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Literatura Comparada e Literatura-Mundo Helena Carvalhao Buescu I Porto Editora Do entusiasmo: humanidades, literatura comparada “O objectivo da arte, da poesia, é, de alguma forma, reparar 0 que esta danificado. Se tudo fosse reparado, a arte estaria acabada - mas isso é impossivel.” Estas palavras de Seamus Heaney, em entrevista dada em 2001 (Piiblico), repetem a convicgao de Cesario Verde, ao dizer: “Se eu nao morresse, nunca! E eternamente/ Buscasse e conseguisse a perfeicao das coisas!”. A hipétese que aqui quero desenvolver reside na tensdo implicada pela “impossibilidade” de que aqui fala Heaney (e de que falara Cesario). Verei como ambas sao 0 reverso uma da outra, e que € pois na impossi- bilidade de reparar tudo quanto esta danificado que radica, também, a possibilidade de tudo reparar. Sublinharei 0 cardcter incompleto e por isso sempre renovador da literatura, do conhecimento dela que os estu- dos literarios permitem, bem como de uma ideia de humanidades que a caracteriza como aproximando de nds 0 passado, ao ponto de dele ter- mos uma experiéncia presente, sem que o seu caracter revoluto (e mesmo por vezes anacrénico) désaparega. Estamos, pois, perante uma tensao e um aparente paradoxo que fazem parte da peculiar relagéo com o tempo que os estudos literarios, enquanto parte do discurso das humanidades, manifestam e praticam. O territério em que Heaney coloca a poesia, a literatura e por exten- sao a arte é, como vimos, aquele em que a intervengao de uma voz individual se dirige também ao colectivo, reflectindo por um lado a capacidade de identificar 0 que est danificado e, por outro, a possi- bilidade de enderecar esse dano pela imaginacdo ou até pela invengio do que poderia ser reparado (modernamente fala-se menos do que seria desejavel da ideia de invengiio, que é uma ideia também do humano e do seu horizonte de mundo potencialmente ilimitado). A poesia ins- creve-se, nas palavras de Heaney, neste inacabado didlogo entre uma fala que apenas existe porque é articulada pelo individuo e a conscién- cia de que, como sempre sublinharam, entre outros, Emile Benveniste e Mikhail Bakhtin, aquilo que nela se agita é a lingua de uma comuni- dade. Aquilo a que ela se dirige, nela se cristalizando, é por isso mesmo a meméria dessa comunidade, que da assim sentido também a cons- trucdo antropolégica do homem. Manuel Gusmao reflecte justamente sobre esta questéo num ensaio sobre a configuragao_histérica do humano (Gusmao 2011*) e sobre formas da historicidade do literario que inevitavelmente dao corpo ao humano e as comunidades que integra e inventa. Acredito que sem essa memoria, pessoal e cultural, qualquer nogao de colectividade seria radicalmente impossivel, porque é ela a base da repeticéo, da sedimentagao e da escolha imaginaria que sus- tentam as muiltiplas ideias, continuas e descontinuas, de comunidade. Comegarei, pois, por acompanhar brevemente estes trés conceitos (repe- ticdo, sedimentacdo e escolha imaginéria), para deixar claras algumas das implicagées que tem no desenho de uma concepsao da literatura como decisiva inscricéo de uma memoria cultural que é, simultanea- mente, uma imaginacao cultural, como queriam Cesdrio e Heaney: devemos tomar a sério aquilo que os poetas dizem sobre a literatura e sobre o mundo — aquilo que inventam pode vir um dia a fazer parte da reptiblica, mesmo se por vezes sé imaginariamente (é uma outra forma de existéncia). 1. Repetigfio. E a meméria cultural que inscreve no territério dos nos- sos corpos individuais e da nogao de colectivo em que nos reconhece- mos a conviccao de que ela € feita, também, daquilo em que podemos identificar 0 padrao da repeticao. Este permite, por seu turno, conceber as diferengas e por isso a estratificag&o dos tempos. Esta afirmacao tem algumas implicacées complexas, que me limito aqui a enunciar como pressupostos do trabalho com literatura, tal como o entendo: aquilo a que chamamos ensinar literatura é uma actividade possivel (sobre esta questao desenvolverei algumas reflexdes em capitulo posterior); a pra- tica dessa possibilidade depende todavia de uma implicagéo pessoal que, nesse ensino, pode e deve permitir conjugar afecto e conhecimento ~o literario nao é ensinavel numa das duas dimens6es apenas, porque é do entrelacamento entre elas que nasce a literatura como experiéncia. Por seu lado, a cultura, entendida por Lotman e Uspenski como “mem6- ria nao-hereditaria de uma comunidade” (Lotman e Uspenski 1981, 40), é passivel de acesso através de um transito que é simultaneamente de aD | discurso e de praticas; isto significa que qualquer cultura, enquanto lugar de memoria de uma comunidade, nao s6 pode ser objecto de aprendizagem (nao ha que ter medo da palavra, como nao ha que ter medo da palavra ensino, que designa uma actividade nobre, mesmo se hoje muitas vezes socialmente desqualificada) como depende intima- mente dela para poder constituir-se, exercer-se e, assim, atravessar os tempos. A tensio pedagégica encontra-se assim co-implicada na ideia de cultura que aqui defendo, o que naturalmente tera especificas conse- quéncias em particular para a concepcao quer das humanidades e do trabalho intelectual que elas pressupdem, quer da Universidade ela mesma e do papel que lhe cabe enquanto lugar onde se preserva essa especial relacao com o passado (¢ por isso com 0 futuro) a que damos o nome de cultura. Voltarei mais a frente a esta ideia de tepeticao, para nela sublinhar 0 potencial de dinamismo que transporta, sobretudo quando percebida como garante de um processo de revisdo do saber que garante a abertura as nogdes de incompletude e de incerteza - entretanto nao incompativeis com a pulsdo em direc¢éo ao saber e ao conhecimento. 2. Sedimentag@o: 0 nosso convivio com o passado, que herdamos ¢ construfmos como tradicao, ou conjunto de tradigdes nem sempre alias completamente coincidentes (os desequilibrios ¢ os desencontros entre as varias tradigGes sao alias eles mesmos fradicionais), apenas se torna possivel quando acedemos a uma representagdo desse passado como algo que nao apenas transcorreu, mas de alguma forma nao é nunca totalmente ultrapassado, nem pode alguma vez vir a sé-lo. Heaney teferia-se a isto como “aquilo que nao pode ser completamente repa- tado”. A famosa imagem benjaminiana do anjo da Historia cabe justa- mente aqui: ao sermos empurrados com violéncia para 0 futuro pelo vento que sopra do passado, percebemo-lo como dinamismo e movi- mento da hist6ria; sedimentamos, assim, as pilhas de ruinas que sobram do passado como aquilo precisamente a que o nosso olhar se dirige, enquanto compreensao; e sedimentamos 0 nosso desconheci- mento do futuro, que é também o lugar da sua invengao, sabendo que é para ele que nos dirigimos, de costas voltadas. Este trabalho de sedi- mentagao nao alude entao & nossa meméria cultural como 0 que nos pacifica na certeza de um passado apenas monumental, mas sobretudo como 0 que, sobrando desse passado, se prolonga até ao presente e até ao futuro, fazendo dele o tempo de agora. E por isso que 6 A metafora 3 do historiador como escavador (e detective) que Walter Benjamin recorre para pensar 0 trabalho sobre e com o passado ~ que 6, em maior ou menor grau, semelhante ao trabalho em que nés, os que nos situa- mos dentro dos estudos literérios, inevitavelmente nos encontramos imersos (e esta é também a razao pela qual, como veremos mais adiante, haverd sempre uma dimensao de consciéncia filolégica que, ao lado da consciéncia pedagégica, nao pode deixar de caracterizar 0 nosso trabalho). 3. Escolha imagindria: a memoria faz-se da subtil mas as vezes tam- bém potencialmente violenta negociagao entre o que ¢ recordado e o que é eliminado; entre o que colocamos na luz e o que remetemos para a sombra ou mesmo para a escuriddo. Sao estas escolhas, efectuadas sobre 0 passado, que permitem imagind-lo como estratégia de constru- go de qualquer identidade, ou de qualquer comunidade imaginada (Benedict Anderson) e que permitem, por outro lado, imaginar o futuro. E também a isto que Lotman e Uspenski se referem, quando afirmam: [...] visto que a cultura é meméria (ou, se preferem, gravagio na meméria de quanto tem sido vivido pela colectividade), ela relaciona-se neces- sariamente com a experiéncia histérica passada. No momento da sua aparicao portanto, uma cultura nao pode ser constatada enquanto tal: adquire-se plena consciéncia dela post factum. Quando se fala da criagao de uma nova cultura, verifica-se uma inevitavel antecipagao: entende-se, noutros termos, aquilo que, segundo se supée, se tornardé meméria, do ponto de vista de um futuro reconstruivel (e s6 0 futuro, naturalmente, sera capaz de demonstrar a legitimidade de tal conjectura). (Lotman e Uspenski 1981, 41) Isto significa que a nossa presenga individual na cultura 6 para ja sempre uma inscrigéo nessa memoria colectiva, alias sempre forma de a reactualizar e, talvez sobretudo, rever; e, por outro lado, que ela é per- manente renegociagao dos passados e dos futuros que concebemos como indissociaveis, como préximos ou como distantes parentes. Ouvi- mos com frequéneia dizer que sem passado nao hd futuro. Ebomentre-. tanto lembrar que sem futuro nao ha passado. Ora é isto que a cultura permite tecer — sendo ainda importante recordar que, na medida em que a meméria depende, como também lembra por exemplo Paul Ricoeur (2000), além de Lotman e Uspenski, da traducao da experiéncia vivida 14 em experiéncia comunicada, a literatura nao pode deixar de ser enten- dida como gesto decisivo de modelizacao sempre variavel do mundo. No entanto, se é verdade que ela, a literatura, funcionou em determi- nada conjuntura histérica como projeccéo de uma certa comunidade imaginada que ajudou a cimentar 0 processo politico € ideologico da construcao das nagdes (em capitulo mais A frente retomo esta questao no que a literatura portuguesa diz. respeito), 0 certo é que julgo empo- brecedor reduzir a literatura a tal movimento — ignorando assim outras formas poderosas pelas quais a cultura humana nela se cristaliza, enquanto constelagao transmissivel a todos os que também imagina- mos como nossos contemporaneos € nossos vindouros. Escamotear © papel decisivo da literatura nesse processo (que, incluindo um “pro- jecto nacional” pés-romantico, nele se ndo pode esgotaz) 6, em minha opiniao, um dos passos primeiros que conduz ao mal-estar que tantos dos que trabalham com ela sentem, em relagao 8 literatura. E, sejamos claros, que muitos dos que a nao compreendem (ou se querem precaver contra as suas supostas dificuldades, sem perceberem como elas sao sempre um desafic) transformam em suspeita e desconfianga. Uma vez instalado esse mal-estar, que é mais fundo e mais definitivo do que a “guspeita” de que falava Nathalie Sarraute, ¢ dificil, para nao dizer quase impossivel, escapar a um entendimento evasivo ¢ justificativo da literatura e daquilo que com ela os humanos aprendem e inventam. Como argumentarei ao longo deste livro, sem entusiasmo o mal-estar é inevitavel. Verei ainda, mais adiante, de que forma o empobrecimento da cons- ciéncia disciplinar das humanidades, e de forma mais concreta dos estu- dos literarios, arrasta consigo inevitavelmente a suspeicao relativamente ao trabalho possivel que eles podem fazer, bem como a sua legitimidade. E arrasta ainda consigo, em tiltima andlise, aquilo a que Gumbrecht (2005) chama, com inteira razio, a “falta de entusiasmo” com que tantos estu- diosos da literatura tentam colmatar as suas dividas radicais quanto a “utilidade” das acces em que se encontram empenhados. O paradigma utilitarista (que Monika Fludernik (2005) caracteriza, com razao, também como “economicista”), uma vez instalado, mina as proprias bases do saber humanista, dos estudos literarios, bem como das especificas acces de contemplagio, de andlise perspectivistica e de argumentacio que sempre constitufram os fundamentos do seu territério. A este respeito, as ilumi- nantes reflexes de Vitor Aguiar e Silva podem constituir certeiro ponto de ancoragem, na critica 4 “I6gica empresarial” qué, minando 0 estatuto da Universidade, atinge sobretudo as humanidades, disciplinas que pressupdem e postulam a preeminéncia da palavra e dos textos — a palavra e os textos com os quais o homem se constitui como homem, desde a esfera da religiao e da moral até a esfera da poesia, desde a esfera do conhecimento filoséfico e cientifico até A esfera da poli- tica e do direito. (Silva 2010", 88) A literatura 6, dentro deste quadro, um dos sitios fundamentais de localizagéo da meméria cultural (sempre mais vasta e também flu- tuante do que a memoria nacional) como heranga permanentemente negociada com passados, presentes e futuros, patriménio int-perfeito e Por isso patriménio sempre emt vias de fazer-se. E por essa memoria cultural que a nossa meméria pessoal pode em cada momento activar- -se, dela participando e para ela contribuindo de modo critic e por isso inventivo. E é nela que nos é por isso possivel seguir 0 caminho percorrido pelas cinco vias de inseparabilidade que Jens Brockmeier (2002) detecta na actual forma de conceber o conceito de meméria cul- tural: a inseparabilidade entre memdéria pessoal e memoria social, colectiva ou cultural; entre recordagao e esquecimento; entre memoria intencional ¢ no-intencional, meméria oficial e vernacular, meméria dominante e subversiva; entre processos mnem6Onicos e contextos dis- cursivos; entre praticas de memGria discursivas ou narrativas e prati- cas de meméria nao-verbais, textuais ou performativas. De entre as consequéncias que uma tal forma de conceber a memoria cultural traz para o entendimento possivel da literatura e daquilo que a Partir dela os estudos literarios podem fazer, gostaria de sublinhar o potencial de dinamismo. E ele que nos permite justamente compreen- der 0 conjunto dos nossos passados (e até dos que nunca 0 foram) como um patriménio em inacabada construgao, na medida em que a sua con- versa¢do connosco se encontra em cada momento envolvida nos procedimentos, que atrés referi, de repeticao, sedimentacao e escolha imagindria. A memoria cultural, que a experiéncia literdria permite reconfigurar sempre em termos pessoais e simultaneamente comunitd- tios, encontra na literatura como experiéncia de arte (outra palavra que nao devemos recear) um dos seus mais poderosos meios nao apenas de sobrevivéncia mas, sobretudo, de construcao, mesmo de invengao. Susan Stewart faz radicar na faculdade do juizo, intrinseca as humanidades, “a implicacao entre a privacidade do pensamento e © mundo ptiblico da 16 acco” (Stewart 2005, 98). E por esta mesma razéio que, quando falamos de patriménio, tradicao ou arquivo, que tudo isto a literatura como arte 6, no estamos a falar de uma heranga recebida de uma vez por todas mas, pelo contrério, de uma permanente reconfiguracao da nossa posicao his- t6rica e simbélica dentro da cultura em que nos reconhecemos. A expe- riéncia literdria confronta-nos com a experiéncia do mundo (da casa) que nos é comum, bem como com a experiéncia daquilo que no mundo nos é incomum, e a que acedemos pelo arquivo de diferencas de que a literatura se constitui como um dos imensos repositérios. E este um ponto decisivo. Os estudos literdrios, enquanto parte das humanidades, sao confrontados com uma forma especifica de envol- vimento com 0 passado em que é 0 modo como esse passado é trans- portado para o presente que se torna relevante e, ao mesmo tempo, definidor do trabalho feito. Geoffrey Galt Harpham, ao dar 0 mote a um ntimero da New literary history que, em 2005, foi integralmente dedicado a uma reflexao sobre o lugar actual das humanidades, intitulava 0 seu contributo, a que os outros ensaistas reagiram, Beneath and Beyond the “Crisis in the Humanities” (2005). As trés premissas sobre que arquitecta a sua defesa de uma visao futura do lugar das humanidades no quadro do concerto dos saberes sao as da textualidade, da humanidade e da autocompreensdo, que ele considera caracteristicas indissoliiveis do pensamento humanista. Mas valerd talvez a pena relacionar outros dos seus contributos com algumas das questées até agora focadas, a come- gar pela incompletude das humanidades, isto 6, o seu caracter fundacio- nal enquanto conjunto de disciplinas que néo podem deixar de ser consideradas como um “unbounded archive” (Harpham 2005, 25). Este “arquivo sem fronteiras”, de caracter por isso inclusivo e sem lugar para a pré-determinacao, tem uma especial relagao com o passado, que nao se limita a preservar mas que também enriquece, revé e recon- sidera. O conhecimento humanista e 0 conhecimento dentro dos estu- dos literdrios participam dessa forma utopicamente incompleta a que Cesdrio Verde se referia, numa conversa sempre recomecada entre os objectos do passado e o renovado presente da sua leitura e considera- cdo. Diz Harpham: of truthful knowledge (and the symmetrical, equally bracing, possibility of error), the act of reflection, and democratic citizenship, and fosters a [...] the textual emphasis of the humanities implies the possibility sense of freedom and power opening onto an undiscovered future. (Harpham 2005, 26) Podemos optar por chamar a isto, com Harpham ainda, o “conheci- mento incerto” que é 0 conhecimento humanista - lembrando alids que Silvina Rodrigues Lopes (1990) chamou também, ao conhecimento lite- rario, uma “aprendizagem do incerto” (porque, mais uma vez, pode haver aprendizagem, mesmo se do incerto). E podemos também subli- nhar 0 cardcter decisivo da defesa, que Harpham faz, da lentidao do saber constituido nas humanidades, relembrando a formulagao de Carla Hesse (1997), que qualifica o saber veiculado pelo livro como “uma forma de troca lenta”. O reconhecimento de uma velocidade, um ritmo e uma temporalidade préprios na construc&o do saber dentro das humanidades pode aliés relacionar-se com a importancia do pen- samento auto-reflexivo dentro deste campo disciplinar. Nao porque tal auto-reflexividade Ihe seja exclusiva. Mas porque o potencialmente infinito processo de revisao do conhecimento (e do prdprio pensa- mento) faz das humanidades um especifico lugar para o permanente confronto nao apenas com a verdade para que tende mas também com as incertezas sobre que essa verdade vai sendo construida. Mas isto, como bem vé Harpham, s6 pode ser feito dentro de um auto-entendi- mento das humanidades como um lugar em que o conhecimento é con- cebido de uma forma que ndo se limita a ser defensiva: o revisionismo critico implica, afinal, autoconfianga disciplinar (cf. Harpham 2005, 35). Curiosamente, varios dos ensafstas que, nesse mesmo ntimero da New literary history, reagiram ao diagnéstico tracado por Harpham con- vergiram na insisténcia sobre o cardcter lento do conhecimento dentro das humanidades. Parece haver aqui alguma matéria para reflexdo, se quisermos parar também nés para contemplar algumas das implicagdes que tal lentidao nos pode levar a pressupor. Do meu ponto de vista, encontramos nesta (re)descoberta a suspeita reiterada de que a especi- fica relacao com o passado, ¢ por isso com a dimensao temporal, que o conhecimento humanista pressupée nao se limita aos objectos que ele elege como pontos nodais em torno de que constréi o seu pensamento Pelo contrario, podemos sublinhar, com Susan Stewart, 0 caricter tardio e por isso deformador, no sentido em que Walter Benjamin entendia a capacidade de deformar como a raiz da percepcao do novo, do conheci- mento humanista. Nao é certamente por acaso que o pensamento huma- nista de E. Said (2006) desembocou, no seu tiltimo livro, na ideia central de estilo tardio. Ou podemos sublinhar, com Gumbrecht (2005), a articu- lagdo entre tal lentidao e a nocao de presenga, cometendo a ambas 0 labor pedagégico que, segundo este pensador, faz parte integrante das 17 18 proprias humanidades. Sigamos pois brevemente estas duas ideias, até pela decisiva importancia que teréo para a autocompreensao dos estu- dos literarios como territério humanistico em que estas caracteristicas nao podem deixar de ser reconhecidas como fundacionais. O caracter tardio que Susan Stewart faz coincidir com o legado das humanidades devemos nés entendé-lo como parte determinante da sua condicao histérica, mas também da condigao histérica dos objectos com que lida. E por isso que o saber humanista é afectado por uma peculiar relacdo com esse pasado, a que vai buscar 0 seu mesmo inacabamento A ideia de que contemplamos continuadamente esse passado na sua rela- co com 0 presente leva-nos a entender 0 cardcter deformador de tal ati- tude contemplativa e, por isso, o seu potencial de revisio, que é também a certeza do incerto, a consciéncia do inacabamento do saber em que radica a possibilidade sempre a espreita do inesperado. E por esta razao que a contemplagaéo humanista nao pode ser entendida como uma ati- tude passiva, mas como uma especifica forma de ac¢ao, de relagao com © pasado, que nao apenas aceita 0 caracter tardio do conhecimento his- térico, humanista e literario, mas nele encontra razées suficientes para se alegrar. Diz Stewart: “The intended artifacts that make up the legacy of the humanities are potentially infinite and in every case overdetermined, for our reception of them is always belated, and that belatedness is not a lack, but rather a resource” (Stewart 2005, 102). A alteragéo avaliativa do nosso acesso apenas mediado (e por isso simbolicamente represen- tado) ao passado é em meu entender um passo sem 0 qual nenhuma re-equacionagéo do valor das humanidades e dos estudos literdrios pode ter lugar, Mas essa ligacao com 0 passado é também, como argutamente insis- te Gumbrecht, uma muito peculiar relacdo com o presente e, nela, com 0 “brilho” que o seu efeito de presenga também tem de implicar. Diz Gumbrecht que as humanidades implicam a constant insistence on “presence”, in the sense of that spatial closeness, of that tangibility of the world of objects that our everyday Cartesianism has a tendency of crossing out. It indeed could become a task for the humanities to insist — against the absolute dominance of information and speed ~ on the presence dimension of the world and its phenomena, (Gumbrecht 2005, 135) Nao se trata pois apenas de contemplar 0 passado e de o entender como o lugar em que o exercicio da lentidao do saber humanista pode 19 manifestar também o cardcter tardio (histérico) do conhecimento. Trata- -se antes de conseguir expor, ao mesmo tempo, a dimensao de presenca que implica o transporte desse passado, enquanto meméria cultural, para © nosso presente. Este transporte, Gumbrecht liga-o certeiramente a um determinado “estilo de ensino” de que as humanidades nao deveriam prescindir. E que, acrescento eu, deveriam saber promover. Os “poderes de presenca” (para citar um outro titulo de Gumbrecht) ganham em ser reconhecidos como sendo parte integrante daquilo que podemos fazer dentro do campo dos estudos literarios, nao apenas como uma forma lon- ginqua de nos relacionarmos com objectos historicos, mas sobretudo como uma forma aproximada de mediagio, pela qual esses objectos passam a fazer parte da construgao da nossa posi¢ao pessoal e social no mundo. E por este conjunto de razGes que, do meu ponto de vista, os estudos literarios nao podem deixar de participar daquele entendimento das humanidades que o fildsofo Sigfried Kracauer oferecia para o que con- siderava ser 0 papel do historiador, observador aproximado do mundo intersubjectivo da nossa experiéncia humana: The historian’s universe is of much the same stuff as our everyday world ~the very world which Husserl was the first to endow with philosophical dignity. At any rate, this world is the nearest approximation to what he calls Lebenswelt and identifies as the source and ultimate justification of all human sciences. The sciences, says he, idealize the experiences we make in that common intersubjective world; they “hover, as if in empty space, above the Lehenswelt”. But actually history differs from the natural sciences in that it “hovers” there at much lower altitude than they, for it directly deals with the kind of life which falls into the orbit of everyday experience. (Kracauer 1969, 46) A “menor altitude”, como diz Kracauer, a que vogam disciplinas como a histéria ou os estudos literdrios faz delas, A primeira vista para- doxalmente, o territério em que de modo mais proximo se podem cap- tar as infinitas diferenciag6es humanas, bem como as rimas e os ecos que fazem delas diferenciagées comuns — em ambos os sentidos que podemos encontrar nesta palavra, comurs: porque fazem parte dessa comunidade intersubjectiva que historicamente partilhamos; ¢ porque se trata de uma historia e de um patriménio que sao comuns na medida em que se encontram tecidos pela experiéncia enriquecida da vida de todos os dias. Uma vida bem mais complexa e rica do que a que pres- supomos geralmente quando falamos de “quotidiano”, afinal. E essa 20 comunidade da experiéncia que os estudos literérios podem também retragar, em gesto que, embora consciente da conformagao historice- mente diferenciada do fenémeno literario, sobretudo 0 encara com um dos lugares de “menor altitude” em que a experiéncia do mundo s= conforma enquanto experiéncia interpretavel e enquanto patrimé da meméria cultural. Ao dizer isto, reconheco formas de inscrigao retragdveis a uma ceriz concepgao da filologia definivel, com Erich Auerbach, como “the diverse background of a common fate” (1969), e em que a sua nocao de Weltliteratu- de base filolégica, assentava. Erich Auerbach dizia isto, jA perto do final da vida, num ensaio de 1952 (Philologie der Weltliteratur) publicado num Festschrift em honra de Fritz Strich, um dos mais sustentados pensadores sobre Goethe ¢ ex particular a concep¢ao goethiana de Weltliteratur (darei a esta questéc maior énfase em capitulo seguinte). O volume de homenagem a Stric: intitulava-se simplesmente Welfliteratur. No seu ensaio, posteriormente traduzido para inglés, em 1969, Auerbach também defendia que quem conhecia apenas a literatura provengal nao podia, justamente, ser “um bom especialista” (Auerbach 1969, 9) de literatura provencal. E 0 tipe de frases que, na sua simplicidade, s6 grandes mestres azriscam pro- nunciar. Precisamente porque ele conheceu, como poucos, a literaturs provencal, sabia quanto dela (como de qualquer outra) nao Ihe pe~ tence, quanto das suas especificidades 6, simultaneamente, especific: dades de outras literaturas. O territério filolégico em que Auerbach fazia assentar o seu projecto de pesquisa dentro das humanidades e dos estudos literdrios dificilmente podia aceitar a existéncia séria de frontei- ras politicas como fronteiras de pensamento e de investigacao. Era pois uum projecto que, potencialmente, se colocava ao nivel do que o sew Mimesis tinha exemplarmente manifestado. A propésito do ensaio de Auerbach no volume de homenagem a Strich Edward Said (que claramente elegeu Auerbach como seu mestre) tem inte ressantes reflexes, que penso valer a pena citar integralmente: In 1951, Auerbach wrote an autumnal, reflective essay entitled “Philology and Weltliteratur “ with a somewhat pessimistic tone because he fel: that with the greater specialization of knowledge and expertise after the Second World War, the dissolution of the educational and professiona. institutions in which he had been trained, and the emergence of “new non-European literatures and languages, the Goethean ideal migh: have become invalid or untenable. But for most of his working life as = 24 Romance philologist he was a man with a mission, a European (and Eurocentric) mission it is true, but something he deeply believed in for its emphasis on the unity of human history, the possibility of understanding inimical and perhaps even hostile others despite the bellicosity of modern cultures and nationalisms, and the optimism with which one could enter into the inner life of a distant author or historical epoch even with a healthy awareness of one’s limitations of perspective and insufficiency of knowledge. (Said* 2004, 11-34) E este ensinamento, afinal fundador de uma ideia de comparatismo que Schlézer anunciara em 1773, ao cunhar o termo Weltliteratur, e que Goethe cristalizou nos varios usos que dele fez, raiz de tanta fortuna posterior (e sobretudo actual’), que Auerbach, efectivamente um dos pilares fundadores da disciplina da literatura comparada, nos permite equacionar, hoje como em 1952, como esclarecidamente viu Said Mas a reflexao de E. Auerbach é decisiva também a outros titulos, que brevemente esboco aqui. Em primeiro lugar, é atravessada por uma pro- fundissima consciéncia (em que a melancolia co-habita com uma von- tade de crenca no futuro da filologia) das mudancas estruturais que se manifestam j4, no inicio dos anos cinquenta, no campo das humanida- des. Ora, se aquilo que define a filologia é, para Auerbach, muito justa- mente o seu humanismo, que no campo da literatura ele encontra figurado no conceito de Weltliteratur, nao € dificil compreender como um certo valor de fim (como disse apesar de tudo mitigado) perpassa por todo este texto, que quase poderiamos considerar uma espécie de testamento intelectual do saber auerbachiano (Auerbach morreu em 1957). Nao é também certamente por acaso que a traducdo em inglés deste ensaio é co-assinada por um jovem professor que tinha, poucos anos antes, entrado para a Universidade de Columbia, Edward Said, ele que, nas palavras introdutdrias a traducao, insiste sobre 0 valor decisivo do conceito de Humanitiit, Said perfilava-se j4 aqui como herdeiro de uma linhagem que a Filologia constituira, no que continuara a ser, a0 longo de toda a sua carreira, uma constante preocupacao, até dar origem Aquilo que designa, em livro j péstumo, como Hurmanisi and democratic criticism: neste livro, uma renovada mas intensa visio filolégica regressa como um dos movimentos decisivos em direccao a um conhecimento da literatura e das humanidades’. Por outro lado, Auerbach persegue neste texto duas grandes ideias, que ele quer considerar possiveis: a ideia de intuigao e a ideia de 22 sintese — dois grandes pilares da concep¢ao do edificio filolégico sobre © qual repousa a propria possibilidade da Weltliteratur. Ora estas duas ideias (intuicao e sintese), de matriz hegeliana, unem-se através de conceito a que ele chama “ponto de partida” (Ansatzpunkt): in order to accomplish a major work of synthesis it is imperative te locate a point of departure (Ansatzpunkt), a handle, as it were, by which the subject can be seized. The point of departure must be the election of a firmly circumscribed, easily comprehensible set of phenomena whose interpretation is a radiation out from them and which orders and interprets a greater region than they themselves occupy. (Auerbach 1969, 13-14) £ este ponto de partida (capaz de iluminar “regides mais vastas” do que as por si ocupadas) que transforma a verdadeira especializagéo numa “redescoberta” (Auerbach 1969, 15): “The characteristic of a good point of departure is its concreteness and its precision on the one hand, and on the other, its potential for centrifugal radiation” (Auerbach 1969 15). Digamos que Auerbach enuncia, de modo limpido, aquilo que ainda hoje, sessenta anos depois, podemos defender de forma mais interessante para a literatura comparada: a necessidade comparatista de Ansatzpunkte; a sua irresolvida hesitacao entre a “exultacao do parti- cular” e o “movimento do todo” (Auerbach 1969, 16); e 0 reconheci- mento do fim do paradigma das filologias nacionais como decisiva operac&o para o futuro das humanidades: In any event, our philological home is the earth: it can no longer be the nation. The most priceless and indispensable part of a philologist’s heritage is still his own nation’s culture and language. Only when he is first separated from this heritage, however, and then transcends it does it become truly effective. (Auerbach 1969, 17) Assim, a ideia de comparatismo, baseada nesta outra de Auerbach, simultaneamente de enraizamento e separagéo, parece-me ser ainda hoje aquela que nos ajuda a configurar, nao apenas o que a disciplina pode ser nela mesma, mas ainda aquilo que ela pode ser no concerto das humanidades. Em primeiro lugar, porque ¢ a perspectiva comparatista que autoriza a compreensao da centralidade do literario para 14 do papel politico que lhe foi atribuido, de forma a meu ver demasiado res- tritiva, na consolidacao de uma ideologia de base nacional. Em segundo lugar, porque é também por essa perspectiva comparatista que pode- mos alcangar a extensao e a compreenso da meméria cultural que se cristaliza no patrimanio literario, considerado como arquivo de diferen- cas capazes de falar aquilo que hoje somos. Finalmente, porque a tensao comparatista, que Claudio Guillén (1985) caracterizava como a cons- ciéncia da tensao entre a percep¢do da singularidade e a inquietacao integradora, e que vimos Auerbach fundamentar do mesmo modo para a perspectiva, por ele defendida, de Weltliteratur, volta a dar visibili- dade aos lugares de fronteira como lugares de vibratil permeabilidade, geografica, histérica, politica ou simbélica. Nao se trata entretanto ape- nas de considerar a fronteira como lugar permedvel, que o é natural- mente: trata-se também de a pensar de acordo com aquilo a que Ulrich Beck chama “the mélange principle”, isto 6, a consciéncia das multifor- mes interpenetracdes entre culturas cosmopolitas e tradicGes, e que o leva a afirmar: “cosmopolitanism without provincialism is empty, pro- vincialism without cosmopolitanism is blind” (Beck 2006, 7). A perspec- tiva comparatista tem de integrar a consciéncia de que ha que saber evitar tanto a Cila do vazio cosmopolita como a Caribdis da cegueira provinciana. E esta também a razao pela qual Emily Apter, especialmente preocu- pada com a questéo do humanismo na sua tentativa de definicao de uma “nova literatura comparada”, usa o termo interessante de Welf- -humanismo (Apter 2006, 65) ao considerar a figura de Edward Said ea sua relagao com as de Spitzer e Auerbach, bem ainda aquilo que classi- fica como a tenaz ligacao de Said a “preceitos humanistas e préticas exegéticas” (Apter 2006, 65). Apter compreende o papel mediador de ambos os fildlogos no confronto de Said com as exigéncias conflituais que um mundo complexo lhe coloca: [...] Said was taking up the challenge of using Auerbachian humanism to fashion new humanisms, not merely because of a sober conviction that great books, on the grounds of their intrinsic merit, should continue to have traction in a global, increasingly mediatized culture industry, but more because of his belief that humanism provides futural parameters for defining secular criticism in a world increasingly governed by a sense of identitarian ethnic destiny and competing sacred tongues. (Apter 2006, 72) E sem dtivida por idénticas razdes que Vitor Aguiar e Silva, no j4 acima citado ensaio “Sobre o regresso a filologia”, caracteriza uma das 23 24 vias abertas a reflexdo actual dentro dos estudos literarios como aquela que aceita e sustenta o didlogo com aquilo que designa como uma “filo- logia pos-imperial” (Silva 2010°, 104-105), em permanente didlogo com a teoria e a hermenéutica literarias, e atenta 4 expressio de problemas que, por via da interpretacdo, se plasmam no texto literario através da sua leitura e anélise. Ao mesmo tempo, creio eu, é a atencio a esses mesmos problemas que garante a decisiva dimensio fransitiva dos estu- dos literarios, que nao precisam de recusar a literatura (dissolvendo-se também nessa dissolucao) para garantir a capacidade de olhar para e interpretar outro tipo de fendmenos. E precisamente nesse sentido que Aguiar e Silva comenta, no final do seu ensaio: “Nos corsi e ricorsi da hist6ria, das civilizacOes e das instituigbes, hd re-gressos que sdo pro- -gressos. Assim entendo o regresso a filologia e 0 regresso da filologia” (Silva 2010", 106). Curiosamente, Giuseppe Verdi recorria, em 1870, a uma formulac&o andloga, ao aconselhar, cum grano salis: ““Voltemos ao antigo: sera um progresso”” (cf. St. John-Brenon 1916, 146). E, em ensaio recente, Michael Holquist (2011) acentua o lugar central que cabe & filo- logia naquilo a que chama “a era da literatura-mundo” (world literature). Uma vez mais, tudo tem de passar pela capacidade de nao obliterar as diferencas entre textos, entre culturas e entre tempos histéricos. Tudo tem de passar pela sabedoria de nao homogeneizar 0 conhecimento e a experiéncia da leitura e da interpretacdo pela criagio de um magma indiferenciado em que justamente a experiéncia do incomensurdvel se dissolveria. Uma das caracteristicas deste diferente progresso 6, como temos vindo a ver, um descentramento relativamente ao paradigma das filolo- gias nacionais - tal descentramento 6, convém disso ter consciéncia, um. dos efectivos regressos possfveis. O que se torna entdo interessante com- preender, no contexto, é qual o lugar das humanidades, em particular da literatura e, em consequéncia, dos estudos literdrios, neste quadro civilizacional em que a sua instrumentalizacéo nacionalizante nao s6 esgotou ja 0 seu (limitado) papel historico, como se viu ultrapassada por outras formas instrumentalmente mais eficazes, com especial desta- que para as passiveis de uma mediatizacao preferencial (para uma reflexdo mais pormenorizada sobre esta questéo, remeto aqui para o tiltimo capitulo do presente livro). Nao é pois num quadro de uma exclusiva (ou sequer preferencial) legitimagao nacional que teremos de procurar e argumentar a necessi- dade da literatura e dos seus estudos para a construgao de um saber critico que nao se exaura numa dimensio tecnocritica. Estou entretanto persuadida de que temos de procurar e argumentar a sua necessidade, sob pena de continuarmos a assistir ao seu progressivo apagamento, ¢ a0 estabelecimento da alternativa (a meu ver totalmente falaciosa) entre i) continuar a trabalhar sobre o literario como se nada do que ocorreu nos ultimos cinquenta anos tivesse acontecido — e por isso num estado pré- -critico; ou ii) partir do principio de que o fim da literatura eo fim dos estudos literarios sao definitivos e irreversiveis (0 que em boa verdade consiste em entendélos como a-historicos, governados por uma légica determinista face & qual a atitude de resignacio é a tinica possivel), e que por isso a soluc&o exclusiva seria a de reconverter em absoluto o pensa- mento, encontrando moldes substitutos, normalmente mais de acordo com uma fundamentagao tecnocratica — num estado a que eu chamaria pés-critico (e em certo sentido também ele pré-critico). Entre um e outro, entre a fuga pré-critica ea fuga pés-critica, entendo que ha (e que deve haver) condicées para reflectir criticamente sobre 0 lugar da literatura, o lugar dos estudos literdrios, o lugar das humani- dades e o lugar da Universidade também como sitios de meméria, no sen- tido em que Pierre Nora utilizava esta expressao: lugares nao apenas em que a arqueologia hist6rica das diferencas culturais se estratifica ¢ cristaliza, mas também em que a memé@ria cultural é experienciavel e comunicavel. Assim se permite o trnsito entre experiéncia e comuni- cacao, e se evita ou minimiza aquele empobrecimento da experiéncia que Benjamin fazia coincidir, para a nossa modernidade, com a perda da nogao de experiéncia comunicdvel e sobretudo “contavel”, isto é, interpretavel. De caminho noto que é também a mesma palavra, empo- brecimento, que ocorre a Auerbach quando caracteriza, em 1952, a via contemporanea como a que se dirige a estandardizagio. Para nés, vivendo sessenta anos depois destas palavras, o empobre- cimento proveniente desta estandardizagao pode jA apresentar uma escala bem diferente. Rey Chow aponta também a forma como a infor- matizagao do conhecimento, sendo predicada sobre a rapidez e a efi- ciéncia das trocas, associada a uma potencialmente infinita armazenagem dos factos, pode bem dar origem a uma nova forma de mente humana, com uma necessidade também ela empobrecida de reter e de lembrar - liberta, como ironicamente refere Chow, “from the sluggish, cumber- some processes of thought itself” (Chow 2005, 53). A caracterizacdo irénica das “dificuldades” implicadas no pensamento ele mesmo deve levar-nos a contemplar a forma como aquilo que hoje nos é pedido 25 26 passa, sem margem para diividas, pela nossa capacidade de, reconhe- cendo a “crise” das humanidades e dos estudos literdrios (para néo falar jé da “crise da literatura comparada”, que pelo menos desde o diagnéstico de Wellek, realizado na década de cinquenta, acompanha a disciplina e é talvez um dos sinais da sua legitimidade epistemol6gica), a integrarmos nao como manifestagéo de uma aporia insoltivel mas, antes, como convite a uma mais fecunda reflexdo sobre o que significa 0 trabalho que com os textos fazemos. Se quisermos: nao como um con- vite a dissolugao disciplinar mas, como no inicio referi, a um reforco da consciéncia (e por isso da pratica) disciplinar. De semelhante ponto de vista, e nao por acaso com idénticas preocu- pacgoes sobre os tempos que vivemos, Vitor Aguiar e Silva dirige a area das humanidades o decisivo gesto pelo qual o patriménio cultural nao 6 remetido para o passado apenas, e nao é deglutido pela ideia homoge- neizante de uma comunidade feita tao-sé de partilhas a-histéricas de semelhangas, mas onde, pelo contrério, aquilo que se herda é, talvez sobretudo, a consciéncia da coincidéncia de descontinuidades e mesmo potenciais contradicées. Diz ele: [...] as culturas das nacées europeias foram sempre o fruto de intercam- bios miltiplos, de importacdes e exportacdes de bens simbélicos, da cir culagao livre ou clandestina de ideias, de linguagens, de formas artisticas e de estilos de vida. Os Estados podem abdicar de uma nao desprezivel quota-parte da sua soberania, mas as nagSes ndo podem renunciar a sua meméria linguistica e cultural. As humanidades sao disciplinas que, na Universidade e em todo 0 sistema educativo, tm uma responsabilidade e um papel fundamentais no conhecimento, no ensino, na defesa e na difusdo desse patriménio. (Silva 2010", 90) Para esta ideia de literatura que aqui defendo, parece-me pois deci- siva a operagao comparatista, esta ideia de um comparatismo que nao se limita a ficar pela conformacao nacional de uma analogia inter-nacdes mas que, pelo contrario, reconhece a existéncia de uma comunidade patrimonial varidvel que a experiéncia literdria reconfigura e nos trans- mite — n4o apenas como soma de eventos do passado mas, sobretudo, como experiéncia do presente, eternamente repetivel 10 presente. E nisto também que consiste o “eternamente buscar e conseguir” (espantoso oximoro) “a perfeicéo das coisas”. Se a literatura 6 uma das formas mais abundantes da experiéncia do passado como presente, entao sera compreensivel porque é que, também em meu entender, Auerbach tem inteira razao ao afirmar que a literatura provencal s6 serd compreen- dida por quem conhecer também outras literaturas que ela nao é Isto nao significa dizer que a literatura comparada 6, ou deverd ser, uma transdisciplina, Porque nao? Porque 0 modo como concebemos e por isso entendemos uma disciplina é hist6rica e por isso circunstancial- mente emoldurado. Aquilo que agora encaramos como inter- ou trans- disciplinar apenas assinala o facto de que as dit a partir do século XVIII, como objectos-com-nticleo, mais do que como objectos-em-fronteira. A esta situacao acresce 0 problema de nas humani- dades, e em particular nos estudos literarios, a perspectiva standard (por vezes tinica) sobre a disciplina ter sido preferencialmente nacional — como iplinas foram entendidas, se restassem poucas ou nenhumas alternativas a quem quisesse olhar para a literatura. Nao é pois surpreendente que, historicamente, a defesa comparatista da transdisciplinaridade tenha sido fundada sobre uma defesa da supranacionalidade (Claudio Guillén), como nao surpreende hoje que o argumento em favor da transdisciplinaridade prefira subli- nhar as fronteiras entre o que a literatura faz e 0 que os estudos literarios partilham, por exemplo, com Areas como a filosofia ou a antropologia. Quero apenas apontar, no contexto, uma consequéncia a meu ver vital deste ponto de vista, especialmente se a relacionarmos com as supramen- cionadas repeticao, sedimentacao e escolha imagindria: a reivindicagio da meméria cultural e da memoria estética como uma intensa familiari- dade com a cultura entendida como histéria, e coma literatura concebida como arquivo em que a diferenga é permanentemente repetida ¢ iterada, ¢ por isso inventada. E inteiramente valida para a descricao da literatura comparada a caracterizacao oferecida por Susan Stewart para as humani- dades e a transformacao (deformagao) que elas implicam no modo como sustentam a apreensao do tempo: It is part of the very nature of the documents and objects studied by the humanities that they can alter our apprehension of time. They are the archives of all the generations before us, archives of folly as well as wisdom, and carry the full weight of our legacy from the past, which we otherwise bear partially and largely unconsciously. Memory and imagination, like forgiveness and promises, are ways of transcending our immersion in our lived relation to time, and our models for these possibilities lie in the works of literature, art, music, history, and philosophy that have been carried into the present. (Stewart 2005, 102) 27 Esta perspectiva, que sublinha o caracter simultaneamente repetido e inovador da relacdo com o passado que encontramos nas humanidades, tem consequéncias decisivas para a forma como entendemos a literatura ea arte em geral. A qualidade mimética da formacao cultural nao deve cdo de literatura comparada Se esta costuma ser associada 4 nogao de diferenga, eu gostaria, por meu turno, de sublinhar o quanto ela ganha em ser também associada & cons- ciéncia da repetigao ~ tanto por motivos estéticos, como Elaine Scarry (1999) convincentemente argumenta, quanto por razées culturais. Uma aproximacao comparatista permite-nos sublinhar a consciéncia de como a cultura tem a ver com o encontrar de modos de reconhecer a repetigio como processo de preservar a mem6ria e, simultaneamente, de a transfor- mar. Um dos melhores exemplos em que podemos pensar é 0 paradoxo de Borges sobre Pierre Menard, “autor do Quijote”. E também esta mesma repeticao complexa que, em minha opiniao, atra- vessa a argumentagao de Hans-Ulrich Gumbrecht, ao considerar a lenti- dao e a assungfo do risco como duas das caracteristicas decisivas para 0 actual repensar das humanidades. Talvez pudéssemos ser tentados, a pri- meira vista, a considerar a repeticio como incompativel com a assun¢do do risco. Do meu ponto de vista, tal ndo acontece. Apenas uma concep¢io gue acolhe a repeticao como parte integrante do dinamismo cultural pode na realidade compreendé-la enquanto factor de assun¢ao do risco, convite ao entendimento do modo como, para citar ainda Gumbrecht, num seu outro ensaio (2003), estamos sempre a ser confrontados com objectos complexos com os quais nao sabemos a partida lidar. E por isso que o louvor da faculdade do juizo, em que tanto ele (2005) como Susan Stewart concordam ver um lugar central para a concepcao das humani- dades, pode emergir como a capacidade a qual a andlise perspectivistica conduz (Stewart 2005, 101) e que se torna, simultaneamente, condicao para o nascimento do “entusiasmo” que Gumbrecht (Tite Powers, 70) acre- dita muitas vezes faltar na nossa profissao. Talvez de facto ambas andem juntas, e a rasura da faculdade do juizo tenha com frequéncia provindo de e redundado em uma “apagada, austera e vil” rasura do entusiasmo. Esta ideia de humanidades implica também uma ideia de Universi- dade que ganha em ser explicitada, para l daquilo que ao longo deste ensaio j4 pude ir mencionando. Gumbrecht relembra também, em The Powers, que a dimensao pedagégica faz parte integrante daquilo que a Filologia é, bem como daquilo que ela concebe fazer. Talvez 0 mesmo possa ser dito, com igual legitimidade, relativamente a uma série de passar despercebida & nossa propria concep ea aamnameaaemamaaeammamceacaaeaamaammaamamaamaammammammaammmcammmcma

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