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Esta perspectiva, que sublinha o caracter simultaneamente repetido e inovador da relacdéo com o passado que encontramos nas humanidades, tem consequéncias decisivas para a forma como entendemos a literatura e a arte em geral. A qualidade mimética da formacao cultural nao deve passar despercebida a nossa prépria concepcao de literatura comparada. Se esta costuma ser associada a nogao de diferenga, eu gostaria, por meu turno, de sublinhar o quanto ela ganha em ser também associada & cons- ciéncia da repetig&o - tanto por motivos estéticos, como Elaine Scarry (1999) convincentemente argumenta, quanto por raz6es culturais. Uma aproximag&o comparatista permite-nos sublinhar a consciéncia de como a cultura tem a ver com o encontrar de modos de reconhecer a repetigao como processo de preservar a meméria e, simultaneamente, de a transfor mar. Um dos melhores exemplos em que podemos pensar é 0 paradoxo de Borges sobre Pierre Menard, “autor do Quijote”. E também esta mesma repetig&o complexa que, em minha opiniao, atra- vessa a argumentacao de Hans-Ulrich Gumbrecht, ao considerar a lenti- dio e a assuncfo do risco como duas das caracteristicas decisivas para 0 actual repensar das humanidades. Talvez pudéssemos ser tentados, a pri- meira vista, a considerar a repeticao como incompativel com a assuncgao do risco. Do meu ponto de vista, tal nao acontece. Apenas uma concep¢ao que acolhe a repeticaéo como parte integrante do dinamismo cultural pode na realidade compreendé-la enquanto factor de assunco do risco, convite ao entendimento do modo como, para citar ainda Gumbrecht, num seu outro ensaio (2003), estamos sempre a ser confrontados com objectos complexes com os quais nao sabemos a partida lidar. E por isso que o louvor da faculdade do juizo, em que tanto ele (2005) como Susan Stewart concordam ver um lugar central para a concepcéo das humani- dades, pode emergir como a capacidade a qual a anélise perspectivistica conduz (Stewart 2005, 101) e que se torna, simultaneamente, condic&o para o nascimento do “entusiasmo” que Gumbrecht (The Powers, 70) acre- dita muitas vezes faltar na nossa profissao. Talvez de facto ambas andem juntas, e a rasura da faculdade do juizo tenha com frequéncia provindo de e redundado em uma “apagada, austera e vil” rasura do entusiasmo. Esta ideia de humanidades implica também uma ideia de Universi- dade que ganha em ser explicitada, para ld daquilo que ao longo deste ensaio jé pude ir mencionando. Gumbrecht relembra também, em The Powers, que a dimensao pedagégica faz parte integrante daquilo que a Filologia é, bem como daquilo que ela concebe fazer. Talvez 0 mesmo possa ser dito, com igual legitimidade, relativamente a uma série de outros saberes cuja constituicdo conhece, através da Universidade, uma evidéncia que é afinal tudo menos evidente. Isto significa entéo reco- nhecer que a Universidade nao se limita a ser 0 meio através do qual 0 conhecimento se difunde e por que perpassa, mas o lugar onde ele é produzido e em grande medida garantido, como repetigéo e variabilidade. Depois de varios diagndsticos da morte e/ou ruinas da Universidade, entre os quais um dos mais famosos é 0 de Bill Readings (1996), e depois efectivamente de uma tomada de consciéncia da forma como o modelo humboldtiano de Universidade tem sido alvo de diversos ataques (vin- dos alids de quadrantes supostamente diferentes, o que nao deixa de ser curioso), talvez tenha chegado o momento de argumentar que o facto de a Universidade ser hoje um modelo tardio nao traz consigo apenas consequéncias negativas. Essa condigéo do que “vem depois” (Gusmao 2001*), que é a condigao do histérico, permite-nos compreender ruptu- ras e desencantos, mas também nos capacita para 0 entendimento do caracter relativo deles, bem como da resiliéncia dos objectos histéricos eles mesmos. O exercicio do juizo critico associado a esse entendimento permite, por outro lado, que se va construindo um argumento que, reconhecendo o cardcter ndo-utilitarista (e muitas vezes nao imediata- mente titil) da Universidade, sobre ele elabore 0 renovado papel que ela pode ter dentro de um modelo social que nao se confina, como atrés vimos, aquilo a que Monika Fludernik (2005) chama a “economicizacao da cultura”. A este respeito, vale a pena recordar as palavras de Stefan Collini com que Fludernik tutela a sua prépria reflexao: [..-] the fundamental conundrum facing those attempting to justify public support for universities is this: much of what goes on in them is likely to be regarded as both useless and elitist: that is to say, hard to justify in terms either of its direct contribution to economic prosperity or of its direct contribution to “social inclusiveness”. But rather than curry favour by pretending that these are in fact the chief purposes of universities, their defenders might do better to acknowledge the non-utilitarian nature of much intellectual enquiry while at the same time drawing attention to the common fallacies and misconceived categories that hamper discussion of the issue. Asa start, one might want to insist, first, that intellectual activity can, for the most part, be judged but not measured; second, that although a number of “skills” may be a by-product of a university education, they are not its defining purpose; and third, universities only bear superficial and largely misleading resemblances to commercial companies. (Collini 2003, 6) 29 30 E na Universidade que podemos encontrar uma pratica de um saber complexo e de construcao lenta que, como tive oportunidade de referiz, parece agregar na sua caracterizac4o muitos daqueles que hoje pensam quer sobre 0 papel das humanidades, quer sobre a forma como os estu- dos literdrios dentro delas se manifestam. £ ainda minha convicgao que a literatura comparada pode, no con- texto da reflexdo que aqui aduzo, sustentar um papel decisivo na recupe- racao de alguns dos modelos de pensamento mais nobres desenvolvidos dentro das humanidades. George Steiner, ao delinear em 1994 0 mapa do que entendia poder ser a literatura comparada, insistia a meu ver com inteira razio no acto de ler como acto fundacional do comparatismo, assim privilegiando a dimensao experiencial da literatura e a sua capaci- dade de se nos apresentar como patriménio de uma meméria cultural em que negociamos pertencas, diferencas e descoincidéncias. Pelo mesmo gesto, Steiner fazia radicar nesse acto de leitura a consciéncia permanen- temente activada de uma pluralidade aberta que se trata de abrigar e de reconhecer no discurso critico. Dizia ele: Considero que a literatura comparada 6, quando muito, uma arte da leitura exacta e exigente, um modo de escutar actos de linguagem or is e escritos que privilegiam determinadas componentes desses actos. Essas componentes nao sao negligenciadas em nenhum método de estudo da literatura, mas, na literatura comparada, sao privilegiadas. (Steiner 1996, 157) Adimensao hermenéutica inscrita no comparatismo, se integra os limi- tes e por vezes mesmo as aporias da interpretagao, encontra-se entretanto sempre atravessada por um movimento que a dirige de algum modo para fora de si, ou que pelo menos convoca para essa experiéncia de leitura outras experiéncias que nela se encontram profundamente enraizadas. Se trazidas 4 dimensado da compreensao, elas constituem a rede comparatista que permite que a literatura como reposit6rio da memoria cultural nao se limite a um passado trazido como tradigao herdada para 0 presente mas que, muito para além disto, ela sinalize a forma como Seamus Heaney e Cesério Verde tinham razao, para comegar: toda a repeticao é repeticao de uma diferenca, e 0 que a literatura faz, ao trazer cada texto para o nosso presente, 6 fazer-nos pensar, através dele, o futuro que seré o de outros (mas também o nosso). Walter Benjamin falava também disto: o modo como a reconstrucdo do passado se encontra atravessada pelos fantasmas antecipatérios do futuro. Numa formulacao que poderiamos, cum grano 31 salis, considerar um exemplar comentario ao texto de Cesdrio Verde (e tal- vez 0 seja, mesmo nao 0 tendo lido), diz Harpham: The humanities should represent both the conservation and accurate transmission of the past and the imaginative cultivation of the future. At every point in humanistic inquiry, the actual meets the possible in an encounter whose results cannot be predicted in advance. (Harpham 2005, 36) E este 0 ponto com que quero terminar: 0 reconhecimento do caracter imprevisivel, e por isso inesperado, do conhecimento que praticamos: por- que aquilo que 0 comparatismo me oferece, vezes e vezes sem conta (e volto a repeticao), é a alegria desse inesperado, a certeza do “conhecimento incerto” que os textos consigo transportam. Em texto publicado em livro anterior (Buescu 2008) utilizei uma imagem que acolhi de Steiner, que por seu turno a acolhera de Kierkegaard: se, no dizer de Steiner, uma lingua verdadeiramente morta “encerra aquilo que Kierkegaard nos convidou a deixarmos em aberto se a humanidade quisesse evoluir: ‘as feridas da pos- sibilidade’” (Steiner 1996, 158), creio entao que sera possivel compreender o quanto a literatura comparada nasce da suspeita (e da esperanca) de que essas “feridas da possibilidade” as podemos continuar a abrir, retomando aqui quer a perfeigdo im-perfeita que Cesario perseguia, quer a vontade ¢ a impossibilidace de tudo reparar, lembrada por Heaney. Uma visaéo compa- ratista inscreve-se precisamente neste lugar, confirmando-nos na suspeita e reservando-nos por isso mesmo a inquietagao de que nao é apenas o futuro que esta cheio de possibilidades, mas também o presente e 0 passado. Se algum traco distingue um trabalho apenas formalmente “comparante” de um outro que responde a (e por isso se alimenta de) esta inquietacdo (cuja natureza perturbadora ou mesmo dilematica somos por vezes levados a contemplar), tal trago é a incorporagao de algumas das “feridas da possibi- lidade” (que nao sao outras sendo os Ansatzpunkte de Auerbach) no modo como lemos textos com textos, textos contra textos. No modo como as stias tugosidades nunca “encaixam” completamente, e sobra sempre, desse encontro, algo que nos faz voltar a eles de outros modos e que também permite, ao convidar, que outros os possam visitar. Se regresso a esta questéo 6 porque uma das formas que podem tomar estas feridas da possibilidade é a que se foi avolumando em torno das relacdes entre comparatismo e literatura-mundo, sobretudo quando tomadas no seu contexto “em portugués”. Sera pois neste quadro que, nos capitulos seguintes, darei conta das minhas reflexdes e de algumas das escolhas que elas determinaram.

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