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CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
É o caso de dizer, de uma vez por todas, que ninguém, no Brasil, pode ser havido por
conhecedor do Direito Tributário, se não tiver palmilhado nossa Carta Constitucional.
Infelizmente, entre nós, campeia o vezo de estudar-se Direito Tributário a partir do Código
Tributário Nacional, quando não de leis, de decretos ou, até, de portarias. Tal praxe, no
mais das vezes, tem-se revelado desastrosa.
Vejam os senhores: em outros países, como a França, a Espanha, a Itália etc., não costuma
advir grande mal nisso. Por quê? Porque suas Constituições, no que concerne à tributação,
são muito lacônicas (elas contêm duas, três, no máximo quatro normas jurídicas, que
podem ser realmente consideradas tributárias). Lá, portanto, é perfeitamente possível
estudar-se Direito Tributário a partir de uma Lei Geral Tributária (ou de um Código
Tributário).
É interessante notar que a atual Constituição - a exemplo, aliás, da anterior - não criou
nenhum tributo. Poderia tê-lo feito, porque o Poder Constituinte Originário é soberano e
absoluto. No entanto, este Poder Constituinte, ao manifestar-se, deliberou que a Carta
Suprema não devia criar nenhum tributo.
Portanto, a Constituição brasileira levou a efeito uma classificação jurídica dos tributos.
Vou, assim, falar um pouco da classificação jurídica dos tributos, isto é, vou estudar as
espécies e subespécies tributárias.
Este estudo - já lhes adianto - só se justifica num Estado como o nosso, em que as
competências tributárias (vale dizer, as aptidões para criar tributos) foram partilhadas, pela
Carta Magna, entre várias pessoas; a saber: a União, os Estados, os Municípios e o Distrito
Federal.
Ocorre, porém, que o Brasil não é um Estado Unitário. O Brasil, como todos sabem, é um
Estado Federal. Nele, a União e os Estados-membros são reciprocamente autônomos e
legislam, inclusive, em matéria tributária. Como se isso não bastasse, os Municípios e o
Distrito Federal, embora não façam parte da Federação, (porque não participaram do pacto
federativo), também são pessoas políticas dotadas de ampla autonomia e também legislam,
inclusive, em matéria tributária.
Existem, portanto, em nosso País, leis tributárias federais, leis tributárias estaduais, leis
tributárias municipais e leis tributárias distritais, criando, respectivamente, tributos federais,
tributos estaduais, tributos municipais e tributos distritais.
Desnecessário enfatizar que todas estas leis tributárias devem conviver harmonicamente.
Noção de classificação.
Nesse ponto, como vêem, tinha razão Kant, quando dizia que "o Homem é o centro de
todas as coisas". O homem é, no mínimo, o centro das classificações.
Estamos, pois, percebendo, que as classificações são, em última análise, instrumentos ou, se
quisermos, ferramentas de trabalho intelectual.
Como bem o demonstrou Agustin Gordillo, não há classificações certas, nem classificações
erradas, mas classificações mais úteis e classificações menos úteis.
Uma classificação pode existir ou não existir (isto sim). Se ela existe, porém, ela nunca será
certa ou errada, mas mais útil ou menos útil. Exemplifico: se eu dissesse aos senhores que
os tributos se classificam em tributos que rendem mais de um milhão de dólares semanais
para as pessoas políticas que os arrecadam e tributos que rendem menos de um milhão de
dólares semanais, também para as pessoas políticas que os arrecadam, eu, na verdade, não
estaria lhes apresentando uma classificação errada. Estaria, sim, lhes apresentando uma
classificação pouco útil (pelo menos para nós, cultores da Ciência do Direito). Com efeito,
qual a utilidade jurídica em classificar-se os tributos em muito rendosos e pouco rendosos?
Nenhuma, pelo menos a meu sentir.
Decidir-se por uma classificação, em relação a outra - e agora invoco as lições de Genaro
Carrió - não é como preferir um mapa fiel a outro que seja falso. Na verdade, decidir-se por
uma classificação em relação a outra é como escolher o sistema métrico decimal, ao invés
do sistema de medição dos ingleses. Os dois sistemas estão corretos. Apenas, um pode
revelar-se mais útil do que o outro, até em razão de contingências geográficas. De fato, é
razoável supor que, na Inglaterra, o sistema anglicano seja mais útil. Por quê? Porque lá as
distâncias são aferidas em milhas, em jardas, em pés etc. Em contrapartida, no Brasil, o
sistema métrico decimal (dito, também, continental ou francês) é mais útil, porque é nosso
sistema de medição oficial.
Agora, atentem, por favor, para o seguinte: uma classificação jurídica deve levar em conta o
dado jurídico por excelência: a norma jurídica. Ela é o ponto-de-partida indispensável de
qualquer classificação que pretenda ser jurídica.
As espécies tributárias.
Uma classificação jurídica dos tributos, no entanto, só será possível a partir do exame das
normas jurídicas tributárias em vigor, máxime das de mais alta hierarquia, que se
encontram na ConstituiçãoUma classificação jurídica dos tributos, no entanto, só será
possível a partir do exame das normas jurídicas tributárias em vigor, máxime das de mais
alta hierarquia, que se encontram na Constituição.
De fato, a Constituição brasileira está comprometida com uma classificação jurídica dos
tributos. Conforme preceitua o art. 145, da Lei das Leis, as pessoas políticas podem criar
impostos, taxas e a contribuição de melhoria. Portanto, no Brasil, o tributo é o gênero, do
qual o imposto, a taxa e a contribuição de melhoria são as espécies.
Esta classificação, porque apadrinhada pela Constituição, não pode sequer ser
desconsiderada, por quem se disponha a fazer o estudo jurídico das espécies tributárias, em
nosso País. Aqui, repito, os tributos ou são impostos, ou são taxas, ou são contribuição de
melhoria.
Sem a pretensão de ser exaustivo, imposto é o tipo de tributo que tem por hipótese de
incidência um fato qualquer, não consistente numa atuação estatal. Daí porque Geraldo
Ataliba chama o imposto de tributo não-vinculado. Não-vinculado a quê? Não vinculado a
uma atuação estatal.
Apenas para registro dos senhores, os Estados podem criar os impostos apontados no art.
155, da C.F. (imposto sobre doações, sobre operações mercantis, sobre a propriedade de
veículos automotores etc.).
Já, os Municípios podem instituir os impostos arrolados no art. 156, da mesma C.F. (o
imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, o imposto sobre serviços de
qualquer natureza etc.).
O Distrito Federal, de seu turno, pode criar, em seu território (é claro), tanto os impostos
estaduais, como os municipais. Os impostos estaduais, por força do que estabelece o
"caput" do art. 155, da Constituição ("Compete aos Estados e ao Distrito Federal..."). E, os
impostos municipais, graças ao que estatui o art. 147, "in fine", também da Constituição
(...ao Distrito Federal cabem os impostos municipais). Como é fácil perceber, a
competência impositiva distrital é o somatório das competências impositivas estaduais e
municipais.
Por fim, a União está credenciada a criar quaisquer outros impostos: seja os expressamente
mencionados no art. 153, da C.F. (imposto sobre a importação, imposto sobre a renda,
imposto sobre a propriedade territorial rural etc.), seja os que o Congresso Nacional vier a
conceder, com base no art. 154, I, do mesmo Diploma Fundamental, que estabelece: "A
União poderá instituir, mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo
anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo
próprios dos discriminados nesta Constituição". É por isso que se diz que a União desfruta
da chamada competência impositiva residual. De fato, a competência residual para criar
impostos pertence à União. Impende notar que ela é teoricamente infinita: sempre haverá a
possibilidade de conceber-se um novo imposto e este novo imposto será federal ("ex vi" do
precitado art. 154, I, da Constituição).
Em suma, o imposto tem por hipótese de incidência (por fato gerador "in abstracto") ou um
comportamento do contribuinte, ou uma situação jurídica na qual o contribuinte se
encontre. Nunca uma atuação estatal.
O imposto, como também enfatiza Geraldo Ataliba, nasce sempre de fatos regidos pelo
Direito Privado: o fato de alguém vender uma mercadoria; o fato de alguém prestar, em
caráter negocial, um serviço de qualquer natureza; o fato de alguém ser proprietário de um
imóvel urbano etc.
Taxa é o tipo de tributo que tem por hipótese de incidência uma atuação estatal, diretamente
referida ao contribuinte.
A atuação estatal, que abre espaço à tributação por via de taxa, pode consistir ou num ato de
polícia, ou num serviço público. É o que preceitua o art. 145, II, da C.F. (que traça a regra-
matriz das taxas). As pessoas políticas, enquanto tributam por via de taxa, devem irrestrita
obediência especialmente a este dispositivo constitucional. Muito bem, a atuação estatal
que abre espaço à tributação por via de taxa, repito, ou é um ato de polícia ou é um serviço
público. Daí as taxas se subclassificarem em: taxas de polícia e taxas de serviço, conforme
tenham por pressuposto, respectivamente, a prática de atos de polícia ou a prestação de
serviços públicos.
Por fim, a contribuição de melhoria é o tipo de tributo que tem por hipótese de incidência
uma atuação estatal, indiretamente referida ao contribuinte. Tal atuação estatal só pode
consistir, conforme estatui o art. 145, III, do Texto Supremo, numa obra pública (mas não
em qualquer obra pública; tão-somente numa obra pública que valoriza os imóveis a ela
adjacentes).
Explicação necessária
Não disponho de tempo - pelo menos não nesta primeira fase dos trabalhos desta noite -
para demonstrar isso. Mas, já lhes adianto que, para mim, os empréstimos compulsórios são
tributos restituíveis; as contribuições parafiscais, tributos arrecadados por terceiras pessoas
(diversas daquelas que os instituíram); as contribuições sociais são tributos qualificados
pela finalidade e os impostos extraordinários, simplesmente impostos que a União, no caso
ou na iminência de guerra externa, pode criar, sem necessidade de obediência ao princípio
da reserva das competências impositivas. Depois, se houver interesse por parte dos
senhores, poderei, durante os debates, aprofundar este assunto.
O sujeito ativo do IPTU só pode ser o Município (ou quem lhe faça legalmente as vezes).
O sujeito passivo do IPTU só pode ser o proprietário do imóvel urbano (ou quem lhe faça
as vezes).
A base de cálculo do IPTU só pode ser o valor venal do imóvel urbano (isto é, seu valor de
mercado: o quantum que poderia ser obtido, caso o imóvel fosse submetido a uma operação
de compra e venda à vista, de acordo com as condições usuais de mercado). Esta, aliás, a
lição clássica de Aliomar Baleeiro.
Finalmente, a alíquota do IPTU só pode ser um percentual deste valor. Este percentual, é
certo, poderá variar, de acordo com a lei de cada Município, mas não poderá imprimir ao
tributo um caráter confiscatório (com o que estaria sendo burlado o art. 150, IV, da C.F.) e,
além disso, deverá fazer com que o imposto atenda aos reclamos instantes do princípio da
capacidade contributiva.
No caso do IPTU é justo, jurídico e razoável que quem tem um imóvel luxuoso, localizado
em bairro estritamente residencial, pague proporcionalmente mais imposto do que quem é
proprietário de casa modesta, localizada em bairro fabril.
Estou lhes dizendo isso, justamente para enfatizar que o legislador não pode criar os
tributos de sua competência, a seu inteiro alvedrio. Pelo contrário, ao fazê-lo, deverá
necessariamente observar a regra-matriz de cada um deles, pré-traçada na Constituição.
A esta altura, já percebemos que a Constituição não só efetuou uma classificação estrita das
espécies tributárias, como apontou o regime jurídico de cada uma delas. Portanto, a
distinção das espécies tributárias, na Constituição, não é apenas nominal, mas conceitual.
Quero com isto ressaltar que o arquétipo genérico (ou, se se preferir, o modelo) de cada
tributo está desenhado no Texto Supremo e, destarte, o legislador ordinário não pode dele
se afastar.
Aliás, a meu ver, quem melhor estudou este assunto, no Brasil, foi a Profª Diva Malerbi, em
sua excelente tese de doutorado "Segurança Jurídica e Tributação" (que tive a honra de
examinar) e que, "venia concessa", inexplicavelmente permanece inédita.
A classificação constitucional dos tributos e suas regras-matrizes não podem ser alteradas,
nem mesmo por meio da lei complementar prevista no art. 146, da C.F. ("Cabe à lei
complementar: I - dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; II - regular as limitações
constitucionais ao poder de tributar; III - estabelecer normas gerais em matéria de
legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem
como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos
geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e
decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas
sociedades cooperativas").
Este artigo, diga-se de passagem, está longe de ter aquele estilo lapidar e conciso que, na
lição de Rui Barbosa, deve caracterizar as leis em geral (observem que ele alude ao
"adequado tratamento tributário", como se fosse possível dispensar aos contribuintes um
inadequado tratamento tributário; demais disso, ele se refere ao "ato cooperativo praticado
pelas sociedades cooperativas", redundância que, talvez, nem o próprio Conselheiro Acácio
- personagem de Eça, impagável por seus truísmos - tivesse a coragem de fazer).
Mas, deixando de lado estas questões menores, que eu chamaria de redacionais (superáveis,
portanto, pela interpretação sistemática), o fato é que, analisando este art. 146, da C.F.,
alguns estudiosos vêm proclamando que, agora, a União, por meio de lei complementar,
pode alterar a classificação constitucional dos tributos e suas "regras-matrizes",
condicionando a validade das leis das demais pessoas políticas, neste campo. Assim, por
exemplo, chegam a sustentar que o Município, ao criar o ISS, deve observar a definição
deste tributo, feita em lei complementar e, mais do que isso, "a lista de serviços tributáveis"
nela veiculada.
Vejam! Este artigo 146 deve ser entendido em perfeita harmonia com o sistema tributário
nacional, forjado pela Constituição.
A lei complementar que dispõe sobre conflitos de competência, regula as limitações
constitucionais ao poder de tributar e estabelece normas gerais em matéria de legislação
tributária - tanto quanto qualquer outra lei complementar - subordina-se à Constituição e a
seus grandes princípios.
O que, na verdade, pretendo significar é que esta lei complementar não tem a prerrogativa
de buscar, nela própria, seu fundamento de validade. Muito pelo contrário: ela só poderá
irradiar efeitos se e enquanto estiver dentro da pirâmide jurídica, em cuja cúspide (em cujo
ponto mais alto) situam-se as normas constitucionais, verdadeiras matrizes de todas as
manifestações normativas do Estado (como enfatizava Hans Kelsen).
Admito, num esforço de arranjo, que tal lei complementar poderá iluminar os pontos mais
ou menos obscuros de nosso sistema constitucional tributário, desde que, absolutamente,
não o altere, nem, muito menos, o destrua. Também a regra-matriz de cada tributo não
poderá ter seus contornos constitucionais modificados por esta lei complementar.
Assim, a lei complementar, que veicula normas gerais em matéria de legislação tributária,
só pode explicitar o que está implícito na Constituição. Não lhe é dado inovar, mas, apenas,
declarar. Tem caráter declaratório, em sentido absoluto.
Pode-se até estabelecer uma comparação entre esta lei complementar (prevista no art. 146,
da C.F.) e o regulamento. Deste modo: esta lei complementar está para a Constituição,
assim como o regulamento está para a lei.
O regulamento, como sabem, provê a fiel execução da lei. Dá plena eficácia à lei.
Estabelece aqueles pormenores normativos de ordem técnica, que viabilizam o perfeito
cumprimento das leis.
Assim, mutatis mutandis, a lei complementar em questão. Ela explicita a Constituição. Dá-
lhe plena eficácia. Não pode, porém, criar realidades jurídicas novas. Se o fizer, será
inconstitucional. Falta-lhe titulação jurídica para isso.
Parece óbvio que a Lei Fundamental Tributária não é o Código Tributário Nacional (nem
qualquer outra lei complementar que venha a ser editada com base neste artigo 146, da
C.F.). A Lei Fundamental Tributária é a própria Constituição Federal.
CONCLUSÃO
Amigos: não gostaria de terminar esta minha preleção, sem uma breve análise da realidade
tributária que nos cerca.
Aos senhores, Juízes de Direito, está reservado não menos relevante papel.
O contribuinte brasileiro - qual Prometeu no Cáucaso - está com o corpo acorrentado, mas
seu espírito (esse não!) continua livre. Recusa-se a submeter-se à injustiça fiscal. Precisa
apenas de amparo. E esse amparo - felizmente - está vindo também dos senhores
Magistrados Federais. E aqui incluo, com muito gosto, os ilustres integrantes do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região, aos quais rendo minhas homenagens, na pessoa de seu
ilustre Presidente, o Juiz e Professor, Dr. Américo Lacombe.
É com grande alegria que noto que os senhores estão tornando sempre mais acessíveis os
degraus da Justiça, a fim de que todos os homens possam por eles caminhar.
http://www.trf3.gov.br/index.php?id=1690
GERALDO ATALIBA
Nosso esforço deve ser no sentido de dar real e efetivo valor aos princípios.
O tema hoje é "Regime Jurídico Tributário". O Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello,
num trabalho recente, demonstra que a palavra regime, no discurso jurídico, é sinônimo de
sistema. Portanto, quem fala em regime jurídico tributário está falando do sistema
tributário.
Que é regime? É o conjunto de princípios e regras que incide sobre uma determinada
situação de fato.
Logo, sistema e regime são a mesma coisa. No caso, o ponto de referência é o Estado,
exercitando o poder de tributar. Tributação, ação de tributar. Essa ação do Estado é
disciplinada pelos princípios e regras que formam o sistema constitucional tributário, como
um subsistema dentro do sistema constitucional tributário.
Se se perguntar qual é o princípio mais importante, qual a diretriz que domina toda a
Constituição e que espraia suas exigências até os seus mais remotos confins e cujas
exigências não podem ser ignoradas em nenhuma hipótese, por ninguém - nem pelo
legislador, nem pelo administrador, nem pelo aplicador, nem pelo homem comum - teremos
que dizer: "é a igualdade". Esse é o maior princípio constitucional.
O art. 5º - que define os direitos individuais - é a razão de ser da separação de poderes. Por
que os poderes são separados? É só reler Montesquieu: os poderes são três, separados,
autônomos, e independentes, para proteger os direitos individuais. É de Montesquieu a
frase: "o poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente".
'É preciso que o poder contenha o poder'. Daí a idéia que aplicamos, à perfeição, no Brasil,
secundando a tradição americana de reconhecer no Poder Judiciário um verdadeiro e
efetivo poder, ao contrário do que acontece, por exemplo, na França, onde o Poder
Judiciário não é poder, porque exatamente não pode emanar ordens aos demais poderes.
O art. 5º é a razão de ser da estrutura de Estado que temos e da separação de poderes, que é
o timbre do Estado de Direito.
No art. 5º, o mais importante é a igualdade, que está na cabeça do art. 5º, e está no inciso I.
Parece que o constituinte foi sensível a uma lição notável, cuja leitura se recomenda, de um
dos melhores estudos feitos no Brasil, de Francisco Campos que, estudando o princípio da
igualdade num trabalho magnífico publicado na Revista Forense, há cinqüenta anos, um
clássico atualíssimo, diz: "é tão importante a igualdade" - naquele tempo estava no § 1º do
art. 141 da Constituição de 1946 - "é tão importante que é preciso que se leiam todos os
demais parágrafos" - ou, no nosso caso, incisos do atual art. 5º - "como envolvendo a
igualdade". Então, todos têm direito ao acesso ao Judiciário, em igualdade de condições, ao
due process of law em igualdade de condições, à propriedade em igualdade de condições, à
liberdade de pensamento em igualdade de condições, à liberdade de reunião em igualdade
de condições, etc. Enfim, já Francisco Campos dizia: "é preciso ler todos os direitos
individuais conjugados com a igualdade, tal sua importância".
Em matéria tributária, como em todos os setores do Direito, a igualdade é básica e
fundamental. É a igualdade que informa todos os institutos e princípios do Direito
Tributário, mas que na verdade são de puro Direito Constitucional.
Mas não basta isso. É preciso que o aplicador administrativo ou judicial volte sempre os
olhos para o princípio da igualdade, quando vai aplicar a lei. Não basta que a lei tenha
observado a igualdade; que seja materialmente igual; é preciso que o aplicador também a
aplique igualmente. Ele também deve dar a sua contribuição, quando vai aplicar a lei aos
casos concretos.
Mas, didaticamente, para explicar o que estou fazendo, para que a decisão judicial não
pareça arbitrária - ela não é, mas para que não pareça - então tenho que dizer: "eu declaro
esta lei inconstitucional, por isso não a aplico". Mas, isto cabe quando há radical
diversidade entre os vetores apontados pela lei constitucional e pela lei ordinária.
Às vezes essa relação de contraditoriedade não é tão radical; então o Juiz não precisa
declarar inconstitucional a lei - vamos usar a expressão da jurisprudência americana já
acolhida pelo nosso Supremo - o Juiz "força" a lei, empurra a lei para o lado do princípio
constitucional, interpreta e aplica. Nós vamos dar aqui alguns exemplos, muitos deles
acolhidos pela nossa jurisprudência.
Quer dizer, quando é radical a divergência entre Constituição e lei, o juiz não aplica a lei,
fica com a Constituição. Quando não é tão radical assim, quando a Constituição diz: "vá
para o norte" e a lei diz: "vá para o nordeste", então não é radical, irremissível, irremediável
a contradição. Então o juiz empurra para cá, empurra para o norte; assim cumpre a
Constituição e a lei ao mesmo tempo.
O constituinte brasileiro, escrevendo a norma constitucional para um país com a cultura que
temos, fez questão de pôr no art. 5º, cabeça e inciso I, igualdade como um padrão
fundamental de todo o comportamento do Estado e, portanto, em primeiro lugar, o
comportamento do Legislativo.
Bastava isso para que já soubéssemos que só a lei cria tributo, só a lei estabelece a carga
tributária, só a lei designa sujeito passivo, só a lei fornece ao aplicador todas as condições,
exaustivamente todos os elementos necessários para se ver configurada e quantificada uma
obrigação tributária. Bastava o art. 5º, inciso I.
Entretanto, o constituinte no art. 150 pôs: é proibido ("é vedado") União, Estados e
Municípios exigirem tributo sem lei. Item II, art. 150: esta lei terá que tratar igualmente as
situações iguais e desigualmente as situações desiguais.
Todos somos capazes de ler, admirar e fazer um esforço para deduzir o conteúdo disso.
Agora devemos fazer esforço para dar eficácia a este enunciado, num país onde o legislador
é pouco reverente com a Constituição e não estuda a Constituição. E, por não estudar, não
conhece. E, por não conhecer, não a estima e, não a estimando, nem pensa nela.
Quanto ao administrador (o Poder Executivo), ocorre a mesma coisa. Ele não gosta, então
ele não estuda; não estudando, não conhece. Não conhecendo, não pode gostar. E é um
círculo vicioso.
Vamos, justamente, centrar a atenção nesta primeira exigência do sistema, que é a igualdade
nessa matéria. Art. 150, inciso II: "é proibido" - "quem" é proibido? O legislador. "É
proibido ao legislador tratar igualmente situações desiguais". E se o legislador fizer isto?
Então voltamos àquela premissa. Ou o que ele fez é radicalmente irremediável e então o
Juiz não aplica a lei (porque contrariou este preceito constitucional) ou, quando não é tão
radical a discrepância, então o Juiz aplica a lei, adaptando-a às exigências da Constituição,
entende e interpreta a lei 'em consonância' com as exigências superiores da Constituição. E
assim 'salva' a lei, não tal e qual ela é, mas aproveitando dela o que seja consentâneo com o
espírito da Constituição.
Noventa por cento da jurisprudência deste Tribunal é na linha do que vou expor.
Então, isto foi elaborado pela jurisprudência de Primeira Instância e especialmente por este
Tribunal, mas acompanhado por alguns outros Tribunais Regionais Federais do País. E
predomina a seguinte orientação: se a lei deu isenção deste imposto sem nenhuma razão
objetiva, clara, transparente, ou seja, sem fundamento, já que o Judiciário não vai
questionar o mérito da decisão de dar isenção, então o Judiciário dá isenção para todo
mundo em igualdade de condições, tenham ou não as pessoas obtido a licença no dia x ou
no dia y, que é um dia futuro.
Há acórdãos com os mais variados fundamentos. Eu diria, pelo que tenho visto - se eu
estiver errado, vou ser corrigido pelo Dr. Kallás, Dra. Diva, Dr. Américo Lacombe - que o
fundamento predominantemente acolhido é o seguinte: se a lei tributária deve descrever um
fato dizendo: "a partir do acontecimento deste fato nasce uma obrigação tributária", a lei
tributária é obrigada, por exigência constitucional, a descrever, satisfatoriamente,
integralmente, o fato. Descrever o fato integralmente quer dizer: o legislador é obrigado a
explicitar os dados básicos deste fato, para que ele possa ser reconhecido pelos intérpretes
como fato tributável.
Deve dizer qual é a materialidade do fato, qual é o momento em que acontece o fato, qual é
o local - se for relevante - em que acontece o fato, quem é o sujeito passivo que vai ser
responsável pela obrigação que vai nascer do acontecimento deste fato, qual é a base
imponível (ou seja, deste fato, qual é a dimensão economicamente mensurável que é
legislativamente qualificada para sofrer a aplicação da alíquota). E a lei ainda deve
estabelecer a alíquota. Tudo isso deve estar na lei. A falta de qualquer destes elementos na
lei impede que se reconheçam preenchidas as exigências do princípio da legalidade. Então,
haveria intenção de tributar, mas não uma norma tributária; o Estado quis tributar. Só que
não foi eficaz, ele não conseguiu fazer a norma inteirinha. A mesma coisa que aconteceria
numa norma penal a que faltasse um elemento substancial qualquer, e o Prof. Kallás me
corrigirá. Nenhum aplicador pode suprir aquela deficiência da lei penal. O legislador quis
punir, mas não conseguiu, não conseguiu criar a figura punitiva, porque faltou um
elemento. A legalidade exaustiva estrita é tão válida em Direito Penal quanto em Direito
Tributário.
Pois bem, este fato com as suas perspectivas econômicas é que serve de fundamento para a
armação da chamada trama tributária concreta. Então o legislador descreveu o fato, já que
se trata do imposto de importação (se alguém quiser estudar, deve ler o livro do Prof.
Américo Lacombe). O legislador deve descrever o fato, exige a Constituição. No caso,
obedecendo ao art. 153, I, da Constituição, ele deve descrever o fato "importar". Quer dizer,
"fazer com que uma coisa, um produto, uma mercadoria passe a linha aduaneira". A pessoa
que fizer isto produziu o fato que a Constituição consente que seja erigido em fato
tributável. E quem erige é o legislador, é a própria Constituição que diz. É o legislador.
Para que o sujeito pague ao vendedor, no exterior, o produto importado, ele é obrigado a
comprar moeda. Isto configura operação de câmbio, negócio jurídico-financeiro, entregar
moeda nacional em troca de uma moeda estrangeira. A operação de câmbio é regulada por
lei administrativa. O fato "realizar operação de câmbio" é um fato que está qualificado pela
lei tributária como capaz de fazer nascer obrigação de pagar o tributo, imposto
genericamente chamado de IOF. No caso, Imposto sobre Operação de Câmbio. Há quem
chame de IOC.
Ora, qual é a relação que há entre o fato de ter que comprar moeda - que é um fato que faz
nascer obrigação tributária, porque está qualificado na lei, com base na Constituição - com
o fato de alguém importar? Qual é a relação jurídica do próprio fato? Nenhuma. É lógico
que todos os nossos negócios são encadeados. É porque sou proprietário de um imóvel que
posso alugá-lo e, alugando, recebo uma renda. Isto não autoriza nenhum legislador a
misturar o contrato de locação com o imposto predial urbano sobre aquele meu imóvel, o
IPTU. Se eu não for dono do imóvel, é evidente que eu não posso locá-lo, mas esta conexão
dos fatos na minha pessoa não autoriza que o legislador faça nenhum tipo de mistura
legislativa, desobedecendo aos critérios da Constituição.
E a Constituição é claríssima. Uma coisa é importar, como fato capaz de fazer nascer
obrigação tributária; outra coisa é realizar operação de câmbio, para pagar a importação.
Então, o que fez este legislador que disse: "são isentas as operações de compra de moeda
estrangeira, cuja licença de importação se realize depois do dia tal"? Mas como? A licença
de importação é um procedimento administrativo que vai permitir o fato de importar. Fato
este que pode fazer nascer um outro imposto. Obter licença administrativa para importar é
um fenômeno administrativo, o condicional do acontecimento de um outro fato, tributável
por outro imposto. E vem esse legislador e diz: "quando for comprar moeda vai ficar
dependendo deste acontecimento e dessa data". É um arbítrio total. Por quê? Ensina a teoria
tributária - desdobrando a Constituição - que o fato que o legislador põe na materialidade
da hipótese de incidência deve ter conteúdo econômico. No caso, não precisamos nem
discutir teoria, a Constituição já deu os conteúdos econômicos (arts. 153, 155, 156). Os
conteúdos são aqueles que estão na Constituição: importar, exportar, ser proprietário rural,
receber renda, produzir bens industrializados, realizar operação financeira, prestar serviço,
ser proprietário imobiliário, praticar operações mercantis... São estes os fatos tributáveis no
Brasil. Não precisamos nem fazer discussão teórica.
Estes fatos, o legislador pode dizer "quando acontecidos e se acontecidos, farão nascer
obrigação tributária". Só podem fazer nascer obrigação tributária a cargo de quem promova
esses fatos, realize esses fatos, produza esses fatos, ou tire proveito desses fatos. Há alguns
fatos que a gente não promove. Por exemplo, transmissão causa mortis. Ainda que alguém
promova a morte de outra pessoa, não está promovendo a transmissão. É o fenômeno
natural morte que promove, provoca a transmissão, a mudança de titularidade de uma coisa.
Então ficou claro o arbítrio do legislador. Ele misturou elementos administrativos,
elementos ou dados de outro imposto para disciplinar o imposto sobre operação de câmbio -
quer dizer, o negócio de compra de moeda - e estabeleceu que umas pessoas pagam e outras
não pagam, quando preceituou a isenção, arbitrariamente, sem levar em conta os elementos
do próprio fato, ou os elementos ligados à pessoa que produz o fato 'comprar moeda' ou
'vender moeda'. Arbítrio total.
Os Tribunais reconheceram isto. Este Tribunal disse: "esse artigo da lei violou o princípio
da igualdade; está tratando desigualmente as pessoas, uns pagam, outros não pagam sem
nenhuma razão objetiva, sem fundamento, sem proteção, sem amparo constitucional".
Muitas decisões, aliás, dizem só isso: "esse artigo do Decreto-lei nº 2.434 é
inconstitucional". Mas não basta dizer que é inconstitucional (Decreto-lei nº 2.434, art. 6º,
tenho um trabalho publicado na Revista de Direito Tributário, sobre isto).
Não exerce a função jurisdicional o Juiz que disser: "este art. 6º é inconstitucional", porque
afirmar isto, só, é criar a seguinte situação: todas as pessoas que estão inquestionavelmente
isentas - foi brigar quem obteve licença de importação antes do dia x - os que obtiveram ou
vieram a obter depois do dia x não foram brigar, é lógico, nem tinham legitimidade, nem
interesse, eles estavam sendo dispensados do pagamento do tributo.
Então, dizer que é inconstitucional - realmente é, porque está violando a Constituição - não
resolve o pedido feito, não ampara o direito subjetivo do cidadão que vai ao Juiz e diz:
"Senhor Juiz, eu fui tratado desigualmente".
A Fazenda invocou um artigo do Código Tributário Nacional bem tacanho que diz o
seguinte, mas enfim é um artigo de lei: "não se admite o emprego da analogia com o efeito
de dispensar tributo devido". A União invocou isto, e este Tribunal desprezou a invocação.
Desprezou a invocação, porque disse: "Aí não há analogia; não se está dando tratamento
analógico à questão. Está-se, isto sim, estendendo a norma a todos os fatos que se
compreendem no seu conteúdo. Tirando a data que era arbitrária e que criava desigualdade;
tirando a data, a norma deve ser aplicada a todos os fatos que estão na sua hipótese". Quais
são os fatos? "Realizar operação de câmbio", a partir do momento em que a lei está em
vigor. Então, a partir do momento que a lei está em vigor, a operação de câmbio é isenta.
O que o Tribunal fez foi aplicação extensiva da lei. Em outras palavras, com a maior
naturalidade estendeu a lei a todos os fatos que a lei cobria. Portanto, interpretou a lei. Mais
nada que isto. Em muitos votos e em muitos acórdãos está explícita a acolhida a um
exemplo maravilhoso para o qual eu quero pedir a atenção dos Senhores, porque é de uma
fecundidade extraordinária. O exemplo é invocado pelo Prof. Ézio Vannoni, um dos
maiores professores de Direito Tributário da Itália, ao lado do Prof. Giannini, talvez o
maior estudioso de Direito Tributário da Itália. Então Vannoni dá o seguinte exemplo - o
que vou aplicar ao Brasil, ele dá em relação à Itália - há uma inundação tremenda em São
Caetano, e o Congresso Nacional fica condoído de ter a notícia e ver nas fotografias e na
televisão o estrago, a destruição, a devastação provocada. Então o Congresso Nacional, no
legítimo uso da sua competência, faz uma lei dizendo: "os contribuintes que moram em São
Caetano ficam exonerados das suas obrigações tributárias nascidas no ano de 1993".
Portanto, quem mora em São Caetano, e tem indústria, comércio, ou mesmo renda pessoal a
pagar, fica dispensado de imposto federal - porque a lei é federal - nascido em 1993. O
Congresso exerceu a sua função igualadora, porque aquelas pessoas sofreram de tal
maneira que ficaram em desigualdade em relação a todos nós. Então a lei diz: "vou igualar
a todos, vou dispensar, durante um ano, aquela gente que está destruída economicamente".
E ninguém questionaria essa decisão.
Posta a lei em vigor, comparece a juízo um cidadão dizendo: "eu moro no bairro do
Ipiranga, Município de São Paulo e quero que V. Exa. me aplique esta lei, porque eu sofri a
mesma inundação que o pessoal de São Caetano. Não estou no Município de São Caetano,
mas sofri a mesma inundação, quer dizer, a razão jurídica pela qual o Congresso deu aquela
isenção para eles eu quero que o Senhor aplique a mim. Em outras palavras, eu quero,
Senhor Juiz, que o Senhor me dê aquilo que a lei deu aos que estão em situação igual a
mim. Eu também sofri a inundação".
Em termos científicos, o que está postulando este cidadão? Ele está dizendo: "Senhor Juiz,
não vá, por favor, à letra da lei. A letra da lei é um veículo para o Senhor apreender o
conteúdo da lei, mas, por favor, não fique na letra da lei. Por favor, aplique os princípios
constitucionais, na sua inteireza. Por favor, dê eficácia aos maiores princípios
constitucionais, primeiramente ao da igualdade. Se eu estou na mesma situação dos outros,
quero que V. Exa. me aplique, não por analogia; não é isto que eu quero. Eu quero que o
Senhor entenda que, quando a lei federal falou São Caetano, foi o jeito que o legislador no
momento teve de designar as pessoas que foram atingidas pela enchente; não foi privilegiar
cidadão que mora numa circunscrição. Não foi essa a idéia do legislador, nem poderia ser,
porque já seria uma idéia discriminatória, violadora da Constituição. Não, a idéia do
legislador foi: 'vamos igualar e socorrer aquela gente que sofreu a inundação'. Mas, para
não dizer vagamente, diz: 'a inundação que houve em São Caetano'. É mera linguagem que
o legislador está usando. Então, Senhor Juiz, eu lhe peço, não fique no caminho, no 'meio'
que revela a lei. Não, eu quero que o Senhor me dê a lei. Enfim, quero o 'conteúdo' da
norma para mim e eu invoco, em meu benefício, as exigências maiores do princípio
constitucional da igualdade".