntamente com Miguel, o Entao, tornou-se também visivel para 0 anciéo 0 cortejo dos anjos bons. O semblante de José alegrou-se quando observou que muitos mais anjos bons que maus estavam & espera do momento da sua partida deste mundo com rosto sorridente. Jesus disse-lhe: — Pai: ndo te -verds forgado a empreender os caminhos infernais nem terds de atravessar o lugar assombroso por onde passa o rio de fogo tao en- capelado como as ondas do mar, mas os anjos do meu Pai far-te-Ao repousar nas suas mos. Quando José exalou 0 espirito ninguém se apereebeu disso, salvo Je- sus que continuava sentado & sua cabeceira. Por pedido de Jesus, os anjos tomaram a seguir a alma dele ¢ envolye- ram-na em lengdis de seda, O Salvador recomendou a Miguel e a Gabriel que servissem de defesa 4 alma do seu pai contra os génios que o espreita- vam no caminho do além-tiimulo. FE assim foi: 0 espirito de José foi tras- ladado directamente para a divindade sem percorrer 0 penoso caminho dos outros mortais. Os anjos, por seu lado, comecaram a entoar canticos de louvor enquanto a alma do patriarca se apresentava ante o Pai Eterno. Entao, Jesus disse a todos os circunstantes: — José jf ndo est4 neste mundo. Jé morreu. Mas a sua morte no é morte, mas sim vida eterna. E todos ficaram admirados de nao terem percebido 0 momento da morte. Os irmaos de Jesus rasgaram as vestes ¢ choraram durante muito tempo, O jovem Jesus, abengoou 0 corpo de seu pai ¢ ordenou a dois anjos que o amortalhassem, Todo 0 pove de Nazaré participou no funeral e as carpideiras estiveram a chorar por ele do amanhecer até A hora nona, ou seja, até ao meio da tarde. Jesus exclamou em voz alta, ante os presentes: — Nio deixarei que o corpo dele seja presa d fétida da morte nem softa corrupeao, Ficaré intacto até ao dia da primeira ressurreigao, quando se levantarem os martires ¢ reinarem comigo durante mil anos paradisia- ( 101 ene 102 enn 158) cos de reino de Deus nesta terra’. E, em relagao a todos aqueles que honrarem a memoria do meu pai na terra, seja com esmolas ou impondo © seu nome aos seus filhos, farei com que ao abandonarem este mundo de- sapareca o livro celeste onde estio esctitos os seus pecadas ¢ no sofram tormento algum. Um pouco mais tarde, apresentaram-se em casa os anciaos da cidade, juntamente com os coveiros, para levar a cabo o enterro, ¢ encontraram 0 corpo do patriarca bem preparado: a mortalha tinha-se moldado tio bem ao contorno da sua figura que parecia que a tinham prendido com gan- chos de ferro e quando removeram o cadaver nao encontraram nenhuma abertura nela. A seguir teve lugar a condugao do corpo de José até ao ti- mulo familiar, onde foi enterrado junto de seu pai Jacob. Quando estavam a colecaro cadaver na cova, Jesus’emodionoii-se, te- cordando o que o bom anciao tinha feito por cle, desde.a fuga para o Egip- to até ao momento presente, passando pelas grandes preocupagoes que ti- nha softido por sua causa durante tanto tempo. Mandou parar os coveiros e, deitando-se sobre 0 corpo do anciao, cho- rou durante muito tempo. Depois, exclamou em voz alta: — Oh, Morte, de quantas ldgrimas ¢ lamentos és causadora! Mas es- te teu poder vem d’Aguele que tem sob 0 seu dominio todo o universo. Tal censura n4o vai, porém, tanto contra a morte quanto contra Adfo ¢ Eva, que ao nao se submeterem 4 vontade divina cometeram uma trans- gressao. Se Adao nao tivesse sido desobediente, o meu Pai nao 0 teria cas- tigado com este terrivel flagelo. E eu préprio, que transporto também es- ta carne, devo experimentar com ela a morte para que possa apiedar-me das criaturas que criei. Quando 0s apéstolos de Jesus ouviram esta historia da sua propria bo- ca, disseram ao Mestre: — Agradecemos-te, Senhor ¢ nosso Salvador, por te teres dignado a presentear-nos com estas palavras. Mas admira-nos muito, pois nao con- seguimos explicar como, tendo concedido a imortalidade a Elias ¢ a He- noc, que estao a desfrutar dos bens celestes na propria carne em que nas- ceram, nao tenhas feito o mesmo com José, a quem chamaste pai, segundo a carne da qual descendeste ao nascer em Belém e nao lhe tenhas conce- dido a imortalidade para viver eternamente. 158. Conforme o Apocalipse 20,4-6. Jesus respondeu: — Asseguro-vos que chegar4 o momento em que também hao-de mor- rer. A sentenga pronunciada por meu Pai contra Adio no ficard sem vi- gor. Morrerao num dia de perturbagio, de medo, de gritos, de perdigao € de aflicao. Haveis de saber que 0 anti-cristo matara esses dois e derramara © set sangue sobre a terra, como a agua de um copo. Os discfpulos compreenderam que se tratava dos momentos antes do fim do mundo e do juizo final ao qual teriam de se submeter também He- noc ¢ Elias. Ficaram tranquilos ¢ louvaram Jesus seu Pai. ° a A S S 104 wee CapiruLo VIIL O MINISTERIO PUBLICO DE JESUS Apés a morte do seu pai adoptivo, Jesus permaneceu ainda doze anos praticamence sem sair de Nazaré. Tinha herdado a clientela do seu pai € nao lhe faltava trabalho na carpintaria... de modo que andava sempre mui- to ocupado. O resto do seu tempo dedicava-o ao estudo da Lei e & refle- xio sobre ela. Quando aparecia pela Galileia algum estudioso da Tora, que inflamava 0 povo com as suas prédicas, Jesus ouvia-o com gosto. Mas, ge- ralmente, os dias transcortiam com notavel monotonia. A tinica coisa in- teressante foi o casamento de Simedo ¢ de Tiago, pelo que Maria ¢ Jesus ficaram sés. Jesus contribuiu admiravelmente para as bodas, como se de seus filhos se tratasse. Ao cumprir crinta anos, Jesus soube que tinha chegado 6 momento de abandonar o anonimato ¢ de comunicar a todo o Israel o que durante longos anos tinha ido emadurecendo dentro de si. Inicialmente, devia ter frequentado as pregagdes e a companhia de Jodo Baptista, seu primo, até se tornar um dos seus discipulos. E foi assim que comecou a sua vida pi- blica. Mas a existéncia do «outro Jesus» nesta importante etapa vital fica- nos também quase toda ela encoberta no maior dos mistérios. E a razao que explica este facto é simples: os antigos arquivos, dos quais nos servi- mos, mal se ocupam deste espaco da vida de Jesus, jd que estava relativa- mente bem coberto pelos documentos candnicos. Por isso, passamn rapida- mente para outros momentos da actividade do Navareno sobre os quais possam trazer algo de novo aos seus leitores. Serd, no entanto, interessante indagar em dois aspectos sobre os quais nos deixaram alguma indicacdo mais precisa: Jesus € 0 sexo e a doutrina secreta do Mestre. Trataremos es- tes dois assuntos em posteriores capitulos, Agora, vamos concentrarnos no que de novo nos oferecem as nossas escassas fontes de informagao sobre a vida ptiblica de Jesus. Os nossos documentos também nao se interessam especialmente pelo aspecto exterior € pela figura corporal de Jesus nesta época da sua vida de maior projec¢ao ptiblica; as noticias a este respeito sto contraditérias, uma vez que correspondem a um plano de percepgao bastante subjectivo. Para uns, Jesus era extremamente feio, com o que se cumpria a profecia do pro- feta Isaias: «Nao ha nele aspecto nem beleza para que reparemos nele, nem aparéncia para que nele nos projectemos»”’; para outros, pelo contrario, Jesus era extremamente belo e bem parecido, tanto que superava qualquer outro ser humano em decoro e donaire". O primeiro episddio do qual temos alguma noticia é 0 baptismo do Navareno por obra de Joao. Como jd sabemos, o Baptista tinha feito do deserto a sua morada habitual e alimentava ahotos silvestres ¢ mel". © curioso, no entanto, é que o mel tinha para ele, por designio divino, um gosto especial; era igual ao do mand que os is- raelitas tinham comido na travessia do deserto, durante quarenta anos, em épocas passadas, ¢ 0 mesmo sabor que o da empada em azeite'™, Entao, Joao, ja adulto, estava convenciclo, pelas suas meditages ¢ pelo seu con- 2-se com os mencionados gafa- tacto com a divindade, que o fim do mundo estava préximo ¢ andava a pregar a vinda imediata do castigo divino sobre todas as nacées, 0 reino de Deus, ¢ a necessidade de se preparar para ele), Um dos preparativos, pa- ra além dos exercicios interiores de peniténcia e de disposigio para o cum- primento da Lei, era baptizar-se como sinal de arrependimento dos peca- dos passados e como atributo de mudanga interior para 0 futuro". As- sim, Joao andava a baptizar nas margens do Jordao todos aqueles que fi- cassem conyencidos pela sua pregacao sobre o iminente ¢ terrivel Juizo. Ia até cle muitissima gente de Jerusalém, inclusive da seita dos fariseus, que se consideravam quase perfeitos. Também Jesus, quando chegou aos trinta anos de idade, a oito de Novembro", ou talveza scis de Janeiro, tomou a decisdo de se deixar baptizar pelo veemente pregador, depois de terem in- 159. sats, $3,2-3. Testemunhos recolhidos em Justino, Didlogo com Trifto, 14. 49. 85; Irene, Adversuis Haereses IIL 19,2; WV 33,12; Tertuliano, De Carne Christi, 9, ete. 160. Testemunhos em Clemente de Alexandria, Strantete I 5.21; Actos Apéerifas de Jodo, 73. 74. 161. Mareos, 1,6. 162. Heangetho dos Fbionitas, 4 (de Santos, 51) 163, Liecas, 3.7. 164. Mateus, 3,73. 165, Cf. os testemunhos tributados por Epiftinio de Salamina, Panarion L116. 24. 28. 166. CE Clemente de Alexandria, Seromata | 21, 146. 105 eee 106 ewes tercedido a sua mae € os seus irmaos, uma vez que ele, inicialmente, nao estava muito convencido da necessidade de tal baptismo. E diziam-lhe: — Joao baptiza em remissao dos pecados; vamos também nds e seja- mos baptizados por ele. Jesus nao gostava da ideia e replicava-lhes assim: — Que pecados cometi cu para que tenha de ir ¢ ser baptizado? A nao ser que isto que acabo de dizer seja errado e¢ eu esteja enganado'”. De facto, 0 corpo material de Jesus, também chamado «psiquico»"® pelos gnésticos, podia estar necessitado de alguma purificagio, uma ver que era material”, Seja como for, a verdade € que, segundo os nossos do- cumentos, impelido pela sua mae, Jesus desceu até ao Jordao"™. Estranha- mente, Joao, apesar de ser seu primo, nao o reconheceu"”; mas ja se en- carregariam os factos de fazé-lo saber quem vinha para receber as Aguas lustrais. O antigo patriarca Levi, num escrito que circulava como o seu Testamento, tinha ja profetizado que Jesus receberia © baptismo, No scu Ieito, pouco antes de morrer, tinha dito assim: «Os céus abrir- templo glorioso descerd sobre ele a santificacao com a voz do Pai, como a voz de Abrado a Isaac. Ser-lhe-4 concedida a gléria do Altissimo ¢ 0 Espi- rito da sabedoria repousara sobre ele na dguan'”. Quando chegou a sua vez, Joao fez-lhe sinal para que se metesse no rio até meio corpo; era j4 Primavera e fazia calor, pelo que nao era incon- veniente molhar a roupa na cortente sagrada. Joao colocou uma méo na cabega de Jesus e empurrou-a com uma certa forca para baixo, de modo que as 4guas o cobrissem completamente por instantes. Logo que Jesus se se-a0 e do Icvantou, os céus rasgaram-se e todos os presentes viram como uma pom- ba muito branca descia das alturas e penetrava nele. Isto significava que to- daa fonte do Espirito descansava sobre ele e penetrava dentro dele. Nes- se momento ouviu-se uma vor ténue, mas perfeitamente audivel, que pro- 167. Evangetho dos Nitsitrenos, 31 (de Santos, 42, que o atribui ao EvHeb). Sobre a diferente atti- buicdo dos fragmentos, cf. A, Piero (Ed.), Las Fuentes del Cyistianismo. Cap, «Los Evange- lios apéctifos», Céscova (EL Almendro) 1992. 168. Hg trés partes no homem, segundo os gndsticos: a corpérea (ou chilicay), aanimada ou dota da de alma («psiquicas) © a espiritual (ou «pneumiticar). Sa dlkima é que pode jumtai-se & divindade, por ser consubstancial com cla e no estas, de modo neahum, afectada pela materia. 169, Pistis Sophia, 59. 170, Pregagéa de Peulo (recolhido por Ps. Cipriano, De rebaptismate, 17 = de Santos, 435). 171. Joao, 1,31 172. Testamento de Levi, 18,6-7 (Edic. A. Pinero, Apdcrifos del Antiguo ‘Testamento V. Madrid (Cris tiandad], 1987, p: 60. cedia do Espirito que se encontrava ja nas cntranhas de Jesus: «Meu filho ~ disse — através de todos os profetas estava 4 espera que viesses aqui e pu- desse descansar em ti. Pois cu és 0 meu descanso, meu Filho primogéniro, que reinas para sempre»'”®. E para que os circunstantes ouvissem melhor soou uma voz celeste, forte ¢ potente, que retumbou como um exército de trovées: «Eu gerei-te hoje. ‘Tu és meu filho, o amado; em ti encontrei as minhas complacéncias». Joao era o mais assombrado de todos pelo que via ¢ escutava. Entao, perguntou a Jesus: — E tu quem és? Mas Jesus nao lhe respondeu nada, mas a voz celeste encarregou-se da resposta, antes de que as pessoas, congregadas nas margens do Jordo, pu- dessem sair do seu espanto: «Este € 0 meu filho, 0 amado», acrescentou a voz. E, nesse instante, uma grande luz, branquissima, iluminou todo aque- le espago'””, e viu-se um grande fogo sobre a 4gua'”, que ardia sem con- sumir matéria alguma sobre as préprias ondas do rio. Joo nao sabia o que fazer, uma vez que 0 que sc estava a passar nao tinha acontecido com ne- nhuma das centenas, ou milhares, que tinha baptizado. Com um impulso sdbito langou-se aos pés de Jesus ¢ exclamou: — Baptiza-me a mim, Senhor, rogo-te. Mas Jesus opds-se. E apenas murmurou: — Econveniente que se cumpra toda a justic: E, durante uns momentos, tornou-se visivel todo o corpo do Nazare- no, radiante ¢ formoso, como se levasse uma veste de luz”. Passados uns instantes, Jesus retirou-se rapidamente daquele lugar, mas sobre o Jordao ficaram, durante longo tempo, nuvens brancas. Alguns privilegiados yiram no ar coros de espiritos angélicos que entoavam hinos de gléria a Deus. Perceberam também como, por momentos, se deteve a corrente do Jordao e ficou estatica; e, quando as 4guas continuaram o seu curso normal, um maravilhoso aroma, como o melhor dos balsamos de nardo, estendeu-se “7 pela ribeira alcangando todos os presentes' Com este acto, iniciava Jesus os prolegsmenos da sua vida piiblica. O 173.8 174. Variante dos manuscritos Codex Vereellensis, do's. [Ve do Sangermaneniis, do's, VIL, de Mateus (de Santos, 108, 10). 175. Pregdgao de Pasilo (Ps. Cipriano), ibidem (cf. n. 12). 176. Pistis Sophia, 63. 177. Variante do Diatesaron de Taciano (WB, p. 140). ngetho dos Nazarenas, 28 (de Sanws, 41). 107 eee 108 cons seguinte episédio foi o das tentacées. Todo o mensageiro divino deve ser posto & prova antes de comegar a sua tarefa e Jesus nao foi excepcio. Os 1nossos arquivos indicam que, na realidade, a iniciativa da prova nao foi do Deménio, mas sim do prdprio Fspirito Santo, que se encarregou de o por ao alcance do Tentador, para demonstrar que o facto da tentacdo era uma permissao divina, néo uma imposigao de Sata. Com efeito, o Espirito — segundo alguns documentos, a verdadeira mae de Jesus” — agarrou o Na- zareno pelos cabelos, como antes o tinha feito com Habacuc!” ou com Ezequiel”, ¢ leyou-o para o alto do Monte Tabor, onde tiveram lugar as tenta¢Ges que jd conhecemos (pelo que nao nos deteremos nelas) ¢ 0 triun- fo de Jesus sobre o diabo'*". O passo seguinte foi a escolha dos discipulos". Nisso, Jesus actuou soberanamente: estava decidido de antemao que seriam escolhidos os me- lhores e os mais aptos para tao alta missio, os que o scu Pai tinha prepa- tado"*”. Foram os préprios discfpulos que mais tarde contaram 0 facto"; Jesus tinha cerca de trinta anos ¢ chegou um dia a Cafarnaum. J4 tinha pregado muitas vezes por aquela zona ea sua fama corria de boca em boca, pelo que alguns, mais fervorosos, estavam dispostos a segui-lo como dis- cipulos. Ali, entrou em casa de Simao e disse-lhe: —Aé pasar pela margem do lago Tiberiades escolhi como diseipulos Joao e Tiago, filhos de Zebedeu, e, agora, escolho-te também a ti, Simao. Quero que sejais doze: 0 mesmo ntimero das tribos de Israel, para que lhes sirva de testemunho'”®. E, assim, aconteceu: Simao, abandonando a casa ¢ a familia, decidiu- -se a seguir o Mestre. Quando j tinha transcorrido algum tempo, desde o inicio da sua acti- vidade publica, Jesus encontrava-se um dia na sinagoga dessa cidade, Ca- farnaum. No officio litirgico do dia de sabado, depois da oragdo em co- 178. Evungetho dos Hebrews, 5 (de Santos, 35). 179. Bel ¢ 0 Dragie (expansito da versio grega dos «Setentar ao livro de Daniel) v, 36: é-um espirito angélico que faz 0 iraslado, 180. 8.3, 181. Mareus, 4,1-11 182. Marcus, 3,13-19 par. 183. Evangelho dos Hebreus, 13 (de Santos. 39). Evangelho dos Ebionitas, 2. (de Santos, 30). 185. Lucas, 3,23. 186. © Evangelbo de Pedro, 4 (60), a Didascalizt sirfaca, 31, ¢ 0 Evangelho de Maria (de Sancos, 97), assinalam como pertencente ao circulo dos intimos um discipulo de acme Levi, distin- 10 do Levi, filho de Alfeu (identificado vulgarmente como Mateus) de Marcos 2,135s. miim, liain-se em hebraito diversas pericopas da Lei e des proferas. Como as pessoas que iam A sinagoga nao entendiam muito bem a lingua sagrada (a lingua comum na Palestina era o aramaico, que se tinha imposto por todo o Médio Oriente desde que a regido tinha feito parte do Império Per- sa), havia alguém encarregue de traduzir e parafrasear os textos hebraicos para 0 aramaico: Apés @ leinira seguia-se uma homilia piedosa, que nos tempos que nos ocupam podiam ser pronunciadas por qualquer homem que tivesse os conhecimentos ¢ o interesse suficientes para o fazer. Jesus aproveitava a oportunidade que os sdbados lhe ofereciam para divulgar pe- rante os varées que frequentavam a sinagoga as suas ideias em relagdo ao reino de Deus € acompanhava d s suas prédicas com alguns prodigios de cura. Certo dia, participava nos oficios de sbado um homem que tinha uma mao paralisada. Todos os presentes observavam Jesus para yer se ele se atrevia a curar no dia de descanso. O paralitico tinha ouvido que o Na- zareno fazia diversos milagres ¢ curas pelo que lhe pareceu excelente oca- sigo para lhe pedir a cura. E dirigiu-se a ele com estas palavras: — Senhor, atende-me; sei que podes curar-me. Tenho familia ¢ sou pedreiro e era assim que ganhava 0 sustento com as minhas maios; elas sio para_mim tudo o que tenho. Rogo-te que me devolvas a satide para nao me ver obrigado a mendigar vergonhosamente o meu sustento"”. Naturalmente, perante tao poderasos argumentos, Jesus curou a mao do pedreiro, sem se importar com a opiniao dos rigoristas sobre a possivel profanacao do sabado. Esta accao nao significava que Jesus ndo considerasse importante a san- tificacdo desse dia e que o uansgredisse por fisteis pretextos. Assim, noutra ocasido, longe da cidade, viu um individuo que estava a lavrar 0 seu cam- po durante um sabado. Aproximou-se dele e disse-lhe: — Homem: Se te das conta do que fazes e conheces bem o sentido profundo do sabado, feliz de ti; mas, se n4o, maldito és e transgressor da Lei*, Houve um dia em que Jesus manteve uma discussio tao forte com os fariseus que estes decidiram acabar de uma vez por todas com tao incé- “, Conciraram, en- tao, as turbas contra Jesus e quando estavam totalmente dispostas contra modo adyersario pelo método mais expedito e seguro’ 187. Evangelho dos Nazarenos, 23 (de Santos, 40). 188. Variante do cédice Beza Cantabrigensis (5. 1V) de Lucas, 6.4, 189. joao, 5.18. 109 eon 110 ele, os chefes aproximaram-se ¢ langaram as suas maos contra ele para o prender e entregd-lo amarrado 4 chusma. Mas embora fossem muitos os que rodeavam Jesus nao eram capazes de prendé-lo, Sem saber exactamente como, quando tentavam pdr as suas maos no corpo dele, esgueirava-se sua- vemente. Assim aconteceu varias vezes até que o deixaram, por verificarem que era impossivel. Entao, Jesus retirou-se da sua proximidade™®, Jesus foi-se embora daqucle lugar e eis que, enquanto ia caminhando com os seus discipulos, um leproso aproximou-se dele ¢ disse-Lhe: — Mestre Jesus, ao ir de caminho juntamente com uns leprosos e ao comer, também, com cles na pousada, contral a doenga da lepra. Mas bas- ta que tu o queiras, para que eu possa ser purificado dela. A palavra «lepra», nos tempos que nos ocupam, nao significava o mes- mo que hoje em dia (também de um vestido"’” ou de uma parede"” se po- dia dizer que tinham «lepra»), mas sim qualquer tipo de doenca de pele, pelo que podia haver muitos «leprosos» na Palestina. Jesus olhou-o com- Ppassivo e respondeu-the: — Quero; sé limpo. Pée-te a caminho agora mesmo € mostra-te aos sacerdotes. E, nesse instante, ficou curado da sua doenga'”*. Noutro momento, passeando junto ao rio Jordao, houve uma grande discussao entre Jesus e uns homens de Jerusalém acerca da possibilidade da ressurreigdo. Este era um queles tempos, uma vez que, na Léi e nos profetas, nunca se fala deste as- sunto. Antes pelo contrario; as antigas Escrituras davam a entender mui- to claramente que a vida se acabava completamente de uma forma natu- ral. Com 0 tempo, no entanto, antes da época de Jesus ¢ por influéncia into escaldante da discusséo teoldgica na- das ideias filos6ficas e religiosas vindas de fora (em especial do mundo gre- go), tinha-se ido abrindo caminho entre os hebreus, sobretudo entre os «piedosos» e fariseus, a nocao da imortalidade da alma e da ressurreicdo dos corpos. Mas os mais tradicionalistas ¢ agarrados ao texto puro da an- tiga Lei nao acreditavam em semelhantes inovagées, nem pensavam que Yahvé tivesse assegurado ou prometido tais maravilhas. Os adversarios de 190. Papira Egerton, frag, (recto), 23s. 19). Levitico 13,47-59. 192. Levitico 14,34-48, 193. Papiro Egerton, ibidem, 30-42. Jesus, os saduceus, nao admitiam nenhum dos argumentos do Mestre e negavam toda a credibilidade a uma possivel ressurreicao dos corpos cujas partes estariam j4 totalmente aniquiladas ou, pelo menos, dispersas no mo- mento da ressurrei¢ao, no fim dos tempos. Entao, Jesus, com a intengao de Ihes mostrar que nada era impossivel a Deus, parou na ribeira do tio, pediu uns graos de trigo que para comer leyava no seu alforge um dos seus acompanhantes e semeou-os no meio da corrente. Ao fim de pouco tem- po, ¢ vista de todos, a dgua fez crescer uns talos robustos coroados por grossas espigas. Aproximaram-se, colheram-nas ¢ debulharam 0 trigo que havia no seu interior, que se verificou ser de excelente qualidade”. Estando jA proximo o momento de ir até Jerusalém pela tiltima vez, Jesus levou os seus trés discipulos predilectos, Pedro, Tiago ¢ Joao" e convidou-os a subir com ele & montanha onde costumava orar'””. Afas- tou-se um pouco deles ¢ comecou a rezar sozinho. Jodo, que era um ho- mem muito curioso, aproximou-se um pouco do lugar onde se encontrava Jesus sem que este sé apercebesse. Viu, entao, um espectdculo portentoso: o Mestre estava envolvido por uma luz brilhantissima e uma voz impo- 099) nente disse algo que nao chegou a compreender de todo”. Depois, ao narrar 0 episddio aos seus companheiros, que nao tinham visto nada, fal- taram-lhe as palavras para descrever aquela cena portentosa. Num outro dia, voltou a repetir-se 0 mesmo episddio com os trés discfpulos. Quando chegaram ao cume da montanha, Jesus afastou-se deles para orar. Desta vez, o resplendor que enquadrava 0 Nazareno era perfeitamente percep- tivel & distancia. Joao, s6, uma vez que os outros discipulos nao se atreviam nem a mexer-se, aproximou-se de novo as escondidas. Entao, viu algo in- descritivel: contemplou Jesus, despido, mas nao como um ser humano, mas sim como qualquer coisa diferente, muitissimo maior. Os seus pés eram como de neve refulgente, tanto que a terra sob as stuas plantas brilhava for- temente € 0 corpo era tao grande que a sua cabeca chegava ao céu. O discipulo sentiu um medo irreprim{vel e comecou a gritar. Por um momento, julgou que Jesus o tinha leyado para ali para o fazer desaparecer da luz do dia. JA tinha aceite 0 seu destino, quando o Mestre se voltou para ele; mas entao — coisa maravilhosa — Jesus ha tinha mudado de figura: jé 194. Ibidem, frag. 1 (verso), 63-73. 195. Marcos, 951-13. 196. Actos de Joao, 90s. 197. Actos de Pedro, 20. Lil ewe 112 eco nao era tao grande, mas sim um homem muito pequeno. Este agarrou Joao pelo queixo, levantou-o do chao e disse-lhe: — Nio sejas incrédulo, mas sim fiel; também nao sejas indiscreto. Joao desculpou-se ¢ respondeu: — Mas 0 que € que eu fiz, Senhor? Realmente, Jesus, tinha-o agarrado com tanta forca que aquela zona do corpo the dofa muitissimo (para dizer a verdade, andou a molesté-lo, depois, durante trinta dias), tanto que Joao se atreveu a dizer a0 Mestre: — Se um beliscao teu, a brincar, me provocou tanta dor, o que teria sido se me tivesses batido a sério? — Procura no futuro — respondeu-lhe Jesus — nao tentar quem nao pode ser tentado. Pedro Tiago observavam de longe que Joao falava com Jesus e faziam- he sinais para que 0 deixasse em paz, sozinho. Como Joao tinha recebido a reprimenda do Mestre nao demorou a atender aos sinais deles e, rapida- mente, voltou para junto dos seus companheiros. E estes perguntaram-lhe: — Quem eram aqueles dois que estavam a falar com ele ld em cima, no alto? — Mas de que dois é que vocés estio a falar? — perguntou o filho de Zebedeu. Era uma coisa verdadeiramente estranha: Joao nao os tinha visto ab- solucamente, pelo que nao soube responder. Compreendeu, no entanto, que Jesus era um ser misterioso, a quem ndo conseguia compreender e que se mostrava de muitas diversas manciras segundo cada um podia entendé- -lo®*. Respondeu assim aos seus dois condiscipulos: — Eu nfo vi ninguém. Mas se 0 perguntais a ele ficareis a saber'”. Uma coisa, no entanto, posso dizer-yos: algumas yezes, quando quis tocar nele, a minha mao tropegava num corpo material, duro; mas outras, a sua substancia era como se fosse imaterial ¢ incorpérea, como se, de facto, nao existisse. Em algumas ocasides fui caminhando atras dele para observar as suas pegadas e verificava que andava um pouco elevado acima do chao ¢ nao deixava, assim, qualquer marca! Num outro dia, em Cafarnaum, ¢ proximo do lago de Genesaret, es- tayam a dormir Jesus ¢ os seus discipulos, todos no chao, num quarto mui- to grande de uma casa que um seguidor do Mestre tinha posto a sua dis- 198. Actos de Pedro, 20. 199. Actos de Joitv, 90-91 posicao. Estavam muito cansados da azéfama do dia e todos dormiam um reconfortante sono, menos Joao. O discipulo tinha-se envolvido bem nu- ma manta, mas estava acordado ¢ andava a vigiar o que andava a fazer Je- sus, E este disse-lhe: — Joao, dorme, O diseépulo fingiu dormir, mas continuou a observat. Entao, apare- ceu, de repente, uma misteriosa figura ao lado de Jesus que se parecia mui- to com ele em feicdes ¢ tipo. Embora os dois falassem baixo, Joao pode es- cutar um pouco do que diziam. Num determinado momento, disse ao Mes- tre 0 misterioso acompanhante: — Jew os que tu escolheste como discipulos nao acreditam em ti. O nazareno nao pareceu dar muita importincia € respondeu-lhe: — E verdade: nao sao mais que homens! E, assim, iam passando os dias da vida publica com muitos outros epi- sddios, tal como sabemos pelos documentos candnicos. Jesus levava uma yida austera, absolutamente parca € pobre”, entregando todo o seu tem- po A pregacao do Reino. Nao tinha problema nenhum em juncar-se com pecadores ou, pelo contrario, em aceitar um convite para cear com qual- quer fariseu discinto, dirigente do povo. Mas Jesus nao comia carne. O seu vegetarianismo era absoluro™’. Assim, aconteceu que, uma vez, um fari- seu convidou-o para a sua mesa ¢ ele aceitou. A dona da casa distribuiu a cada convidado um pao ¢ Jesus recebeu o dele. Entéo, o Mestre pegou no seu pao, abengoou-o e, sem dar tempo a que os outros partissem um pe- dago do seu, dividiu o seu pao entre os presentes — eram mais de vinte — de modo que ficaram saciados. Nao houve necessidade de apresentar na mesa nenhum outro alimento®. A toral abstinéncia de carne esclarece também uma sentenca com que Jesus definiu parte da sua miso neste mundo: «Vim para abolir os sactificios ¢ se nao deixais de sacrificar, nao se afastara de vés a minha iran”, A alusao as vitimas explica-se porque os sacerdotes, € parte de povo, comiarn depois do sacrificio a carne do animal imolado, reseryando para a divindade sé a pele, a gordura ¢ os ossos. Estes consumiam-se no altar; 0 resto era aproveitado como alimento. 200. Ibidem, 92. 201. Actos de Jodo, 1135 Pistis Sophia, 100. 202. Evangelbo do: Ebionitas, 7 (de Santos, 52). 203. Actos de Joao, 93. 204. Evangetho dos Ebionitas, 7 (de Santos, 52). 113 ere 114 coe ‘A fama dos milagres de cura de Jesus tinha ultrapassado em muito as fronteiras da Palestina. Contam as nossas crénicas que o rei Abgato V Ukhama, monarca de uma pequena regiao remota, a Osrhoena, situada pa- ra além do Eufrates, tinha ouvido falar de Jesus. Abgaro tinha lepra negra e encontraya-se desesperado, uma vez que essa doenca o impedia, inclusive, de aparecer em piblico. Nenhuma das delicias do seu paldcio em Edessa podia satisfazé-lo. Num certo dia, um dos provedores palacianos, que trazia com as suas récuas de camelos mercadorias do Ocidente, de Tiro e de Si- don, ¢ que, em algumas ocasi6es, descia & Dec4pole, contou ao rei noticias sobre o novo profeta da Galileia ¢ dos milagres de cura que continuamente realizava, O rei teve uma vontade enorme de ver Jesus ¢ suplicar-The a sua cura, mas nao Ihe pareceu conyeniente deixar os negécios do reino e empreender a incémoda viagem, assim decidiu enviar-lhe uma carta ¢ procurar que fosse o profeta que se deslocasse até ele. Acravés do seu cor- reio pessoal, Hannan de seu nome, enviou a Jesus a seguinte mensagem: «Abgaro, cei de Edessa, satida Jesus, 0 bom profeta que apareceu na Galileia: Chegaram aos meus ouvidos noticias sobre ti e sobre as curas que, no dizer das gentes, realizas sem necessidade de medicamentos nem de ervas. Segundo afirmam, devolves a vista aos cegos, fazes andar os coxos, limpas os leprosos expulsas espiritos imundos ¢ deménios; curas os atormenta- dos por longas doengas e ressuscitas os mortos. Ao ouvir, pois, estas noticias acerca de ti, pensei que podia acontecer uma destas duas coisas: ou és um deus em pessoa, que desceste dos céus ¢ obras na terra todos estes portentos, ou, entio, és um filho de um deus ¢ podes realizar estas maravilhas. Hsta é a causa, pois, que me levou a escre- ver-te, rogando-te ao mesmo tempo que tenhas 0 incémodo de vir até mim e curar a doenca que me apoquenta. Ouvi, além disso, que os teus compatriotas judcus conspiram contra tie que pretendem fazer-te mal. Ficas a saber, assim, que a minha cidade é muito pequena, mas nobre, ¢ é suficiente para os dois.» O mensageiro nao teve dificuldades em dar rapidamente com Jesus na Galileia ¢ entregou-lhe a carta juntamente com um formosissimo presente do rei: um rolo da tora ou Lei, os cinco primeiros livros das Escrituras, que 0 monarca tinha comprado na Babilénia a um caligrafo judeu. O pergami- 205. Eustbio, Histéria Eclesidstica | 13,15 (de Santos, 662). nho era de primeirissima qualidade ¢ a caligrafia, extremamente cuidada, como corresponde a um monarca. Mas Jesus, que tinha recebido com cer- tas reservas 0 mensageiro, um pagdo impuro, recusou 0 presente, Leu a car- ta com atengao ¢ ficou impressionado pela Fé na sua pe uma figura tao distante: inumeraveis judeus, dos que frequentavam as suas prédicas sobre o Reino, tinham-no visto realizar um prodigio, mas os seus coragées permaneciam fechados. No dia seguinte Jesus pediu que o préprio Hannan escrevesse ¢ ditou-lhe a seguinte resposts soa Que mostrava «Rei Abgato: ditoso de ti porque acreditaste em mim sem nunca me teres visto”. Os que me viram nao créem em mim ¢ outros que nunca me viram, acreditaram em mim e terdo vida. No que se refere ao pedido da tua carta, que me desloque até ti, devo dizer-te que é absolutamente necessirio que cumpra tudo aquilo para o qual fai enviado, ¢ que quando 0 cumptir, suba ao que me enviou””. Mas, quando ali estiver, enviar-te-ei um dos meus discipulos para que cure a tua doenga e te dé vida a ti aos reus»”®, O mensageiro ficou decepcionado, uma ver que esperava uma respos- ta afirmativa. Ao nao obter de Jesus mais do que esta missiva, pediua este que se deixasse retratar, Hannan era bom pintor ¢ tinha trazido consigo todos os avios necessérios. Jesus nao Ihe deu uma autorizacao expressa, mas também nao lhe formulou uma rotunda negativa. No dia seguinte, em casa do fariseu Gamaliel, Hannan aproveitou a ocasiéo em que Jesus e os seus discipulos estavam sentados a mesa, convidados por aquela figura, e da janela de um quarto vizinho, que se encontraya mais alto e que tinha uma discreta persiana, fez um retrato de Jesus. Nao era uma obra perfeita, pois tinha sido feita apressadamente ¢ 0 modelo nao tinha permanecido quieto nem um momento. Mas cra jé suficiente para mostrar ao tei o por- te ea graca do Nazareno. No que respeita 4 promessa, efectivamente, pou- co depois da morte de Jesus, Tomé pediu a Tadeu para que viajasse aquela regido € pregasse ali o evangelho. Curou o rei da sua doenca e baptizou um grande niimero de pessoas naquele pais, onde Ihe mudaram 0 nome para Addai. Mais tarde, um cronista anénimo redigiu a chamada Doutrina de Addai, onde conta esta histéria e as peripécias da conversio de Osthoena ao cristianismo 206. Joao, 20,29. 207. facie, 13,20: 14,3-4. 208, Sbidem. 116 ewe Bem pouco mais dizem os nossos arquivos sobre a vida publica de Je- sus; acrescentam a interessante noticia de que a burra, cujo burrinho ser- viu de transporte para a entrada triunfante e messinica de Jesus em Jeru- salém, era descendente da burra de Balaan””, com o que se fechava um ciclo de asnos ao servico dos profetas. Passados estes gloriosos momentos, Jesus entrou na semana decisiva da sua vida, O confronto com os chefes do povo e com os romanos tinha alcangado o seu ponto mais alto com es- sa entrada na cidade santa como aspirante messianico”™. O conflito sub- sequente com as autoridades, que haveria de levar aos tiltimos aconteci- mentos, era palpavel. Aproximava-se a Pascoa e, uma vez que Jesus ¢ os seus disc(pulos se encontravam fora dos seus dominios galileus, havia que procurar um local € prepari-lo, para celebrar convenientemente a festa Os seus discipulos perguntaram-Ihi — Mestre: Onde queres que fagamos os preparativos para que comas na Pascoa? E Jesus respondeu: — Porventura desejo eu comer carne convosco nesta Pascoa2"”. A resposta simbolizava uma mudang¢a significativa com toda a tradi- ¢ao judaica: de acordo com o vegetarianismo, que acima manifestamos, Jesus ia celebrar uma P4scoa sem sacrificar 0 preceptivo cordeiro. E assim foi. Os discfpulos encontraram um local apropriado e fizeram os prepara- tivos convenientes®”, mas nessa refeigao pascal nao se distribuiu aos co- mensais mais do que pao ¢ dgua. Também nao houye copos de vinho, ape- sar de que a distribuicao do fruto da vide entre os assistentes fosse também de preceito, na festa. Jesus, que fazia de pai de familia, abengoou a bandeja que continha os alimentos c pronunciou as oragées de rigor. Terminada a primeira parte do ritual, o pao ea agua foram distribuidos entre todos os assistentes, que os comeram juntamente com as ervas amargas num am- biente muito triste, cheio de tensio e de pressdgios. A ceia tinham queride assistir Marta e Maria, amigas de Jesus que viviam em Betania ¢€ cujo ir- mao, Lazaro, fora ressuscitado pelo Mestre. Embora fosse um agape pascal s6 para os mais intimos discipulos, o cfrculo estreito dos Doze foi quebra- do com a presenga destas mulheres e de Tiago, o irmao do Senhor, que foi 209. Acios de Tomé, 40. 210. Marcos, 12,12-19. 211. dvangetho dos Ebionitas, 7 (de Santos, 52); Evangelho de Marciano (Visca), cf. WB 159s. 212. Marcos, V4,12-31. um participante especial, ainda que nao fizesse parte do grupo inseparavel dos discipulos. O mais importante da sua participacao na ceia foi o voto que se pronunciou. E aconteceu assim: Jesus predisse durante 0 agape a traigao dos seus discipulos na prova que se lhes avizinhava e chegou a va- ticinar os tormentos que 0 aguardavam. Como ¢ sabido pelos documentos canénicos, Pedro assegurou de antemao a sua fidelidade com abundancia de palavras € protestos, mas Jesus vaticinou-lhe que, antes de cantar o galo nesse dia, ele o negaria urés vezes™”, Também Tiago manifestou a sua es- tranhera ¢ pesar durante a ceia perante 0 que o seu irméo Jesus presumia que lhe poderia acontecer muito prontamente ¢ que na presenga de todos jurou assim: «Nao entrard mais pao na minha boca até que veja o Filho do Homem ressuscitado de entre os mortos»!”. E cumpriu o seu voto, ainda que o tempo do seu jejum durasse pouco tempo. A promessa teria, depois, as suas consequéncias, pois ela valeu-lhe uma aparicao especial do Ressus- citado, como na devida altura veremos, O comportamento de Maria na Ultima ceia iria ter consequéncias de longo alcance para o ministério futuro das mulheres na Igreja. Com eleito, enquanto Jesus pronunciava sobre 6 copo de dgua as palavras «Liste €.0 meu corpo eo meu sangue», Maria esbogou um sorriso como se duvidasse da realidade do que Jesus afirmava. Tremendo erro: como castigo, Jesus proibiu daf em diance que as mulheres fossem ministros da eucaristia, Marta queixava-se: Tudo isto esta a acontecer por culpa de Maria, porque a viram rir-se. ‘Mas Maria desculpava-se, afirmando que o seu tiso nao tinha tido im- portancia nem transcendéncia, j4 que Jesus tinha determinado de ante- mao que as mulheres néo pudessem ser ministras da eucaristia, de modo que 0 «mais fraco (a mulher) se salvasse pela intervencéo do mais forte (o homem)y®. ‘Terminada o que podia ser parte da refeigdo daquela noite cheia de mats pressdgios, levantatam-se da mesa. Jesus reuniu a sua volta os seus € disse-thes: — Antes de ser entregue, vamos louvar 0 Pai. Ordenow-lhes, entio, que fizessem um cfrculo, segurando-se pelas m constituida e disse-lhes: mos. Jesus colocou-se no centro da roda as 213. Marcos, 14, 66-72. 214. Euangello do Hebreus, \7 (de Sanvos, 38). 215. Constituipoes Apostcticas, texto em A. V. Harnak, Texte und Uniersuchungen IL 5, p. 28-29. — Respondei-me com «émeny. E comegou a entoar um hino que dizia assim: Gloria a ti, Pai Gloria a ti, Graga Gloria a ti, Espirito (E todos os discipulos respondiam: «Amen», Louvamos-te, Pai; Damos-re as gracas, Luz onde nao habicam as Trevas. Amen Vou ser salvo ¢ serei eu o salvador. Amen, Vou ser libertado e serci cu o libertador. Amen. Vou comer eserei eu o comido. Amen, Vou ouvir e serei ouvido, Amen. Sou um espelho em que tu me reconheces. Amen. Sou uma porta A qual tu bates. Amen. Tia que dangas, reconhece (© que fago, porque teu é este padecer do Homem que eu vou sofrer, De nenhum modo poderias saber o que padeces, se nao tivesse sido enviado pelo Pai ati, como o Logos. O que as pessoas véem em mim, isso nao sou. Eo que cu sou vé-lo-ao, quando vieres a mim. Eu salto; mas tu, por teu lado compreende 0 ‘Todo. E quando 0 compreenderes di Gloria a ti Pai. Amen“, 216, Actos de Jodo, 94-96. 118 eees Como se explica esta danga e hinos, & primeira vista tao estranhos, € 0 vegetarianismo do Nazareno, manifestado de uma maneira tio categé- rica numa refei¢o pascal, onde a carne do cordeiro e 0 copo de vinho eram essenciais para o rito que observavam cuidadosamente todos os seus con temporancos judeus? Sé se formos capazes de penetrar um pouco nos en- sinamentos secretos deste Jesus € que o poderemos compreender. Mas este serd o assunto do capitulo que iremos dedicar a estas doutrinas esotéricas no final deste liveo quando tivermos a ocasiao de assistir a todo 0 desen- volvimento da vida do Mestre. Aproximaya-se 0 momento no qual i gica, a vida de Jesus... e, aos olhos das pessoas, por cfeito de um acto trai- goeire por parte de um dos seus discipulos. Mas ha um entre os nossos documentos que sustenta firmemente que tudo se passou de outra ma- 2 as gentcs nao o sabiam, mas aquele a quem chamariam, depois, 0 traidor, era na verdade uma pessoa muito diferente. O documento inicia- -se com a afirmacao de que Judas era, na realidade, o discipulo preferido de Jesus, o tinico que 0 entendia bem, o tnico capaz de receber ensina- mentos secretos como os que resumiremos no Ultimo capitulo. Por isso, este documento inicia-se assim: «Palavras secretas da revelacio que Jesus disse a Judas Iscariotes durante oito dias no terceiro dia antes de celebrar a Péscoa»*, Depois, Jesus promete a Judas: «Afasta-te dos teus com- panheiros. Contar-te-ei os mistérios do Reino: tu podes alcangé-los, mas sofrer4s muito». E mais tarde Jesus acrescenta: «Vem para que te ensine sobre [os segre- dos] que nenhum homem viu. Pois ha um grande éon ilimitado que ne- nhuma geracao de anjos viu, em que hd um Grande Espirito Invisfvel™. Ac longo dos dias, Jesus revela a Judas os segredos do mundo divino superior, os do mundo divino inferior ¢ do cosmos, como foi criado o pri- meito homem eo destino da humanidade com a destrui¢io dos indignos. Mas, antes de tudo, faz-Ihe um pedido surpreendente: Judas deve assumir a tarefa de o entregar aos judeus, de modo que se cumpra o designio divi- no do sacrificio de Jesus na cruz a favor de todo 0 género humano. Natu- ralmente, Judas nao entrega propriamente Jesus, que é um ser divino, mas sim 0 corpo que 0 reveste ¢ que constitui a figura extetna do Salvador. E, concluir, de uma maneira tra- ne 217. Evangelbo de Judas, 33,18. 218. Fnangetho de judas, 47,110. 119 eee 120 ewes naturalmente, também ninguém compreendera este acto... pelo que ao pobre do Judas lhe tocard carregar para sempre com a desonra de traidor. Na tealidade, este acto reportara a Judas um grande beneficio: o antin- cio por parte de Jesus da traicao de Judas vai junto com a promessa de um grande prémio, o descanso eterno num lugar de eleicdo: «Em boa verdade te digo... Tu seras mais que todos eles, pois 0 homem que me reveste, tu 0 sacrificards»°”', «Eis que todas as coisas te foram ditas. Levanta a vista para cima e olha para a nuvem que hé nela ¢ nas estrelas que giram A sua volta, € a estrela que é a guia, essa é a tua estrela», Judas, entao, levantou a vista e viu a nuvem luminosa e entrou dentro dela. 219, Ewangelbo de Judas, 3615-20. 220. Evangetho de Judas, 57,15-20. Capituto IX JESUS E O SEXO Tanto pelos documentos canénicos como pelos restantes que sao a ba- se desta histéria, sabemos que Jesus passou a sua vida ptiblica rodeado de mulheres”. Isto nao era nada comum entre os escribas, jurisconsultos e ra- binos do século I, na Palestina, onde as mulheres nao tinham acesso ao es- tudo da Lei nem a pregacao na sinagoga, nem a nenhuma actuacao em ac- tos ptiblicos. Jesus, pelo contrario, foi acompanhado, continuamente, por mulheres na sua vida publica; elas foram suas discfpulas 4 distancia, serviam- -no e atendiam-no nas suas niecessidades e seguiram-no de perto 10 mo- mento tr4gico do final da sua vida quando os restantes discfpulos fugiram. O Evangelho de Joao em 12,3 tansmite-nos uma cena de Jesus com uma mulher sua amiga de grande contetido erético, ainda que o Navareno apareca nela de uma maneira mais passiva: «E Maria (neste caso ade Betd- nia, a irma de Lazaro, nao Maria Madalena), tomando uma libra de perfu- me auténtico de nardo, muito caro, ungiu os pés de Jesus ¢ enxugou-os com os seus cabelos». A seguir, o evangelista, dando-se conta do contetido erdti- co, tenta suavizar a cena ¢ poe na boca de Jesus algumas palavras — «Deixai a mulher porque tinha guardado este perfume para o dia da minha sepultu- fay — que interpretam 0 acto como uma ceriménia de un¢éo prévia & sua morte (como se fosse uma profecia explicita da iminente partida de Jesus). Marcos ¢ Mateus, que recolhem a mesma tradicao, apresentam-na também 221. Cf, por exemplo, Mt 266-7; Me 14,3-4; 15,40; Le 8,2-4: conhecemos os nomes de algumas delas: Maria Madalena, Joana, a mulher de Cusa, 0 administrador de Herodes, Susana, Maria, mae de Tiago, Salomé. 121 ener 122 ene suayizada: o perfume derramou-se ndo sobre os pés, mas sim sobre a cabega, e guardam siléncio sobre a actuacdo da mulher com a sua cabeleira Apés a ressurreigéo de Jesus, as mulheres encontram-se entre as pri- meiras testemunhas do facto e, depois, sao interlocutoras preferenciais do Mestre nos seus didlogos de revelagdo, sobretudo esoréricos*”, Um episé- dio com Simao Pedro destaca o papel das mulheres. Numa certa ocasiio, Pedro disse a Jesus: — Mestre: nao podemos aguentar mais Maria Madalena, porque nos tira todas as ocasides de falar; a todo o momento ela faz-te perguntas ¢ nado 0223) nos deixa intervir' Jesus nao fez demasiado caso a Pedro e continuou a considerar Maria Madalena como a discipula preferida*’. Rogou, no entanto, a Maria que deixasse tempo a Simao e aos outros discipulos vardes para também eles apresentarem as suas perguntas”””. Noutro momento, Levi e Pedro discu- tiram pelo mesmo motivo. Maria Madalena estava a contar-lhes umas re- velacées particulares que Jesus tinha tido por bem outorgar-lhe ¢ que a André nao lhe tinham parecido muito dignas de fiar. Pedro corroborou a ideia do seu irmao e disse com uma mistura de cepticismo e censura: — Mas, ser4 que o Senhor, ao ser interrogado sobre estas questées, ia falar a uma mulher ocultamente € em segtedo, para que depois cla nos contasse ¢ tivéssemos de escutd-la? Levi, entao, interveio: — Pedro: estds sempre com a célera a teu lado ¢ agora mesmo discu- tes com esta mulher, confrontando-te com ela. Se 0 Salvador a julgou dig- na, quem és tu para a desprezar? Torna-se evidente, de todas as maneiras, que Ele, sem divida, a amou™, Estes episédios revelam-nos uma atitude muito positiva de Jesus para 222. Pistis Sopbia 96: Nlaria Madalena ocupa o primeiro lugar entee os discipulos, junto de Joao, 6 sapéstolo virgem». Posigio imporeance tem também Salomé neste escrito (caps. 54. 58. 132. 145) € no Evangelho dos Egipcios, como veremos. 223. Pistis Sophia, 36; algo parccido em 146, Pedro como mi ino em geral no cap. 72. 224, CE, Pistis Sophia \7 ¢ 19. No Livro de Jew, caps. 42, 45, as discfpulas tém o mesmo nivel que 0s apdstolos. 225. Pistis Sophia, 146. 226. Frangetho de Maria, 15-25 (de Santos, 97). A primeira frase do texto copra, colocae de Pedro («lrma, sabemos que o Salvador te ama mais do que nenhuma outa mulher. Diz- -tos palayras twas que tenhas na tua mente) é; sem lugar para davidas, uma interpolagio do na boca tradutor copta, pois ndo casa com o restante escrito ¢ encontra-se ausente do texto grego. com as mulheres. Mas a verdade € que se consultarmos a totalidade dos documentos que chegaram até nés, a postura do Mestre para com elas, ¢ perante 0 sexo em geral, é ambigua ¢, talvez, até contraditoria: Jesus apa- rece nuns textos como inimigo — ou pouco amigo — do sexo e do matri- ménios outro documento parece insinuar certas tendéncias que alguém po- deria interpretar como homossexuais; ¢, outros, finalmente, deixam entre- ver que a sua relacdo com alguma mulher em concreto pode ter sido inti- ma, embora sem indicar com toda a clareza, em nenhum momento, que © Mestre estivesse casado. Como é que se pode explicar esta variedade ca- leidosc6pica? A solugao para esta imagem contraditéria ficou insinuada na cena da transfiguragao de Jesus narrada por Joao” ¢ na percepgao muito diversificada dos discipulos: 0 Nazareno era grande ¢ pequeno ao mesmo tempo; aparecia perante os olhos de uns e de outros como sé e acompa- nhado, consoante o discipulo que o vise. Pedro apontou a mesma ideia num discurso espontaneo pronunciado em Roma diante de umas vitivas a quem Jesus, por sua intercessao, tinha devolyido milagrosamente a vista: heste © noutros aspectos da vida e actuagao do Mestre, cada discipulo. ou grupo deles, entendia ¢ interpretava 0 Nazareno de um modo diferente: tal come cada um tinha capacidade ou 0 podia captar™ Ja falémos anteriormente sobre o vegetarianismo de Jesus. Nesta pers- pectiva enquadra-se muito bem a primeira faceta a que aludimos: o Jesus encratita, ou seja, 0 que se abstém em relacio ao sexo e despreza absolu- tamente 0 casamento. Como o assunto em geral é importante vamos con- sideré-lo a partir de duas perspectivas. A primeira consistiré em ver que in- formagao, directa ou indirecta, nos oferecem os evangelhos candnicos so- bre o celibato, ou nao, de Jesus; na segunda, compararemos esta informa- gAo com 0 que nos dizem as fontes principais da segunda parte deste livro, os evangelhos apécrifos. O possivel celibato de Jesus segundo os evangelhos candnicos Embora os textos evangélicos canénicos nao sejam precisos, temos a impressao, ao lé-los, que Jesus se enquadra, sem mais, nas coordenadas ju- 227. Veja-se 0 capitulo anterior. 228, Actus Vercellenses, 20. 123 eves 124 ewes daicas em relagao ao matriménio, que valoriza como uma instituicao di- vina. Jé dissemos, no capitulo 1, que nos tempos de Jesus o matrimdnio era, no mundo de Israel, a forma elementar ¢ quase obrigatéria de realiza- ¢40 do homem completo. Nas suas discussGes sobre o divércio, a que mais adiante aludiremos, Jesus faz uma acesa defesa do matriménio monoga- mico. Para isso, refere os textos fundamentais dos primeiros capitulos do Génesis. Em Gn 1,27 lé-se: «E Deus disse: fagamos o homem 4 nossa ima- gem... E, Deus criou o homem sta imagem, & imagem de Deus 0 criou, macho e fémea os criou»; e em Gn 2,21-24: «Deus provocou um pro- fundo estado de sonoléncia no homem, ¢ este adormeceu; entao, tomou- -lhe uma das suas costelas, fechando com carne o seu espaco. Depois Yahvé Elohim transformou em mulher a costela que tinha tomado do homem, ¢ conduziu-a ao homem. E este, ento, exclamou: Esta sim, é ver- dadeiramente 0 osso dos meus ossos ¢ carne da minha carne. A esta se cha- mard ‘mulher’, Por isso, o homem abandonard o seu pai e a sua mie e unir- -se-4 com a sua mulher, formando ambos uma s6 carne. Pois bem, Jesus encontra-se nesta linha teolégica porque cita expres- samente estes capitulos do livro do Génes is quando fala das relagées entre homem ¢ mulher. Tal como o entendiam a maioria dos judeus do seu tempo, 0 evos que Jesus permite no matrimdénio encontra-se orientado nao para a satisfacao de um instinto ou para a paixdo enquanto tal, mas somente para a procriagao dos filhos. Sé assim se entende, indirecta- mente, 0 rigorismo do dito de Jesus recolhido por Mateus: «Lodo aquele que olha para uma mulher casada, desejando-a, j4 cometeu adultétio dentro de siv (5,28) Jesus considerava também, ao mesmo tempo, que os esponsais ¢ as festas que rodeavam as ntipcias cram os dias mais felizes do ser humano, e empregava o simil das bodas e do banquete nupeial para dar corpo gra- ©, ou seja, o reino de Deus. Na sentenga, provavelmente auténtica, de Mc 2,19a («Porventura poderio je- juar os amigos do noivo enquanto duram as bodas?»; 2,19b ¢ 20 sio, sem “, e considera ja os fico & futura gléria da época messinica’ duvida, secundarios) Jesus compara-se com um noivo™ prelidios do Reino como uma alegre festa de nuipcias. 229. CE Mt 22,1: parabola dos convidados (que nao fazem caso) & boda do filho do Rei. 230. CE também Jo 3,29 ea parabola das dex virgens em Mr 25,1. Como jé assinalamos, a defesa do matriménio por parte de Jesus fica ainda mais clara quando se considera o que ele pensa do divércio. Contra os excessos, inclusive poligamicos, de alguns dos seus contemporancos ¢ a sua enorme facilidade para utilizar a possibilidade do divércio, tinham rea- gido jé os essénios, invocando a ordem da criacso. Os essénios citavam Gn 1,27: «Macho ¢ fémea os crioun; € 5,1-2: «Quando Deus fez 0 homem fe- -lo 2 sua imagem. Fé-los macho ¢ fémea ¢ abengoou-os». Como 0 texto sa- grado fala sempre no singular, os essénios tinham tirado a conclusao de que o matriménio tinha de ser monogamico, um homem com uma mulher, e para toda a vida. Diziam que esses textos do Génesis em singular (dizem ex- pressamente «macho» ¢ «fémea», ¢ ndo «machos» € «fémeas») reptesentavam aordem eterna da criagao: ao principio Deus tinha pensado num macho pa- ra cada fémea; portanto, cada mulher com o seu homem — ¢ 0 inverso -, tal como a divindade tinha determinado inicialmente. Interpretado assim 0 Gé- nesis, o divércio é impossivel...5 € as segundas mipcias também: se um dos cOnjuges morte, o ideal é que o sobrevivente fique vitivo e nao procure com- panheiro ou companheira, uma vez que 0 que encontra ndo serd nunca o que Deus decidiu «desde 0 principio. Defendia-se, assim, um matriménio tnico e indissolivel”” . Jesus faz © mesmo em Mt 19,4-6: «Nao haveis lido que o Criador, desde princt- pio, os ‘fez macho e fémea’, ¢ que disse: ‘Por isso, deixard o homem o seu pai ea sua mae e unir-se-d 4 sua mulher, e os dois farao uma s6 carne? Pois bem, 0 que Deus uniu nao o separe o homem’». Jesus ¢, pois, um acérrimo defensor do matriménio monogamico. Mas, a0 mesmo tempo que afirmamos esta postura positiva de Jesus em relag4o a uniao de homem e mulher como casal predeterminado por Deus, deve- -se sustentar que, com toda a probabilidade, Jesus manteve-se celibatario pelo menos durante a sua vida publica. Este possivel celibato do Mestre de Nazaré cst sustentado em varios argumentos extraidos nao da tradigao . eclesidstica®”, mas sim da andlise dos textos evangélicos candnicos. 231. Cf O documento essénio denominado Decumento de Damasco TV 21-V 2: «Encontran aprisionados duplamente, ima ver.que tomaram duas mulheres... quando a ordem da ctiagao €'Como homem e mulher os criow, ¢ os que entraram na arca fizeram-no de dois em dois...»5 cf também 1Q Temple 57,17-19. 232. Desde finais do século II, ¢ talvez antes, é tradicao dizer-se que Jesus é celibauitio. Assim 0 afirma ‘Tertuliano em De monogamia 3. A este testemunho podem acrescentar-se as vores de Clemente de Alexandria, Siromara 111 6,49: Orfgenes, Comentdrio ao Enangelho de Mateus X17. 125 ene 126 ewe Em primeiro lugar o do siléncio. Jamais se nomeia no texto evangéli- co a esposa de Jesus, enquanto se fala, de facto, com toda a naturalidade, por exemplo, da sogta de Pedro (Mt 8,14). E este silencio nfo se deve in- terpretar como uma censura, como se as passagens que falassem da esposa de Jesus tivessem sido eliminadas posteriormente, uma vez que quando se compuseram os evangelhos nao havia problema especial em mostrar Jesus como casado..., se € que 0 tivesse sido. Para muitos estudiosas da Biblia, este argumento nao os convence. Parece que, no entanto, seria normal que se tivesse indicado quem era a mulher de Jesus, se tivesse existido, jd que, como afirmémos ao princ{pio, o Mestre andava rodeado de mulheres que colaboravam para o seu sustento. Em segundo lugar, ¢ sobretudo, o possivel celibato de Jesus parece sus- tentar-se numa interpretacao razodyel da sentenca de Jesus, «Ha outros que se tornaram a si mesmos eunucos por amor ao Reino dos Céus» (Mt 19,12). A exegese supdc que Jestis aplicava a si mesmo € a alguns dos seus disci- pulos esta frase, 0 que supdc uma rentincia absoluta ao sexo. Jesus nao ¢s- taria, pois, casado para guardar a maior abertura possivel as exigéncias pe- temptérias do Reino — disponibilidade de espirito, facil traslado de lugar por necessidades de pregacao, fuga dos perigas, etc. -, embora o facto de casar-se, em si, nao fosse estritamente mau, em relac4o Aaquelas exigéncias, antes da chegada do reinado de Deus. Para entender bern esta postura de rentincia hd que pensar no que se chama «ética do seguimento», a moral que Jesus prega aos seus dis- cipulos para os momentos anteriores 4 imediata vinda do Reino de Deus. A absoluta disponibilidade e abertura de alma em relacao ao Rei- no que ia chegar supunha uma relegacdo para um segundo plano do vinculo matrimonial ¢, nalguns casos, a sua ruptura. Perante as exigén- cias que apresentava a chegada do senhorio de Deus, podia chegar-se a romper com a familia, se esta pressupunha um estorvo para se preparar para o Reino de Deus: nao ha valores de pais, irmaos, nem mulher, nem marido (Le 14,26). Além disso, por raz6es praticas, é muito posstvel também que Jesus pen- sasse que perante a iminéncia da chegada do Reino, do qual ele estava abso- lutamente convencido, nao fosse de todo conveniente casar-se. Para qué amarrar-se com lagos familiares se o mundo presente, tal como estava or- ganizado, ia acabar e Deus substitui-lo-ia por um outro navo? Esta tessitura pode explicar as adverténcias 4s maes e gravidas nos momentos prévios a vinda do Reino: «Ai daquelas que estiverem grdvidas e das que estiverem a dizer: como esses ctiar naqueles dias...!> (Me 13,17). Fsta adverténcia par dias serao terriveis, seré melhor nao conuair matriménio nem ter filhos®”). Mais: segundo Jesus, quando terthinar o reino de Deus neste mundo e comecar 0 perfodo do paraiso, 0 que poderfamos chamar a perfeicao do reino de Deus, 0 matriménio, e muito mais 0 eves, nao tera ali nenhum lu- gar; o mundo definitivo exclui o exerc «Os filhos deste mun- do (on seja, nesta vida) tomam mulher ou marido; mas os que consigam cio do sexe ser dignos de tomar parte no outro mundo ¢ na ressurreic¢ao de entre os mortos, nem eles tomarao mulher, nem elas marido» (Le 20,34s; of Mc 12,25 € Mr 22,31), Como se pode observar, 0 apreco pelo mattiménio por parte de Jesus tem também as suas limitagdes Esta impressao reforga-se se se considerarem alguns outros textos dos evangelhos canénicos que apontam para a figura de um Jesus como um pro- feta de vida ascética, como pregador do reino de Deus disposto aos maiores sactificios, como por exemplo, a reniincia de posses (Mt 6,24-34; Mc 10,17- -22), de alimento, de descanso, de sua casa («O Filho do Homem nao tem onde encostar a cabegar). Esse ascetismo encaixa muito bem com o que pre- tende indicar a sentenga sobre os «eunucos por amor ao reino dos céus», que transcrevemos mais acima: ¢ muito possfvel que Jesus tenha renunciado ao matriménio, pelo menos durante 0 seu ministério puiblico, uma vez que 0 considerava como preparagio ¢ antincio da chegada do Reino. Em sintese: dos textos candnicos nao se pode extrair uma conclusio absolutamente clara em relacao 4 situagao pessoal de Jesus no que toca ao matriménio, mas tudo aponta para que o Nazareno, pelo menos na sua vida piiblica, tenha permanecido celibatério devido & sua espera iminente da chegada do reino de Deus. 233. © mesmo ambiente respira-se no texto de Le 17,25-31: a vinda do Filho do Homem, ou se- ja, do reino de Deus, ocorrerd entre softimencos. «Como aconteceu nos dias de Noé, assim ser nos dias do Filho do Home, Comiam ¢ bebiam, os homens tomavam mulher © as mulheres marido acé ao dia em que Noé entrou na arca ¢ veio 0 Dilkivio ¢ os fer perecer a todos. mesmo nos dias de Lot: comiam e bebiam, compravam ¢ yendiam, plantavam e edi ficavams mas quando Lot saiu de Sodoma, choveu do céu Fogo ¢ enxofre que os fez perecer a todos, Assim seré o dia em que se revele o Filho do Homenw. 127 owen 128 ewe O celibata ou 0 muatriménio de Jesus segunda os evangelhos apberifes Pelo menos uma parte do Jesus dos evangelhos apécrifos, sobretudo gnésticos, respira também a atmosfera anti-sexo de que acabamos de falar. ") que, numa ocasido, Salomé, uma das mulheres que acompanhavam Jesus, lhe perguntou: — Até quando estard em vigor a morte? E Jesus respondeu-lhe: — Durard enquanto vés, as mulheres, continuardes a conceber ¢ a dar aluz. E deverds saber que vim para destruir as obras da mulher, isto & a concupiscéncia e todas as sequelas: a geracdo ¢ a subsequente corrupeao. Apesar destas contundentes palayras, Jesus nao proibiu absolutamente © matriménio, pois perante 0 comentério seguinte de Salomé — «fiz bem cm nao geram — que pressupunha a gerac4o como causa de todo inconve- niente, o Mestre acrescentou: — Podes comer qualquer erva, mas aquela que é amarga nao a comas. Para além da clara alusdo a uma dieta vegetariana, a resposta de Jesus indica que o matriménio pode servir em todo 0 caso para gerar novos seres humanos que engrossarao 0 mimero de salvados no Pleroma divino™”; mas 0 ideal, no entanto, seria transferir para esta vida daqui de baixo o que, depois, acontecer4 na outra, a de cima, a do paraiso, onde 0 sexo nao desempenha nenhum papel. Por isso, quando Salomé continuava com as suas perguntas ¢ 0 interrogava quando teria lugar o fim ea chegada do ou- tro mundo, contam que Jesus respondeu: — Acontecerd quando pisardes a vestimenta da vergonha, e quando os dois, homem ¢ mulher, vierem a ser uma sé coisa, ¢ 0 varao, juntamente 00) Conta um desses documentos' com a fémea, nao for nem vario nem fémea' Esta frase criptica entender-se-d bem a luz das doutrinas esotéricas de Jesus que apresentaremos no capitulo que fecha este livro. Mas adiante- ms estes conceitos: com «pisar a vestimenta da vergonha» pretendia Jesus dizer «desprerar as partes pudendas do sexo», e com aquilo de wer uma sd coisa, nem vario nem fémea», referia-se ao estado dos eleitos no céu, onde a diferenca sexual tera perdido toda a sua transcendéncia e significagao. 234. Ewangello dos Egipcios, 1. 235, Explicamos este conceito no capitulo final sobre «os cnsinamentos secretos de Jesus» 236, Evangelbo dos Egipcios, 5. Ali, a0 unir-se 0 espirito humano com a sua contrapartida celeste, que espera no Pleroma — segundo a concepeio, que depois teremos ocasio de ver com mais atengao, de que tudo no céu e na terra procede por pares ou econjugess"” —, se restaurard o andrégino original. Quando o salvado, terminado 0 seu ciclo de existéncia terrena, repousar jd na Plenitude divi- na haverd de ser as duas coisas, espirito masculino ¢ feminino, numa mes- ma entidade. O Mestre manifestou uma mentalidade igualmente anti-sexual nao falando ja directamente com uma mulher, mas sim diante de um grupo dos seus discfpulos. Estes perguntaram-lhe: — Quando € que te manifestards a nds e quando é que te poderemos ver? — Quando vos despojardes das vossas vestimentas — respondeu Jesus —e nao sentirdes yergonha™*, Tudo 0 que nasce da corrupgao perece, co- mo filho que é da corup¢éo. Mas o que nasce da incortuptibilidade per- manece, como filho que é da incorruptibilidade”” «Despojar-se das vestimentas» nao quer dizer o que 2 primeira vista se entende. Jesus refere-se 4 conveniéncia para o homem espiritual de nao prestar atenco 4 envoltura material, carnal, do seu préprio ser ¢ das suas exigéncias. O idedrio anti-sexo deste Jesus, profundamente encratita, volta a declarar-se noutra sentenga com que o Nazareno replicou a Pedro na sequéncia de um durissimo ataque deste a Maria Madalena. Na linha anti- -feminista que 0 caracterizava, Simao Pedro tinha pedido a Jesus: — Maria Madalena deve ir-se embora do meio de nés porque as mu- lheres nao sao dignas da vida. Entio, Jesus respondeu: — Deixa-a em paz. Mas olha, cu a trarei e a tornarei vara. Sera espi- tito vivente semelhante a vés, os vardes. Porque qualquer mulher que se torne varao entrard no Reino dos céus*”. Aexplicacao do Mestre a Pedro requer um comentério duplo que va- mos adiantar aqui, embora, talvez, o leitor possa situar melhor no seu con- 237. A perfeicao final ndo estd no individuo, mas sim no casal. Inclusive, o Deus transcendent, a que, depois, denominaremos «Pré-Pai», nao esté, na realidade, s6, nem sequer antes da emanacao de outras entidades divinas; acompanha-o 0 seu «cénjuge», «Pensamentor ou «Siléncior. 238. Papiro de Oxirrinco, 655 col. A. 20-25 (de Santos, 73). 239. Pap. Oxirrinco, 1981, 10-25 (de santas, 79) 240. Euangetho de Tomé, V14. 129 eons 130 ewe texto global esta doutrina do Jesus encratita quando tiver reflectido sobre 0 conjunto dos ensinamentos secretos deste. Ances do mais, 0 Reyelador gnés- ‘omo veremos — indica a Pedro que 0 espirito perfeito, que se encontra s6 no ambito do divino, o chamado «Pleroma, é certamente mais masculino ou, com maior precisao, andrégi- tico — ou seja, 0 Jesus da tradigao esoteric no, masculino e feminino ao mesmo tempo; nunca sé feminino. Pelo con- ratio, 0 espirito de qualquer ser humano sobre a terra é ainda feminino € nao alcangard a sua plenitude até que se una ao seu casal no além, como ja indicdmos. E muito mais o espirito de uma mulher seria imperfeito e femi- nino uma yez que, naquele tempo, se considerava vulgarmente que a mu- Ther era um ser essencialmente imperfeito: nao se tinha desenvolvido de to- do no seio materno} nao tinha chegado & plenitude, que era set vario. Por isso, de qualquer modo, para ser perfeita, deveria converter-se em homem. Entao, se este espirito «feminino» alcanga a «gnose» (o conhecimento espiritual e perfeito) nesta terra, pode dizer-se, de um modo um tanto im- proprio, que ¢ jf masculino (impréprio porque na esséneia continua a ser feminino enquanto viver no mundo ¢ sé seré perfeito — na realidade «an- drégino», masculino e feminino ao mesmo tempo ~ quando se unir 4 sua contrapartida espiritual celeste que a espera no paraiso, no «descanso» do Pleroma ou Plenitude divina), ow seja, apo para o Reino. Maria Mada- lena, como mulher, representa simbolicamente, para certos gndsticos, a imperfeicao, pois o seu espirito é, por esséncia, feminino, Sé pela aceitacao do conhecimento trazido por Jesus, 0 seu espfrito se tornard «varao» e ficard qualificado para participar do Reino. A segunda idcia que se retira desta expressdo de Jesus ¢ evidente: para este Revelador, o sexo, unido conceptualmente com a mulher ¢ com o fe- minino, é algo secundario, provisério e imperfeito. O ser humano ja salvo e «descansando» no céu, 0 andrégino do mundo celeste resultante da uniao espiritual de dois espititos, indica que a situacao definitiva do que foi salvo comporta na realidade uma superagao total do sexo. Este Jesus, assim desenhado, era, sem qualquer diivida, bem pouco amigo do matriménio. Este nao gera senao corrupgao, e a nada conduz 0 sexo quando se tem a vista posta no que estd em cima, ho espiritual. Ele disse, numa certa ocasiao, aos seus, a propdésito da seleccao dos verdadei- ros discipulos: — Ide-vos e encontrai um homem ou uma mulher nos quais tenha > ter-se deitado com perecido o que é a maior parte da maldade human: outa pessoa do sexo oposto; procurai um homem que nao tenha tocado numa mulher ¢ uma mulher que tenha deixado de se comportar como tal e nao se tenha deitado com nenhum homem™”, Em todo 0 caso, 0 méximo que este Jesus aconselha é que se o verda- deiro conhecimento, a gnose salvadora, chega ao eleito estando j4 casado, . Por isso, num outro momento o Mestre diz: «O que estiver casado que nao seja repudiado ¢ 0 solteiro que nao se case Aquele que estiver decidido a viver na virgindade, segundo o seu propési- to, que permanega solteiro™?. E noutro: «Se nao fazeis abstinéncia do mundo, nao encontrareis 0 reino de Deus», Apesar do dito sobre 0 matrimédnio € 0 sexo relativamente a este «ou- tro Jesus» ha dois documentos gnésticos que insinuam uma especial rela- ele nao deve divorciar-s ¢0 do Mestre com Maria Madalena*“’, outro que apresenta esta como «companheira» ou «onsorte» de Jesus*, e um quarto que fala de Salomé ‘8 Dos dois primeiros nao podemos deduzir, com certeza, mais que Maria de Magdala era uma das discipulas favoritas do Mestre ¢ uma das suas interlocutoras preferidas nos didlogos de revela- ¢4o. De facto, das quarenta ¢ seis questées que depois da ressurreigao os discipulos apresentam a Jesus, trinta e nove sio formuladas por Madalena, segundo o tratado de Pistis Sophia”. O terceiro documento, no entanto, o Evangelho de Filipe, acrescentaz «Jam sempre trés mulheres com o Senhor: a sua mae Maria, a sua irma e Madalena, chamada a sua companheira. Maria (se chamam), pois, a sua “| E um pouco mais adiante precisa: «A companheira [de Cristo é Maria], a Madalena. [O Senhor amava Maria] mais que [a todos] os discipulos ¢ beijava-a na [...] com frequéncia. [Ao vé-lo], os outros [discipulos] [...] diziam-the: ‘Por que é que [a amas] mais que a todos nés?’. O Salvador respondeu e disse-lhes: ‘Por que é que nao 391249) vos amo a vés como a ela? como a «esposan de Jesus! irma, a sua me ea sua consorter’ » 2AL. Livro de Jeu, II 45. 242. Sentenca de Jesus recolhida por Didimo, 0 Cego, Corament. In Palos 88,8 (de Santos, 110). 243. Papivo de Oxirrineo 1, dito TL 5-8 (de Santos, 85), 244, Evangelho de Maria (cL. uora 6) e Pistis Sophia (cf. noras 2.5) 245, Evangelho de Filipe: Biblioteca de Nag Hammadi, vol. TL, p. 35. 246. Euangelho de Tomé, dito 61 = BNE, p. 92. 247, E provavel também que Maria, que aparece como transniissora por escrito das palavras de revelagao de Tiago. no Segundo Apocalipse de Tiago, fosse Madalena. 248. Exangelho de Filipe, Biblioteca de Nag Hammadi, vol. Il, p. 35. 249. Biblioveca de Nag Hammadi, wal. 1, p. 39. © que aparece entre paréntesis rectos corresponde a Jacunas (rowuras) do texto, mas ¢ facilmente reconstrufvel. © vazio (assinalado por [..J) que ha 131 enn 132 ener Embora as passagens transcritas possam entender-se num sentido es- piritual e gndstico — como assinalaremos mais adiante —, ou seja, nao ne- cessariamente como indicadores de uma auténtica relacdo sentimental in- cluindo o seu aspecto carnal, esta incerpretagao do documento no deveria excluir-se, em princfpio, até que se demonstre 0 contrario, como assim pa- rece ser. O Evangelho de Filipe” pertence ao grupo de escritos valentinia- nos que, de alguma maneira, mostram um certo aprego pelo matriménio, uma vez que esta instituicdo Ihe serve como simbolo®”. Desde logo, nao estima o matriménio em si mesmo™, nem de perto nem de longe, mas sim como um sinal e prefiguracao dos cénjuges ou unides celestes®” do ho Manuscrito coscuma-se preencher com a palavra ehocar ou, entio, com «acess ov wiestar. mais verosimil choca» (Jesus bejjava na boca Maria Madalena), porque cemos outro texto em Nag Hammadi, no Segundo Apocatlipse de Tiag, 56,10-20 (BNH Ul 100), onde o irmio do Senhor afirma que Jesus «Me beijow na boca e me abracou dizendo: Meu amado, eis que vou revelar-te aquelas coisas que os céus nto conheceram, como também nao os arcontes», Parece bastante claro que estes dois cextos apresentam o amor especial e que o beijo na boca é um. sinal de um ritual de iniciagde especial na sabedoria revelada. O beijado ¢ amado especial- mente nao por uma relacdo sexual (impensavel com Tiago!), mas sim por ser o recipiendario: de‘uma revelacio especial. 250. Nao é propriamente um «evangelho» cal como se entende vulgarmente, mas sim uma espécie de catecismo gnéstico, no qual um autor desconhecido diz. em diversas sentencas, de uma maneira comprimida, 0 que um iniciado no gnosticismo valentiniano devia necessariamente saber, Redigido originalmence em grego, sé se conservou em versio copta entre os ma- nusctitos de Nag Hammadi, descobertos em 1947. 251. Tertuliano, Adversus Valentinianos 30: «Os valentinianos sustentam que, com a intencao de honrar os matriménios celestiais, é necessério meditar ¢ celebrar estes mistérios, unindo-se uma companheira, ou seja, a uma mulher. 252. Evangelho de Filipe, Biblioveca de Nag Hammadi Il p. 51: «Se 0 matriménio manchado (ou seja, imputo ¢ imperfeito neste mundo) oculto (¢ misietioso, pois ninguém sabe quando se unem matido c mulher, salvo cles prdprios), muito mais o matrimdnio imaculado (0 celeste) éum ver dadeiro mistério. Este néo é camal, mas sim limpo. Nao pectence ao desejo, mas sim & vontade. Nio pertence a escurido e& noite, mas sim ao dia e 4 luz». O Evangelha de Filipe, assim, no estima em absohito 6 mactiménio carnal: é uma mancha (65,1 = BNFLII 40); 0 acto da geracao faz-se no oculeo, como uma vergonha; 6 matrimonio fisico mancha 0 ser humano ¢ opSe-se a0. matriménio espiritual que é imaculado, © mauiménio fisico é obra dos espitivos impuros e 86 tem o desejo de que continue a subsistir no mundo, na marétia, o que nao é desejavel (BNH IL 40). Outro texto de Nag Hammadi, lado a lado com Evangetho de Filipe, a Pandfrase de Sem, afirma brutalmente que 0 acto da geracao € perverso e define-o coma uma cesfiega impura» BNH III 144) 253, Irencu de Lito, Adversus Haerese | 6,3: «Por isso (0s valentinianos) deve exerciear-se sempre e de todas as manciras no misté:io conjugal e, por isso, persuadem os néscios, dizendo-lhes literalmente: 0 que estando neste mundo ndo amar uma mulher até possui-la, nao provém da verdade © nfo ini A verdade. Pelo contririo, o que é deste mundo, se ja possuiu uma mulher no id Averdade pelo facto de a ter gozado em concupiscéncia» mistério da «camara nupeial», ou seja, da unidéo no Pleroma divino do es- pirito do gnéstico, definitivamente libertado, com a sua contrapartida ce- leste e com a divindade”™ no «descanso» perpétuo®”, como jé indicdmos. Neste sentido poderia nao ficar fora da érbita mental de alguns gnésticos © facto de o Mestre poder ter tido contacto carnal com Madalena, como sinal terrenal da unido celeste com Deus, ow, inclusive, que 0 autor do Evangelho de Filipe tivesse pensado que Maria Madalena tivesse sido sua esposa em algum momento. Levam-nos a pensd-lo os termos que 0 texto copta emprega para a designar como «companheira»'*® e «consorter”, € uma passagem de St.° Epifinio de Salamina™®, que ao mencionar outro escrito de semelhante teor, intitulado Perguntas de Maria, indica que cer tos gnésticos consideravam Maria Madalena amante ou esposa de Jesus num sentido carnal estrito. Entao, se se comarem estas expresses dos evangelhos gnésticos a le- tra, haveria que afirmar que Jesus era bigamo. Com efeito, outra autori- dade, 0 quarto texto, o Evangelhe de Tomé, afirma que Salomé era a con- sorte de Jesus, e nao Maria Madalena. Salomé diz: «Quem és tu, homem (Jesus) e de quem procedes? Subiste para a minha cama e comeste da mi- nha mesa. Jesus disse-the: Eur sou o que procedo do Igual. Pui-me dado do meu Pai. [Salomé disse]: Eu sou tua discfpula»... (dito 61 = BNH II 92). z O fragmento 64 dos Excerpta a Theedoto explica que «os espiritos entram na cimara nupcial (celeste) dentro do Limite ¢ chegam a vista do Pai para as ctcrnias bodas do sactiménio». No fim dos ternpos, quando se tiverem congregado todos os eleitos as portas do Pleroma (recorde- mos: espititos femininos), despojar-se-Go do vestido nupcial ¢ entraréo na Plenitude com os seus respectivos esposas, as anjos do Salvador (as suas contrapartidas celestes ow espiritos masculi- nos). CE em geral, J. Montserrat, Zas gndsticos 1 ¢ 1. Madrid (Colece. Clisica Gredos) 1983. 255. O «nistério da cimara nupcialy nesta vide terrenz & parecido ao celeste que jé explicdimos na nota anterior: ¢ também o simbolo da boda mistica do homem espiricual com o seu anjo (Conitrapartida celeste), ou espirito masculino, no mundo do divino. Segundo conta [renew de Lido, Adversus Haereses 1 13,3, Marcos, 0 Mago, um gnéstico valentiniano, unia-se a di- versas mulheres para aleangar 0 Uno. Em 1 21,3 indica 0 proprio Treneu que outros valen- tinianos preparavam uma cimara nupcial ¢ cclebravam uma iniciaggo mistérica com um certo tipo de inovagoes em beneficio dos iniciades. Depois, efectuava-se uma boda espiritual (provavelmente com unio fisica) & semrelhanga dos cénjuges dos seres superiores. 256, O copta conserva o vocibulo grego koinonor e © vocdbulo copta hotre, que podem aluidir as relagées sexuais. Mas estes termas valem nos textos de Nag Hammadi tanto para designa uma unido sexual como uma unido espiritual de um gndstico ainda na terra com a sua con- trapartida ou esposo celeste que o aguarda no cu. Aludem também ao chamado matrimé- nio espiritual ou «istério da camara nupeial celeste». 257. Copta hore, ou seja, «consorte» é um casal de esposos. 258. Panarion ou Refiuiacao das Heresias, 26,8. 134 eee Aqui, poucos comentirios sao precisos: ou Jesus era bigamo — Salomé e Maria Madalena seriam suas mulheres — ou, entio, 0 significado é simbd- lico: se partilha cama e mesa espiritualmente —a tenido com 0 esposo espiritual na camara nupcial celeste — pela participagdo na doutrina perfeita. Assim, dado que os documentos que parecem sustentar esta interpreta~ 40 carnal das relacdes entte Maria Madalena e Jesus — ou entre este ¢ Salo- mé — tém um forte e marcado carécter douttindtio gnéstico, o mais seguro sera pensar que tais relagdes devem interpretar-se num sentido puramente espiritual, tal como acabémos de deduzir do quarto docutnento. As relacdes sextiais c4 de baixo, inclusive para o autor do Evangelho de Filipe, sao uma mancha imunda®”, e € possfvel que nao se atrevesse a imagind-las na pessoa do Salvador. Maria Madalena no evangelho que tem 0 seu nome” apresen- ta-se-nos como a figura do espirito gnéstico, que originariamente se encon- wa perdida no mundo (0 pecado), esquecida do seu destino, o mundo ce- leste, € que, pouco a pouco, gragas & escuta das palavras do Senhor, ama- durece numa positiva evolugio espiritual, cleva-se da escuridao da matéria para o mundo da luz ¢ acaba por aleangar o «conhecimento» e a salvacao. No proprio Evangelho de Filipe, de acordo com o inicio do texto citado 261) anteriormente™’, Maria Madalena pode ser a personificagao terrena da Sa- bedoria que se une espiritualmente, através do conhecimento, ao Salyador numa espécie de matriménio puramente mistico: é 0 encontro do espirito feminino imperfeito (0 ser humano, aqui representado por Maria) ¢ com 0 masculino perfeito (0 Salvador), que, ao unirem-se espiritualmente, restabe- lecem a unidade que primordialmente existia no Pleroma: o casal celeste que é a0 mesmo tempo, masculino ¢ feminino, o andrégino origindrio”™, 259. Texto citado na nora 31. 260. Papiro Rylands Wl 463 (de Santos, 9655). 261, «A Sabecoria, a quem chamam ‘estétil, éa male dos an|jos. © par [de Cristo é Malria Ma- dalena. © Salvador amava-a mais do que a todos os disefpulos e beijava-a frequentemente boca...r: (BNI p. 39). 262, E interessante também relacionar a sertenga jé citada do Evangell ae Filipe — «Tiés mu- theres caminhavam sempre com 0 Senhor... Madalena, denominada sua companhira... Ma- ra &, pois, sua irma, e 2 sua mae, ¢ @ a sua companheira» (59,10 ~ BNH Il p. 35) — com Mc 3,35: os que escuram ¢ seguem espiritualmente Jesus sio os seus verdadeiros parentes (cspirituats): «quem fizer a vontade de Deus, esse serd o meu irmao, a minha irma ea minha mic». Provavelmente o texto do Evwngelia de Hilipe & como uma exegese deste tiltimo texto, aplicando-o a Maria Madalena, que & discipula ideal: como este segue Jesus perfeitamente, ela € a sua «irma, mée e companheiray espiritual, nao carnal, de Jesus, da mesma mancira que os que cumprem perfeitamente com a vontade de Deus, A terceira faceta do outro Jesus, no ambito sexual, é-nos mostrada pelo relato da ressurreigéo de um jovern, em Berania, tal como nos conta um dos nossos documentos”. Aconteccu assim: Jesus tinha chegado a es- sa cidade e entretinha-se a conversar com os seus discipulos quando se apresentou diante dele uma mulher cujo irmao acabava de morrer. Pros- trou-se de joclhos diante de Jesus e disse-lhe: — Filho de David, tem piedade de mim. Preparava-se, entao, para formular o seu pedido, mas os discfpulos re- preenderam-na, porque pensavam que estava a incomodar o Mestre. Jesus nao gostou que a admoestassem, ¢ foi sozinho, sem os seus discipulos, com a mulher para o jardim, onde estava a sepultura do rapaz. Quando estava ja préximo do lugar, ouviu-se, como que saindo das profundidades do se- pulcro, uma voz muito forte. Parecia como se a Morte estivesse jd a pro- testar pela presa que Jesus lhe ia arrancar das suas garras. O Nazareno, aproximou-se daquela espécie de gruta, que era a sepultura, e com as suas proprias maos fez rodar a pedra que cobria a entrada. Penetrou na escu- tidao daquele espaco, aproximou-se do sarcéfago, onde se encontrava 0 jovem, estendeu a mao sobre ele e ressuscitou-o. O rapaz levantou-se ra- pidamente ¢ libertou-se dos panos e vendas que constituiam 0 seu suda- tio. Depois, olhou fixamente para Jesus € sentiu, nesse mesmo instante, um forte amor por ele. Entre palavras de agradecimento, 0 jovem come- sou suplicar a Jesus que ficasse com ele em sua casa: nao havia problema a familia era rica, tinham uma casa espacosa ¢ havia lugar para todos. Sairam, pois, todos do sepulero e dirigiram-se A morada do nenhum, pois jovem. Ali, Jesus permaneceu quase uma semana, ensinando ao rapaz os mistérios do Reino de Deus. O Mestre dava, assim, ensinamentos secretos ¢ privados a certas pessoas que considerava aptas para compreender 0 con- tetido profundo do Reino. Ao cabo de seis dias, Jesus deu uma ordem ao rapaz €, quando caiu a tarde, 0 jovem veio ao apasento de Jesus vestido unicamente com uma tunica sobre o corpo desnudo. Permaneceram jun- tos. O Mesure ¢ ele, durante toda a noite, enquanto aquele terminava a sua tarefa com o ensinamento final dos mistérios do Reino. No dia seguinte, o Nazareno saiu da casa ¢ passou para a outra margem do Jordao, conti- nuando com o seu trabalho de pregacao as multidoes**”. 263. O Fvangeiho Secreto de Marcos. 264. Evangelho Secreto de Marcos. Vexto em H. Merkel, «Das geheime Evangelium nach Markus», em W. Schneemelcher, Newsestamenliche Apokryphen, Tubings (Mohr) (51988), 1 89-92, © texta 135 eee 136 eee A cena nocturna era, sem qualquer diivida, uma espécie de iniciagao na doutrina esotérica do Reino de Deus, da mesma maneira que 0 poderia ser uma cerimédnia semelhante dos adoradores de Isis, de Mitra ou de Serapis. Jesus era o hierofante, o mestre de ceriménias; ¢ o jovem, o «mys- tes» ou iniciado. O mai: ter difundido pela antiga Alexandria o relato que nos serve de base, neste momento, um grupo de cristaos heréticos, chamados carpocracianos, ti- s curioso de tudo isto é que j4 muito antes de se nha interpretado 0 acto de iniciacdo secreta num teor de claro sentido ho- mossexual. Segundo estes hereges, os dois, Jesus e o jovem, tinham pas- sado a noite mistérica juntos € despidos. Clemente de Alexandria, que transcreveu numa carta o fragmento do documento que nos serve de base, recusa. horrorizado, semelhante interpretacao, alegando que, de modo ne- nhum, constava esse acrescento no original desse evangelho e que era tudo uma invengao dos carpocracianes. Mas admite, de facto, que Jesus amava esse jovem, pois numa ocasiao, estando o Mestre muito ocupado, «apre- sentaram-se a irma do jovem que Jesus amava, ¢ a mae deste e Salomé, mas aquele nao as recebeur, foi cransmitido numa presumivel carta de Clemente de Alexandria: veja-se M. Smith, Clement of Alexandria and a Secret Gospel of Mak, Cambridge MA, (Harvard University Press) 1973. 265. Ibidem,

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