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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

Centro de Humanidades

Departamento de Comunicação Social

Curso de Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo

Projeto Experimental

De quem fala Pedro Almodóvar?

Uma análise das representações de gênero em Hable con Ella

CANDICE MAIA SOARES DE ALCÂNTARA PINTO

FORTALEZA

JANEIRO DE 2004
2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

Centro de Humanidades

Departamento de Comunicação Social

Curso de Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo

Projeto Experimental

De quem fala Pedro Almodóvar?

Uma análise das representações de gênero em Hable con Ella

CANDICE MAIA SOARES DE ALCÂNTARA PINTO

ORIENTADOR (A): PROFa. MS. ANA RITA FONTELES

Monografia apresentada ao Departamento de


Comunicação Social como Requisito para a
Obtenção do Grau de Bacharel em
Comunicação Social

FORTALEZA

JANEIRO DE 2004
3

BANCA EXAMINADORA

Presidente: Profª. Ms. Ana Rita Fonteles

2° Examinador: Prof. Ms. Ricardo Jorge De Lucena Lucas

3° Examinador (a): Profa. Luizianne Lins


4

“ Que diferença da mulher pro homem tem? Espera aí que eu vou


dizer, meu bem. É que o homem tem cabelo no peito, tem a perna
cabeluda e a mulher não tem.”

- Luiz Gonzaga
5

AGRADECIMENTOS

A Deus, que permitiu que eu concluísse este trabalho, à medida que o tempo se encurtava.

À minha orientadora, Ana Rita, por tamanha paciência, apoio, disposição, carinho, atenção,
instrução e comprometimento que teve comigo durante a feitura deste trabalho.

À minha família, que teve de se privar por tantas vezes de minha presença durante este
semestre.

A cada um dos meus amigos, de dentro ou fora da Universidade, que me apoiaram e ajudaram
a realizar este trabalho.
6

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................... Pág. 07

1 – O CONCEITO DE GÊNERO............................................................................................... Pág. 09

1.1 – Feminismo, estudos de gênero, identidade e sexualidade.............................................. Pág. 09

1.2 – Masculinidades em mudança........................................................................................... Pág. 20

1.3 – As representações de gênero no cinema......................................................................... Pág. 30

2 – A OBRA DE ALMODÓVAR................................................................................................
Pág. 40

2.1 – A Espanha de Almodóvar................................................................................................. Pág. 40

2.2 – A vida de Almodóvar......................................................................................................... Pág. 44

2.3 – A Abordagem de Gênero em Almodóvar.......................................................................... Pág. 53

2.4 – As mulheres de Almodóvar............................................................................................... Pág. 60

2.4.1 – Mujeres al Borde de um Ataque de Nervios.................................................................. Pág. 60

2.4.2 – Todo Sobre mi Madre.................................................................................................... Pág. 64

3- A QUESTÃO DE GÊNERO EM HABLE CON ELLA............................................................ Pág. 71

3.1 – O filme............................................................................................................................... Pág. 71

3.1.2 – A história e seus personagens....................................................................................... Pág. 74

3.2 – A questão de gênero......................................................................................................... Pág. 77

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................... Pág.101

BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................................... Pág.104

ANEXOS..................................................................................................................................... Pág.111
7

Introdução

Mulheres à beira de um ataque de homens. Homens de Almodóvar. Soa realmente


estranho falar de homens quando nos referimos ao conhecido diretor espanhol, que se
consagrou como ‘diretor de mulheres’, impulsionando muitas atrizes espanholas a carreiras
internacionais. Suas mulheres, que já viveram os tipos mais inusitados que a imaginação do
cineasta pôde fabricar, tornaram-se musas e símbolo da força que a crença de Pedro
Almodóvar deposita no sexo feminino.

Este mesmo sexo feminino, que já foi interpretado de tantas formas: uma prostituta
grávida de um travesti, uma freira homossexual e viciada em drogas, um transexual
violentado pelo pai, e toda sorte de personagens que o cineasta pudesse criar para discutir
temas principalmente ligados à sexualidade, trouxe à tona uma outra discussão: onde estão as
identidades de gênero?

Um cinema composto por tantos párias e mulheres parecia indicar algo mais que uma
simples preferência por trabalhar com estas. Almodóvar começou a produzir em um período
de contravenção na cultura espanhola, onde em fins da era da ditadura franquista, grupos
clamavam por liberdade, inclusive de expressão. Foi neste cenário que o cineasta e seus
amigos se colocaram à frente de movimentos culturais, que influenciaram expressivamente
sua obra.

Almodóvar ainda reluta em admitir o apelido de ‘diretor de mulheres’ e responder às


especulações a respeito desta preferência, mas deixa pistas de que as impressões alheias não
são tão errôneas assim. Ele admite sim ter tido mais inspiração para criar personagens
femininos, mas justamente porque a feminilidade não está presente apenas em suas mulheres,
que esta incitação sobre o tema gênero deve ser tão proveitosamente relacionado à obra do
diretor.

A décima quarta película do diretor gera discussões e especulações por todos os


lados, entre crítica e público, pois os protagonistas homens trazem a grande interrogação
sobre o novo trabalho de Almodóvar. Suas mulheres agora estão em estado de coma, ou seja,
não podem falar, andar, ou mesmo desejar. Estariam elas mortas? Ao que parece, ainda não.

O presente trabalho se propõe a analisar detalhadamente a questão das identidades de


gênero em Hable con Ella (Fale com Ela, 2002), o 14º longa metragem da carreira do diretor.
8

Para tornar mais clara a compreensão do que representa este filme dentro do conjunto
cinematográfico produzido por ele, tentaremos fazer uma exposição de não somente quem é
esta figura ‘Pedro Almodóvar’, mas em que ambiente ele construiu a base de sua produção.

Faz-se necessário também uma exposição do conjunto da obra e estilo


almodovarianos, bem como uma análise de duas de suas películas, tanto pela
representatividade dentro de todo o trabalho do cineasta, quanto pela gama de personagens
femininos que as compõe: Todo Sobre mi Madre e Mujeres al Borde de un Ataque de Nervios.

No primeiro capítulo, tentaremos destrinchar o complexo conceito de gênero, bem


como a origem de seus estudos com o Movimento Feminista. As ‘novas masculinidades’
serão outro tema a ser explorado. Será também abordado o conceito de identidade, como
constituinte do gênero, que na condição de pós-moderno, pode assumir uma pluralidade de
formas e expressões. Ainda aqui, discutiremos as mudanças de gênero que viveu o cinema,
numa introdução do que representará o tema dentro da obra de Almodóvar.

No segundo capítulo, Pedro Almodóvar e obra serão expostos. Serão feitas também
recapitulação e apresentação de fatos de significativa importância dentro do contexto espanhol
e madrilenho, ambiente em que viveu o cineasta as conseqüências de uma guerra civil e uma
repressiva ditadura. Uma análise de gênero introdutória tentará abordar a feminilidade e a
masculinidade dentro do conjunto de sua obra, sendo enfatizada a exposição de duas de suas
películas, consideradas extremamente “femininas”.

No terceiro e último capítulo será feita uma rápida contextualização de como


repercutiu o lançamento da película que tanto gerou controvérsias a respeito da especulada
nova tomada de rumo do diretor: Hable con Ella (2002). Serão expostos enredo e personagens
para que se possa analisar mais detalhadamente a constituição e apresentação das identidades
de gênero dentro da película, utilizando os conceitos teóricos já expostos.
9

1. O conceito de Gênero

1.1. Feminismo, estudos de gênero, identidade e sexualidade.

“Cem anos depois”. Prerrogativa comum no cinema, mas que pode resumir uma
história ainda em construção. Um século se passou e as mulheres continuam lutando por
igualdade de direitos e por respeito às diferenças. Trajetória iniciada pelo Movimento
Feminista, que se tornou organizado, na Europa, em princípios do século XX, mas que já
vinha dando sinais de sua formação desde o final do século anterior, quando sinhás e
mulheres da elite publicavam jornais femininos, reivindicando basicamente uma melhor
educação feminina e seu direito ao voto.

Foi na virada do século que as manifestações contra a discriminação feminina


adquiriram maior visibilidade e expressividade no “sufragismo”1. E tanto foi sua amplitude e
disseminação pelos países ocidentais, que veio a ser chamada de “a primeira onda” do
Feminismo. Mas estas e as demais reivindicações, como mudanças na organização familiar,
acesso a certas profissões e às universidades, entre outros objetivos mais imediatos, estavam
claramente ligados aos interesses das mulheres brancas de classe média, fazendo com que
muitas outras não se identificassem com o movimento.

Com o alcance de algumas de suas metas, o movimento foi apanhado por uma certa
acomodação, o que resultou em menos focos de luta e um freio no avanço de conquistas, por
muitos anos. Retomado pela denominada “segunda onda”, em fins da década de 1960, a luta
feminista, além das preocupações sociais e políticas, se voltava agora para as construções
propriamente teóricas. Em 1975, a instauração, pela Organização das Nações Unidas, do Ano
Internacional da Mulher, contribuiu para que as reivindicações femininas fossem retomadas
com força, apesar do desfavorável contexto de alguns governos militares, como nos casos de
Brasil e Espanha.

Grande parte das mudanças por que passa a sociedade brasileira a partir de meados
do século XX, deve-se a intensificação do processo de modernização que atinge o País. A
entrada maciça das mulheres de classe média no mercado de trabalho; a disseminação da
pílula anticoncepcional; a importação de modelos de comportamentos, que reforçados pelos

1
Movimento que reivindicava às mulheres o direito ao voto
10

meios de comunicação e os movimentos de contestação, desestabilizavam as já ancoradas


idéias sobre homens e mulheres, masculinidade e feminilidade.

Os anos 70, no Brasil, foram marcados pelas intensas violência e repressão às forças
oposicionistas. A ditadura política que assolava o País “passa a ser abertamente contestada
por operários em greve e por movimentos estudantis. Neste período, embora a economia
estivesse em expansão com a industrialização acelerada e urbanização crescente, os salários se
deterioravam e o custo de vida subiu muito”. (BRUSCHINI apud SILVA, 2000:2). É a partir
deste período que se formam os primeiros movimentos de mulheres no Brasil. Apesar de estes
serem heterogêneos e não possuírem uma linearidade, surgem símbolos nacionais, como a
atriz Leila Diniz, que se tornou paradigma da “nova mulher”, devido às suas atitudes
inovadoras2.

Não apenas no Brasil, mas principalmente nos países capitalistas avançados, a crise
da cidadania social corresponde a dois fenômenos ocorridos a partir do final da década de 60:
a crise do Estado de bem-estar social, ou Estado Providência, e o movimento estudantil de 68.
São a difusão social da produção e o isolamento político do movimento operário que facilitam
a emergência de novos sujeitos sociais e novas práticas de mobilização social.

Na Espanha, o movimento feminista é organizado ainda na primeira metade do


século XX. Como no Brasil, falta-lhe uma linearidade, sofrendo por um certo adiamento
iniciado pala Guerra Civil e a chegada do ditador Francisco Franco ao poder. Em Feminismo
(1989), Adolfo González Posada caracteriza as três categorias em que se divide o movimento
na Espanha: feminismo radical (acredita na completa igualdade entre os sexos e requer
direitos, oportunidades e educação iguais para ambos); oportunista e conservador (não luta
por total igualdade entre os sexos, mas dos direitos sociais); católico (tem suas raízes numa
melhor educação para as mulheres)3.

Na política, os movimentos feministas se dividiam entre direita e esquerda, sendo a


primeira mais conservadora e a última mais radical. A reação inicial da sociedade em relação
ao movimento foi extremamente negativa, pois muitos pensavam que as mulheres eram
influenciadas pelo ‘Diabo’, os comunistas ou anarquistas. Em parte, esta reação tem ligação
com a Igreja, mas em geral, é o reflexo do tradicionalismo de uma sociedade embasada no

2
A atriz Leila Diniz escandalizou a sociedade da época ao desfilar grávida na praia de Ipanema, no Rio de
Janeiro, vestida apenas com um biquíni. Além disso, era sabido que carregava um filho de um homem com quem
não era casada, subvertendo o estereótipo de mãe tradicional, seduzida e recatada
3
POSADA, 1989 apud ANDERSON
11

sistema patriarcal, que não podia admitir à mulher a liberação de seu papel de cuidadora do
lar.

Mesmo existindo peculiaridades em cada país, o movimento feminista se deu de uma


certa forma homogênea por toda a Europa. Foi bastante impulsionado pela Primeira Guerra
Mundial, quando milhares de mulheres ingressaram nos serviços de saúde, na profissão de
enfermeiras, e nas indústrias, substituindo os homens que haviam ido para a guerra4. Até
então os processos da industrialização, a formação dos partidos políticos e a cultura burguesa
das associações desempenharam um papel catalisador na afirmação e diversificação do
feminismo.

Mas a proliferação da imprensa feminina e a fundação de inúmeras associações vão


realmente demonstrar o progresso do Feminismo, pois é o jornal que:

(...) serve de pólo a diversas lutas e permite diferenciar as posições


feministas (...) (onde) fala-se de emancipação, libertação e igualdade de
direitos – portanto de valores democráticos em contradição com a
representação da mulher como menor e com a escravatura sexual. As lutas
das feministas no terreno do direito têm como finalidade uma mudança
fundamental das condições legais e políticas. (KÄPELLI, 1991, p. 546-555)

As estratégias e alianças do movimento oscilam entre reformismo e radicalismo. Este


último surge a partir de militantes que afirmam a impossibilidade de ancorar análises teóricas
sob uma lógica androcêntrica e se voltam para uma crítica ao patriarcalismo como causa da
opressão das mulheres. Elas discutem questões relativas ao corpo, onde o tema da
contracepção é prioridade, mas também falam sobre a homossexualidade feminina e outros
assuntos. Há as que propunham uma reforma no vestuário, contra a “tirania do espartilho”, e
as que defendem a idéia de um salário doméstico, já que a luta envolvia a exploração do
trabalho feminino. “As mulheres souberam, portanto, fazer valer o poder da esfera privada e
subverter-lhe os limites, levando para a cena política as questões ditas privadas” (ibidem, p.
542).

Mas na maior parte dos países europeus, a reivindicação pedagógica é precedente às


outras reivindicações feministas. Durante os anos 70, a entrada maciça das mulheres nas

4
SCALON apud ANDERSON.
12

Universidades, fez com que emergissem ainda mais seus temas e problematizações, seu
universo, suas inquietações, suas lógicas diferenciadas, seus olhares desconhecidos. Lia-se
Simone de Beauvoir (Lê deuxième sexe, 1949), Betty Friedman (The feminine mistique,
1963), Kate Milett (Sexual politics, 1969). A sexualidade era tema de muitos livros neste
período. Livros como Mrs. Dalloway e Orlando, de Virgínia Woolf, e O Quarteto de
Alexandria, de Lawence Durrel, eram descobertos ou mesmo lidos sob outro enfoque.

Surgem os estudos da mulher. Estes tinham como objetivo trazer visibilidade àquela
que foi por tanto ocultada. Inicialmente, eles “se constituíam, muitas vezes em descrições de
vida e de trabalho das mulheres (...) denunciando a opressão e submetimento feminino.
Contam, criticam e, algumas vezes, celebram as ‘características’ tidas como femininas”.
(LOURO, 1997, p.17-18). Os primeiros estudos transformaram as poucas referências à mulher
em tema central, fazendo com que uma das mais significativas marcas dos Estudos Feministas
fosse o seu caráter político.

Entre as décadas de 80 e 90, a discussão da história das mulheres foi alargada e


engendrou a categoria do gênero, numa tentativa das pesquisadoras feministas de
desnaturalizar a condição da mulher na sociedade.

(...) nesse sentido era preciso encontrar conceitos que permitissem


diferenciar aquilo que as mulheres tinham de natural, permanente, e igual em
todas as épocas e culturas (o sexo) daquilo que dava base para a
discriminação e, por ser socialmente construído, variava de sociedade para
sociedade e podia mudar com o tempo (o gênero). (SIMIÃO, 2000, apud
CASAGRANDE & CORRÊA: 1).

A metodologia da desconstrução da categoria de gênero supera os impasses dos


Estudos de Mulheres, enquanto estes estudos sobre a condição e a posição das mulheres não
pareciam ser capazes de responder aos desafios feministas, pois tendiam a se tornar
descritivos, reificando a situação das mulheres. Numa busca de legitimidade acadêmica para
os estudos feministas, foi introduzido o termo ‘gênero’, que por possuir uma carga semântica
mais leve, conseguiu adentrar onde o termo ‘mulher’ encontrava resistência. Incorporado por
diversas disciplinas e recebendo diferentes nuances em cada uma delas, o termo ‘gênero’ foi
atribuindo a si a bagagem conceitual específica daquelas.
13

Diferentes leituras foram feitas da interpretação de gênero: gênero como variável


binária; gênero como papéis sexuais dicotomizados; gênero como uma variável psicológica,
gênero como tradução de sistemas de culturas e gênero como relacional. Ainda assim, a
categoria de gênero é de difícil conceitualização, mesmo porque não veio substituir nenhuma
outra. Ela tem como desafio se apresentar como num sistema relacional, onde a construção de
perfis de comportamento feminino e masculino se definem um em função do outro, uma vez
que se constituem historicamente, num tempo, espaço e cultura determinados.

O que o gênero busca, em primeiro plano, é uma desconstrução da crença na


naturalidade determinista que separa e diferencia os sexos, atribuindo a estes características
particulares, a partir unicamente da variante biológica.

O argumento de que homens e mulheres são biologicamente distintos e que a


relação entre ambos decorre dessa distinção, que é complementar e na qual
cada um deve desempenhar um papel determinado secularmente, acaba por
ter o caráter de argumento final, irrecorrível. Seja no âmbito do senso
comum, seja revestida por uma linguagem “científica”, a distinção biológica,
ou melhor, a distinção sexual, serve para compreender - e justificar - a
desigualdade social. (LOURO, 1997:20-21) (grifo do autor).

Mas é exatamente devido a esta imposição social e cultural do que é ser homem e ser
mulher, que a construção de um novo paradigma pelos estudos de gênero demonstra seu
caráter reivindicatório a respeito do simbólico das relações, apontando tanto para uma
diferenciação quanto para um indiferenciação, e principalmente para uma instabilidade de
caracterização para os gêneros, possibilitando um número indefinido de gêneros dentro de
uma cultura.

Importantes contribuições foram dadas ao conceito de gênero, vindas principalmente


da arqueologia dos discursos de Foucault, da proposta de desconstrução de Derrida, da
historiografia das mentalidades e da psicanálise lacaniana. O termo que inicialmente era
empregado na designação de indivíduos de sexos diferentes ou ainda coisas sexuadas, recebeu
nova significação ligada à distribuição entre os atributos culturais alocados a cada um dos
sexos e a dimensão biológica dos seres humanos. Sobre a importância da terminologia,
RAGO (1998) considera que:
14

A categoria do gênero permitiu nomear campos das práticas sociais e


individuais que conhecemos mal. (...) Passamos a perceber que o universo
feminino é muito diferente do masculino, não simplesmente por
determinações biológicas, como propôs o século XIX, mas sobretudo por
experiências históricas marcadas por valores, sistemas de pensamento,
crenças e simbolizações diferenciadas também sexualmente. O gênero
tornou-se um instrumento valioso de análise que permite nomear e esclarecer
aspectos da vida humana. (RAGO, 1998, p. 96).

Esta mesma autora acredita que a negociação entre os gêneros é fundamental na


construção de um ser humano que não tenha de se dividir entre um lado supostamente
masculino, que seria ativo e racional e outro feminino; passivo e emocional. É a partir da
superação desta polaridade rígida que podemos construir um novo olhar aberto às diferenças.

Esta divisão binária remete a uma atribuição de papéis como “padrões ou regras
arbitrárias” estabelecidas, pela sociedade, para seus membros. Para LOURO (1997), é este
tipo de segregação que faz com que não sejam examinadas as múltiplas formas que as
masculinidades e as feminilidades podem assumir, como também as complexas redes de
poder que (através das instituições, discursos, práticas e símbolos) constituem hierarquias
entre os gêneros. Ela argumenta que o conceito de gênero passa então a exigir que se pense de
modo plural, enfatizando que os projetos e as representações sobre mulheres e homens são
diversos.

Já AZEREDO (1994)5 lembra que “é preciso considerar o gênero tanto como uma
categoria de análise quanto como uma das formas que relações de opressão assumem numa
sociedade capitalista, racista e colonialista”. Este aspecto já era uma preocupação central nos
Estudos Feministas, mas LOURO (1997) considera que ao mesmo tempo em que “a denúncia
foi imprescindível, ela também permitiu, algumas vezes, que se cristalizasse uma vitimização
feminina ou, em outros momentos, que se culpasse a mulher por sua condição social
hierarquicamente subordinada”. Sendo assim, a concepção que atravessou boa parte destes
estudos, a de um homem-dominante versus uma mulher-dominada, precisa ser desconstruída.

5
AZEREDO, 1994 apud LOURO, 1997: 55
15

Esta lógica dicotômica ‘masculino-feminino’ “supõe ignorar ou negar todos os


sujeitos que não se ‘enquadrem’ em uma destas formas”. Sendo assim, desconstruí-la
“implicaria observar que o pólo masculino contém o feminino (de modo desviado,
postergado, reprimido) e vice-versa; implicaria também perceber que cada um desses pólos é
internamente fragmentado e dividido”. (LOURO, 1997, p.32-34). Pretende-se portanto,
compreender o gênero como constituinte da identidade dos sujeitos, visto que estes têm
identidades plurais, múltiplas, que não são fixas ou permanentes, mas se transformam, e
podem, até mesmo, ser contraditórias.

A fragmentação das identidades, onde o unitário carrega uma variedade dentro de si,
é recorrentemente citada como uma das diferenças que separam a modernidade da pós-
modernidade. HALL (1992) explica que a partir do processo de descentramento ou
deslocamento do sujeito, surge a chamada “crise de identidade”, onde caem velhas
identidades estabilizadoras do social e surgem novas, fragmentando o indivíduo moderno,
antes visto como um sujeito unificado.

Ele nos apresenta três concepções de identidade, que foram se modificando, ao longo
da história, através das mais variadas transformações sofridas pelos indivíduos. São elas: o
sujeito do iluminismo (totalmente centrado, unificado, racional, dotado de um núcleo interior,
que permanecia essencialmente o mesmo ao longo da existência do indivíduo); o sujeito
sociológico (tinha consciência de que este núcleo interior do sujeito era formado a partir da
interação com a sociedade e a cultura); e o sujeito pós-moderno (sua identidade se fragmenta
e ele está composto de várias identidades possíveis, assumidas em diferentes momentos e não
unificadas ao redor de um “eu” coerente).

Para este mesmo autor, com movimentos como o feminista, nasce uma “política de
identidade”, que tem como idéia a premissa de uma identidade para cada movimento. A partir
do slogan “o pessoal é político”, o Feminismo questiona a distinção clássica de ‘privado’ e
‘público’, abrindo à contestação política arenas da vida social e particular e o tema da
produção dos indivíduos como sujeitos generificados. Apesar de um início de contestador
social, o movimento feminista expandiu-se e ao politizar a subjetividade, a identidade e o
processo de identificação, incluiu em suas discussões a formação das identidades sexuais e de
gênero, substituindo a noção de que homens e mulheres eram parte de uma mesma identidade,
a “Humanidade”, pela questão da diferença sexual.
16

Identidade pressupõe a concepção de idêntico, e em se tratando de


identidade cultural, de grupos sociais, os valores ressaltados são as
características em comum entre os membros do grupo, que os tornam
semelhantes entre si e os diferenciam de outros grupos. (...) As semelhanças
entre os membros do grupo são fatores de identificação entre eles. (LAGO,
1992:121-2) (grifos do autor)

Um fator complicador é que as identidades individuais são também sociais, já que os


sujeitos são constitucionalmente culturais, não existindo sem estar inseridos na cultura, sem
uma função simbólica. LAGO (1992) considera que a identidade se insere num processo de
construção, consciente e inconsciente, através das relações contrastivas e de identificação com
os outros, e não algo inato. Por ser a identidade algo instável, passível de contestação,
encontra-se sempre incompleta e em permanente processo de significação, reelaboração,
demonstrando também com isso, que nós, na condição de pós-modernos, somos possuidores
de inúmeras identidades.

Assim como os gêneros se constituem nas relações sociais e culturais, ‘despregados


do sexo biológico’, as identidades de gênero também são atribuídas socialmente. Podemos
considerar o fenômeno contemporâneo dos transformismos como questionador de uma
concepção de gênero, percebendo seu desdobramento numa multiplicidade de identidades.

Essa pessoa do travesti, da ‘dragqueen’, do transexual não pode ser


apreendida a partir da noção de identidade. Ela é um ser em transformação,
um vir a ser que ritualiza de forma continuada esse devir (...) Essa realidade
aparentemente confusional, além de aniquilar certas fronteiras, também
provoca certas teorias, nossas idéias do que é o gênero e para onde, para que
novos sentidos ele caminha. (MALUF, 1998 apud LAGO, 1999: 125).

Uma série de interrogações feitas por LAGO (1999) questionam a posição de alguém
que não se enquadre no modelo de heterossexual, enquanto dissonante com a identidade de
gênero que lhe foi atribuída socialmente, pelo motivo da escolha de seu objeto amoroso. Ela
nos faz refletir o quanto pode ser confuso para um sujeito que não se identifica com a
identidade que lhe é cobrada e, por vezes, sente-se desautorizado a se representar como
homem ou mulher. As questões ligadas à sexualidade estão intrinsecamente contidas nas
17

discussões sobre gênero e identidade e as diferentes “estruturas” – classe, raça, gênero,


sexualidade, etc. – não podem ser tratadas como variáveis independentes, pois a opressão
sofrida por cada uma está inscrita na outra6.

As identidades sexuais se constituiriam, pois, através das formas como


vivem sua sexualidade, com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de
ambos os sexos ou sem parceiros/as. Por outro lado, os sujeitos também se
identificam, social e historicamente, como masculinos e femininos e assim
constroem suas identidades de gênero. (LOURO, 1997, p.26) (grifos do
autor)

Não podemos desligar os conceitos de gênero e de sexualidade, mas deve-se ter uma
compreensão clara de significação dos termos. Da mesma forma que parte do senso comum
atribui aos homossexuais um gênero falho, desprezível, são atribuídas qualidades de
‘feminino’ aos homens gays e de ‘masculino’ às mulheres lésbicas. Neste sentido, a
homofobia tanto pode se expressar numa recusa deste gênero defeituoso, como numa espécie
de temor pela perda do gênero. Há muito, portanto, já vêm os movimentos gay e lésbico
constatar que o esquema polarizado linear não sustenta a complexidade social.

GIDDENS (1993) afirma que nas últimas duas décadas, a homossexualidade sofreu
tantas transformações quanto à heterossexualidade. Muito mudou desde que aquela ainda era
enquadrada clinicamente, junto a outros distúrbios psicopatológicos, como o masoquismo ou
a ninfomania. Mas apesar de não haver mais uma corroboração da medicina psiquiátrica com
esta idéia da homossexualidade, ainda hoje, o fenômeno é encarado, por muitos
heterossexuais, como uma perversão, ou no mínimo, algo não-natural, moralmente
condenável.

LOURO (1997) considera as diversas formas de sexualidade e gênero como


interdependentes, e questiona a ligação do impacto da ‘celebração’ da identidade gay/lésbica
nas famílias conservadoras. Para ela, a relutância em perceber a diversidade sexual como o
surgimento de novas possibilidades está no seio de uma discussão clássica entre normal e
patológico. O que historicamente foi construído como pertencente aos limites da normalidade,

6
BRAH, Avtar 1992 apud LOURO, 1997: 54
18

tem como desvio ou anormal aquilo que se distancia do padrão. Mas por que ao se exercer o
direito der ser diferente estaria significando necessariamente ser anormal?

A desigualdade presente nas relações sexuais remonta a todo um modelo criado


social e culturalmente. Da idéia de um sexo único, onde a mulher seria uma versão menos
perfeita do homem, passa-se, no final do século XVIII, para a de que homem e mulher são
opostos incomensuráveis. “A mulher é o oposto, o ‘outro’ do homem: ela é o não-homem, o
homem a que falta algo (...)” (EAGLEATON, 1983 apud LOURO, 1997, p.44). É já na
modernidade que surge a idéia dos dois sexos, como fundamentos para uma questão de
gênero.

As autoras marxistas já reconheciam como os pilares da desigualdade sexual o


controle da fecundidade e a divisão de trabalho entre os sexos. FOUCAULT (1979) vem
trazer uma idéia de análise da sexualidade sob o viés do poder. Este, funcionando na
perspectiva da normalização, do controle, da técnica, da vigilância. O poder é, para ele, uma
estratégia a qual não possuímos, mas nos apropriamos e aplicamos àqueles que têm
capacidade de resistência, de revolta, do contrário seria uma relação de violência.

Os gêneros são, portanto, produzidos nas e pelas relações de poder. Sobre o conceito
foucaultiano de ‘bio-poder’ como controlador das populações, podemos pensar em trocas e
regras por quais são instituídas e nomeadas as diferenças e desigualdades, tais como a
normalização de conduta dos meninos e meninas ou o conjunto de práticas criadas e
acionadas para controlar homens e mulheres, distinguindo lugares diferentes para os gêneros,
como as medidas de incentivo ao casamento e à procriação.

Idéias como as de Jean-Jaques Rousseau foram fundamentais para a construção de


uma noção da mulher como submissa ao homem. Para o filósofo, ela não deveria ultrapassar
os limites da mediocridade e sim servir e dar prazer ao homem. BADINTER (1985)
desconstrói a crença de que a mulher nasceu para ser mãe e cuidar de casa, realizando-se
apenas enquanto tal, e expõe como este mito foi criado, já na modernidade, para satisfazer
interesses de classe:

Ao aceitar incumbir-se da educação dos filhos, a burguesa melhorava sua


posição social, e isso de duas maneiras. Ao poder das chaves, que detinha há
muito tempo (poder sobre os bens materiais), acrescentava o poder sobre os
19

seres humanos, que são os filhos. Responsável pela casa, por seus bens e
suas almas, a mãe é a sagrada ‘rainha do lar’. (BADINTER, 1985, p.222).

As mudanças por que passaram homens e mulheres, no campo da sexualidade, no


decorrer dos tempos, são expostas por GIDDENS (1993), num paralelo com diversos tipos de
amor. De uma recusa do ato sexual antes do casamento, por parte das mulheres, como modelo
de ‘virtude’, à cobrança social que as adolescentes sofrem, hoje, para que percam cada vez
mais cedo a virgindade, a exemplo do que já ocorria com os homens. Mesmo assim, a noção
da perda da virgindade, para os meninos, significa um ganho, enquanto, para as meninas,
ainda remete a uma perda. Outro aspecto é a expectativa de uma satisfatória vida sexual no
casamento, que contemporaneamente, torna-se tanto para homens quanto para mulheres,
requisitos importantes para a união matrimonial.

Hoje em dia a sexualidade tem sido descoberta, revelada e propícia ao


desenvolvimento de estilos de vida bastante variados. É algo que cada um de
nós “tem”, ou cultiva, não mais uma condição natural que um indivíduo
aceita como um estado de coisas preestabelecido. De algum modo, que tem
de ser investigado, a sexualidade funciona como um aspecto maleável do eu,
um ponto de conexão primário entre o corpo, a auto-identidade e as normas
sociais. (GIDDENS, 1993, p.25)

Este mesmo autor afirma que a “revolução sexual” nos últimos 40 anos envolve
como elemento básico a autonomia sexual feminina. Ele lembra que as circunstâncias comuns
da contração do matrimônio, na Europa pré-moderna, como sendo pela situação econômica,
começou a se transformar no final do século XVIII, com o casamento romântico. Ele
diferencia o ‘amor paixão’ como tendo uma qualidade de encantamento, do ‘amor romântico’,
que tem seu surgimento marcado por influências que afetaram as mulheres, como a criação do
lar, a modificação das relações entre pais e filhos e a invenção da maternidade. Na época
atual, os ideais de amor romântico tendem a se fragmentar sob a pressão da emancipação e da
autonomia sexual feminina.
20

Seria uma tendência futura, levando em consideração os efêmeros relacionamentos


de nossa época, a idéia do autor de ‘amor confluente’, como não necessariamente
monogâmico, heterossexual e ‘eterno’?

O termo “relacionamento” inspira uma noção de intimidade. GIDDENS (1993)


afirma que o ‘relacionamento puro’ é parte de uma reestruturação genérica da intimidade,
sendo ele paralelo ao desenvolvimento da sexualidade plástica – sexualidade descentralizada,
liberta das necessidades de reprodução. Neste sentido, o autor expõe as dificuldades que os
homens têm em lidar com o amor romântico, por entrar em conflito com as regras e técnicas
de sedução, sendo rotulados de ‘românticos’ pejorativamente, como se se tratasse de uma
característica feminina. A igualdade de doação e a dependência emocional, necessárias para
que haja o relacionamento puro, trazem à tona uma evidente vulnerabilidade emocional
masculina.

1.2 Masculinidades em mudança

A opressão pronunciada/vivenciada pelas mulheres, ao longo de tantas décadas, e a


conseqüente discussão sobre os gêneros, favoreceram não somente uma mudança de sua
posição, mas uma possibilidade de os homens perceberem que não estão apenas no papel de
opressor, mas ao seu lado como vítimas, enquanto igualmente excluídos dos discursos
históricos, em função de um modelo ideal de homem viril. Apesar de não se encontrar na base
das reflexões dos movimentos feministas uma preocupação com os tipos de opressão que
atingem os homens, é a partir destas reflexões e dos demais movimentos de contracultura das
décadas de 60 e 70, que se inicia uma discussão, também encabeçada por mulheres, a respeito
das masculinidades.

Mistura de papéis, obrigações colocadas em xeque, transformações de modelos


arraigados. Tudo isto só poderia ter um resultado: identidades abaladas. A partir do momento
em que é colocado em questão o modo de ser e estar dos homens no mundo, dá-se início a
uma crise de identidade, ou melhor designando, uma ‘crise das masculinidades’.
Desconstruindo o modelo de homem, edificado sobre séculos de cobrança, poder patriarcal,
virilidade e força, uma pergunta se faz constante: como reagir à ambigüidade evidente dos
sexos? Para TREVISAN (1997), a única possibilidade que o homem tem de superar o conflito
seria perder o medo da mulher e encarar sua parte feminina7.

7
TREVISAN apud RAMOS, 1999: 321
21

ALMEIDA (2001) usa a expressão “masculinidades reinventadas” para designar uma


provável tomada de atitude de cambiar o modelo instituído de homem, adequando este aos
novos desdobramentos de gênero. Para ela, o exercício de múltiplas “masculinidades
reinventadas”, é uma conseqüência da individualização crescente da modernidade tardia e vai
requerer que os homens sejam muito mais flexíveis e tolerantes às frustrações.

As dificuldades que têm os homens em redefinir sua subjetividade não são para
menos, visto que houve uma contradição nos conceitos. Pesquisas científicas, datadas do
século XVIII, demonstram a construção histórica da formação de identidades diferenciadas
para homens e mulheres. As pesquisas tratavam as emoções como definidoras biológicas das
diferenças de gênero, baseadas no estudo da circulação do sangue. Desde já o ser sensível era
relegado à mediocridade, sob a premissa de que tenderia a perder suas faculdades mentais.
Sendo assim, todo homem deveria evitar demonstrações de sensibilidade:

A noção antiga e embebida no sistema binário, que considerava emotividade


como uma característica feminina e racionalidade como uma característica
masculina, ensinava que para um homem se qualificar como viril (...)
emoções deviam ser suprimidas ou controladas. Através dos tempos, a
palavra emoção se tornou, no léxico e na vida, um substantivo feminino.
(BARBOSA, 1998, p. 326-327).

O homem tem, portanto, de seguir um modelo predefinido de masculinidade e


virilidade, sob a ameaça de que qualquer desvio significaria um ser menos homem, ou mesmo
que ele não é homem. Por isso, torna-se necessária uma tomada de consciência por parte dos
homens, de que esta imposição de uma imagem de macho, pela sociedade sexista, é “tão
mutiladora para o homem como a imagem da feminilidade para a mulher” e só “contribui para
limitar suas vidas ao vazio da estereotipia”. (NOLASCO, 1995, p. 19 e 27).

O machismo é concebido como um fenômeno latino-americano, enquanto a


incorporação das características do perfil dos colonizadores (portugueses e espanhóis) pela
cultura. Encarnando a idéia de que o valor de um homem está em ele não depender dos
demais, o machismo é permeado por valores como dominação, agressividade, narcisismo, e
sexualidade incontrolada. O machismo pode ser encarado como uma couraça que protege os
homens, encobrindo possíveis desvios e inseguranças sexuais. Mas NOLASCO (1995) fala do
22

perigo de pensar o machismo como ideologia apenas masculina, pois considera que ele está
incorporado à visão de mundo tanto de homens quanto de mulheres, além de ser o pivô de
uma trama política maior, que transcende os indivíduos.

Para este mesmo autor, as questões masculinas postas em necessidade de reavaliação,


emergem do cotidiano e estão resumidas em três pontos principais: como estão construídos os
vínculos e a dinâmica paterna; as formas de violência na relação com ele mesmo, mulher e
filhos; a sexualidade.

Comparada à maternidade, a função paterna está relegada a um segundo lugar de


importância na criação de um filho. Mesmo para a Psicanálise, que vê nas funções materna e
paterna os elementos essenciais da constituição psíquica do rebento, em seus primeiros anos,
o ‘pai’ é aquele apresentado pela ‘mãe’, sendo necessária a indicação desta para que a criança
o aceite como tal. Sendo assim, o papel de cuidadora estaria destinado à mãe, enquanto ao pai
estaria ligada uma imagem autoritária e da esfera pública e social.

O pai esteve sempre associado, na sociedade ocidental judaico-cristã, às


noções de autoridade, honra e respeito (...) pater familis, figura do direito
romano (...) Ao subjugar à sua autoridade a mulher, os filhos, os escravos,
enfim, tudo aquilo que fosse considerado seu patrimônio, o senhor
perpetuava a dominação e a reproduzia na figura de seus filhos homens
educados à sua imagem e semelhança. Esta aparente contradição é apenas
resultante de que para ser um bom comandante é necessário ser comandado
para tal. (SIQUEIRA, 1999, p. 189-190)

NOLASCO (1995) enxerga a paternidade como parte do processo de constituição do


modelo de identidade masculino cobrado socialmente, sendo ainda este processo reforçado
por expressões como “bom pai”, “pai honrado” e “pai provedor”. Este autor considera que a
construção de um corpo guerreiro enrijece as subjetividades dos homens, assumindo, a
paternidade, as qualificações do que seria um herói distante e ao mesmo tempo temido. Outro
aspecto apresentado por ele é o da ausência de transformações no corpo masculino, fazendo
com que os homens não se sintam parte do processo de gestação. Isto geraria definições
vazias e fictícias, sendo a partir de um desejo amoroso que vai emergir o sentimento da
paternidade. O desejo de ter um filho vai marcar no homem uma efetiva possibilidade de
envolvimento e entrega, colocando-o fora das fronteiras narcísicas e auto-referentes.
23

Apesar disso, muitos homens têm filhos como se estivessem cumprindo mais uma
etapa de suas vidas, numa reafirmação de sua virilidade ou esclarecendo possíveis dúvidas
sobre sua identidade sexual. A partir daí, a constituição de uma família vai implicar numa
‘idéia de proteção’, que para os homens, vai estar calcada sobre duas vertentes: a financeira,
de provedor (proteção material) e as exigências morais (proteção moral). Neste aspecto,
podemos incluir o ‘trabalho’ como uma das principais referências na construção de um
modelo de comportamento masculino. O capitalismo incentiva e a sociedade cobra do homem
que ele obtenha sucesso no trabalho, produzindo a idéia de realização, sem a qual será um
fracassado. Isto explica porque o desemprego e a aposentadoria são tormentos tão maiores
para os homens que para as mulheres.

O sistema apropria-se da imagem do guerreiro para desenhar o modelo do


assalariado ideal. Desta junção, define-se tanto o padrão de comportamento
para o homem no trabalho quanto os parâmetros constitutivos de sua
identidade, sendo os valores que circundam seu universo pessoal um arranjo
feito entre as aspirações do guerreiro e o conformismo e a resistência do
assalariado. (...) O trabalho para um homem retrata uma prática tanto de
rigidez quanto de tensão, revelada por meio da maneira como ele exerce o
poder. Conhecido por uma presença eminentemente autoritária, viril e
moralista, o homem tem sido, no trabalho, pivô de estórias solitárias em que
o compromisso cotidiano se limita a atender às suas necessidades de
ambição e, por meio delas, submeter-se a reproduzir os valores do contexto
de que faz parte. (ibidem, p.60-63)

O sistema de organização patrilinear8 (posterior ao matrilinear) marca, segundo


NOLASCO (1995), um período caracterizado por guerras, parentesco descritivo e casamento
heterossexual. Para ele, são estes fatores, somados à valorização da força física, que vão
constituir os primeiros traços da representação masculina. E por meio destes atributos,
conferidos ao macho, o incentivo à violência é mantido.

O comportamento violento, como marca da virilidade masculina, começou a ser


questionado, em meados dos anos 70, nos Estados Unidos, como sendo decorrente da

8
O sistema de organização patrilinear é fundamentado na descendência de parentesco e embasado na figura
paterna, enquanto o matrilinear, na figura materna.
24

violência a que estavam submetidos os homens na infância, fazendo com que fosse
constituído um estereótipo que não o impelisse a refletir sobre sua condição. A disciplina e o
condicionamento a comportamentos viris e agressivos produzem um aprendizado de uma
postura diante do mundo, que se inicia na infância e se prolonga no desenrolar da vida adulta,
resultando numa incapacidade em contatar as próprias emoções e demandas afetivas.

TREVISAN (1997) considera a violência masculina um sinal de crise. Para ele,


basta que se abram os jornais para que se veja quem está em crise. Não é a mulher o agente de
violência nem o autor das maiores tragédias9. GIDDENS (1993) considera que haja uma
ligação forte entre violência e sexualidade, visto que para ele:

O controle sexual dos homens sobre as mulheres é muito mais que uma
característica incidental da vida social moderna. À medida que esse controle
começa a falhar, observamos mais claramente revelado o caráter compulsivo
da sexualidade masculina – e este controle em declínio gera também um
fluxo crescente da violência masculina sobre as mulheres. (GIDDENS, 1993,
p.11)

A pesada repressão a que os homens foram submetidos – razão inconsciente da


agressividade e violência –, seria, na verdade, mascarada pela estimulação de um discurso
sexual. A importância dada, pelos homens, aos seus genitais, é tamanha a ponto de eles lhe
fazerem referência como um outro e não apenas uma parte do corpo. Esta separação entre
corpo, genitais e envolvimento afetivo acarretará uma dificuldade de entrega emocional em
uma relação. A sexualidade masculina é então reduzida a um prazer peniano, negando um
“corpo afetivo” como fonte de prazer e encontro. E é este pênis como falicidade (poder), que
será valorizado.

Além da primeira relação sexual, a entrada no mundo do trabalho, tem a função de


complementar o modelo de homem viril, valorizado socialmente. Por causa da limitação
relativa ao mundo do trabalho, os homens tendem a procurar a liberdade em suas escolhas
amorosas e sexuais. Porém, esta liberdade sexual masculina talvez seja uma ilusão que os
homens ainda não se deram conta. Isto poderia ser fundamentado também na teoria

9
TREVISAN apud RAMOS, 1999: 321
25

psicanalítica freudiana do Complexo de Édipo10, enquanto as esposas ocupariam o lugar da


mãe (santificadas) e as amantes usadas para dar prazer ao homem, gerando assim, uma moral
sexual ambígua em relação às mulheres.

A respeito do envolvimento com as mulheres, NOLASCO (1995) explica que o mal-


estar gerado por esta situação, procede da cisão presente em seu universo subjetivo,
enxergando as mulheres como santas ou putas. Além disto, os homens vivem o envolvimento
como um cárcere, pois “ao entregar-se o indivíduo abdica da necessidade de controlar o que o
cerca (...), distancia-se de uma referência hierarquizada, tradicionalmente conferida a seu
papel social (...), vê-se rendido, à mercê do jogo espontâneo decorrente de sua própria
escolha”. (NOLASCO, 1995, p.104-107).

O apelo sexual que circunda os homens, aliado a um estado de alienação da


dinâmica e dos significados de suas subjetividades, torna-os escravos dos
próprios desejos, na medida em que não se sentem livres para dizer não aos
apelos da ordem social.. (...) ficam impossibilitados de realizarem a partilha
de seus sonhos e dores mais íntimos, sem o que não há como caminharem
em direção a seus desejos e realizarem relações de encontro e de entrega.
(ibidem, p.128)

Boa parte do concernente ao campo do relacionamento do homem com uma mulher


está relativo à representação do objeto ‘mulher’, para os homens, visto que o desejo por ela,
muitas vezes é, de certa forma, impelido pela apresentação social de bela e desejável.
NOLASCO (1995) coloca o homem numa posição de invejoso da mulher, citando o mito de
Adão e Eva como significando um desejo de engravidar por parte do homem. Ele cita ainda as
fantasias de carnaval, quando muitos homens se fazem passar por mulher, geralmente
representadas como devassas, sexualmente ávidas, espalhafatosas e descontroladas. Estas
definições estariam presentes numa rede de associações utilizadas pelo imaginário dos
homens para se referir à mulher.

Apesar da inveja, o mesmo autor indica o receio que a maioria dos homens tem em
se ‘transformar’ em uma mulher, ou ainda o medo dela, como outro aspecto da relação. “A
10
O Complexo de Édipo foi designado por Freud, segundo Laplanche, como sendo um conjunto organizado de
desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais. Apresenta-se como um amor pelo progenitor
do sexo oposto e ódio ciumento ao progenitor do mesmo sexo. O Complexo desempenha papel fundamental na
estruturação da personalidade e na orientação do desejo humano.
26

desvalorização e a submissão da mulher também são tentativas de realização da morte


simbólica ‘daquela’ que ainda ocupa no inconsciente dos homens um papel opressivo”.
(ibidem, p.140). Desta forma, o homem se defende fazendo antes o que lhe pode ser feito, um
dia, pela mulher. E assim, no momento em que traem, sentem-se engrandecidos, porém ao ser
traídos, o sentimento é de um vazio ou descontrole. A sensação de liberdade que o homem
sente ao trair é falsa, visto que precisa se sentir preso afetivamente a alguém para realizar tal
atividade.

A infidelidade masculina também tem função dentro do modelo de comportamento


viril, como trazendo a imagem do mito do homem aventureiro. A traição masculina é
divulgada como conseqüência de uma predisposição biológica que o homem tem para o sexo,
sendo aceita como algo positivo, principalmente em países latinos. Mas quando são traídos,
esta imagem se transforma para a de inferior, que foi desonrado e mesmo falhou no seu “papel
de macho”.

É na traição que o homem tem uma das suas permissões sociais para chorar. O choro,
assim como as demais formas de demonstrações emotivas, é visto pela sociedade e pelo
próprio homem como sinal de fraqueza e vulnerabilidade. Por isso, os casos em que se
costuma admitir e perdoar o choro masculino são aqueles onde o ser humano não está apto a
exercer controle sobre a vida, como as situações irreversíveis de doenças graves e morte,
mesmo porque nestes casos as lágrimas também podem indicar uma sensibilidade humana. E
um terceiro caso em que o choro se faz aceito é o da embriaguez – por ser uma atividade
considerada como tipicamente masculina e retirar o controle sobre si mesmo –,
principalmente se for por questões amorosas.

Este tipo de esforço para adestrar o corpo e esconder as emoções corresponde às


características do que CONNEL11 vem chamar de “masculinidade hegemônica”. ALMEIDA
(2001) esclarece o que significa o termo:

(...) enquanto “padrão” dominante, a masculinidade hegemônica pode ser


pensada como essa concepção geral da vida ou ainda como principio
pedagógico que visa disciplinar, organizar e definir um tipo específico de
relacionamento de gênero, claramente assimétrico e que por um efeito de
atração anula a sobrevivência de “grupos rivais”, promovendo expansão

11
CONNEL apud ALMEIDA, 2001: 28
27

ideológica claramente identificável. (ALMEIDA, 2001, p. 26) (grifos do


autor)

O exercício da masculinidade hegemônica sobre as mulheres ocidentais pode se dar


em algumas dimensões específicas: um modo patriarcal de produção – o trabalho doméstico;
relações patriarcais de trabalho remunerado; relações patriarcais no Estado; a violência
masculina; relações patriarcais de sexualidade. Mas, para esta autora, o conceito é
desnecessário, pois assim conceituados, a dominação masculina ou o regime do patriarcado,
acabam dissimulando o caráter eminentemente relacional entre os gêneros.

Ela comenta posições alternativas ao modelo hegemônico de masculinidade, que


lutam para fugir desta unidade e exercer o direito de ser diferente. E cita o próprio CONNEL
ao falar sobre relacionamentos de gays com homens considerados “oficialmente” machos
viris, como sargentos, militares e aqueles casados e com muitos filhos. Ele afirma que uma
grande quantidade de homens está ligada de alguma forma ao projeto hegemônico, mas não
encarna a masculinidade hegemônica.

Para NOLASCO (1995), tentar atribuir características femininas aos homens, para
vê-los diferentes, significa oprimir, da mesma forma do discurso conservador, que cobra um
comportamento através das estratégias de controle. Mas negar a presença de características
“femininas” e “masculinas” no mesmo sujeito pode levar ao não reconhecimento e expressão
dos afetos entre si, fazendo com que os homens se erotizem mutuamente, adotando atitudes
homofóbicas ou homoeróticas.

A violência masculina, tanto em homo como em heterossexuais, a falta de


limites para as conquistas materiais, a competição que se impõe entre os
homens fazem com que um viés persecutório marque o campo das trocas
afetivas entre eles. Neste sentido, homo e heterossexuais partilham
preocupações cujo núcleo é o mesmo: um olhar “paranóico” sobre as
relações sociais, tanto através do receio de ser reconhecido como
homossexual quanto pelo de perder a mulher para um outro homem.
(NOLASCO, 1995, p.126)
28

Mas BARBOSA (1998) considera que a busca pela androginia como equilíbrio,
neutralidade, pressupõe uma noção utópica, já que diferenças, lutas e estratégias de poder não
podem ser completamente eliminadas e o feminino e o masculino não conseguiriam se
desnudar de atributos culturais e sociais taxativos. Já OLIVEIRA (1998) fala de uma
igualdade entre homens e mulheres como não exatamente ligadas ao andrógino e à eliminação
de diferenças, pois “dissolver e fundir homens e mulheres, masculino e feminino, no magma
da natureza humana diferenciada, é romper a própria dinâmica da vida”. (OLIVEIRA apud
BARBOSA, 1998, p. 342)

O controle de comportamento sofrido pelos homens, nas suas mais variadas etapas, é
decorrente de uma educação castradora a que os meninos são submetidos durante a infância.
São estas as condições em que surge, no homem, o desejo de definir a virilidade como forma
de identidade, o que faz com que muitos se apresentem emotivamente inseguros e hesitantes.
NOLASCO (1995) dá o nome de “controles pedagógicos” às regras impostas aos meninos nas
relações sociais, com a família e na escola, de como um homem macho deve se comportar.

Os meninos nascem segregados do universo feminino – definindo os limites dos


aspectos afetivos e sociais –, orientados para assumir performances intimistas ao falar de suas
dificuldades e contundentes ao falar sobre seus méritos – mesmo que fantasiosos –, educados
para desenvolver seus pontos de vista competitivamente, acalentando o mito da liberdade
masculina, orientados a eliminar manifestações emotivas (não ter medo e não chorar).
CONNEL12 chama de “projetos de gênero”, a masculinidade e feminilidade construída a partir
das práticas sociais. Para ele, esses ‘projetos’ reconhecem as estruturas de relação que podem
ocasionar às masculinidades experiências tanto de contradições internas quanto de rupturas
históricas. São três, segundo ele, as dimensões presentes nas masculinidades: relações de
poder, de produção e emocionais.

Numa tentativa de aceitação de si e de novas flexibilidades despadronizadas, além da


satisfação de novas cobranças sociais, o homem contemporâneo inicia, hoje, uma trajetória
que envolve autoconhecimento, interações emotivas, paternidade vivida, entre outros aspectos
que constituem o desejo de ser o que NOLASCO (1995) vai denominar de “o novo homem”.
Ele explica que, apesar de ainda hoje, o homem trazer uma representação de si produzida por
vagos conceitos de autoridade e tradição como referência para definir o masculino, ele está
entrando num processo de transição de um modelo de representação cartesiano para um outro
freudiano.
12
CONNEL apud ALMEIDA, 2001, p. 23-24
29

A procura por uma linguagem para expressar suas emoções, a busca de uma redução
nos níveis de violência, um novo posicionamento frente a qualidades e comportamentos ditos
de “natureza feminina”, a incorporação da sensibilidade e afetividade à nova representação
masculina – onde o chorar passa a ser uma medida charmosa de vulnerabilidade e
emotividade –, as discussões expostas nos Grupos de Homens13 que se disseminam por vários
países, e enfim, a intensificação do envolvimento com a paternidade, são os principais
aspectos destas mudanças que as novas masculinidades vêm assumindo.

Estas características são refletidas justamente no novo pai, que vai estar, por sua vez,
influenciando na construção de novos homens. As novas formas de ser pai e mãe são
determinantes na criação de um filho, visto que estes são os responsáveis principais pelos
cuidados que a criança precisa nos primeiros anos de vida, assim como os modelos e
representações de que a ela se apropriará nestes vínculos iniciais.

Porém, muitos autores acreditam que o modelo patriarcal coexista com esses novos
desempenhos do papel de gênero e da paternidade, dando margem, por exemplo, a idéias de
que a responsabilidade pelos filhos é, em última instância, da mulher, e a imagem paterna
construída sobre a ausência e o silêncio, sem maior ligação afetiva com os filhos seja
apontada hoje como problemática.

Atualmente, os esforços dos homens em se livrar de uma posição de passividade


alienada às regras sociais se fazem presentes e dão continuidade a uma luta iniciada, há muito,
pelas mulheres. Para NOLASCO (1995), é fundamental que as discussões sobre o novo
homem não sejam colocadas como a expressão de qualidades femininas pelos homens:

Continuar conduzindo análises a partir das duas categorias é manter-se fiel à


crença de uma essência masculina ou feminina absoluta, ligada um ponto de
vista “naturalizante”. Discutindo o “novo homem” nessas bases, estaríamos
repetindo os vícios anteriores, um sujeito sem conflitos e contradições.
Como se o desafio imposto aos “novos homens” fosse de integrar em si o
que está dissociado na cultura. Mas, para isso, seria preciso manter a
dissociação entre o masculino e o feminino, sem o que não haveria
integração. (NOLASCO, 1995, p.175)

13
Os Grupos de Homens estão cadastrados na publicação Le Repertoire de la Condition Masculine, produzida
em Montreal, em 1988. No Ocidente, em 1995, já existiam mais de 120 Grupos de Homens. Estes tentam
reavaliar os valores do sistema patriarcal e reconhecer e incorporar à nova representação masculina tanto a
sensibilidade como a afetividade, procurando um caminho para suas vidas fora da identificação com a falocracia.
30

Apesar disso, reflexos destes ‘resquícios’ de patriarcalismo que ainda se fazem


completamente presente, dão-se nas normas legais14, sociais e culturais resistentes. Um
grande exemplo disto são as formas como são retratados homens e mulheres nas mais diversas
maneiras de expressão cultural. A televisão e o cinema, como meios de comunicação de
massa mais visíveis, representaram – e continuam a representar em muitos momentos –, estas
relações desiguais entre homens e mulheres, nas quais a estereotipização se dá de forma
marcante.

1.3. As representações de gênero no cinema

Quando os irmãos Lumière colocaram a imagem em movimento, era fácil imaginar


o quanto aquela tela enorme, que retratava a vida das pessoas, causaria fascinação em quem a
visse. Mas o que não se sabia era que dentro de poucos anos, tornar-se-ia uma das maiores
fontes de influência para a humanidade, em que muitos se inspirariam para se vestir, cortar o
cabelo, ter um tipo físico ideal, falar de determinado modo; enfim, para toda uma adoção de
valores e comportamentos.

Na década de 30, quando explode a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), arrasando


a Europa, até então paradigma cultural, é o padrão de vida norte-americano que se tornará
hegemônico e passará a ser exportado mundo afora. Os Estados Unidos, emergindo como
grande potência, fazem do cinema produto de cultura de massa15, e passam a influenciar
internacionalmente, através da difusão de seus próprios valores e mitos, tomados
principalmente pelos países subdesenvolvidos, como se fossem seus.

Num contexto turbulento politicamente, o movimento de valorização da vida norte-


americana eclode com força total na década de 50 e se faz sentir, através da indústria
cinematográfica, na Europa e América Latina. No Brasil, ainda em meio à Revolução de 30,

14
No caso do Brasil, a licença-paternidade é de cinco dias em contraposição aos quatro meses da materna; com o
divórcio, a guarda dos filhos é dada à mãe, preferencialmente; é o homem quem geralmente paga pensão à
mulher, que por sua vez, tem o direito de continuar na casa da família. Tudo isto, mantém a segregação entre pai
e filho, que muitas vezes, tem sua relação regulada pelo dinheiro
15
O termo "indústria cultural" foi criado, nos anos 40, pelos filósofos da Escola de Frankfurt Horkheimer e
Adorno, para substituir o obsoleto 'cultura de massa'. Essa massa tomada como homogeneidade pode ser de
efetiva existência (se tomarmos como exemplo uma superprodução cinematográfica destinada a um público
indistinto). O termo foi aplicado às novas manifestações artísticas surgidas no início do século XX (e fins do
século XIX) com as inovações tecnológicas, como o cinema e a música popular. "Indústria Cultural"
configurava-se como um termo pejorativo, com previsões pessimistas em que a cultura se transformaria numa
grande fábrica de sardinha, de enlatados
31

que levou Getúlio Vargas ao poder, quando a produção industrial não tinha raízes nacionais e
quase todos os produtos eram importados, é o cinema americano que vai substituir a
influência cultural francesa e servirá de modelo para a vida dos brasileiros.

É ainda, nas décadas de 40 e 50 que o cinema se torna de fato um bem de


consumo, em particular com a presença de filmes americanos, que no pós-
guerra dominam o mercado cinematográfico. Este não é um fato que diga
respeito exclusivamente à sociedade brasileira, ele é mais genérico, e se
insere na mudança da política exportadora de filmes americanos, que se
torna mais agressiva (...). (ORTIZ apud CERDEIRA, 2000: 33)

Marilyn Monroe, Grace Kelly, Fred Astaire. São apenas alguns dos inumeráveis
mitos fabricados pela indústria hollywoodiana. Idolatrados pelo público e retratados em
outros espaços culturais, como a literatura, os símbolos da época de ouro do cinema (iniciada
na década de 30) mostravam seu estrondoso impacto sobre o cotidiano das pessoas. Neste
período, as discussões sobre masculinidade e feminilidade, provenientes do Movimento
Feminista, já estavam a todo vapor em países europeus e nos Estados Unidos, e o cinema e a
literatura não escapam de sua influência.

(...) Não é possível pensar em criação artística ou literária sem pensar na


cultura na qual estão imersas. Desse ponto de vista, pode-se pensar em
literatura feminina e literatura masculina, levando-se em consideração que a
estrutura social dos anos 30 aos 50 fazia especial distinção entre o
comportamento do homem e o comportamento da mulher. Existem
peculiaridades entre os modos de narrar femininos e os modos de narrar
masculinos. (COELHO apud CERDEIRA, 2000: 37).

Num interessante jogo de influências mútuas, o cinema se inspira na vida urbana da


sociedade, enquanto esta adquiria hábitos vividos na ficção. Percebia-se o amadurecimento
das condições para a formação de uma nova concepção de mulher, sendo a indústria
cinematográfica essencial para mudar a imagem do feminino, retratando desde os modelos da
mulher tradicional até a transgressora, que vem caracterizar a ‘nova mulher’. (CERDEIRA,
2000, p.39).
32

Entretanto, a dominação patriarcal ainda era fortemente retratada nas manifestações


culturais como um todo. Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert, é um exemplo de
como boa parte dos autores ainda viam as mulheres. A protagonista, Emma Bovary, em meio
à banalidade de seu cotidiano, encarna os valores alienados da cultura de massa. Ela nutria um
gosto por livros fúteis, descritos por Flaubert (1856), como tratando de “(...) florestas
sombrias, problemas amorosos, juras, soluções, lágrimas e beijos, botes ao clarão da lua,
rouxinóis em bosques (...)” (FLAUBERT apud SELLIER, 2002, p.2). A descrição irônica
poderia ser aplicada aos produtos cinematográficos destinados ao público feminino
(melodramas e comédias sentimentais), que foram apelidados de women’s films (filmes de
mulheres).

As análises fílmicas, a partir da ótica de gênero, desenvolveram-se inicialmente


‘dentro’ do Movimento Feminista e tiveram como primeiro alvo Hollywood. A acusação,
fundamentada na Psicanálise, era de que o cinema hollywoodiano era um lugar de construção
da dominação masculina sobre as mulheres, transformadas em fetiche. Prazer Visual e
Cinema Narrativo16, da teórica britânica, Laura Mulvey, considerado por muitos, o texto
inaugural da crítica cinematográfica feminista contemporânea, foi um dos que fizeram uso da
teoria psicanalítica para analisar a questão sexual e de gênero na produção hollywoodiana.

Mulvey utilizava os conceitos de fetichismo e de voyeurismo para analisar o cinema


como um dispositivo construído sobre e por um olhar masculino, transformando o corpo da
mulher em objeto fragmentado, condenando o público feminino a uma espécie de
esquizofrenia, enquanto lhe é negado o lugar de sujeito do desejo, do saber ou do poder.
(SELLIER, 2002, p.4). Segundo sua crítica, os papéis sexuais estão claramente demarcados:
as mulheres recebem o rótulo de “passiva”, “masoquista”, “exibicionista”, “fetiche”, “objeto”,
em contraposição aos símbolos representacionais para os homens como os donos do olhar,
possuidores da vontade, objetivo da câmera, etc.

Os gender studies (estudos de gênero), portanto, ofereceram uma releitura dos


clássicos cinematográficos, fazendo-se perceber as mudanças de abordagem com o decorrer
dos anos, ao retratar homens e mulheres. Numa rápida apresentação, podemos rememorar os
modelos masculinos e femininos de Hollywood, através das décadas, a partir da chamada
‘época de ouro’, a década de 30.

16
Publicado na revista mítica Screen
33

Esta década está dividida em dois momentos marcantes para o cinema: antes e depois
de 1933. A primeira parte, que se trata dos resquícios dos anos 20, época da maior
libertinagem sexual da história até o então momento, sofrerá mudanças geradas
principalmente devido ao código de censura da época. No geral, os modelos femininos deste
período não são modelos de beleza física, mas mulheres com muita atitude. O modelo
masculino era o de aventureiro, macho e bem dotado fisicamente, como o galã Cary Grant. As
relações se dão entre um homem honrado e cumpridor de sua palavra, que se casa com uma
mulher inocente e recatada, que só deve se mostrar desnuda na intimidade com o marido.

Depois de 1933, as exigências da censura aumentaram a pressão sobre os estúdios,


fazendo com que estes modificassem os aspectos ligados ao gênero. A depressão de 1929
mostrou sinais de recuperação só a partir de 1933, e a fome, em certa medida, ajudou a mudar
os olhares dos espectadores e as escalas de valores. Seria uma nova idade da inocência, onde
se destacam meninas como Shirley Temple e Elizabeth Taylor. O modelo feminino de heroína
era de mulheres comuns, nas quais eram enfatizadas beleza física e sensualidade.

A Segunda Guerra Mundial acaba com esta idade da inocência. E junto com estas
mulheres existiu um modelo feminino onde se mesclava beleza e uma certa dose de atitude,
como os vividos por Vivian Leigh, Greta Garbo, Ingrid Bergman, entre outras. Elas não são
deusas, mas são fortes e mantêm uma frieza aparente que se desfaz ao ser conquistadas por
um homem, como Clark Gable, Humphrey Bogart. Homens que não eram muitos bonitos,
mas com atitude suficiente para serem irresistíveis. Gone with the Wind (E o vento levou...,
1939) é um exemplo de um filme marcante para se perceber este retrato das relações: há uma
mulher charmosa, que tem de se preocupar exageradamente com o físico (usando apertado
espartilho), amar seu país e não ter muito caráter para poder se casar.

O modelo de mulher que não é dona-de-casa, é aquela que para vencer num mundo
de homens, tem de abrir mão de sua vaidade para ser uma igual. Mas frágil por natureza, por
mais que resista, logo se apaixona por aquele homem conhecedor da alma feminina. Os
homens necessitam de mulheres mais frágeis para reafirmar sua virilidade, e para que um
homem mostre sua sensibilidade, é necessário que uma mulher o abrande.

A Segunda Guerra Mundial foi um evento que transcendeu todos os âmbitos da vida
norte-americana e mundial. No cinema, isto aparece nos homens da década de 40, que deviam
ser heróis, com armas e na vida. E nas mulheres, que deviam ser fortes para apoiá-los.
Ressurgem modelos de mulheres bonitas e inocentes, anteriores a 1933, por um lado, e por
outro, deusas ou mulheres fatais. A mulher boa e forte perdia terreno para se tornar objeto
34

inocente e troféu que cai aos pés dos homens que voltam da guerra. Os homens mantêm e
acentuam o estereótipo de rudes e feios, como Clark Gable e Humphrey Bogart.

Como os homens passavam anos fora, na Guerra, surge o tema da infidelidade. São
homens que perdem a esposa para um mais atencioso ou mulheres que amam o marido
incondicionalmente e acima de qualquer traição. Começa a se falar de alternativas ao
matrimônio monogâmico e eterno. Impõe-se a dicotomia mulher inocente X mulher fatal: em
Blood and Sand (1941), Linda Darnell, como Carmem, é carinhosa, tímida e está
completamente apaixonada e Rita Hayworth, como Dona Sol, é sensual, desinibida,
progressista, quer dominar o melhor toureiro da Espanha, que por sua vez, é casado.

Nas décadas de 50 e 60, em substituição aos heróis dos anos 30 e 40, aparecem anti-
heróis, representados por rebeldes sem causa, pistoleiros, vagabundos rudes e estúpidos. A
vida era representada como um jogo, onde não havia ganhadores. O modelo masculino da
década de 50 se afasta mais dos estereótipos e os rudes galãs vão cedendo lugar a
protagonistas mais belos, como Gregory Peck e Tony Curtis. Mas além destes, existiam
também os charmosos e perigosos, como James Dean e Marlon Brando, que tanto atraíam as
mulheres.

Estas, por sua vez, dividiam-se entre as deusas e as infantis. As primeiras se


destacavam na figura de Marilyn Monroe, mas também tinha representantes importantes,
como Sofia Loren. Estas eram mulheres exuberantes, sensuais e sedutoras, mas tolas e
inocentes. E este era o padrão de beleza para as mulheres desta década. Já aquelas infantis
eram mulheres muito jovens, com corpo franzino, mas que desenvolveram atrativos físicos
precocemente, porém continuavam sendo meninas, igualmente inocentes. Audrey Herpburn é
a melhor representante deste modelo.

Na década de 60, já se fala mais abertamente sobre sexualidade e o cinema


hollywoodiano usa como fórmula a combinação de beleza, violência, sexo e nudez. No
entanto, apesar de começar a se tratar de maneira mais profunda os dramas humanos, temas da
atualidade, como hippies, drogas, rock e as revoltas anti-guerra do Vietnã, dificilmente
apareciam nos roteiros de filmes. O modelo de homem é geralmente o de bom moço rebelde,
seguro de si, determinado, capaz de saber o que é melhor para sua mulher.

As comédias românticas eram menos reais e traziam triângulos amorosos, em que


dois homens disputavam o amor de uma mulher, tendo esta algum poder de decisão, mas
quem tem a decisão definitiva são ainda os homens, pois esta seria o prêmio do ‘melhor’ entre
35

os dois. O modelo de mulher sensual começa a perder espaço para a mulher ameninada e
erotizada, como a provocante Lolita (1962), de Stanley Kubrick. O modelo de casal ideal das
comédias românticas dos anos 60 é constituído por Rock Hudson e Doris Day.
Completamente estereotipado, o homem é viril, conquistador e experiente e as mulheres
inocentes, femininas e tipicamente norte-americanas.

A inocência retorna nos anos 70, contrastada com a realidade de drogas e


promiscuidade sexual. As mulheres começam a conseguir, pelo menos em teoria, uma certa
igualdade com o mundo masculino. Homens e mulheres representam ideais de beleza física,
enquanto surgem tipos masculinos um tanto feminilizados e andróginos. Além destes, dois
modelos de homens são freqüentes: um macho man ou latin lover, com bigode e pelos no
peito, e os conquistadores de corações com ímpetos passionais.

As mulheres desta década eram esguias e, apesar de inocentes, começam a freqüentar


a universidade massivamente. Também os homens da geração yupie, colocavam o sacrifício
individual por uma carreira à frente de uma vida afetiva, o que foi mudando com o tempo. O
amor se mostra o elemento mais importante da vida em filmes como Love Story (1970) – o
filho de um rico magnata larga tudo para viver o amor com uma mulher que sofre de câncer –,
onde mensagens como a de que o ‘amor vence tudo’ eram freqüentes.

Last Tango in Paris (O Último Tango em Paris, 1972) vem romper com este tipo de
relação ideal, apresentando um relacionamento apenas baseado no desejo e na paixão, que
sem romantismo, estaria fadado ao fracasso. Ainda nesta década, temas como a
homossexualidade começam a ser tratados sem uma vinculação obrigatória a risos e dramas.
Surge uma nova representação de erotismo com Brooke Shields, uma menina que desde os 10
anos já trabalhava em papéis sensuais como o de The Blue Lagoon (A Lagoa Azul, 1980),
onde isolada numa ilha deserta com um garoto de sua idade, vai conhecer os prazeres sexuais
e as dificuldades de uma vida a dois.

As relações entre os casais, nos anos 80, vão perdendo o caráter de idealismo, para se
tornar mais conflitivos, verídicos e neuróticos. Encontros amorosos que começam em festas
de trabalho que vão parar na cama e a infidelidade são temas a se discutir, em tempos de
AIDS. 9 ½ Weeks (Nove e Meia Semanas de Amor, 1986) é uma espécie de versão moderna
da relação atípica e autodestrutiva apresentada em Last Tango in Paris, mas agora se trata de
uma mulher que tem sua entediante rotina transformada pelas brincadeiras e emoções
prazerosas de um homem, que por sua vez é um perverso-obsessivo, que na verdade, não é
capaz de se relacionar da maneira tradicional.
36

Os homens se apresentam sob dois aspectos: os de grandes músculos, poucas


palavras e grandes êxitos, como os interpretados por Silvester Stallone e Arnold
Schwarzenegger; e aqueles com atitudes de galãs, como Michael Douglas. Além destes, há
ainda o tipo sofrido, intelectual, mas perdedor, como os criados e interpretados por Wood
Allen. As mulheres têm corpos esbeltos, proporcionais e busto maior que antes. O maior
requisito de beleza é a cor do cabelo: deviam ser loiras, como Daryl Hanna, Kim Basinger e
Kathleen Turner.

As mulheres dos anos 90 têm corpos trabalhados e o busto avantajado. Surge uma
nova Marylin Monroe: Pámela Anderson. O modelo masculino másculo perde enfoque e se
atualizam em homens como Mel Gibson e Bruce Willis. O homem perde sua qualidade de
macho, como Magnum, muito comum nos anos 80, e passa a ser mais delicado, sensível e
compreensivo, como em The Bridges of Madison County (As Pontes de Madison, 1995),
capaz de amar fortemente uma mulher. Vão desaparecendo os galãs conquistadores, dando
lugar a homens capazes de compartilhar uma vida de igual para igual com uma mulher,
participando na criação dos filhos e divisão de tarefas, sem grandes conflitos, ao menos
aparentemente.

Assim, como desaparecem os modelos viris, surgem os de grande beleza, e mesmo


com traços femininos, como Brad Pitt, River Phoenix, Leonardo Di Caprio. A mulher, sem
esquecer da maternidade, procura novos horizontes numa carreira profissional. Mas o êxito
profissional pode corromper uma mulher, como em Disclosure (Assédio Sexual, 1994). As
grandes histórias de amor idealizado desta década são The Inglish Pacient (O Paciente Inglês,
1996) e Titanic (1997), onde a infidelidade das mulheres se dá por impulso, em favor do amor
verdadeiro e impossível, ao contrário de em Casablanca (1942), onde os protagonistas têm de
escolher entre o amor e o dever, e Rick opta por este último.

Portanto, tanto os gêneros masculino e feminino, quanto as relações entre parceiros


vão se tornando, em regra geral, mais reais e menos estereotipadas. Os homens, aos poucos
vão demonstrando seu lado humano e dócil, e já não são infalíveis conquistadores, mas
companheiros, que dividem tarefas, com as mulheres, dentro e fora de casa. A
heterossexualidade não é mais a única opção e os casamentos não são mais obrigatórios, e
nem para toda a vida. As mulheres talvez tenham mudado mais. Não estão mais divididas
entre boa e más e passam de objeto de desejo passivo a sujeito que deseja, como pessoas mais
independentes.
37

Com ares de cultura superior, as universidades francesas continuaram não olhando


para o fato da ausência de mulheres, por tanto tempo, na tradição literária e artística do País. É
um paradoxo, pois na França, as mulheres têm acesso a um sistema de auxílio público para
produzir, que é único no mundo, mesmo assim a questão do gênero permanece tabu, numa
clara tendenciosidade política:

Sem subestimar a dimensão política desta resistência por parte dos universitários
masculinos, é necessário constatar que a idéia de um ‘singularidade francesa’ nas relações
entre os sexos é largamente partilhada pelas elites intelectuais na França. Singularidade das
relações sexuadas na vida social, incentivada por relações de sedução, que nos permitiria fazer
economia de uma ‘guerra de sexos’ à americana, particularmente nefasta para a elite
cultivada, se coloca em questão as hierarquias culturais. A resistência dos gender studies, em
geral, e aos sexual politics (estudos das relações de poder entre os sexos), em particular,
encontra assim suas origens na França, em uma história das idéias em que se misturam
inextricavelmente o político e o cultural. (SELLIER, 2002, p.3-4)

Sandy Flitterman-Lewis (1996), em To Desire Differently: Feminism and the French


Cinema, a partir de uma releitura sexuada que era feita dos autores consagrados pela cinefilia,
articula as perspectivas histórica, semiológica e psicanalítica, para examinar a obra de três
cineastas francesas, negligenciadas pela história do cinema. Cada uma delas participou de um
dos três grandes momentos da construção do cinema francês como alternativa ao dominante
de Hollywood. São elas: Germaine Dulac, nos anos 20, Marie Epstein, nos 30 e Agnès Varda,
nos 60.

Em Germaine Dulac, como nos demais cineastas da chamada “primeira vanguarda”


dos anos 20, Lewis percebe a descrição de uma mulher-dona-de-casa burguesa, que para se
liberar, usa a imaginação fantasiosa. Em La Saviante Madame Beudet (1922), ela usa uma
intriga que serve de pretexto para explorar a subjetividade feminina. Já em Marie Epstein, a
partir de sua película La Maternalle (1934), que conta a história da pequena Maria, adotada
por uma prostituta, percebe-se, através do amor da protagonista por uma assistente do jardim-
de-infância, a encenação do traumatismo da cena primitiva17 de um ponto de vista feminino,
invertendo a trajetória edipiana18 masculina do cinema hollywoodiano. (ibidem, p.5).

17
A chamada Cena Primitiva ou Cena Originária é, segundo Laplanche, a cena da relação sexual entre os pais,
observada ou suposta segundo determinados indícios e fantasiada pela criança. Geralmente, é interpretada pela
criança como uma violência por parte do pai
18
ler nota 8
38

Mas é com a leitura da obra de Agnès Varda, “mãe da nouvelle vague”, quando
Lewis analisa Cléo de 5 a 7 (1963) e Sans Toit ni Loi (1986), que este acredita que a mulher
vai passar do status de objeto do olhar ao de sujeito. A cineasta se interroga, por meio da crise
pessoal sofrida pela protagonista Cléo (ela acredita ter câncer), sobre a maneira como o
cinema transformou as mulheres em imagens. Na segunda película, conforme Lewis, Varda
desconstrói os mitos românticos de liberdade masculina e da mulher misteriosa. Através da
narrativa dos últimos dias de uma jovem (cuja falta de estabilidade social se articula a uma
ausência de imagem própria, levando-a à autodestruição) encontrada morta numa vala,
oferece a renúncia de transformar a personagem e o corpo feminino em objeto sexual.

Além destas demonstrações de mudança na abordagem de gênero do cinema francês,


com destaque para a nouvelle vague e autores como François Truffaut, Jean-Luc Godard e
Jean Renoir, percebe-se um outro foco de produção cinematográfica na Itália. Com seu neo-
realismo, representado por Michelangelo Antonioni, Frederico Fellini, Marco Bellochio, as
mulheres também se sentiam estimuladas a se identificar com as personagens femininas, que
retratavam as interrogações existenciais e a angústia de toda uma geração, sobre liberdade,
amor e sexo.

Truffaut, um dos fundadores da nouvelle vague, retrata a educação sentimental de um


jovem, Antoine Doinel, numa série de quatro filmes: Les Quatre Cents Coups (Os
Incompreendidos, 1959), Antoine e Colette (1962), Baisers Volés (Beijos Roubados, 1968) e
Domicile Conjugal (Domicílio Conjugal, 1970). Ele demonstra ainda sua fascinação pelo
amor e pelas mulheres em A Noite Americana – quando um dos personagens pergunta a outro
se as mulheres são mágicas – L'Histoire d'Adèle H. (A História de Adele H., 1975), La Mariée
Etait En Noir (A Noiva Estava de Preto, 1967) – que conta a história de uma obcecada e
misteriosa mulher, vestida sempre de negro, que deixa cadáveres masculinos em seu caminho
– e A Sereia do Mississipe, entre outros.

Nana (1926), considerado por muitos o mais importante filme mudo de Renoir, está
totalmente focalizado em torno da frenética agitação da protagonista. Demonstrando
sensibilidade ao abordar o gênero feminino, em La Chienne (A Cadela, 1931), o cineasta
recusa a divisão simplória entre ‘bons’ e ‘maus’, base de todo o cinema clássico
hollywoodiano. Desta última película, foi feita uma refilmagem em 1945, sob o título de
Scarlett Street, e direção de Fritz Lang.

Antonioni discute as relações entre casais misturando amor e morte em seu primeiro
filme de ficção, Cronaca di un Amore (Escândalo de Amor, 1950), onde dois antigos amantes
39

se reencontram e terminam novamente se separando. Seu último filme, Identificazione Di Una


Donna (Identificação de uma Mulher, 1982), mostra um cineasta à procura de uma atriz para
seu próximo filme que materialize a mulher de suas fantasias, pois pensava que com ela viria
a inspiração para o roteiro, mas após uma série de acontecimentos, ele não encontra sua
história de amor nem para o filme nem para a vida.

Na mistura entre fantasia e realidade, Fellini mostra em Amacord (1974), um homem


no alto de uma imensa árvore bradando durante horas: “quero uma mulher”. Em 8 e ½ (1963),
o cineasta apresenta um caricatural e burguês diretor de cinema, que utiliza a esposa como
confessionário de seu sentimento de culpa.

Tradicionalmente, a representação feminina no cinema espanhol tem se definido,


através de uma perspectiva masculina, como objeto sexual, principalmente durante os anos
em que Franco esteve no poder. Neste período, os valores patriarcais eram os únicos que
ditavam modelos aceitáveis e isto se refletia num cinema, onde os homens eram detentores do
discurso simbólico dominante e as mulheres seguidoras deste discurso. Com o decorrer de
décadas, estes conceitos estereotipizantes tradicionais, aos poucos, foram sendo desafiados e
redefinidos, para construir os chamados “homem novo” e “mulher nova”. Com isto, foi-se
dando vazão a uma série de temas, que mais do que comuns, tornaram-se extremamente
freqüentes, como o do sexo.

Nos últimos anos, na Espanha, a sexualidade tem tido grande evidência. Há uma
variedade nos enredos, desde Entre las Piernas (Entre as Pernas, 1998), onde Victoria Abril e
Javier Bardem interpretam dois viciados em sexo, a Lucía y el Sexo (Lúcia e o Sexo, 2001),
em que toda a iniciativa do relacionamento parte da mulher, seja Lúcia ou a babá de Luna,
filha de Lorenzo, que por sua vez é criada só pela mãe. O cineasta espanhol que mais incita
discussão sobre as relações de gênero é, sem dúvida, Pedro Almodóvar. Mas esta perspectiva
de abordagem contestadora, tanto social, quanto política, de que ele tanto se vale não se dá
por acaso, mas se deve muito a todo um contexto de mudanças de comportamento social e
político do País, nas últimas décadas, como o fim do regime franquista.
40

2. A obra do cineasta

2. 1 A Espanha de Almodóvar

Um país cercado por ele mesmo, praticamente sem contato com o mundo exterior.
Assim era a Espanha dos tempos de Guerra Civil e Ditadura Franquista. A Constituição de
1931, cujo texto descrevia o desejo de fazer da Espanha uma “república democrática para os
trabalhadores de todas as classes”, trouxe à nação drásticas reformas – separação entre Igreja
e Estado; Regime Parlamentarista; voto universal, inclusive para mulheres e soldados;
abolição dos títulos de nobreza; implantação do divórcio, entre outras –, que foram barradas
pela violência generalizada de greves e rebeliões e nem chegaram a se efetivar.

Neste contexto turbulento, o Exército foi fundamental na oposição ao governo


republicano, e generais, como Francisco Franco, avaliavam a possibilidade de um golpe
militar. Em Madrid e Barcelona, as forças de segurança, ajudadas pelo governo, derrotaram os
rebeldes e, enquanto os republicanos dominavam as principais cidades industriais, os
nacionalistas tinham o controle das zonas agrícolas, o que veio a provocar uma grave carência
de alimentos na zona republicana.

Francisco Franco foi escolhido Chefe de Estado e Comandante Supremo, pela recém-
formada Junta de Defesa Nacional, e estabeleceu um governo provisório em Burgos, em
1938. As tropas franquistas receberam apoio da Alemanha nazista e da Itália fascista,
confirmando sua superioridade e conquistando diversas regiões. Já os republicanos tiveram
grande ajuda da então União Soviética e do México, mas em abril de 1937, aviões alemães,
em apoio aos nacionalistas, bombardearam a cidade basca de Guernica, provocando a revolta
da opinião pública mundial.

Logo depois desta, que foi a maior tragédia da Guerra Civil Espanhola, os
nacionalistas venceram os republicanos, numa batalha, em Brunete. Madrid estava devastada
e castigada pela fome. Mais de meio milhão de pessoas morreram em combate e outras
incontáveis, por fome, desnutrição e doenças, provocadas pela Guerra. Após três anos, é
declarado o fim do conflito e instaurado o regime franquista. Francisco Franco se torna Chefe
de Estado de um país arruinado, com sua população dizimada nos campos de batalha.

O Governo Franquista, sem opositores, mantém-se no poder e anula as reformas mais


radicais da época, proclama o Estado oficialmente católico, cria o partido único Falange,
proscreve todas as organizações políticas e sindicais não oficiais e copia os modelos
41

totalitários dos regimes italiano e alemão. Em 1950, a Guerra Fria favorece a situação de
Franco, que passa a ter o apoio de governos ocidentais e ingressa na Organização das Nações
Unidas.

Somente na década de 50, o País, que ainda vivia uma grave escassez de produtos
básicos, começa a recuperar os níveis de produção anteriores à Guerra Civil. Na Catalunha,
aos poucos vai sendo formada uma indústria moderna de produção têxtil. Além desta, a partir
da exportação de ferro, empresários bascos criam uma potente indústria siderúrgica e uma
moderna frota mercante. É dado o início para a grande concentração industrial em Madrid. Na
década de 60, o País experimenta um intenso desenvolvimento econômico, favorecido pela
expansiva conjuntura européia, os investimentos estrangeiros e as divisas proporcionadas por
milhões de turistas e imigrantes.

O gigantesco complexo turístico da costa mediterrânea do País, e dos Arquipélagos


dos Baleares e das Canárias, criado nesta época, tinha como aliados o bom clima, com sol
quase o ano inteiro, preços razoáveis e a vizinhança com os países mais desenvolvidos da
Europa. Com isso, já na década de 80, o número de visitantes seguia em ritmo crescente e
ultrapassava o total da população.

Com o desenvolvimento econômico nos anos 60, beneficiando todas as camadas da


população, há uma visível redução das desigualdades sociais, tanto no campo quanto nas
cidades. O esperado crescimento demográfico das décadas de 50 e 60 é brecado pelo uso de
métodos anticoncepcionais e a crise econômica dos anos 70. Com a morte de Franco, Juan
Carlos I é proclamado rei da Espanha, em 22 de novembro de 1975. Não houve grande
oposição, pois ao longo destas quatro décadas, os aspectos mais totalitários do regime
ditatorial foram sendo amenizados. É elaborada a Constituição de 1978, pelo Parlamento,
eleito democraticamente.

No início dos anos 80, um novo golpe de estado fracassa e novas eleições são
disputadas. O Partido Socialista Operário teve maioria absoluta e, apesar de decepcionar os
partidários mais radicais, ainda obteve vitória nas três eleições seguintes. Apesar do
crescimento do desemprego, que já atingia cerca de 20% da população, o Governo conseguiu
manter uma certa estabilidade econômica e, em 1986, a Espanha se torna membro efetivo da
Comunidade Econômica Européia. No final da década, o País era social e politicamente
estável – mas abalado por tendências desagregadoras surgidas em algumas nacionalidades,
mais precisamente no País Basco, onde uma minoria buscava a independência nacional – e já
42

era considerado desenvolvido, apesar de continuar mantendo uma certa distância do padrão
dos países europeus mais desenvolvidos, devido principalmente à tardia expansão industrial.

A Espanha produziu nomes que compõem a história artística mundial, como os


escritores e dramaturgos Miguel de Cervantes, Lope de Veja (ambos do século XVI, chamado
“Século de Ouro”) e Frederico Garcia Lorca (da Geração de 27, que levou a lírica espanhola à
máxima altura); os pintores Pablo Picasso, Juan Miró e Salvador Dali. A cultura espanhola, no
pós-guerra, abre-se plenamente às corrente intelectuais européias e mundiais, e sem
abandonar suas características e peculiaridades de cada nacionalidade – como as famosas
touradas e a música flamenca –, diversifica-se ainda mais na década de 80. A literatura,
bastante influenciada pela Hispano-América, adquire forte dinamismo e o cinema, apesar do
precário suporte industrial, apresentou obras brilhantes, graças a diretores como Luis Buñuel,
Luis Garcia Berlanga, Juan Antônio Bardem, Carlos Saura e Manuel Gutiérrez Aragon.

Segundo SADOUL (1983), a produção cinematográfica se reiniciou, em Madri, com


o estabelecimento do regime ditatorial de Franco, quando foram produzidos mais de 50
filmes, em 1942, e durante os anos seguintes, seguiu-se uma média de 40 a 50 longas-
metragens por ano. Porém, desde o fim da Guerra Civil, a maioria da produção, na Espanha,
ou era uma explícita celebração da vitória franquista e da defesa dos valores do poder, ou era
composta por filmes demagógicos e comédias escapistas. Após 1950, o cinema espanhol,
assim como toda a vida intelectual do País, foi-se transformando graças ao surgimento de uma
nova geração, que viveu os tempos de guerra civil e acabou por trazer para as telas um
espírito novo, sedento por mudanças.

Em 1951, José Antônio Nieves Conde lança Surcos e foge ao padrão conformista. O
filme contava o drama de uma família camponesa que buscava uma nova vida na cidade, onde
encontra uma série de dificuldades, como o oportunismo, o mercado negro, a pobreza e a
prostituição. Mas é com Muerte de um Ciclista (A Morte de Um Ciclista) de Juan Antônio
Bardem, em 1955, que se costuma indicar como o ponto de partida do renascimento do
cinema espanhol. Este sofreu a influência do neo-realismo italiano, muito demonstrado neste
filme, que é, de uma certa forma, uma variação da obra de Antonioni, Cronaca di Um Amor
(Crônica de um Amor, 1950) que encena os problemas psicológicos e afetivos de
representantes da alta burguesia. Mas a severa crítica à Espanha provinciana, fez com que
Bardem, que era ligado à esquerda, tivesse diversos problemas com as autoridades espanholas
e chegasse a ser preso durante as filmagens.
43

SADOUL (1983) comenta que de 1960 em diante, surgiram vários jovens


idealizadores, com vontade de tratar assuntos contemporâneos, e estes já não eram reprimidos
pela severa vigilância da censura e por tantas limitações econômicas. Para ele, quem
realmente abre o caminho para este novo cinema, é Carlos Saura, com Los Golfos (1959),
onde era mostrada a realidade madrilenha por meio da observação de jovens transviados. Mas
Saura teve de esperar cinco anos para fazer seu próximo filme, Llanto por um Bandido
(1964), em que Luis Buñuel interpreta um carrasco numa seqüência que foi cortada pela
censura.

Buñuel foi outra vítima do regime franquista. Ele se refugiou nos Estados Unidos e,
no ano de 1946, foi para o México, onde voltou a filmar e produzir as obras primas Los
Olvidados (1950) e Nazarin (1958). Em 1961, lança Viridiana, obra anticlerical rodada em
plena ditadura de Franco e que foi proibida na Espanha, mesmo ganhando a Palma de Ouro
em Cannes, depois de ser atacada pelo Vaticano. Até hoje o filme é considerado por muitos
críticos de cinema como um dos 100 melhores de todos os tempos. Ele realiza em seguida El
Angel Exterminador (O Anjo Exterminador, 1962), onde faz uma severa crítica aos valores
burgueses.

Em sua fase européia, Buñuel volta a criticar a Igreja, a hipocrisia moral dos
burgueses e o poder constituído com os filmes O Estranho Caminho de Santiago (1969),
Tristana (1970), El Discreto Encanto de la Burgesía (O Discreto Charme da Burguesia,
1972), El Fantasma de la Libertad (O Fantasma da Liberdade, 1972) e seu último filme, Ese
Oscuro Objeto del Deseo (Esse Obscuro Objeto de Desejo, 1977). Neste, um chauvinista se
apaixona por sua empregada e tenta conquistar um amor que parece, além de impossível,
incompreensível.

Dá-se início, então, a uma Espanha livre, e acima de tudo, sedenta por liberdade de
expressão. A decepção trazida pela Revolução Social dos anos 60, que pouco impacto causou
à vida espanhola, era transformada em nova esperança, criatividade e rebeldia, pelo
Movimento de Contracultura, que efervescia a noite madrilenha no início dos anos 80.
Batizado de “La Movida” (O Movimento), pela imprensa espanhola, era através do
movimento, que esta nova sensação de liberdade era canalizada a todos, por meio de artistas
como Pedro Almodóvar.
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2.2 A vida de Almodóvar

A Madri que exportou o trabalho de Almodóvar na década de 80 era extremamente


diferente da que o recebeu no final dos anos 60. O cineasta, que chega à cidade em 1968, sem
dinheiro, sem família, sem emprego e sem conhecimento da profissão, conta no documentário
Tudo Sobre Desejo – O Cinema Passional de Pedro Almodóvar, que sabia de sua vocação
para contar histórias através das telas, mas fazer suas primeiras produções foi algo quase
milagroso, se forem levadas em conta as condições em que nasceu, viveu e foi morar em
Madri.

Pedro Almodóvar nasceu em 25 de setembro de 1951, em plena ditadura franquista,


na pequena cidade rural de Calzada de Calatrava, província de Ciudad Real, em Castilla La
Mancha, no coração da Espanha. Em fins dos anos 50, a família se mudou para uma
cidadezinha ainda mais afastada, chamada Madrigalejo, na província de Cáceres, onde seu pai
foi trabalhar em um posto de gasolina. Matriculado em um colégio interno cercado de padres
salesianos, e depois franciscanos, viveu seu primeiro amor adolescente com um colega. Sua
má educação religiosa contribuiu para que perdesse a fé em Deus e, nesta época, sua maior
atividade era ir compulsivamente ao cinema de Cáceres. O diretor diz que precisa “de um
sinal de que Deus” o ama acima de tudo, de uma prova de amor, para então lhe corresponder.

Suas primeiras impressões artísticas foram a pintura, que abandonou aos 11 anos, e a
literatura. Começou a escrever aos 8 anos e aos 9 já ganhou um prêmio literário. Em 1967,
após concluir os estudos, convenceu o pai a deixá-lo ir morar sozinho em Madri, pois sua mãe
ficara sabendo de uma vaga de trabalho na Companhia Telefônica. E aos dezesseis anos,
instala-se em Madri, com um objetivo certo: estudar para fazer cinema. Como não podia se
matricular na Escola Oficial de Cinema, fechada há pouco pelo General Franco, tem de
aprender a fazer filmes na prática.

Almodóvar preenchia seu tempo freqüentando grupos de teatro, galerias de arte e


viajando sempre que possível para Barcelona, point da vanguarda na época. Em 1973,
consegue finalmente comprar sua câmera Super 8 e passa a realizar, até 1978, curtas em
preto-e-branco, que são exibido em festas, bares e boates de Madri e Barcelona. Ele mesmo
narrava as histórias, os diálogos e até cantava. Pelos próximos anos, o espanhol levaria uma
vida dupla. Durante o dia trabalhava na Companhia Telefônica Nacional da Espanha e, à
noite, escrevia e dirigia curtas. Ele permaneceria ainda por 12 anos, como auxiliar
administrativo desta empresa.
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Seus curtas tratavam basicamente de sexualidade. São eles: Dos putas o Historia de
Amor que Termina em Boda (1974), Film Político (1974), El Sueño o la Estrela (1975),
Homenaje (1975), La Caída de Sodoma (1975), Blancor (1975), Sea Caritativo (1976),
Muerte em la Carretera (1976), Sexo Vá, Sexo Viene (1977), Salomé (1978),
Folle...Folle...Fólleme Tim (1978).

A relação de Almodóvar com sua mãe era de cumplicidade. Além de gostar de contar
histórias, contava-as muito bem desde menino, fazendo com que as irmãs preferissem que ele
narrasse os filmes, com suas eventuais modificações, a assisti-los. Desde muito cedo o
ambiente feminino em que cresceu e a proximidade com a mãe fizeram com que ele se
inspirasse para criar seus inúmeros personagens femininos e conquistasse a futura fama de um
“diretor de mulheres”.

O contato com os dramas e misérias da classe média espanhola, no início da ‘época


do consumo’, era também grande fonte de inspiração para suas criações. No final dos anos 70,
o cineasta escreveu roteiros de fotonovelas e colaborou com revistas underground, com
relatos e pontos de vista sobre sua realidade. Ele combinou suas primeiras atividades no
cinema com seus escritos, como uma curta novela Fuego en las Entrañas (Fogo nas
Entranhas, 1982) e uma fotonovela pornô Toda Tuya, além de várias colaborações para
jornais e revistas, como El País, Diário 16 e La Luna. Para esta última, Almodóvar cria um
personagem feminino chamado Patty Diphusa, que dá conselhos sentimentais e cujas
memórias são publicadas periodicamente.

Almodóvar declarou que entre tantos personagens femininos, este é um dos seus
favoritos. Patty Diphusa é extremamente otimista, com tiradas do tipo: “pelo menos quando
me violentaram não estava chovendo!”. Ela é verborrágica, engraçada, sincera e destila suas
piadas em quem estiver ao alcance. Numa fala confessional do polêmico livro Patty Diphusa,
o diretor escreve: “Desprezo a moral habitual e toda essa gente que é capaz de classificar o
mundo entre bons e maus”. O texto é escrito com o ritmo da fala cotidiana, e abusa de todo e
qualquer meio textual para dirigir a entonação do leitor, como se este estivesse ouvindo
diretamente a própria personagem.

Nesta época, o espanhol entra para o prestigiado grupo de teatro Los Goliardos e
passa também a interpretar pequenos papéis no teatro profissional, onde conhece Carmen
Maura. Com Fábio McNamara, ele cria um grupo de punk-rock, no qual se travestem de
mulher para parodiar a própria realidade. Segundo Almodóvar, o ambiente que ele
freqüentava neste momento e sua vontade infinita de fazer um filme custasse o que custasse,
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resultou em seu primeiro longa-metragem comercial, Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del
Montón, que em princípio era um curta de 20 minutos, chamado Ereciones Generales.

Com a ajuda dos amigos do teatro, Carmem Maura e Félix Rotaeta, conseguiu
realizar Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón, em 1980. Os três, durante os finais de
semana, iam buscar patrocínio e uma equipe de voluntários para a realização da película, que
custou meio milhão de pesetas (moeda espanhola) e demorou mais de um ano para ser rodado.
O filme causou polêmica entre a crítica, mas teve sucesso entre o público, permanecendo por
quatro anos nas sessões noturnas dos Cines Alphaville de Madri e transformando Almodóvar
em um novo ícone do movimento madrilenho.

O diretor explica que o filme é “uma história sobre seres humanos fortes e
vulneráveis que se entregam à paixão, que sofrem o amor e se divertem”. O roteiro desta
ácida comédia, que foi escrito em 1978, foi influenciado pela agressiva ideologia punk,
representada pelo personagem Bom, interpretado por Olvido “Alaska” Gara. Carmen Maura
vive Pepi, Félix Rotaeta é um policial, Eva Sica, Luci, e Cecília Roth, com quem Almodóvar
continuará trabalhando em muitos outros filmes, é a apresentadora, e o próprio cineasta faz o
papel de Chico. Nesta película são abordados abertamente temas como drogas, sexo e
sadomasoquismo feminino.

Foram as próprias salas Alphaville que produziram a próxima película de


Almodóvar, Laberinto de Pasiones (Labirinto de Paixões, 1982). Como em quase todos seus
filmes posteriores, Madri é o pano de fundo para suas histórias. Neste, a cidade é representada
no final dos anos 70 e início dos 80, com sua particular “Movida”. “Cresci, gozei, sofri,
engordei e me desenvolvi em Madri. E muitas destas coisas, realizei ao mesmo tempo em que
a cidade. Minha vida e minhas películas estão ligadas à Madri como duas faces de uma
moeda”, diz o cineasta. O filme conta a história do filho homossexual do imperador do Tirã,
que se envolve com um terrorista gay, mas depois acaba se apaixonando pela ninfomaníaca
Sexília (Cecília Roth). Quando ele chega à “cidade mais divertida do mundo”, Madri, dá-se
início a um círculo de conspirações islâmicas, incestuosas, ninfomaníacas e dezenas de
histórias delirantes, mas quase todas com final feliz.

A partir de então, Almodóvar passa a fazer um filme por ano e o próximo é Entre
Tinieblas (Maus Hábitos, 1983). Na película, que foi produzida pela produtora Tesauro, ele
aborda pela primeira vez o tema da religião, que aparecerá em muitas de suas obras
posteriores. A personagem principal se chama Yolanda Bell (Cristina Sánchez Pascual), uma
jovem cantora de bolero que usa drogas e tem sua vida constantemente exposta ao perigo. Ela
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presencia a overdose de heroína do namorado, que o leva à morte, após ter misturado a droga
com a estricnina que ela havia levado, acabando com uma relação de dependência e
destruição que havia entre eles. Assustada, ela decide desaparecer e se esconde no convento
das Redentoras Humilhadas, cuja Madre Superiora (Julieta Serrano) a admira e já tinha ido
vê-la cantar. A cantora começa a reviver com a Madre o mesmo tipo de relação destrutiva que
tinha com o namorado e uma série de acontecimentos passa a envolver os membros da
comunidade religiosa, numa severa crítica à Igreja.

No ano seguinte, ele roda o que, na definição de seu site oficial, foi seu filme mais
naturalista e social: ¿Qué he Hecho yo para Merecer Esto? (Que Fiz para Merecer Isto?,
1984). Uma tragicomédia que conta os dramas e misérias da vida cotidiana de uma humilde
dona de casa, Glória, interpretada por Carmen Maura. Na Madri dos anos 70, as dificuldades
de uma família pobre formada por uma mãe faxineira, um pai taxista, que sonha com uma
decadente cantora alemã, um filho que vende drogas e outro que se prostitui, além da avó que
raciona alimentos para vendê-los à própria família.

Em 1985, com Matador, Almodóvar divide, pela primeira vez, a autoria de um


roteiro de cinema. Compartilhando os créditos com o escritor Jesús Ferrero e, inspirando-se
no estilo de Hitchcock, o cineasta realiza uma verdadeira fábula sobre a morte, o sexo e a
culpa, causando muita polêmica na Espanha. Um ex-toureiro, Diego (Nacho Martínez), que
tem de abandonar a profissão, devido a um grave acidente no trabalho, sente um desejo
impulsivo de matar suas amantes. Angel (Antônio Bandeiras), um rapaz criado por sua mãe
sob uma rígida disciplina religiosa, é seu aluno no curso para ser toureiro. Com forte
sentimento de culpa por ter tentado violentar a namorada de seu mestre e a partir das visões
que teve de assassinatos, assume-se culpado por estes. A advogada Maria (Assumpta Serna)
fará a defesa de Angel e compartilhará uma paixão assassina com Diego, na qual os dois
tirarão um a vida do outro.

Beneficiando-se da Lei de Pilar Miró, de 1983, o cineasta e seu irmão mais novo
Agustín, criam, em 1985, uma produtora própria, “El Deseo”. La Ley del Deseo (A Lei do
Desejo, 1986), seu próximo filme, teve dificuldades para receber ajudas oficiais e se torna o
primeiro produzido por eles, talvez por isto, perceba-se uma extrema liberdade de criação.
Tina (Carmen Maura), que mantinha relações sexuais com o pai e nunca mais teve nenhum
outro homem, mudou de sexo há uns 20 anos e agora é ‘a irmã’ de Pablo (Eusébio Poncela).
Com Tina, vive a filha de uma modelo, que nutre uma paixão infantil por Pablo. Este, por sua
vez, está apaixonado por Juan (Miguel Molina), mas se envolve com o possessivo Antônio
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(vivido por Antônio Bandeiras), que provoca a morte de Juan, chantageia Tina e termina por
se matar.

Em Tudo Sobre Desejo ..., Almodóvar assume ser a maior realização de sua vida, ter
se tornado diretor de cinema, “porque era algo tão difícil como ser toureiro no Japão”. “O
cinema deu forma e propósito à minha vida, deu-me um caminho a seguir. Acho que sem essa
vocação eu estaria completamente perdido, talvez morto”, completa. Mas o diretor, que passa
a ser conhecido pelo seu estilo kitsch, suas cores berrantes e mulheres fortes, acredita que a
arte da fazer cinema não possa ser ensinada. Para ele, “é preciso descobrir sozinho como fazer
filmes, sem ter medo de, no primeiro, não saber onde colocar a câmera. Pouco a pouco, vai se
familiarizando com a imagem e se interessando por ela e não só pela história, mas pelo modo
de contá-la. Então fazer cinema é algo que se aprende, não dá para ensinar”.

No ano de 1987, Almodóvar atinge projeção internacional quando seu filme Mujeres
al Borde de un Ataque de Nervios (Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos) é indicado ao
Oscar de melhor filme estrangeiro. Nas palavras do próprio diretor, este foi catapultado sobre
o público do mundo com o sucesso do filme. A película, que chega a receber até 50 prêmios
nacionais e internacionais, marca o fim de sua parceria com a atriz Carmen Maura, sem que
fosse divulgado o motivo. Talvez percebendo em que o cineasta tirou inspiração para o roteiro
(as comédias americanas dos anos 60), os Estados Unidos compraram os direitos do filme e
decidiram refilmá-lo. Isto aconteceria pela primeira vez com um filme espanhol, mas não
chegou a se concretizar.

No filme, Pepa (Carmen Maura) e Ivan (Fernando Guillén) são dubladores de


cinema. Ao ouvir uma mensagem em sua secretária eletrônica, Pepa fica sabendo que seu
relacionamento de anos fora rompido por Ivan e que deve preparar uma mala com as coisas de
seu agora ex-amante. Pepa tenta de todas as formas falar com ele, sem sucesso, até que aos
poucos, sua casa vai ficando cheia: são policiais, uma amiga, pessoas querendo alugar a casa,
a esposa neurótica de Ivan. E uma série de acontecimentos, que envolvem loucura, amor,
paixão, tentativa de assassinato, solidão, vai se revelando.

Uma parada é dada em 1988, ano em que Almodóvar viaja incessantemente, tanto
para divulgação de seu filme, como a turismo. E uma nova parceria nasceria em 1989, com
Victoria Abril, em ¡Átame! (Ata-me) O enredo gira em torno de Rick (Antônio Bandeiras),
que é órfão desde os três anos, e passou a vida indo de uma instituição a outra. Quando
completa 23 anos, sai de um centro psiquiátrico e tem um dia e uma noite para realizar um
triplo projeto: encontrar uma mulher, formar uma família e conseguir um trabalho. Mas o
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personagem encontra como solução usar a força física e seqüestra Marina (Vitória Abril) para
propor-lhe de modo inocente e imaturo, que seja sua mulher e mãe de seus filhos. Após dias
presa, ela acaba se apaixonando por ele.

Nos Estados Unidos, ¡Átame! foi acompanhado por uma grande polêmica, quando o
órgão encarregado pela qualificação das películas, a Motion Pictures Association of América
(MPAA), tarjou-o com a marca X de impróprio. Com o apoio da Miramax, a distribuidora do
filme no País, Almodóvar e outros artistas iniciaram uma batalha legal, que resultou numa
nova qualificação. O código NC17 indicava que a obra era de natureza explícita, e não mais
pornográfica.

Ainda durante as filmagens de ¡Átame!, Almodóvar inicia o roteiro de Tacones


Lejanos (De Salto Alto), que é rodado em 1991. Como protagonistas, o filme tem duas das
estrelas que mais trabalharam com o cineasta, Marisa Paredes e Victória Abril, que
interpretam, respectivamente mãe e filha. Vivendo à sombra da mãe, Becky Del Páramo (uma
famosa cantora que opta pela carreira deixando a filha pequena com o pai), Rebeca se casa
com o ex-amante dela e após seu retorno à cidade, mata-o. O juiz Dominguez (Miguel Bose),
que é apaixonado por Rebeca e se traveste do personagem ‘Fatal’ para interpretar Becky,
começa a investigar o caso. Mas a culpada pelo crime só é realmente conhecida no final,
quando Becky, em seu leito de morte, assume a culpa, para livrar a filha da acusação.

No início, como era de se esperar de uma sociedade fechada sob uma ditadura por
tantos anos, Almodóvar provocou muita polêmica e foi extremamente criticado por suas
películas recheadas de sexo. Mas à medida que o diretor ganha notoriedade, a crítica
espanhola passa a condená-lo também por ter criado, à custa de escândalos e jogadas de
mídia, um mundo particular e de mentira, descrito em seus filmes, que vende ao restante do
mundo como se fosse a Espanha.

Seu estilo tornou-se inconfundível. Melodramas que se misturam a comédias dentro


de um mesmo filme. Tratando de temas polêmicos com bastante bom humor, PAIVA (2000)
considera que Almodóvar tenha rompido com o rigor trágico das introspecções psicológicas
tratadas nas obras de Fassbinder e Truffaut, que transitaram por temáticas similares às dele.
Para esta autora, os personagens de Almodóvar são frutos de uma Espanha livre do fantasma
do “pai” autoritário, comum nas obras de Saura, e o tom alegre e subversivo de sua obra se
deve principalmente à Movida Madrilenha, além de muitas outras influências:
50

Dono de um estilo narrativo bastante peculiar, arraigado na estética pop da


década de 1960 e no underground americano, o cineasta utiliza em seu
cinema elementos da arte de Andy Warhol e Roy Lichtenstein,
respectivamente, quando acrescenta à montagem os cartoons e o aspecto
fragmentário do comic. Do cinema de Luis Buñuel, resgata o surrealismo,
definido pelo próprio diretor como o lado irracional de sua obra
cinematográfica. Outra característica marcante na obra do diretor manchego
é a influência da Escola Neo-realista, (...) criada na Itália em 1940. (PAIVA,
2000, p.1)

Em 1993, o diretor surge com outra produção, Kika, em que cada personagem
representa um gênero cinematográfico e novamente os males e manias da sociedade são
dissecados. Kika (Verônica Forqué), uma maquiadora muito alegre e ingênua, vive com
Ramón (Alex Casanova), um fotógrafo obcecado pela morte da mãe. A protagonista tem uma
amiga chamada Amparo (Anabel Alonso) que a trai, uma máscula empregada (Rossy de
Palma), que está apaixonada por ela, uma inimiga, Andréa ‘Caracortada’ (que é a
inescrupulosa apresentadora de um reality show, sendo interpretada por Victoria Abril), e está
tendo um caso com o padrasto de Ramón. O irmão da empregada, Paul Bazzo (Santiago
Lajusticia), um ex-ator de filme pornô e fugitivo da prisão, vai pedir ajuda à irmã e ao
encontrar Kika dormindo, violenta-a. Finalmente Ramón descobre que a mãe fora morta pelo
padrasto, que é morto por Andréa e Kika decide deixar Ramón e aproveitar a vida.

La Flor de mi Secreto (A Flor do Meu Segredo) é lançado em 1995. Nele, novamente


Marisa Paredes atua como protagonista, interpretando Leo Macias, uma escritora, que assina
com o pseudônimo de Amanda Gris. Por contrato, ela tem de entregar cinco novelas ao ano,
mas apesar de todo esforço só lhe saem histórias dramáticas devido a sua própria relação com
o marido. Este é militar e participa de uma missão de paz na Bósnia, mas usa as viagens como
desculpa para fugir de um casamento em que não deposita mais amor. Apesar da crise,
incerteza e fragilidade de seu casamento atingirem todos os campos de sua vida, Leo ainda o
defende cegamente e se agarra a qualquer esperança de reconstruí-lo, até saber que sua melhor
amiga tinha um caso com seu marido e conhecer um jornalista que se apaixona por ela (Leo).

Almodóvar não se tornou apenas uma celebridade, mas sua obra e vida passaram a
ser objetos de estudo de diversos trabalhos acadêmicos, bem como tema para muitos livros e
sites da internet. O “Almodovarlândia” é um dos sites onde se encontra até mesmo receitas de
51

comidas que aparecem em algumas das películas do cineasta. Alguns dos livros publicados
sobre ele são: Desire Unlimited: The Cinema of Pedro Almodovar, de Paul Julian Smith; El
Cine de Pedro Almodovar, de Nuria Vidal e Pedro Almodovar, de Antonio Holguin. O
próprio Almodóvar também mantém sites oficiais com dados bibliográficos e informações
sobre suas películas, além de já ter publicados alguns livros, como: Fuego en las Entrañas,
Patty Diphusa e Otros Textos e Cuentos sin Câmara.

Uma das obras do diretor mais aclamadas pela crítica é Carne Trémula (Carne
Trêmula, 1997), que na opinião dele, “é um filme de machões, um filme genital”. Este foi o
primeiro roteiro adaptado por ele, do romance de Ruth Rendell. A película começa ainda na
era franquista, do início dos anos 70, quando a jovem prostituta Isabel Plaza (Penélope Cruz)
começa a sentir contrações e acaba tendo seu bebê a caminho da maternidade, ainda dentro do
ônibus. Passam-se 20 anos e Vitor Plaza (Liberto Rabal) está obcecado pela mulher que tirou
sua virgindade, Elena (Francesca Neri), que não quer vê-lo. Num incidente na casa desta, o
policial David (Javier Bardem) acaba sendo atingido por uma bala, ficando paraplégico e
Vitor é tido como culpado e preso. David se casa com Elena e se torna um grande atleta
paraolímpico, enquanto Vitor sai da prisão e quer vingança. Este inicia um caso com Clara
(Ângela Molina), que se apaixona por ele, mas é casada com o ex-parceiro de David, Sancho
(José Sancho), que foi quem provocou o disparo que o deixou numa cadeira de rodas, para se
vingar por também tê-lo traído com “sua” Clara. No fim, Vitor e Elena acabam ficando
juntos.

Em dezembro de 1998, o governo espanhol anuncia que Pedro Almodóvar será


premiado com a Medalha de Honra ao Mérito das Belas Artes do Governo Espanhol. E em 6
de março de 1999, o diretor recebe um César19 por sua obra completa e anuncia que vai
apresentar sua próxima película, Todo Sobre mi Madre (Tudo Sobre Minha Mãe, 1999), no
Festival de Cannes, na França.

Poucos meses depois da estréia de Todo Sobre mi Madre, em 1999, Almodóvar


perdeu sua mãe. O filme deu ao cineasta o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes, e
também ganhou o Globo de Ouro e Oscar de filme estrangeiro, que dedicou a ela. A película
narra histórias de perdas e recuperações. Manuela (Cecília Roth) perde seu filho, que tanto
queria um autógrafo da atriz Huma Rojo (Marisa Paredes), mas acaba sendo atropelado. A
mãe desconsolada se vê, numa série de coincidências, trabalhando e se tornando amiga de
Huma e, ajudando uma assistente social (Penélope Cruz) que está grávida do travesti Lola
19
O Prêmio César é o equivalente francês ao Oscar de Hollywood.
52

(Tony Cantó), que também era o pai de seu filho. A assistente morre na hora do parto,
deixando seu filho com Manuela, que tem a oportunidade de reviver a maternidade. O nome
do filme se deve ao roteiro de cinema que Esteban (o filho morto), interpretado por Eloi
Azorín, estava escrevendo sobre sua mãe.

Assediado por atores e produtores americanos, o diretor iria filmar, nos Estados
Unidos, o longa-metragem The Paper Boy, uma adaptação de Pete Dexter, mas acabou
desistindo por ainda não considerar que pudesse trabalhar em uma outra língua, num outro
país. Ele voltou à sua terra natal e começou a escrever um novo roteiro, La Mala Educación,
baseado em seu próprio conto não publicado, La Visita. O diretor afirma que esta será a
primeira vez que se confrontará diretamente com suas lembranças, principalmente as da
infância. Apesar de não ser a história de sua vida, tem muito a ver com ela, principalmente
com a educação que teve nos colégios religiosos. É uma película dura, que abordará temas
como a violência sexual de padres contra os alunos.

Devido às dificuldades para encontrar um ator que interpretasse três personagens


distintos, com três tipos físicos diferentes e pelo menos dois sexos, além de um menino que se
parecesse com este ator, o projeto foi adiado. Em junho de 2000, o diretor recebeu o título de
Doutor Honoris Causa, pela Universidade de Castilla-La Mancha. Segundo a opinião do reitor
da Organização, Luis Arroyo, as películas de Almodóvar são muito importantes para o
desenvolvimento da Arte Cinematográfica Espanhola e a qualidade de suas obras supõe um
‘antes e depois’ na história cinematográfica.

Hable con Ella (Fale com Ela, 2002), que entre outros prêmios, ganhou o Globo de
Ouro de Filme Estrangeiro e o Oscar de melhor Roteiro Original, fala de amizade,
sensibilidade e comunicação. A história gira em torno de Benigno (Javier Cámara), um
enfermeiro, apaixonado pela aluna de balé Alicia (Leonor Watling). Esta sofre um acidente
que a deixa em coma e sob os cuidados dele. Uma forte amizade se desenvolverá entre o
enfermeiro e o jornalista Marco (Dario Randinetti), que também tem sua namorada, a toureira
Lydia (Rosário Flores), na mesma situação em que se encontra Alicia. Benigno estupra Alicia
e é preso, cometendo suicídio na cadeia. Enquanto Alicia, com o choque do parto, perde o
bebê, mas desperta do coma. Esta dramática película causou muita discussão por seus
protagonistas serem homens, já que Almodóvar por tanto tempo foi considerado um “diretor
de mulheres”.
53

2.3 A abordagem de gênero em Almodóvar

Prostitutas, freiras, mães, atrizes, cantoras. São tantas as mulheres de Almodóvar, que
já se tornou até clichê falar delas. O cineasta diz aceitar o rótulo de ‘diretor de mulheres’
apenas por educação, mas confessa ter escrito mais papéis femininos que masculinos ou
neutros, e encontrado mais atrizes que atores talentosos, além de estes lhe inspirarem dramas,
enquanto afirma que aquelas lhe inspiram comédias – um de seus traços mais marcantes.
Enfim, o que se tem percebido ao longo de sua obra, é uma grande sensibilidade para tratar
temas tanto relativos aos gêneros masculino ou feminino, mas na medida do que poderíamos
chamar de um questionamento em relação à diferença entre eles.

É evidente a força das protagonistas das películas de Pedro Almodóvar. Enquanto


seus homens são inocentes ou procuram fazer mal às mulheres. Para contrariar a fama que
tem, o diretor costuma citar como exemplos de filmes seus que envolvam temas e
protagonistas masculinos, Carne Trémula e Matador, apesar de nestes, os homens
aparecerem, em geral, como frágeis em algum aspecto, enquanto as mulheres tomam as
decisões. Sobre o primeiro, Almodóvar diz que “é um filme testicular, por assim dizer, mas
estou mais interessado em homens que estão começando a ser homens como Victor em Carne
Trémula ou Rick em ¡Átame!. Não consigo me imaginar escrevendo sobre homens de 30 anos
e seus problemas com as namoradas”.

A sexualidade é tema sempre fundamental em suas películas, no entanto, não são


poucos os personagens masculinos que ainda estão se iniciando na vida sexual. A exemplo de
Victor, de Carne Trémula, que se apaixona e faz sua vida girar em torno da mulher com
quem, numa noite casual, perdeu a virgindade, está Antônio, de La Ley Del Deseo – o filme
de Almodóvar em que todos os personagens principais são homens, inclusive a personagem
de Camen Maura – o transexual Tina.

Antônio também se apaixona por seu primeiro amor, Pablo. Mas neste caso, chega a
desistir de sua vida por ele, cometendo suicídio, porque sabe que será preso e não mais poderá
ter Pablo só para si, como queria. Tal qual Antônio, está Benigno, em Hable con Ella, que
viveu sempre a cuidar de duas mulheres, primeiro a mãe e depois a paciente Alicia. Mas ao se
ver na cadeia, longe da segunda, percebe que sua vida não mais faz sentido e se mata. Seriam
os ‘projetos de homem’ que Almodóvar estaria retratando?

Em Matador, Almodóvar contrasta o também frágil, inocente e submisso à mãe,


Angel, com Diego Montes, seu mestre. Este último seria o homem que Angel se empenhava –
54

talvez numa não admitida homossexualidade – em ser, um famoso toureiro – ícone máximo
da masculinidade na Espanha. Mas Diego, que seria um homem crescido, apresenta uma
peculiaridade costumeiramente presente em outros filmes do diretor, a violência. O toureiro
mata suas amantes, excitando-se justamente com a destruição de seu objeto de prazer. A
película se inicia com Diego se masturbando ao assistir a cenas de mulheres sendo trucidadas.

Em outra cena do mesmo Matador, a atração do toureiro pela necrofilia e a


momentânea superioridade masculina ficam explícitas quando ele pede à Eva, sua namorada,
que se finja de morta para que ele possa ter um orgasmo. Neste momento, Diego usurpa o
direito feminino de sentir prazer, pois a passividade de Eva é fator primordial para o gozo
solitário e absoluto dele. Mas será uma outra mulher quem fará Diego retornar de sua
superioridade, pois terá seu mesmo instinto assassino.

Independente, liberal e de forte personalidade, a advogada Maria Cardenal, seria o


‘outro feminino’ de Diego Montes. Mais do que em qualquer de suas outras películas,
Almodóvar destaca nesta a fragilidade da diferença sexual entre homens e mulheres. No
filme, o gozo feminino, se não transpõe os domínios daquele masculino, no mínimo, equipara-
se a ele. A fetichização20 é invertida, pois é Maria quem além de ter seu alfinete – usado para
matar seus amantes – como um objeto de poder, coleciona peças pessoais e de tauromaquia,
roubadas da casa de Diego ou compradas em exposições.

O suposto triângulo amoroso visa, segundo o próprio diretor, a eliminação das


diferenças sexuais. Segundo Almodóvar, o romance entre o toureiro e a advogada não
constitui uma relação heterossexual, mas entre seres de uma mesma espécie. Em dois
momentos, a intenção do cineasta fica clara. O primeiro é quando Diego e Maria se encontram
no banheiro masculino do cinema onde está sendo projetada a película Duelo ao Sol (1946) –
filme que preconiza o destino dos amantes. Ao ser interrogada sobre o que faz no banheiro
dos homens, Maria aconselha Diego que “não acredite nas aparências”. Neste instante, a
imagem dos dois é condensada no espelho do banheiro.

Num outro momento, Maria e Diego conversam sobre o desejo que os dois sentem
em matar seus parceiros sexuais. Travando o seguinte diálogo, Diego explica porque não
consegue deixar de matar, passando dos touros às mulheres:

20
O fetiche é uma perversão atribuída ao ser masculino como forma de denegar a castração através da
substituição do sexo feminino por objetos
55

Diego: --- Porque deixar de matar era como deixar de viver.

Maria: --- Os homens pensam que matar é um delito. As mulheres não pensam assim. Todo
criminoso tem algo de feminino.

Diego: --- E a assassina de masculino.

O que deve ser observado portanto, não é o sexo do personagem, mas suas
características em geral, que aparecem ora numa estereotipização, ora numa referência aos
conceitos generalizados de feminino e masculino. Melhor dizendo, a partir de uma construção
cultural de formação destes conceitos, Almodóvar transmite, através de seus personagens,
independentes de ser homem ou mulher, o quanto confuso e contraditório é atribuir esta ou
aquela peculiaridade a um dos gêneros.

A força que as mulheres de Almodóvar têm em relação aos homens pode ser
equivalente ao uso da violência por estes, para dominá-las. Pois, os homens aparecerem em
diversas de suas películas, fazendo mal às mulheres, através do uso da força física – como são
os casos de Paul Bazzo estuprando Kika, no filme homônimo; Rick seqüestrando Marina, em
¡Átame!; Victor ameaçando Elena com uma arma, em Carne Trémula; Benigno estuprando
Alicia, em Hable com Ella; Angel tentando estuprar Eva e Diego matando suas amantes, em
Matador.

Mas talvez, por ser a forma que estes homens encontraram de ser fortes, ou de
expressar seu amor ou desejo, por diversas vezes, a violência masculina é colocada por
Almodóvar, como um ato perdoável, por provavelmente estar ligado à própria fragilidade. São
exemplos o estupro de Alicia por Benigno (Hable com Ella) e o seqüestro de Marina por Rick
(¡Átame!). Este casal demonstra, através de diversos diálogos, as freqüentes estereotipizações
apresentadas pelo diretor, ao longo de sua obra.

O homem é visto primeiro como quem não controla seus impulsos sexuais, quem
deve honrar sua palavra e, como o encarregado de prover a família, protegendo a mulher e
depois os filhos, tanto física quanto materialmente:

Marina: --- Você só quer trepar comigo, não é? Portanto seja rápido e saia logo.

Rick: --- Treparemos na hora certa.


56

Marina: --- O que você quer?

Rick: --- Tentei falar, mas você não deixou, então a raptei para conhecê-la melhor. Eu sei que
você gostará de mim como eu gosto de você. Tenho 23 anos, 50 pesetas e estou só no mundo.
Tentarei ser um bom marido e um bom pai.

(...)

Rick: Prometi que a protegeria.

Marina: Muitos já prometeram isso.

Rick: Mas eu voltei para provar.

Almodóvar parece não ter medo de estereótipos na medida em que deseja mostrar o
que é popularmente conhecido, sem encobrir ou mascarar nenhum detalhe. Seguiu chocando o
mundo não apenas com suas películas repletas de sexo, mas também por seus constantes
questionamentos sobre a sexualidade. Personagens homossexuais, travestis e transexuais estão
presentes em praticamente todas os seus filmes. Sobre o filme Filadélfia (1993), que trata
sobre um casal homossexual, em que um dos parceiros tem Aids, Almodóvar, em entrevista à
Folha de São Paulo (1994), diz: “Acho que Jonathan Demme foi vítima do modo como os
estúdios de Hollywood tratam determinados temas, como o homossexualismo e a Aids. É
como se dissessem: ‘Vamos falar de um personagem homossexual, mas sem que pareça
homossexual’”.

Assim como qualquer outro personagem almodovariano, os homossexuais também


aparecem sob forte estereotipia, mas devem geralmente ser olhados como donos de um certo
traço de força e sapiência. Seja a madre superiora de Entre Tinieblas, que se apaixona por
suas protegidas e enfrenta a dor de perdê-las; a encantadora travesti Agrado de Todo Sobre mi
Madre, que de tão talentosa, é procurada até mesmo por heterossexuais para serem satisfeitos
sexualmente; ou o juiz Dominguez de Tacones Lejanos, que interpreta o travesti Fatal, para
apurar dados em uma investigação. A estética do travestismo parece inserir nos filmes de
Almodóvar uma certa ironia pós-moderna que lhe permite transcender as tradicionais
representações do masculino e feminino.

As mulheres de Almodóvar, por serem muitas, não escapam desta rotulação


caricatural, pelo contrário, dão espaço aos mais diferentes e expressivos tipos. São
fofoqueiras, sentimentais, neuróticas, protetoras, intriguistas, submissas, lutadoras. Mas é
57

muito provável que o diretor tenha realmente uma paixão pelo universo feminino, não por
suas qualidades, mas porque cresceu rodeado por ele, no convívio com a mãe e as irmãs:
“Minha mãe representou as melhores qualidades que exploro e adoro nas minhas
personagens: autonomia, independência, força; foi dela que herdei o senso de humor, ousadia
e determinação”, diz.

Muito criticado pelo tom folclórico de seus personagens, Almodóvar também estaria
munido de um outro aspecto: o de filmar mulheres como se fosse uma mulher? Como
resultado de uma pesquisa feita pela belga Marie Mandy, para seu documentário Filmar el
Deseo (2000) , a respeito de como são filmados as mulheres e seus desejos, ficou-se sabendo
que as européias, americanas e canadenses, em geral, focalizam suas respostas em um maior
ou menor afastamento da perspectiva de gênero. Elas afirmam que o cinema feito por
mulheres trata o desejo e o corpo de forma diferente: é enfatizada a nudez completa e não
apenas nas zonas erógenas; mostrando o prazer sexual das mulheres e não somente dos
homens; e destacando que qualquer apropriação do corpo é ideológica21.

Apesar do diretor, por vezes, irritar-se ao lhe perguntarem por que dá preferência a
personagens femininos em suas tramas, ele diz não ver razão para ter de dar explicações para
isso. Mas freqüentemente lhe é sugada uma resposta: “As mulheres são mais divertidas, têm
mais capacidade de surpreender; elas são criticadas por conversar sobre moda e decoração,
mas acho os detalhes interessantes e, além disso, elas não têm
22
vergonha, contam para as amigas todas as suas intimidades”.

Fato é que os temas femininos são tanto mais freqüentes quanto mais fortes e
determinantes. A começar por em algumas películas, os poucos homens que aparecem serem
meros coadjuvantes; inexpressivos na trama. Isto ocorre em Entre Tinieblas, Mujeres al
Borde de um Ataque de Nervios e Todo Sobre mi Madre, e em menor grau, em Tacones
Lejanos e La Flor de mi Secreto, onde os maridos das protagonistas de ambos e um novo
homem que lhes aparece têm influência em suas vidas – porém a existência dos maridos,
como um passado, e dos novos homens, como um futuro, só tem sentido enquanto ligados a
mulheres.

Em Entre Tinieblas, o padre apenas se faz notado quando assume seu amor por uma
das freiras do convento, que confessa amá-lo. Já enquanto o namorado de Yolanda Bell morre
de overdose, esta consegue se reerguer, fazendo um show para a Madre Superiora e deixando

21
CHALER, 2002, p.1
22
Depoimento no documentário Tudo Sobre Desejo – O cine Passional de Pedro Almodóvar.
58

o convento para finalmente voltar a viver. Neste mesmo filme, vários tipos inusitados
aparecem: a fútil marquesa, que encerra as doações ao convento; o triunfo da irmã Rata, que
se torna uma escritora de sucesso, mas pára de escrever quando percebe que sua irmã é a
única que usufrui dele; a salvação da irmã Esterco, que era assassina, mas agora tem de cuidar
da Madre Superiora, que apesar de forte, tem sua derrocada quando perde mais uma de suas
‘meninas’, com quem mantinha uma doentia relação de drogas, amor platônico e
autodestruição.

Já em Tacones Lejanos, o enredo gira em torno da relação entre mãe e filha,


respectivamente Becky e Rebeca. A medição de forças é entre as duas. A mãe é o que a filha
gostaria e passa a vida tentando ser – uma pessoa de sucesso e personalidade. As duas
conseguem vencer todas as adversidades para conquistarem o que queriam: Becky queria
reconquistar a filha e fazer por ela o que deveria ter feito ao longo de tantos anos, e Rebeca
queria fazer algo sem que ficasse na mediocridade, à sombra da mãe. A mãe, em seu leito de
morte, salva a filha de ser novamente presa e esta, que tinha conseguido se casar e depois
matar o ex-marido da mãe, pode recomeçar sua vida ao lado de um homem que realmente a
ama, vencendo tal qual sua mãe.

La Flor de Mi Secreto é um exemplo de como uma mulher pode ser bem sucedida,
mas de quanto pode vir à ruína por causa do amor por um homem. Almodóvar fala sobre a
traição em vários sentidos, seja quando a romancista, Leo, é traída por seu marido com sua
melhor amiga – situação que também aparece em Kika –, seja quando trai a si própria, no
desejo de salvar um casamento que há muito já não tem solução, sem querer enxergar que
Paco já não a ama. Leo consegue se reerguer e está pronta para formar uma nova vida com um
novo homem; o jornalista que a admira profissional e pessoalmente. Vitória que Leo
consegue, inclusive com a ajuda da amiga que abdica do romance em nome da amizade.

A sexualidade feminina não é tabu nas películas de Almodóvar. As mulheres


aparecem como detentoras de desejo, assim como os homens, sendo capazes de cometer atos
extremos para realizá-los. Um exemplo disto é Carne Trémula, que Almodóvar diz ser um
filme de machões, mas os três homens que o protagonizam são: o inocente Victor, que é
iniciado sexualmente por Elena e depois ensinado, por Clara a dar prazer a uma mulher; o ex-
policial David, apesar de se tornar um campeão de basquete, fica paraplégico e termina sem
sua mulher; e o companheiro de David, Sancho, que é traído pela segunda vez por sua mulher,
mas prefere morrer a viver sem ela.
59

Nesta película, apesar de os dois primeiros homens conseguirem obter sucesso em


alguns aspectos, as necessidades sexuais das mulheres prevalecem; são elas que traem seus
maridos e é delas a escolha final. É justamente o aspecto sexual que move Laberinto de
Pasiones, onde Sexília e sua psicóloga são ninfomaníacas, enquanto o pai daquela é averso ao
sexo, contrariando o mito de que a mulher está ligada ao sentimento enquanto o homem ao
sexo. Almodóvar inclui o tema do incesto na cena em que o pai de Sexília perde a antiga
aversão a tomar umas pílulas e fazer sexo com a filha, e em outra cena em que um senhor,
dono de uma lavanderia, tomava estas mesmas pílulas, chegando a confundir a filha com sua
esposa, e mantém relações sexuais com sua própria filha. Numa, a mulher comanda, na outra
é comandada.

Alguns outros aspectos relacionados ao gênero são tanto contraditórios, que parecem
críticas ou questionamentos. Tina, a transexual de La Ley Del Deseo, é um homem que,
violentado por outro homem, deseja se transformar em mulher. Poderíamos pensar na inveja
masculina em relação à mulher. Por que ele ia querer teoricamente se tornar mais fraco e não
mais forte, para conseguir se defender de outros que lhe aparecessem?

Em uma outra ocasião, poderíamos chamar uma das cenas de Matador de anti-
feminista, quando Angel vai à delegacia confessar um estupro e a recepcionista diz: “Existem
mulheres que têm sorte!”. Talvez os impulsos que fizeram com que esta frase fosse dita,
tenham sido os mesmo que fizeram com que Eva, uma moça independente em tudo, fosse
completamente submissa a Diego, o matador.

Em meio a uma mistura de ironia, comédia e tragédia, as mulheres são estereotipadas


ao extremo em muitos dos filmes do cineasta. Kika apresenta tipos bem distintos, ou quase
opostos, de mulher. A protagonista homônima é inocente e espevitada, enquanto Andréa
Caracortada é esperta e inescrupulosa. Kika é vítima de toda sorte de acontecimentos, entre
ser traída por sua amiga (a traidora), manter um caso com um homem que matou sua ex-
mulher (a sofredora), ser o objeto de amor de sua empregada (a trabalhadora), ser estuprada e
ter de suportar o voyeurismo de seu marido. E apesar de tudo isto, procura olhar a vida com
otimismo e consegue deixar todas estas coisas para trás, seguindo seus próprios desejos.

Almodóvar ao mesmo tempo em que apresenta estes tipos caricaturais, critica a


forma como o homem e a mulher são vistos dentro de uma tradição de valores e
convencionalismos sociais vigentes. Ele mostra que ambos os sexos têm necessidades e
insatisfações na relação com o outro. São diferentes, porém não opostos. Apesar de
completamente distintos nos estereótipos presentes na trama, dois dos filmes de Almodóvar
60

em que ele discute basicamente a problemática feminina foram o que o impulsionaram à


carreira internacional, Mujeres al Borde de um Ataque de Nervios, e o que lhe rendeu seu
primeiro Oscar, Todo Sobre mi Madre, ganhando o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro.

2.4. As mulheres de Almodóvar

2.4.1. Mujeres al Borde de um Ataque de Nervios

A temática principal da película gira em torno das frustrações que as mulheres têm
com o sexo oposto. Logo de início, ainda na apresentação dos créditos, as fragmentações e
confusões do mundo feminino que aparecerão ao longo do filme, são ilustradas através da
fragmentação do corpo de uma mulher em várias partes, como na forma de uma colagem. Esta
seqüência desemboca em um corpo feminino inteiro ao lado de uma mariposa, o que significa
as transformações e a evolução por que as mulheres deste filme experimentarão. As imagens
são acompanhadas pela canção Soy Infeliz, que conta a história de três mulheres infelizes –
enredo do filme.

Pepa (Carmen Maura) está grávida e acaba de ser abandonada por seu amante Iván
(Fernando Guillén). Candela (María Barranco) é amiga dela e está amedrontada por ter tido
uma aventura amorosa com um terrorista xiita. Lúcia (Julieta Serrano) é a enlouquecida
esposa de Iván. As três irão representar as transformações sociais que a Espanha está vivendo
no então contexto do final dos anos 80, momento de surgimento de um “novo homem” e uma
“nova mulher”. Através de uma perspectiva de gênero, Almodóvar apresenta estas mudanças
de conceitos de uma forma desafiadora e redefinidora, desestabilizando os estereótipos
tradicionais.

A personagem da advogada Paulina (Kiti Manver) é parodiada em seus


comportamentos e atitudes que não confirmam esta “nova mulher”. Ela se diz feminista, no
entanto se nega a ajudar Candela, deixando claro não aceitar casos sentimentais. PASTOR
(2002) considera ser a imagem de Paulina a de uma mulher com características masculinas e
um ser com poucas possibilidades de liberar sua subjetividade feminina, devido a sua
insensibilidade e frieza com as outras mulheres. Para ela, com este comportamento a
advogada estaria reivindicando a neutralização de seu sexo.

As atitudes e comportamentos de Pepa estão firmados como eixo principal do filme,


constituindo também os pontos de referência para a construção e delimitação das demais
61

personagens. Apesar de ser uma mulher moderna e independente, dá grande importância à


tradicional unidade familiar, perdendo completamente o controle de si mesma ao ser
abandonada. Ela não consegue a princípio se ver vivendo sem Iván e passa a procurá-lo
incessantemente, iniciando uma obsessão:

Pepa: --- Quero me salvar e salvá-lo23.

Esta Pepa, obsessiva no relacionamento, remete ao estereótipo da mulher


“tradicional”, dependente e sem identidade própria. Mas ao mesmo em que ela está presa a
uma passividade e subordinação, começa a ser construída uma identidade, através da qual ela
pode ser forte e mostrar que tem vontade própria, conscientizando-se de que não mais deve
atender a expectativas sociais, como a de submissão da mulher. Ela diz:

Pepa: --- Passo dois dias recebendo negativas de todo mundo, agora sou eu quem digo que
‘não’!24

Junto a isto, algumas cenas corroboram com a idéia de uma nova mulher, com uma
nova identidade, independente e autônoma. A aparição de Pepa em um comercial de televisão
de sabão OMO, que por si já é uma referência fonética ao masculino e à presença de Ivan,
mostram uma Pepa dona-de-casa completamente diferente da verdadeira. Comercial que
parece representar uma severa crítica ao machismo. A outra cena é a de Pepa queimando os
pertences de seu antigo amante e jogando fora a secretária eletrônica, que “carregava” a voz
dele, já que ele havia terminado o relacionamento por meio de uma mensagem.

PASTOR (2002) enxerga a reação de Pepa de destruir seu próprio apartamento e se


sentir indiferente em relação ao seu trabalho, como se fosse uma desintegração do ser
humano, à medida que a personagem inicia o que ela chama de “atitude aniquilante com
respeito a si mesma”. No entanto, afirma que, aos poucos, Pepa vai se reerguendo, dando
crédito ao lugar que mora (uma cobertura), como símbolo de seu auge enquanto mulher
moderna e independente. Sua liberação e reafirmação como mulher culminará na cena do

23
minha tradução
24
idem
62

aeroporto, em que Iván pede que reate a relação, mas ela lhe dá um contundente ‘não’,
dizendo ser tarde demais.

Esta mesma autora considera que o local escolhido para a cena – o aeroporto – tem
um significado especial: representa o vôo que Pepa faz em seu interior em busca de uma
identidade própria. Assim, ela superaria a perda de uma identidade subjetivamente sexuada. A
decisão de assumir sozinha sua gravidez é uma ação que a define como uma nova mulher,
com segurança suficiente para retornar à sua cobertura, que tem agora um outro significado
para ela: um refúgio desligado de todo o domínio masculino.

Almodóvar parece fazer, neste filme, uma caricatura das características femininas,
através das várias personagens. A respeito das representações das demais mulheres na
película, PASTOR (2002) considera que:

Como Pepa, os outros personagens femininos representam, durante a maior


parte de seu itinerário fílmico, uma ilustração de imagens femininas
estereotipadas (obsessivas, neuróticas e histéricas); desde Lucía e sua
obsessão por matar seu marido Iván a Candela, a amiga neurótica de Pepa.
Estas imagens são construídas com um exacerbado grau de exagero, como
modelos irrisórios que se afastam de uma verdadeira imagem feminina, com
identidade própria. Desta maneira se questionam os estereótipos de formas
de mulher que se perpetuaram tradicionalmente até que perdessem toda a
identidade (PASTOR, 2002, p. 12).25

A personagem de Lucía representa a mulher ultrapassada, dependente da família e


subserviente ao pai, que a reprime, estimulando nesta um comportamento imaturo. Sua
aparência revela muito de sua personalidade: ela usa perucas dos anos 60 e afirma que gosta
de usá-las porque lhe dá a impressão que o tempo não se passou. A personagem estaria presa
em um passado patriarcal, não conseguindo se adaptar aos novos tempos e perpetuando os
valores culturais arraigados, que delegam à mulher um espaço de substrato dentro de uma
ordem de hegemonia masculina.

Além das vestimentas e maquiagem dos anos 60 serem uma forma de Lucía mascarar
a desintegração de sua feminilidade, o vínculo obsessivo e de dependência desta personagem

25
idem
63

com seu marido (Iván) revela a carência de identidade própria que sofre. Ela vai preferir ficar
presa em um Hospital Psiquiátrico, em vez de tentar construir uma nova identidade feminina,
com valores e direitos próprios, livre das amarras patriarcais, simbolizadas por Iván:

Lucía: --- Só me matando conseguirei esquecê-lo.

Com o contraste entre as personagens de Pepa e Lucía, Almodóvar apresenta as


diferenças entre duas gerações distintas de mulheres, conseqüência da evolução por que
passaram nos anos de transição para uma nova Espanha. Os dois personagens que ilustram a
diversidade de identidade masculina são Iván e seu filho Carlos, já que os dois policiais que
aparecem no apartamento de Pepa, representam uma crítica à forma autoritária e repressiva
com que a polícia desempenha suas funções durante a ditadura franquista.

A personagem de Iván significa a influência da tradição patriarcal da sociedade


espanhola, através de suas atitudes de caráter retrógrado. Apesar de pouco aparecer no filme,
causa um efeito devastador na vida de Pepa e Lucía. Sua personalidade é demonstrada por
meio do símbolo de sua profissão: o microfone. Um símbolo fálico que, segundo PASTOR
(2002) mostra que a única maneira que ele consegue encontrar para “penetrar” no mundo
feminino, é por meio de seu falo. Por isso, é um conquistador, precisando trocar de mulher
constantemente, reduzindo-as a objeto sexual.

Uma transgressão nos papéis tradicionais de masculino e feminino é feita quando


Pepa sonha com Ivan, colocando-o no lugar de seu objeto de desejo. O homem-objeto do
imaginário dela aparece num sonho em que Iván representa toda a trajetória do homem da
sociedade patriarcal, quando passa por uma passarela repleta de imagens femininas
estereotipadas, e ao final uma voz de uma mulher um tanto andrógina, que lhe diz: “Te aceito
como é. Vê como é bom!”. Poderíamos dizer que o sonho seria o desejo inconsciente de Pepa
de que seu amante fosse tudo aquilo que não é, ou mesmo uma proposta de eliminação dos
limites culturais entre os sexos.

A imagem de Iván como um Don Juan vai se desfazendo para dar lugar a de um
homem fraco e covarde. Um homem ultrapassado, que fracassou com marido, pai e amante.
Ele deixa para Carlos um bilhete que diz: “De teu pai, que não te merece!”. Através de Carlos,
Almodóvar propõe uma alternativa para o modelo patriarcal masculino, representada pelo
64

“novo homem”. Carlos é um personagem mais sensível e capaz de manter uma relação de
reciprocidade com uma mulher.

Uma outra alternativa de masculinidade seria ilustrada pela figura “móvel” do


taxista. Um ser estranho e kitsch, que não nos deixa claro sua preferência sexual. Ele
demonstra gostos femininos na decoração de seu veículo, além de extrema sensibilidade,
sendo capaz de compartilhar lágrimas com Pepa.

Em Mujeres al Borde de um Ataque de Nervios (1987), Almodóvar demonstra as


dificuldades que cada um dos sexos enfrentam para encontrar sua identidade de gênero e
constituir relações de igual para igual com um parceiro do sexo oposto. O diretor oferece
alternativas para as tradicionais posições de gênero, e mostra que as representações de
feminino e masculino estão mudando, mas ainda há muito o que ser transformado. Mas o
filme chama atenção para a força e o desabrochar da sexualidade feminina.

É a história do processo de desenvolvimento e do triunfo das mulheres como pessoas


com identidade e subjetividade próprias que são demonstrados a todo momento. Pepa decide
assumir sozinha a gravidez, Marisa (Rossy de Palma) descobre a sexualidade quando tem
sozinha – por meio de um sonho – seu primeiro orgasmo, Candela pode iniciar um
relacionamento com um homem que lhe dê atenção e lhe tranqüilize, enquanto Lucía e
Paulina continuam um antigo modelo de dependência das tradicionais definições patriarcais.
Esta última já consegue ser uma mulher profissionalmente independente, mas precisa
emocional e sexualmente de Iván.

Todas estas mulheres formam um laço solidário entre elas, por terem sido vítimas de
um mesmo infortúnio: decepções em relacionamentos com outros homens. Uma rede de
relações que vai resultar em um laço de amizade, proteção, crescimento, sofrimento,
solidariedade e companheirismo, que também é o que move Todo Sobre Mi Madre.

2.4.2. Todo Sobre mi Madre

Um tanto menos caricatural e mais sentimental, parece ser esta película. A amizade e
solidariedade entre as mulheres, a capacidades que estas têm de representar e a maternidade
são os temas que fazem de Todo Sobre mi Madre (1999) uma película extremamente feminina
e emocional. Assim como em Mujeres al Borde de um Ataque de Nervios (1987), a figura de
65

um homem praticamente não aparece, mas causa um grande efeito nas demais personagens, e
é isto que vai gerar todo o conflito da trama. Neste caso, o homem aparece como travesti.

A película nasce a partir de um dos personagens de La Flor de mi Secreto (1995).


Manuela é a enfermeira que aparece no início deste filme, participando das simulações de
médicos que realizam transplantes de órgãos comunicam a morte do filho a uma mãe, pedindo
que ela doe seus órgãos. Mas a escolha do tema parte da visão de Almodóvar de que as
mulheres interpretam melhor que os homens. Provavelmente por isto, ele tenha dedicado o
filme a todas as atrizes do mundo:

Minha idéia a princípio foi fazer um filme sobre a capacidade de atuar de


determinadas pessoas que não são atrizes. De menino, lembro ter visto esta
qualidade nas mulheres de minha família. Finjiam mais e melhor que os
homens. E, à base de mentiras, conseguiam evitar mais de uma tragédia.
Contra este machismo manchego que recordo, talvez agigantado, de minha
infância, mentiam, ocultavam, e deste modo, permitiam que a vida fluísse e
se desenvolvesse, sem que os homens se enterassem nem a obstruíssem. 26

A Manuela (Cecília Roth) de Todo Sobre mi Madre é uma mãe dedicada, que cria
sozinha seu filho Esteban (Eloy Azorín), e é capaz de ir com ele, em dia de chuva, esperar
durante horas por um autógrafo da atriz Huma Rojo (Marisa Paredes). Era o aniversário de
Esteban e ela não podia negar o presente de ele ver sua ídola, já que lhe negava o que ele mais
queria, que era saber sobre seu pai. Mas o jovem tem um fim trágico: é atropelado e morto
antes de conseguir o autógrafo de Huma, que apenas lhe olha através do vidro da janela do
carro. É Manuela agora quem se vê na situação de ter de decidir doar os órgãos de seu filho.
Esta personagem é a própria figura de ‘mãe’ que Almodóvar parece acreditar que deva existir:
uma mulher forte, lutadora, protetora e disposta a ajudar os outros.

O título do filme é uma homenagem a uma outra atriz: Betty Davis, de All About Eve
(A Malvada, 1950). É a partir deste filme, a que Esteban assiste com sua mãe, que ele tem
inspiração para titular o roteiro que está escrevendo para ela. Esta é a primeira de muitas
outras referências sobre à profissão de atriz, durante a película.

26
Tradução de RODRIGUES
66

Huma é a famosa atriz admirada por Esteban. De aparência forte, esconde uma
enorme fragilidade interior. Ela mantém uma relação amorosa com Nina de total dependência,
mas com a ajuda de Manuela, tornar-se-á mais independente. Nina, por sua vez, será
dependente de diversas drogas, além de parecer odiar todas as pessoas. É uma relação
completamente fechada em si, não permitindo que ninguém a conheça profundamente,
penetrando em suas inseguranças, nem mesmo Huma. A relação delas, por vezes, lembra a
relação de mãe e filha, onde uma (Huma) bem mais velha que a outra (Nina), exerce as tarefas
de cuidar, proteger e dizer o que está certo ou errado. Mas nem sempre consegue controlar
certos comportamentos rebeldes, e Nina acaba deixando-a para fugir com um homem.

Um momento muito significativo da película é a interpretação que as duas fazem


juntas na peça A Streetcar Named Desire (Um Bonde Chamado Desejo, 1947), de Tenesse
Williams. Huma interpreta Blanche Du Bois, que na peça termina internada em um Hospital
Psiquiátrico. Porém, Almodóvar nos mostra com esta interpretação, que cada um pode
construir sua vida, além de fazer uma crítica ao patriarcalismo, deixando claro que não se
deve seguir os modelos de homem viril e mulher alienada figurados na peça. Não há nada
predestinado que não se possa mudar, portanto Huma não será Blanche também na vida, mas
sim a sobrevivente Estela. Almodóvar quis abordar por meio da ação das personagens
principais desta película, o que ele considera como “uma solidariedade espontânea entre as
mulheres”, ilustrada numa das falas de Blanche:

Blanche: --- Sempre tenho confiado na bondade dos desconhecidos.

Para a maioria das feministas dos anos 60, segundo FOX-GENOVESE (1992), a
competitividade e a hierarquia dos homens deveria ser substituída pelo igualitarismo não-
competitivo que elas acreditavam caracterizar a política de “irmandade” (sisterhood) entre as
mulheres. A autora afirma que, para estas feministas, a mulher usa uma linguagem diferente
da dos homens e tem concepções diferentes de moralidade, justiça e política, pois a
experiência feminina de compartilhar uma história de opressão e submissão, teria feito com
que desenvolvessem uma irmandade. Esta faria com que elas suportassem a situação e
opusessem resistência, levando a mulher a uma aversão à competição e a valorizar a
reciprocidade e a comunidade.
67

Uma das personagens que atrai a atenção, inevitavelmente, por seu tipo espalhafatoso
e singular, sua irreverência e sua comicidade é Agrado (Antonia San Juan). Seu nome é este
porque faz com que a vida do outros seja agradável. É interpretado por uma atriz, mas no
filme é um travesti que está juntando dinheiro para sua próxima cirurgia: a mudança de sexo.
Numa das noites de apresentação de A Streetcar Named Desire, há uma briga entre Huma e
Nina e o espetáculo é cancelado. Esta será a oportunidade de ele apresentar seu próprio
espetáculo, que nada mais é do que a história de sua vida, repleta de momentos hilários e
cirurgias plásticas.

MATOS (2000) comenta sobre os momentos performáticos da produção do travesti,


onde o “sexo” seria um ideal regulatório, uma categoria normativa, enquanto o “gênero” se
configuraria numa significação social que o sexo assume em determinada cultura. A
personagem Agrado está bem colocada no que ela chama de “generificação”, como sendo um
processo pelo qual, os sujeitos, nas relações de diferenciação, se tornam eles mesmos. Para
esta autora, a materialidade do sexo requer processos identificatórios.

O espetáculo agradou a alguns e não a outros, que se retiraram. Mas o que


Almodóvar ilustra através deste personagem, que tanto já fez para modificar o corpo, é que
temos de mudar o que não gostamos em nós mesmos. O que poderíamos pensar como falta de
identidade e personalidade, apresenta-se como o oposto, pois Agrado é orgulhosa do que é,
gostando de si e se mostrando uma pessoa, independente do sexo que tenha, muito forte e
determinada. O diretor oferece, de uma certa forma, uma subversão da ordem simbólica, onde
masculino e feminino são representados a partir de um discurso dominante, parodiando e
ironizando, através de sua estética do travestismo. Esta, impõe aos seus filmes, uma ironia
pós-moderna, que lhe permite transcender as representações (masculinas e femininas) que
imperam no discurso tradicional.

O tema da maternidade é abordado ao longo de todo o filme. Primeiro através da dor


de perder um filho e da capacidade de a mãe superá-la. Segundo, quando Almodóvar
contrasta a mãe com forte “instinto maternal”, Manuela, com aquela que nunca conseguiu
compreender e dar muita atenção à filha, Rosa (Rosa María Sarda). Com isto, o diretor mostra
que as mulheres vivem a maternidade de maneiras distintas. Podemos nos perguntar, a partir
daí, se ser mãe está inerente à figura da mulher, como forma de obrigatoriedade para uma
realização. BADINTER (1985) fala de como o mito do amor materno foi criado na
modernidade, para suprir interesses burgueses, onde as mulheres passariam a cuidar dos bens
da família, da casa e dos filhos.
68

Manuela terá outras chances de ser mãe novamente e não desperdiçará nenhuma.
Cuidará da irmã Rosa (Penélope Cruz) durante toda sua gravidez, e depois do filho desta. Já
Rosa, parece perceber sua culpa na relação de indiferença que manteve com a filha, de mesmo
nome, quando a vê fraca e doente, morando na casa de Manuela sendo cuidada por uma
estranha e não por ela, que é sua mãe:

Rosa mãe: --- Rosa, não sei o que fazer. O que espera que eu faça?

Irmã Rosa: --- Nada, mãe.

Rosa mãe (triste, mas realista): --- Não espera nada de mim?

Irmã Rosa: --- Não é isso. Quero dizer que não deixe mais difícil!

Ao sair do quarto em que está a filha, Rosa tem uma conversa com Manuela que a
faz se arrepender de não ter dado mais carinho e atenção à filha. Quando Rosa diz a Manuela
que não sabe o que fez de errado para que sua filha parecesse um “extraterrestre”, pergunta à
Manuela se ela tem filhos e se dá-se bem com eles, e esta responde que ele está morto.
Almodóvar parece dizer com isto, que uma mãe sempre terá instinto maternal, mas de forma e
em intensidade diferentes. Além disto, uma má mãe, mereceria algum tipo de punição,
enquanto uma boa mãe; recompensas. Manuela perdeu o filho, mas poderá ser mãe outra vez.

Rosa se mostra uma mulher amarga e preconceituosa. Ela reclama de Manuela por
ter deixado Lola (Tony Canto) beijar seu neto, sem saber que era ele o pai dele. Para
contrastar a amargura e falsidade – seu trabalho é falsificar quadros – representadas por Rosa,
sua filha encarna a bondade das mulheres, trabalhando como assistente social e vivendo para
ajudar os outros – quase todos em situação de risco27. Apesar de ser boa, não se livra de um
triste fim: morre por ter contraído AIDS do pai de seu filho, o travesti Lola.

A personagem de Esteban pai, que aparece travestido de Lola, causa muito


sofrimento à Irmã Rosa e à Manuela, mas lhes dá o que Almodóvar parece querer mostrar
como o melhor do personagem: um filho. Por isso, Manuela chega a dizer que ele tem “o pior
de um homem e o pior de uma mulher”. A paternidade é abordada através deste personagem,
que só ficou sabendo de seu primeiro filho quando ele já estava morto e quando conheceu o

27
Na antiga designação dos ‘grupos de risco’ de ser contaminados pelo vírus HIV, estavam incluídos os
homossexuais, transexuais e usuários de drogas injetáveis, que eram as pessoas ajudadas pela irmã Rosa e suas
companheira
69

segundo, sabia que já não teria tempo de exercer a paternidade, pois estava prestes a morrer,
vítima de AIDS. O segundo Esteban, filho de Manuela, deixava bem claro o quanto o pai lhe
fazia falta. Ele diz:

Esteban: --- Esta noite minha mãe me mostrou uma foto de quando ela era jovem que faltava
a metade. Não quis dizer, mas falta isto também em minha vida.

Um sentimento semelhante tem a Irmã Rosa, a caminho da maternidade, ao encontrar


seu pai, completamente alheio à realidade, devido ao Mal de Alzheimer. Ele não mais lhe
reconhece, e lhe faz diversas perguntas, inclusive, qual o seu nome. Neste momento, chama o
cachorro, dizendo que ele “vai com qualquer um”. Quando Lola conhece seu segundo filho e
Manuela lhe mostra a foto do primeiro, ele fica muito emocionado e pergunta como ela pôde
ter deixado de lhe contar, já que ele sempre quis ter um filho. Ele parece estar pronto agora
para tudo, pois seu filho lhe trouxe a felicidade que lhe faltava. O bebê estava cada vez mais
saudável, e apesar de ter o vírus do HIV, não desenvolve a doença. Ele será a esperança de um
homem melhor do que seu pai foi e a oportunidade de Manuela ser novamente a mãe que
sempre foi.

Depois deste filme, Almodóvar não mais seria chamado de “enfant terrible”, apelido
que recebeu da crítica espanhola, por seu estilo subversivo. Ele mesmo brinca, dizendo que
sua mãe só passou a acreditar nele, depois que ganhou o Oscar por esta película. Nesta, o
cineasta se mostra bem mais intimista que nas suas demais obras, parecendo querer perscrutar
a “alma” feminina através do sofrimento, das relações e da força da mulher. É também sua
película, onde menos tem personagens estereotipados, apesar de não dispensar seus párias e
tipos tão característicos, que fogem ao padrão e não à normalidade/realidade, e seus temas
polêmicos, como a mudança de sexo e a homossexualidade feminina. Mas a diferença está
justamente nos seus tipos e temas, que desta vez parecem bem mais querer levantar discussões
através de análises profundas sobre os papéis relativos aos gêneros, que propriamente
aparecer enquanto diferenças.

Mesmo com o foco voltado para a trajetória de mulheres – onde mesmo os poucos
homens que aparecem em também poucos momentos, são tomados de extrema feminilidade –,
ou talvez exatamente utilizando isto como artifício, Almodóvar faz uma crítica ao machismo
latino, através da fragilidade do universo masculino. E apesar de muitos críticos terem
70

afirmado um aparente bom comportamento para o antes considerado subversivo, o diretor


continua apresentando os mesmo ‘excluídos’ de sempre, mas agora parecem ter amadurecido
e, com isso, buscado uma conduta mais efetiva na dissolução de seus conflitos. Ao que fica
explícito nesta última película, esta conduta deve ser emocional.
71

3. A questão de gênero em Hable con Ella28

3.1.1 O filme

Em cartaz: Hable con Ella (Fale com Ela, 2002). O 14º longa-metragem de Pedro
Almodóvar é precedido por uma enxurrada de críticas que dividem opiniões e ao estrear nas
telonas, segue gerando uma certa curiosidade por um motivo em especial: o famoso “diretor
de mulheres” agora traz dois homens como seus protagonistas. O filme, que faz nascer tantas
distintas percepções à crítica e ao público, rende ao cineasta o Oscar de Melhor Roteiro
Original, o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, sete indicações ao Goya, o César de
Melhor Filme da União Européia, entre muitos outros prêmios.

Muito alarde foi causado. O próprio estilo kitsch, tão característico do diretor foi
dado como encerrado. Dizia-se que ele se atém agora ao melodrama, que está iniciando uma
nova fase, que está abandonando a comédia, que não quer mais trabalhar com mulheres;
enfim uma série de especulações e posições a respeito de um novo trabalho, que traz os
mesmos temas recorrentes do cineasta espanhol, que se caracterizou e consagrou por seus
tipos bizarros, cores berrantes e mulheres fortes.

Se Hable con Ella tem tudo isto, porque tanta polêmica a respeito? Talvez seja uma
irônica contradição, mas poderíamos pensar que desta vez Almodóvar foi além na
representação do feminino. Ele afirma que a intenção era mostrar duas mulheres em coma, ou
seja, inertes, que tivessem tanta presença quanto se estivessem de pé e falando com os homens
em cena. E consegue. Além disto, os personagens masculinos só ganham importância na
medida em que se relacionam com o sexo oposto e começam a deixar transparecer suas
expectativas, inseguranças e frustrações.

Dois homens que vivem “em” duas mulheres, estas que continuavam fortes e
teimando em viver, ambas em estado de coma. Numa profissão tipicamente feminina, o
enfermeiro Benigno (personagem central, interpretado por Javier Câmara) não consegue
enxergar sua vida sem estar perto de Alicia (Leonor Watling). Ênfase na arte – música, mas

28
Ficha Técnica:/ Título Original: Hable con Ella/ Gênero: Drama/ Tempo de Duração: 116 minutos/ Ano de
lançamento (Espanha): 2002/ Site Oficial: www.sonyclassics.com/talktoher/ Estúdio: El Deseo S. A./
Distribuição: 20th Century Fox/ Sony Pictures Classics/ Warner Bros./ Direção: Pedro Almodóvar/ Produção:
Augustín Almodóvar/ Música: Alberto Iglesias/ Fotografia: Javier Aguirresarobe/ Desenho de Produção: Antxón
Gómez/ Figurino: Sonia Grande/ Edição: José Salcedo/ Elenco:/ Javier Câmara (Benigno Martins)/ Darío
Grandinetti (Marco Zuloaga)/ Rosario Flores (Lydia Gonzales)/ Leonor Watling (Alicia Roncero)/ Geraldine
Chaplin (Katerina Bilova)/ Mariola Fuentes (Rosa)/ Fele Martinéz (Alfredo)/ Paz Vega (Amparo)/ Chus
Lampreave (Concierge)/ Elena Anaya (Angela)/ Participações especiais: Caetano Veloso, Marisa Paredes e
Cecilia Roth
72

principalmente a dança. São detalhes que, ao mesmo tempo em que resumem, apresentam as
que poderiam ser consideradas ‘entrelinhas femininas’ da película: sensibilidade e delicadeza.

Não há dúvidas de que Almodóvar tenha um certo apreço especial pelas mulheres.
Podemos nos perguntar se isto se deve a algo que sempre vem tentando demonstrar em seus
filmes: a ambigüidade humana. O diretor dá a impressão de que a mulher assume melhor
tanto suas características dadas como femininas ou masculinas, e por isso seria capaz de ser
mais forte, por poder ter uma identidade própria e não ter medo de assumi-la. Porém Hable
con Ella vem mostrar que o homem também pode estar neste papel. E não ter medo de
demonstrar fragilidades e inseguranças, entre outras qualidades que provavelmente seriam
chamadas de ‘coisas de mulher’.

De um lado a crítica ataca dizendo que com esta película, “o diretor disfarça a
fixação pelo feminino, trazendo os homens para primeiro plano”29, de outro diz que
“gradualmente, Pedro Almodóvar vai mudando seu cinema”30, migrando das cores berrantes e
dos risos histéricos para o campo do mental. Era dito que ele agora havia se tornado um
cinema mais contido, menos provocador e exagerado, e que aposta mais nas emoções e no
melodrama do que na comédia escrachada e no lado absurdo das situações.

Almodóvar responde, dizendo que a figuração feminina em sua obra depende da


história. E no caso deste trabalho, quis falar sobre algo doloroso o bastante para fazer um
homem chorar. Mas também se inspirou ao analisar que tão interessante quanto a capacidade
que as mulheres em coma têm de escutar, é a de que o outro tenha uma capacidade ilimitada
de se expressar diante dela. O diretor assume que sempre foi fascinado pelo relacionamento
de um casal, e que considera interessante o fato de que alguns relacionamentos só funcionam
quando apenas um dos dois está dando tudo de si, apenas um está se comunicando. E por isso,
não poderia perder esta oportunidade de escrever sobre alguém que fala.

Ele afirma ainda que o próprio fio que veio a dar origem à idéia do filme tenha sido
constituído por muitos fios menores: falar sobre algo que faça um homem chorar; as notas que
havia tomado sobre mulheres que despertavam do coma após um longo período e mais
interessante, que elas podiam escutar mesmo neste estado; um estupro de uma mulher por um
assistente no hospital; elementos como as apresentações de dança – ensaiadas pela coreógrafa
alemã Pina Bausch, uma das mais inovadoras deste século, e que tem como tema favorito a

29
Revista de Cinema – Elaine Guerini
30
Site – Ruy Gardnier
73

denúncia dos códigos de sedução –, que apesar de tirar a história de seu caminho linear,
enriquecem e dão coesão para a história inteira.

Apesar da extrema feminilidade que Hable con Ella demonstra, as mulheres neste
filme, em sua maior parte, são vistas sob a ótica dos homens. Pois mesmo com a forte
presença incontestável delas, são o enfermeiro e o jornalista os reais protagonistas.
Almodóvar diz que “queria fazer um filme que abordasse a amizade no universo masculino, e
como metáfora, a demorada convalescença das feridas provocadas pela paixão”.

No início dos anos 80, onde a provocação era a marca registrada do diretor e a
liberdade sexual era uma das bandeiras levantadas por Almodóvar, em sua contestadora
“Movida”, não parecia estranho que as personagens masculinas fossem em sua maioria
homossexuais (Laberinto de Passiones, 1982 e La Ley del Deseo, 1987). Agora, em Hable
con Ella, os homens-heterossexuais são protagonistas absolutos da história que envolve drama
familiar, amores impossíveis, amizade e morte, temas até então reservados às mulheres.

Sobre o fato de ter assumido uma característica de cineasta melodramático desde La


Flor de mi Secreto (1995), o diretor se posiciona, explicando que seus filmes sempre têm
comédia, mas com o passar do tempo e a maturidade que ganhou, resolveu abandonar a
“comédia pura e dura para adentrar no terreno das emoções, das experiências dolorosas,
enfim, tudo o que compõe dramas e melodramas”31. As situações bizarras do enfermeiro
Benigno perante sua paciente Alicia deixam claro que Almodóvar não perdeu seu espírito
irreverente, cômico, exagerado e mordaz que o popularizou, com suas tramas absurdas que
beiram o non-sense e seu espírito libertino e debochado.

Quanto à perda do estilo kitsch e banimento das cores berrantes, não precisam muitas
explicações ser dadas, pois a toureira Lydia (Rosário Flores) encarna toda a obrigatoriedade
do vermelho forte e das roupas extravagantes. O momento em que estes dois elementos
aparecem, são justamente os que demonstram a força que Almodóvar quis lhe dar.

Não poderíamos falar em um auto-retrato, mas talvez Hable con Ella seja em grande
parte um reflexo de muito do que o diretor pensa a seu próprio respeito. É ele mesmo quem
assume que este filme seja uma espécie de confissão e antologia pessoal de um homem que se
emociona facilmente e além de maturidade, também ganhou muitos quilos com o tempo –
características explicitamente demonstradas através dos dois personagens principais –: Pedro
Almodóvar.

31
ALMODOVAR apud CUNHA. Revista de Cinema.
74

3.1.2 A história e seus personagens

Abrem-se as cortinas do Café Müller e no palco, mesas e cadeiras e as duas


dançarinas de camisola e olhos fechados. Assim, o enfermeiro Benigno vai descrevendo à sua
paciente, a estudante de balé, Alicia Roncero, que está em coma há quatro anos, vítima de um
acidente de carro, o espetáculo de dança contemporânea, coreografado por Pina Bausch. É
neste momento, que se depara com o homem que senta ao seu lado chorando durante a
apresentação. Este é o jornalista Marco Zuloaga, que namora a toureira Lydia González – ex-
amante de El Niño de Valência –, gravemente ferida por um touro na arena, que a deixa em
estado de coma, e por isso é internada na mesma clínica em que está Alicia. É neste ambiente
que Benigno e Marco começarão a construir uma forte amizade.

O enfermeiro fala com Alicia como se estivesse ela acordada e insiste para que
Marco faça o mesmo com sua namorada, mas este não consegue. E é justamente em uma das
noites em que Benigno narra à sua paciente, um filme que havia visto na cinemateca,
“Amante Menguante”, que ocorre o fato que só se saberá mais tarde: o enfermeiro havia
violentado e engravidado Alicia. Na cadeia, Benigno tem o apoio de Marco, que fica sabendo
que a bailarina despertou com o choque do parto, mas não conta a novidade para ele, que se
suicida. Apesar disto, tudo indica o enfermeiro tenha “abençoado” o subentendido
relacionamento que Marco e Alicia iniciarão algum tempo depois.

Benigno Martins

O nome do enfermeiro que cuida de Alicia é muito significativo, pois representa


aquilo que Almodóvar quer dizer sobre sua personagem, que ela é bondosa e inocente, por
isso merece perdão pelo ato de violência que comete contra a própria mulher que ele cuida e
protege há anos. Além disto, ele ao mesmo tempo em que apresenta traços físicos infantis,
também apresenta outros claramente perversos, como: escopofilia (indivíduo que sente prazer
no ver, no observar), fetichismo, perseguição e um gosto pelo outro inerte, que beira a
necrofilia. É ele quem fala (na entrevista ao psiquiatra) sobre o mal que parecem sofrer todas
as personagens do filme: a solidão.

Benigno passou sua vida inteira cuidando de duas mulheres. Primeiro foi sua mãe, de
quem começou a cuidar ainda quase menino, e depois Alicia, por quem se apaixonou ao
observá-la da janela de sua casa. O enfermeiro tem hábitos tradicionalmente atribuídos às
75

mulheres, não apenas em sua profissão e nos cursos que fez (para ser esteticista, maquiador e
cabeleireiro), mas ao cuidar com tanto esmero de casa, bordar e aguar as plantas.

Ele não tem divertimentos até começar a cuidar de Alicia, quando passa a reservar
suas horas livres para fazer aquilo que ela gostava de fazer, e depois lhe contar. Suas folgas
são secundárias, pois cuidar de Alicia é mais que um trabalho, é a realização de um sonho;
estar em contato com seu amor. Ele apresenta uma destreza maior que as dos demais ao lidar
com a paciente em estado inerte, demonstrando que não apenas só conseguia se relacionar
com alguém que estivesse à sua mercê, como isto lhe dava prazer, já que apreciava os dias de
chuva, pois foi num destes que Alicia sofrera o acidente e fora parar na Clínica. E foi um
destes também que escolheu para cometer suicídio oito meses depois.

É ele mesmo quem se descreve, ao relatar, já na prisão, a Marco que o guia de


viagens que mais gostou foi o de Cuba, pois se identificou “muito com aquelas pessoas que
não tem nada e inventam tudo”. O enfermeiro diz a Marco que quando ele descreve uma
cubana, debruçada na janela do “Malecón”, esperando inutilmente, vendo como o tempo
passa e nada acontece”, achou que aquela mulher fosse ele.

Alicia Roncero

Esta é a paciente em coma que retém todos os cuidados e a atenção de Benigno.


Apesar de inerte, seu corpo é cativante (aliciante), e não deixa de chamar a atenção do olho
masculino. Marco é surpreendido pela beleza do corpo da paciente e isto acaba fazendo com
que mais tarde, observando pela porta, receba o convite de Benigno para entrar no quarto
dela. No filme, este corpo encarna então, não só o desejo masculino, pois Alicia também é
‘aliciante’ para sua professora de balé, que “a tem como uma filha” e se empenha em
recuperar a antiga aluna, que tem entre as coisas que mais ama, a dança.

Almodóvar diz que “o corpo de Leonor Watling agüenta a presença dos grandes
atores (Javier Câmara e Darío Gradinetti) sem que o espectador a perca de vista. Comparte o
plano com ambos e na ocasião os rouba e os transporta a um lugar misterioso, que nem eu
mesmo conheço. Watling é Alicia habitando a parte mais obscura do outro lado do espelho”.32

32
ALMODOVAR apud PENEDA. Tradução minha
76

Marco Zuloaga

É ele quem melhor representa aquilo que Almodóvar quer dizer com seus
personagens com múltiplas identidades e características ligadas aos dois sexos. É um homem
heterossexual, que contraria as máximas do macho, mostrando-se sensível e sentimental,
chorando a cada vez que se emociona (e não são poucas as vezes). Ele se apaixona
perdidamente, acredita cegamente no amor e mantém uma relação de muita ternura com outro
homem, Benigno.

Ele é o jornalista de origem argentina, que escreve roteiros de viagem e teve um


romance com uma dependente de drogas, levando “uma década” para esquecê-la. E depois se
encontra à beira da cama de sua atual namorada, a toureira Lydia, com quem não consegue
falar nem tocar, devido ao estado de coma em que se encontra. Por coincidência ou não, são
duas mulheres com fobia a cobras.

Lydia González

A toureira é uma mulher que demonstra seu talento num nicho de homens, por isso
lhe recaem suspeitas sobre sua competência, como se uma mulher não pudesse desempenhar
uma tarefa considerada masculina, com tamanha desenvoltura. Porém, a valentia profissional
de Lydia não se estende à sua vida pessoal. Apesar de não temer os enormes e pesados touros,
tem um pavor fóbico de cobras. A cobra, além de ser um animal fálico, é um bicho que se
esgueira, que não se deixa agarrar, invocando o que poderíamos pensar com algo que escapa à
lógica fálica. Daí a associação da serpente com a mulher, ou o que é representado no filme,
como o estado de coma, pois é Benigno quem diz que “a mente das mulheres é um mistério,
ainda mais neste estado”.

O que faz com que ela fique em estado de coma é um trágico acidente em sua última
tourada, onde ela se coloca numa posição quase de joelhos para receber o touro e fica sem ter
como se defender. Tudo parece indicar que ela se deixou abater. Este acontecimento poderia
ser pensado como o preço máximo (a vida) que estava disposta a pagar para saldar a dívida de
sua transgressão, já que teve a ousadia de “passar por cima” do lugar paterno. Pois era seu pai
que tanto queria ser toureiro, mas só conseguiu ser banderilheiro, tendo escolhido Lydia para
ocupar o lugar que ele não conseguiu, apesar de toda a oposição da mulher e da outra filha,
77

mãe e irmã de Lydia, respectivamente. Marco já afirmava ao conhecer a toureira, que “seu pai
selou seu destino”.

El Niño de Valência

É o toureiro que conseguiu fama às custas de Lydia e também é o grande amor de sua
vida. Seu comportamento parece querer dizer o quanto “masculino” é sua realidade: é
toureiro, abandona Lydia e sequer a procura para que possam conversar e manter uma boa
relação após a separação. Ele pede que um amigo a procure e converse com ela, dizendo que
El Niño não tem tempo para outras preocupações, pois precisa se concentrar para a próxima
apresentação, num ato de extrema covardia.

Apesar disto, quando Lydia sofre o acidente e fica em estado de coma, é ele quem
consegue conversar com ela, e não Marco, demonstrando que não é o homem fechado que
parece, que pode mudar ou que também pode ter momentos de sensibilidade para com a
mulher que ama. Ele, por fim, também sofre um pequeno acidente que o deixa, por no mínimo
dois meses, longe das touradas, e reserva este tempo, que confirma sua fragilidade, para ficar
ao lado dela.

3.2. A questão de gênero

Sexo, sexualidade, párias e relacionamentos. A criatividade de Almodóvar sobre


estes temas parece não se esgotar, visto que ele continua centrando seu foco, em Hable con
Ella, nas relações entre os sexos e nos papéis culturais de gênero. Agora, ele não privilegia a
figura feminina da ‘mulher’ – como já o fez em alguns outros filmes, como La Ley Del Deseo
e Carne Trémula –, mas tenta confirmar que tanto os aspectos considerados cultural, social e
historicamente como masculinos e femininos não devem ser delegados exclusivamente a
homens e mulheres, respectivamente, e sim, vistos ambos como constituintes do andrógino ser
humano.

O filme começa no Café Müller, onde é encenado um espetáculo muito significativo.


Este tanto parece representar a relação que as personagens irão viver na película, como de um
modo mais profundo, o pensamento do diretor acerca de toda a relação real entre homem e
mulher. Duas bailarinas dançam sob uma canção muito triste. Elas estão de camisola, com os
olhos fechados e correm em direção à parede, até se chocar e cair. Mas não caem por
78

completo, pois suas pernas continuam erguidas por alguns instantes, até que tocam o chão
para que elas possam se levantar novamente e andar. Enquanto isto, um homem que também
expressa muita tristeza, retira todos os objetos da frente delas, para que não esbarrem em
nada.

A narração do espetáculo pode se confundir mesmo com a narração dos


protagonistas com as respectivas mulheres que amam, ambas em estado de coma. Em
Benigno, isto está bem mais claro. Sua paciente se encontra há quatro anos, deitada, de
camisola e com os olhos fechados, mas não está morta. Por isso mesmo, ele não só cuida para
que nada de mal lhe aconteça, mas a trata como se não estivesse naquele estado, mesmo
porque acredita que ela possa a qualquer momento acordar do coma e se levantar.

A forte dramaticidade da temática do espetáculo, no Café Muller, parece indicar todo


o tom dramático que a película vai assumir. A cena das bailarinas passa ao público, a angústia
que Almodóvar se esquivou em demonstrar no ambiente do Hospital, onde é ambientada a
maior parte do filme. Mas ao mostrar apenas Benigno e Marco na platéia, em primeiro plano,
deixa claro que estarão os dois diante de um cenário em que se passa um drama.

Poderíamos também pensar a encenação como contrariando a idéia, calcada no


patriarcalismo, do quanto a mulher precisa do homem para que lhe proteja e lhe retire os
obstáculos, os empecilhos que aparecem na vida. Mulheres que são vistas como frágeis, mas
que na verdade, não o são completamente. Mulheres que podem precisar do homem em
alguns momentos, mas se levantam por si só, enquanto eles pensam que devem protegê-las
sempre, por serem mais fortes. E toda esta relação se deve muito à uma carência de
comunicação entre eles.

Os espetáculos de dança são de grande importância simbólica dentro do filme.


Enquanto serra as unhas de Alicia, o enfermeiro conta o quanto se comoveu com as repetidas
lágrimas do homem que sentava ao seu lado e o quão teve medo de que as duas bailarinas
esbarrassem em tudo, até que aparecesse “um homem com o rosto mais triste” que já viu,
retirando os móveis da passagem. Podemos pensar a tristeza deste homem como a que o
próprio Benigno sentia antes de realizar o sonho de estar perto da mulher que ele tanto amava,
podendo cuidar dela.

Mas também é provável que esta grande tristeza signifique a decepção e a melancolia
de homens ‘em crise’, por perceberem que a mulher não é mais aquele ser dependente,
indefeso e fraco, que se submetia a ele. Essas crises masculinas nascem nos países de
79

civilização refinada, onde as mulheres gozam de mais liberdade que em outros lugares,
fazendo com que o modelo de homem que subjuga a mulher e esta dependa dele, caia. E isto
conseqüentemente vem gerar, nos homens, um sentimento de perda de identidade e
impotência diante do fato da independência feminina.

A professora de balé, Katerina, narra a Benigno seu próximo espetáculo,


“Trincheiras”. Este, trata da Primeira Guerra Mundial, mas ela explica que também precisa de
mulheres, pois quando um soldado morre, sua alma sai de seu corpo, sob a forma da bailarina.
Ela diz:

Katerina: --- É lindo, porque da morte surge a vida, do masculino surge o feminino, da terra
surge (...) o etéreo, o impalpável, os fantasmas.

O nome sugestivo do espetáculo, “Trincheiras”, poderia indicar mesmo uma ‘guerra


entre os sexos’. Mas quanto à relação que os bailarinos estabelecem em cena, poderíamos
interpretá-lo pelo menos de três formas. A primeira é que em algum momento o homem
precise calar para dar voz à mulher. A segunda é que talvez o feminino ou a parte que
delegada, historicamente, à mulher, surja no homem exatamente nos momentos de maior
fraqueza. Ou podemos ainda olhar sob a ótica dos acontecimentos da própria película. Pois
será Benigno que pagará com a morte, pelo acontecimento – o estupro e a conseqüente
gravidez – que trouxe Alicia à vida novamente. É Katerina a personagem que vai indicar,
através de seus bailarinos e bailarinas, que a delicadeza e sensibilidade podem estar presentes
tanto nas mulheres como nos homens.

Esta relação e os conseqüentes papéis de gênero designados a homens e mulheres são


abordados logo nos primeiros momentos do filme, quando a outra enfermeira exclusiva de
Alicia, pede a Benigno que a substitua pela quarta vez na semana. Como Matilde foi
abandonada por seu marido, Benigno lhe faz o favor de trabalhar em seu lugar nas noites em
que não pode ir à Clínica por ter de cuidar dos três filhos. Neste, momento, a fala do
enfermeiro é emblemática e parece representar o pensamento de Almodóvar sobre as
responsabilidades delegadas à mulher:
80

Matilde: --- Benigno, pode ficar hoje? É que minha irmã não pode e não tenho com quem
deixar as crianças.

(...)

Benigno: --- Não é culpa sua se seu marido a abandonou com três filhos.

O abandono da enfermeira pelo marido também trata de um outro tema que o autor
deixa claro em diversos momentos da película: as relações problemáticas entre os casais. Por
diversas vezes, a solidão e o diálogo são expostos e parecem ser estes os principais elementos
que compõem o sucesso ou o fracasso de uma relação.

A dança do Café Müller mostra dançarinas não apenas com os olhos fechados, mas
com a boca também. Mulheres e homem não dialogam, em contraposição ao espetáculo que
encerra o filme. Neste, além da cantora, que pode se expressar através da canção (no caso,
cantada em inglês), os outros bailarinos também conversam. A conversa surge já no final da
segunda parte da apresentação, quando uma moça passeia rente ao muro de plantas e um
rapaz a aborda, travando um diálogo entre eles, mas que nós não podemos ouvir.

E será este o principal apelo do filme, explicitamente demonstrado já por seu título.
Benigno conversa com sua paciente, por mais que muitos pensem que ela não pode ouvir. É
no momento em que Marco lhe diz que não consegue tocar em Lydia, pois não reconhece seu
corpo, que o enfermeiro lhe diz: “fale com ela!”. Mas apesar de toda a insistência de Benigno,
Marco continua sem conseguir falar com Lydia, o que faz com que se sinta desprezível por
causa disto. E quando o jornalista resolve viajar por ter descoberto que a toureira, na verdade,
iria romper com ele no dia do acidente porque ainda amava El Niño, Benigno lhe pergunta se
brigaram, explicando que já sabia que “mais cedo ou mais tarde isto iria acontecer”. O
enfermeiro diz que por algum motivo que não sabe qual, percebia que a relação deles tinha
algo que não funcionava. Este algo era a tentativa do diálogo, que simplesmente inexistia,
enquanto El Niño conseguia falar com Lydia.

Benigno deixa claro o esforço que deve ser feito para que homem e mulher se
entendam mutuamente. Mas acima de tudo, Almodóvar traz, por meio deste personagem, a
discussão sobre a necessidade de um espaço para que a mulher possa falar. Ele faz uma critica
ao comportamento masculino tradicional, que considerava o “silêncio feminino” como uma
virtude e as conversas entre mulheres, uma banalidade. Esta crítica se repete em outros
momentos da película. Chega a ser irônico, mas Benigno, que apenas teve a experiência de
81

conviver com duas mulheres – sua mãe e uma paciente em coma –, explica a Marco o que
uma mulher precisa para que uma relação possa dar certo:

Benigno: --- Tem de prestar atenção nelas, falar com elas, pensar nos pequenos detalhes,
acariciá-las. Lembrar que existem, que estão vivas e que são importantes para nós. Essa é a
única terapia, falo por experiência.

Nesta cena, Almodóvar faz a primeira crítica à profissão de psicólogo, que ele
desacredita. O diretor afirma que cada um deve procurar resolver seus problemas sozinho, e
coloca na fala de Benigno, que não há necessidade de terapia. Uma outra crítica vem mais
tarde, com a figura do Dr. Roncero, pela forma cômica e irônica com que trata a entrevista de
Benigno:

Dr. Roncero: --- E durante esses (últimos) 15 anos, não fez nada a não ser cuidar de sua
mãe?

Benigno: --- Nunca saí do lado dela.

(...)

Dr. Roncero: --- Gostaria de vê-lo na próxima semana.

Benigno: --- Não estou bem, doutor?

Dr. Roncero: --- Não é isso, mas teve uma adolescência que podemos chamar de especial.

Benigno: --- Não foi tão especial assim!

Uma questão interessante, que o diretor enfatiza, é o fato de Marco ser jornalista (um
profissional da comunicação) e, no entanto, não conseguir se comunicar com sua namorada,
quando esta entra em coma. Isto parece confirmar, indiretamente, a dupla crítica que o diretor
faz aos meios de comunicação – por meio da zeladora de Benigno e a entrevista de Lydia.

Marco diz a Benigno que gostaria de poder falar o que sente à Lydia, mas se recusa,
afirmando que ela não pode escutar. Então o enfermeiro lhe diz que ele não pode ter tanta
certeza disto, pois “a mente das mulheres é um mistério, ainda mais neste estado”. Podemos
82

fazer uma leitura do coma das duas mulheres como um lugar na mulher onde não se encontra
o compreensível ou mesmo o dizível. Onde para nada servem os roteiros de viagem de Marco.

Desde muito tempo, a mente das mulheres foi vista como algo imperscrutável, onde
o místico e o ‘maléfico’ poderiam reinar e dominar a mente e o corpo do homem, bem como
manipular suas ações. Não era coincidência que a figura das bruxas, na Idade Média, estivesse
ligada ao feminino. Por isso, o medo que fez com que Igreja e sociedade se unissem contra
essas mulheres, providenciando o conhecido fim que tiveram aquelas que detinham algum
conhecimento a mais do que o “necessário” para cuidar das ações de casa: a fogueira.

Almodóvar nos diz que a mulher precisa que lhe entendam, mas também que deixem
que ela se expresse, mesmo que não por meio de palavras. O silêncio feminino, que perdurou
por séculos, pode ser a chave para compreender o que o diretor quer dizer com aquela que
está impossibilitada de falar, de agir, mas teima em sobreviver. A recuperação de Alicia
parece estar ligada a um feliz resultado que tiveram todos os movimentos de mulheres, que
lutaram por uma independência, lugar e voz dentro da sociedade. Mas além de lenta,
Almodóvar parece querer mostrar que este crescimento ainda não se concluiu completamente,
pois ainda há o que conquistar para uma realidade de iguais entre homens e mulheres.

Porém, o diretor deixa clara a diferença entre este ‘falar com’ e o ‘falar para’, pois
apenas no primeiro se estabelece não somente um diálogo, mas uma relação. Provavelmente
por isto, o diretor repete duas vezes a cena em que Lydia diz a Marco que precisam conversar,
pois não quer “que se passe nem mais um dia sem que” se falem:

Lydia: --- Marco, temos que conversar depois da tourada.

Marco: --- Nós já conversamos por mais de uma hora.

Lydia: --- Você falou, eu não.

Marco: --- Tem razão.

O poder da palavra chega a ser tão forte que ele serve de tijolo inicial na escalada de
sentimentos das personagens mesmo quando a vida já se extinguiu. A palavra cria vida e
muda a vida das pessoas e dos que estão ao seu redor.
83

Podemos nos perguntar, no entanto, se a tentativa de diálogo por parte de Benigno se


concretiza, pois como Marco lhe explica, sua relação com Alicia é um “monólogo”. O diretor
estaria querendo dizer que é mais fácil conviver com uma mulher que esteja com o cérebro
em estado vegetativo? Ou seja, “descerebrada”? Pois neste momento, o enfermeiro afirma a
Marco que pretende se casar com Alicia, pois está apaixonado e o relacionamento deles é
mais feliz do que o de muitos casais.

Uma outra leitura possível é a de que os homens devem fazer: encontrar ou ‘falar’
com sua porção feminina, sua sensibilidade que foi reprimida e que também faz parte dele.
Almodóvar expressa o quanto admira a relação que as mulheres conseguem estabelecer não
apenas com o parceiro, mas principalmente entre si. Seriam as mulheres capazes de superar
melhor as dificuldades, por que conseguem verbalizá-las com desenvoltura? Na fala de
Benigno, no momento em que ele e Marco estão com as duas pacientes no terraço, o diretor
coloca algo não só peculiar às mulheres, mas considera ser necessário aos homens:

Benigno: --- Olhe só para elas. Parece que falam de nós. O que acha que dizem? As mulheres
falam tudo umas para as outras. Tudo mesmo!

É também Benigno quem vai demonstrar o quanto é importante que os homens


falem. Na carta que o enfermeiro escreve a Marco da cadeia, momentos antes de se suicidar:

Benigno: “(...) Você é meu único amigo. (...) Onde quer que me levem, venha me ver e fale
comigo. Me conte tudo, não me faça segredos. Adeus, amigo”

Marco chora. Provavelmente não apenas por ter perdido o amigo, mas por ter
percebido que deveria ter lhe contado toda a verdade: que Alicia tinha despertado. Pois
Benigno morreu sem saber o que houve, algo que ele tanto dizia precisar saber. E somente no
cemitério, ao túmulo de Benigno, que Marco lhe atende o pedido e lhe conta o ocorrido.
Talvez Almodóvar queira justamente dizer o quanto é preciso falar no momento, e não esperar
que seja tarde demais. MERLEAU-PONTY (1989)33 usa a denominação “fala autêntica” para
aquilo que é dito ao mesmo tempo em que se pensa ou se sente. Ao contrário das “expressões

33
MERLEAU-PONTY é citado por AMATUZZI
84

segundas”, onde há uma premeditação, uma razão antes da fala, na “fala autêntica” ou
“expressão primeira”, o falar não vem primeiro no sentido cronológico, mas no de uma nova
experiência.

O machismo masculino também é demonstrado quando Marco e El Niño discutem,


reivindicando para si a culpa pelo acidente de Lydia. Como se a escolha não pudesse ser dela
somente, sem nada estar relacionada a eles, como de fato, parece ter sido. O machismo,
portanto não é algo que oprimiria apenas as mulheres. Mas neste ponto, a crítica do diretor é
mais explícita, quando Marco está se exercitando na esteira, e assiste à uma entrevista de
Lydia González na televisão, na qual se anuncia uma apresentação sua em que vai enfrentar
seis touros. Almodóvar faz duas críticas, através do programa de televisão: a primeira ao
machismo, pois mesmo que a toureira enfrente touros grandes e pesados, alguns com mais de
500 quilos, muitos a desacreditam, simplesmente pelo fato de se tratar de uma mulher, numa
profissão tipicamente masculina:

Entrevistadora: --- As pessoas falam que muitos touros não a enfrentam pelo fato de ser
mulher.

A própria entrevistadora diz que ela deve admitir que há muito machismo nas
touradas, mas sua fala acaba por chegar a um outro ponto, onde Almodóvar faz uma segunda
crítica, já antes feita, em Kika (1993): à invasão da mídia na vida privada. Os problemas
sentimentais de Lydia são expostos pela entrevistadora, por mais que a toureira já houvesse
dito nos bastidores, que não gostaria de falar sobre o rompimento de seu romance com El
Niño. Este, um também famoso toureiro, a havia abandonado e deixado desolada. Mesmo
assim a apresentadora do programa insiste em obter respostas confirmativas, até que Lydia
consiga deixar o estúdio:

Entrevistadora: --- “El Niño de Valência” concordou em dividir cartazes com você por
vários meses.

Lydia: --- Isso é passado.

Entrevistadora: --- Acha que ele fez isto só para se promover e depois a deixou?

Lydia: --- Eu falei nos camarins que não queria falar sobre este assunto.
85

(...)

Entrevistadora (puxando Lydia pelo braço e quase caindo no chão): --- Você deveria admitir
que foi usada.

O amor desesperado de Lydia também é mencionado em muitos outros momentos.


Na apresentação da toureira, na qual surge a primeira de algumas referências ao Brasil34,
feitas no filme: a música “Por Toda a Minha Vida” na voz de Elis Regina expressa aquilo que
Lydia ainda sente por El Niño: “Ah! Meu bem amado, quero fazer de um juramento uma
canção. Eu prometo, por toda a minha vida, ser somente tua e amar-te como ninguém”. Em
seguida, também é expresso no diálogo que interrompe a música, entre o toureiro e um amigo:

El Niño: --- Esta mulher está louca.

Amigo: --- Ela está dedicando a ti. É capaz de deixar o touro matá-la só para que tu vejas.

Após a tourada, o amigo de El Niño diz a Lydia que este tem de se concentrar e não
tem tempo para outras preocupações. Estas preocupações seriam apenas uma conversa com a
toureira para encerrar o relacionamento. O que demonstra o quanto assuntos amorosos e
sentimentais são considerados bobagens ou ‘coisas de mulher’. Logo depois, Marco tenta
falar com Lydia, que só tem olhos para El Niño. Os dois saem juntos conversando, quando
aparece a legenda: “Lydia e Marco”, porém, mais tarde ficará claro que o jornalista nunca
conseguiu ocupar o lugar do toureiro no coração de Lydia. Marco finalmente fala sobre a
reportagem e ela pergunta se ele escreve sobre touradas, pois não se lembra de seu nome, ao
que ele responde:

Marco: --- Não entendo nada de touros e sim de mulheres desesperadas.

34
Além da música "Por Toda a Minha Vida", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, o Brasil também é
referenciado quando Benigno lê um dos guias de viagem que Marco lhe dá, que é sobre o Brasil; quando o
mesmo Marco cita a frase "O amor é a coisa mais triste do mundo quando acaba" e lembra que seu autor é
Jobim; e quando Caetano Veloso aparece cantando em espanhol "Cucurrucucú Paloma", de Tomas Mendéz.
86

Uma toureira que não se cansa de surpreender na arena, mas o que realmente desperta
o interesse das pessoas é sua vida particular, precisamente, suas desilusões amorosas. Por que
Lydia não poderia ser vista como a profissional que é, como acontece com os toureiros
homens com quem trabalha? Por que ela teria de expor sua vida, como se para se sentir
realizada tivesse necessariamente de ter um companheiro? A vida amorosa dos toureiros não
seria dissecada pela mídia e curiosos, porque a visão que se costuma ter do homem é a de uma
figura que pode se realizar na profissão, construir uma família, ou estar solteiro, conforme
queira. Ao contrário, se uma mulher está só é dada como infeliz ou mal amada.

Almodóvar subverte ao mostrar que venturas e desventuras amorosas fazem parte do


cotidiano de homens e mulheres. Bem como é facultativo a cada um deles, o que se dá
preferência em se realizar, o campo pessoal ou profissional. Ele mostra que este amor
desesperado não é sentido apenas por uma mulher, na figura da toureira, mas também por
Benigno, que dedica sua vida a cuidar de Alicia e fazer exatamente aquilo que ela gostava de
fazer e não pode mais. Então ele faz, para depois lhe contar em detalhes. E por Marco, que
“passou uma década para esquecer” sua antiga namorada, Ângela.

O interessante é que, dentre as coisas que Alicia gostava de fazer, ir à cinemateca,


assistir a espetáculos de dança e atuar neles, viajar, é exatamente este último o único que
Benigno não pode fazer, e justamente aquilo que ela tem em comum com Marco: o gosto por
viagens.

Os sentimentos e ações que podem ser vividos e experienciados por qualquer


personagem do filme, independente de serem homens ou mulheres, parecem ser a principal
mensagem que Almodóvar quer mostrar. A ambigüidade das quatro personagens principais
está sempre em primeiro plano. Almodóvar mostra, através deles, as identidades múltiplas,
que na condição de pós-modernos, podemos assumir. HALL (1992) explica que as velhas
identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, entraram em declínio, fazendo
com que surgissem novas identidades e o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito
unificado, fosse fragmentado. O indivíduo seria agora composto não de uma única, mas de
várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas.

Ao mesmo tempo em que Lydia é uma mulher forte e segura numa profissão onde há
predominância masculina, ela mostra que na intimidade pode ser frágil e indefesa, quando se
trata de perder o homem que ama ou se deparar com uma cobra, animal a que é fóbica. Numa
espécie de aquecimento antes do espetáculo, Lydia, em trajes de toureira, não se diferencia
dos demais homens na arena. Mas depois de ter descido do carro de Marco furiosa, Lydia
87

entra em casa e emana um grito apavorante, pois encontrou uma cobra e muito assustada,
pede que a tire de lá.

Já no hotel em que passa a noite, pois não suporta voltar a sua casa, pede também
que Marco não conte sobre o ocorrido para ninguém, pois apenas sua família sabe sobre a
fobia, demonstrando que sabia que esta sensibilidade ou fragilidade abalaria a imagem que
tem para o público. Quando Marco lhe telefona no dia seguinte, pergunta como ela está, ao
que ela responde “nua”. Algum tempo depois, poderemos perceber, o que mais ela quis dizer,
pois não estava apenas despida de roupas, mas de força e coragem. Isto fica mais claro,
quando Marco lhe fala sobre sua ex-namorada, que tinha a mesma fobia. Na cena, ele narra à
Lydia, em flashback, o estado de Ângela (que seria o mesmo da toureira):

Marco: --- (...) Ela tinha a mesma fobia. Ela estava fora da barraca, horrorizada, indefesa e
completamente nua. Havia descoberto a cobra enquanto dormíamos.

Na casa de Lydia, Marco mata o animal, como um “macho” deveria fazer, mas logo
depois, chora, como jamais um “macho” deveria fazer. O jornalista é um homem que não
parece deixar dúvida quanto à sua sexualidade. Fato demonstrado no diálogo que as
enfermeiras travam na copa da clínica:

Enfermeira que cuida de Lydia: --- Adoro o namorado da toureira, aposto que é bem dotado.

Enfermeira chefe: --- Como sabe, já viu?

Enfermeira que cuida de Lydia: --- Não, mas essas coisas se vêem na cara deles. E
principalmente no volume entre as pernas! (risos) Eu tenho um sexto sentido.

Enfermeira chefe: --- Ele ficou muito amigo de Benigno, não?

Rosa: --- Sim.

Enfermeira chefe: --- Ou será gay também?

Enfermeira que cuida de Lydia: --- Claro que não, o que você está falando!

Rosa: --- Estão insinuando que Benigno é gay?

Enfermeira chefe: --- Eu não, é a voz do povo querida.


88

Porém, mesmo com sua preferência sexual confirmada, Marco é um homem sensível,
que chora facilmente de emoção. Ele chora ao ouvir Caetano Veloso cantar, chora ao matar a
cobra na casa de Lydia e chora ao assistir ao espetáculo no Café Müller. Já Benigno, que trata
de Alicia com mais sensibilidade que as próprias enfermeiras e tem a desconfiança das
pessoas quanto a sua preferência sexual, não consegue chorar. Na cena em que Marco
conhece Benigno, este diz ao jornalista que se lembra dele do Café Muller, pois chorou
diversas vezes. Neste momento coloca colírios nos olhos de Alicia e lhe cochicha ao ouvido,
que é aquele o homem que chorava no espetáculo e que ele havia mencionado.

Além desta, outra cena que também deixa claro o quanto o choro é aceito apenas nas
mulheres, é quando Lydia chora muito com o casamento da ex-namorada de Marco. Pois mais
tarde, El Niño vai confessar ao jornalista que tinha reatado o romance com a toureira há um
mês e era por ele (El Niño) que ela chorava. Lydia havia ligado para o toureiro para dizer que
havia chorado pensando nele, numa demonstração de como o choro da mulher é visto com
‘naturalidade’.

Segundo BARBOSA (1998), o contexto de masculinidade está calcado em valores


físicos que foram transformados em valores morais também. e por isso, a noção baseada no
sistema binário, qualificava a expressão emotiva como característica feminina, tendo o
homem que suprimi-la. Devido a isto, o menino é ensinado desde cedo que não deve chorar,
para que evite este sinal de fraqueza e vulnerabilidade e cumprir com o papel de macho que
lhe foi designado.

O enfermeiro Benigno trabalha, equivalendo-se à Lydia, numa profissão tipicamente


feminina, além de ter feito cursos para ser esteticista, maquiador e cabeleireiro. Os modos
femininos de Benigno não indicam uma homossexualidade, pois os estilos de gênero não
necessariamente coincidem com a orientação sexual. Mesmo assim, sua personalidade dá
margem a que pensem que ele seja homossexual e ele mesmo confirma isto ao pai de Alicia,
numa mentira relatada à enfermeira Rosa, quando usa a homossexualidade como disfarce (e
defesa) para que continue cuidando, de perto, de Alicia. Apesar desta aparente “fragilidade”,
será ele quem cometerá um ato de violência contra sua paciente, deixando-a grávida. Mesmo
já tendo uma vez dito à Alicia, ao entrar escondido no quarto dela, que não se assustasse, pois
era inofensivo.
89

Benigno chega a se irritar com uma pergunta feita pelo pai de Alicia sobre sua
sexualidade. Ele afirma à Rosa que o “Dr. Roncero utilizou a forma americana de se
expressar, que é mais sutil”, perguntando sobre sua orientação sexual. O enfermeiro mente a
ele, fazendo da homossexualidade um artifício, já que o pai da paciente havia lhe questionado
pelo motivo da grande intimidade que tinha com ela, manipulando seu corpo diariamente.
Mas de alguma forma, o enfermeiro também sabia que seus modos sensíveis e cuidadosos
com Alicia, faziam com que Dr. Roncero não apenas desconfiasse de sua “preferência por
homens”, como acreditasse nesta. Ele considera uma intromissão do psiquiatra e convence
Rosa do preconceito:

Benigno: --- Como se atreve a perguntar se gosto de homens ou mulheres? Quem se importa?

Rosa: --- Bem, eu gostaria de saber.

Benigno: --- Perguntou à enfermeira chefe se é lésbica? Perguntou a ti se gosta de


bestialidade ou cropofagia?

Rosa: --- Não. Tem razão. Essas coisas não se perguntam.

Neste filme, não há homo ou bissexuais – indivíduos ainda excluídos, por não
pertencer ao modelo de homem másculo e heterossexual –, mas Almodóvar encontra uma
forma de falar sobre o preconceito através dos modos de Benigno, considerados em
demasiado femininos. Ele coloca a personagem da enfermeira Rosa como representando a
vontade de uma sociedade sem preconceitos, mas ainda embebida nele. Ela trava um diálogo
com outras duas enfermeiras, onde demonstra que também é preconceituosa, pois fala desta
orientação sexual como se fosse algo ruim ou negativo. Elas suspeitam da homossexualidade
do enfermeiro, e Rosa diz:

Rosa: --- Meu Deus! Vou sair para que continuem falando mal dele.

As profissões geralmente recebem atribuições de gênero e são vistas como


masculinas ou femininas. Almodóvar mostra que a destreza com que Benigno exerce sua
profissão de enfermeiro, considerada feminina, não significa o estabelecimento de uma
90

homossexualidade. O diretor deixa transparecer o preconceito que ainda existe dentro do


universo profissional, por meio deste diálogo, pois as enfermeiras, por serem heterossexuais,
não são afastadas dos cuidados com pacientes homens. Mas a própria enfermeira chefe diz:

Enfermeira chefe: --- Não aprovo que ele (Benigno) seja tão próximo da paciente, mas o Dr.
Vega disse para eu não me preocupar. Que Benigno não gosta de mulher, gosta de homem.

Historicamente, a enfermagem representa o que a sociedade ocidental idealizou


como função do gênero feminino, dentro de suas formas representativas de poder: a
submissão, a dedicação e o afeto incondicional. Na modernidade, pode-se dizer que a prática
da enfermagem continua sendo caracterizada pelo empírico, o religioso e o feminino.
Segundo JUNGBLUT (2001), as questões de gênero, o processo de institucionalização e a
ética, atravessam o campo da prática cotidiana das enfermeiras, formando uma espécie de
intercampo no contexto da prática profissional. Esta seria a violência institucional, que está
muito ligada a uma sucessão de violências e sujeições aos poderes do Estado, Igreja e
burguesia.

Quanto à violência que o enfermeiro comete, podemos observar que não é a primeira
vez que Almodóvar aborda a violência como um tema passível de perdão, desde que ‘seja em
nome do amor’. Apesar de o estupro de Alicia por Benigno parecer algo detestável – como ele
próprio reconhece, por meio do pedido para Marco lhe conseguir outro advogado, pois o que
atual “praticamente vomita” quando o vê –, o diretor faz com que seu ato se transforme em
algo aceitável, e até mesmo merecedor de complacente ternura.

Já se tornou até mesmo comum aos filmes de Almodóvar, a violência ser abordada
de uma forma tal que não apenas não desejamos punição para o culpado, mas que ele consiga
o que deseja. Assim ocorreu com Victor Plaza, em Carne Trémula, que queria, por meio da
força física, obrigar Elena a ter um relacionamento com ele, pois ela havia tirado sua
virgindade e ele estava apaixonado. E com o seqüestro de Marina por Rick, em ¡Átame!, onde
a vítima acabou se apaixonando por ele.

A paciente violentada é Alicia, uma bailarina, numa demonstração de sensibilidade e


delicadeza. No entanto, apesar de estar em coma e teoricamente sem ação, ela apresenta um
poder de ‘aliciamento’ sobre os homens, Benigno e Marco. Seu corpo atraiu o enfermeiro de
tal forma que fez com que perdesse o controle e cometesse o ato que o fez ir parar na prisão, e
91

atraiu os olhares do jornalista por mais de uma vez. Isto é demonstrado pela fala de Benigno
ao vê-lo conversando com a paciente, quando o jornalista chega a perceber as mudanças
provocadas no corpo de Alicia, pela gravidez:

Benigno: --- Ainda que negue, percebi que estava olhando para os seios dela.

Marco: --- Difícil evitar, estão maiores.

Além disto, é ela, quem após quatro anos de coma, contraria todas as expectativas
médicas e quase que por um milagre, acorda. Apesar de parecer frágil, bem ao contrário de
Lydia, será Alicia quem ‘retornará’ à vida, e não a forte toureira, que vem a falecer depois de
alguns meses.

O milagre que faz com que Alicia ressurja do coma é mencionado numa conversa
entre Benigno e Rosa, na qual o enfermeiro diz que cortará o cabelo da paciente tal qual
estava quando ela chegou à clínica, para que ela não note a diferença quando acordar. Neste
momento, Rosa diz que acordar após quatro anos seria um milagre e ela não acredita em
milagres, ao que Benigno contesta dizendo que deveria crer, pois precisa deles.

Almodóvar discute nesse momento a necessidade e eficiência destas crenças. Ou


mesmo a fraqueza eminente do homem, que precisa se apoiar em algo “divino” para admitir
aquilo que não consegue explicar ou para ter esperança em algo, ao invés de buscá-lo por si
mesmo, numa demonstração de conformismo. Ele demonstra seu repúdio à religião e
principalmente à Igreja Católica, que mesmo não tendo uma importância fundamental na vida
da maioria dos espanhóis, retém a maioria dos fiéis no País.

O filme, além de nos conduzir por um labirinto de questionamentos acerca das


relações de gênero, leva-nos a repensar profundos dilemas éticos e teológicos. Durante os
aprontamentos de Lydia, Marco e a irmã da toureira conversam sobre os missionários que
violentaram freiras, em mais uma demonstração de aversão à Igreja, que o diretor já esteve
expressando em obras anteriores:

Irmã de Lydia (acendendo velas para os santos): --- Se não pudermos confiar nos padres, o
que vai ser de nós?
92

Marco: --- Antes, eles violentavam as nativas. Por causa da AIDS, passaram a violentar as
freiras.

Irmã de Lydia (horrorizada): --- E eu, que colocava os missionários num pedestal.

Senhor: --- Não tenho certeza de que todos eles são estupradores.

Marido da irmã: --- Não, alguns são pedófilos também.

Esta crítica à Igreja é mencionada também através das medalhas de santos que Lydia
carrega sempre no pescoço e que não serviram para lhe salvar do acidente na arena. E num
outro momento, já na sala de espera da U.T.I., a irmã da toureira, ao ouvir dos amigos que
tenha fé, responde que continua acendendo as velas, “mas ter fé dá muito trabalho”.

A herança religiosa que a irmã de Lydia recebe, numa quase obrigatoriedade de


demonstrar sua crença parece ser compatível, na visão do diretor, com a mulher que ela
representa. Enquanto Lydia é independente e autoconfiante, no modelo do que seria uma
‘nova mulher’, sua irmã, além de ter sido contra sua a carreira de toureira, por ser uma
profissão tipicamente masculina, revela a dependência dentro da relação conjugal, bem como
o tipo de posição que se coloca diante do marido:

Irmã de Lydia: --- Tenho de voltar à Córdoba. O bar está há três semanas fechado, as
crianças estão na vizinha e não estou dando atenção a ele (referindo-se ao marido).

Marido: --- Não se preocupe, mulher.

Além destas, uma outra mulher traz os modelos estereotipados tão freqüentes em
Almodóvar. Esta é Concierge, a zeladora do prédio de Benigno, que representa a mulher
tradicional. O diretor apresenta uma senhora com características tradicionalmente atribuídas
às mulheres: curiosa, fofoqueira, exibida e intrometida. Quando Marco lhe pede as chaves do
apartamento de Benigno, ela faz diversos rodeios para saber o que ocorreu com o enfermeiro:

Zeladora: --- E Benigno? O coitado não teve sorte nem na cadeia. Recebeu pouca
publicidade. Não apareceram redes de TV ruins ou paparazzis. Com tantos programas ruins
e ninguém se dignou a aparecer e me entrevistar. É triste o estado das mídias de massa neste
93

país. (...) A propósito, sabe porque Benigno está na cadeia? Era tão quieto que da última vez
que veio aqui, não deu um piu.

Marco: --- Benigno é inocente.

Zeladora: --- Eu sei, mas inocente de quê?

Marco: --- Não sei.

Zeladora (incisiva): --- Claro que sabe, só não quer me dizer. Mas eu vou descobrir.

Almodóvar faz, através da zeladora, uma nova crítica aos programas de televisão
voltados para o grande público. Mas desta vez, ele responsabiliza também os telespectadores,
pois são estes que dão margem para que as televisões apresentem uma programação de baixo
nível.

Já o que NOLASCO (1995) chama de o “novo homem” é claramente representado


por Marco, que é forte e seguro, mas também atencioso e sensível. Mas Almodóvar demonstra
através de dois personagens bastante secundários, o quanto estas características se refletem no
comportamento dos homens, no caso, em momento de grande tensão.

O diretor da clínica El Bosque é o profissional oposto ao Dr. Vega (o médico


responsável pelo andar em que se encontram Alicia e Lydia), pois se apresenta de maneira
arrogante, rígida, grosseira e indelicada, numa demonstração de autoridade forçada. Isto é
demonstrado numa reunião na clínica, onde chama Benigno de retardado e é repreendido pelo
Dr. Vega, que pede um “pouco mais de tranqüilidade e respeito”. Almodóvar parece querer
demonstrar com estes dois personagens o quanto pessoas numa mesma posição e situação
podem se comportar de maneiras tão distintas, pois por mais que seu cargo fosse superior ao
do médico, o deste era superior ao de Benigno, e no entanto, tratava-o com muito respeito.

Um outro aspecto que Almodóvar parece querer tratar é o da inveja que o homem
tem da mulher. NOLASCO (1995) fala sobre esse tema, citando o mito de Adão e Eva,
representado no filme, por um curativo que Alicia tem sobre a costela esquerda. A inveja,
inicialmente tomada como um sentimento de mulheres, mostra-se presente nos homens, por
meio da análise deste mito bíblico, onde a primeira mulher nasce de um homem, e
posteriormente, casa-se com este homem-mãe, numa demonstração de inveja do poder
feminino de engravidar.
94

O diretor afirmou que um dos temas que quis abordar nesta película era a amizade
entre dois homens. E a forte amizade entre o enfermeiro e o jornalista é demonstrada com
muita sensibilidade em diversos momentos. Na cadeia, onde Benigno está preso, ocorrem os
momentos de maior ‘encontro’ entre os dois. Uma cena em que a amizade deles se mostra
como desprovida de preconceitos, tão comuns a grande parte dos homens, dentro de um
relacionamento, é a que o enfermeiro diz que esteve pensando muito nele e gostaria de
abraçá-lo, pois havia abraçado muito poucas pessoas na vida – numa referência à solidão.

Neste momento, Benigno diz que pediu um vis-à-vis – recurso para que o preso
possa ter contato físico com um visitante – e perguntaram se Marco era seu namorado, mas
não ousou dizer que sim, receando que ele se incomodasse. Mas o jornalista diz que não se
incomodaria nem um pouco, que ele podia dizer o que quisesse. E Benigno coloca sua mão
rente ao vidro, para que Marco posa colocar a sua do outro lado, junto à do enfermeiro, numa
simetria, que os deixa com lágrimas nos olhos. Este momento reforça a idéia que Almodóvar
quer passar com a proximidade possível, entre dois homens, numa relação apenas de amizade,
onde eles podem se tocar e demonstrar carinho, sem serem parentes próximos ou
homossexuais.

O tema da solidão, causado pelas desigualdades e problemas de comunicação,


expresso por Benigno ao psiquiatra e presente nos outros personagens, é uma forte
característica e aparece de distintas formas em cada um. Alicia tem muitas pessoas ao seu
redor, mas não pode se relacionar com nenhuma delas. Lydia responde a Marco, quando este
lhe pergunta se ela quer que ele durma no sofá do quarto do hotel, que ‘não’, pois tem de
aprender a ficar só. Numa dica de que devemos também saber conviver com a solidão, que
fatalmente nos aparecerá em algum momento.

Marco também confessa à Lydia a solidão, quando esta lhe pergunta se está solteiro e
ele responde: “estou só”. Mas o momento mais enfático, e que também significa um
prenúncio do que ocorreria entre Benigno e Alicia, é quando o Dr. Roncero vai à Clínica e
pergunta a Benigno sobre sua orientação sexual:

Dr. Roncero: --- Tem companheiro?

Benigno: --- Mais ou menos. Não estou mais sozinho, não tenho mais esse problema.
95

O enfermeiro mente quanto à preferência por homens, mas fica implícito que sua
solidão foi afastada pela companhia de Alicia. Nesta cena, quando o psiquiatra chega ao
quarto de Alicia, Benigno a está massageando. Ele chega a fazer movimentos que indicam
muita habilidade com as mãos, mas também muito erotismo.

Benigno vai relatar, algum tempo depois, que os quatro anos que esteve cuidando de
sua paciente foram os melhores de sua vida. Isto nos faz pensar na relação patológica que
mantém com Alicia, demonstrando traços perversos, como o gosto pelo outro inerte; o
fetichismo, ao roubar a presilha do quarto da paciente, fazendo deste um objeto valioso; e
mesmo quando afirma que nada para ele importa, pois o problema não é estar preso, mas sim
não estar perto nem ter notícias de Alicia.

O enfermeiro parece só conseguir se relacionar bem com mulheres que dependam


dele. Ele necessitava que Alicia estivesse naquele estado e chega a dizer, na carta que escreve,
da prisão, a Marco, que escolheu aquele dia para tentar se juntar a sua paciente e amada – pois
foi neste dia que se suicidou, tomando muitos comprimidos para, se tivesse ‘sorte’ ficar em
coma ‘ao lado’ de Alicia – porque estava chovendo. Ele explica que a chuva devia ser “bom
presságio”, pois no dia em que ocorreu o acidente de Alicia, estava chovendo. Ou seja, o
importante para ele é que este foi o dia em que ela passou a ficar sob seus cuidados e à sua
mercê e não o infortúnio da bailarina.

Em outra cena, chega ao quarto de Lydia e começa a passar creme no rosto da


toureira, afirmando a Marco que ela não está bem, que sua pele está seca. O enfermeiro parece
demonstrar até mesmo uma frieza ao tratar com tanta naturalidade as pacientes naquele
estado, mas na verdade, é daquela forma que ele consegue se relacionar com elas, pois pode
manipulá-las da maneira que deseja, numa relação de dominação.

Estes traços também são demonstrados na relação que mantinha com a própria mãe,
de quem cuidou desde que era quase um menino. O enfermeiro admite a Dr. Roncero que a
mãe não era inválida nem louca, mas um pouco preguiçosa, por isso era ele quem a banhava,
cuidava de sua aparência – pois afirma que ela era muito bonita. Ele afirma que fazia quanto
mais fosse preciso para ela, sem uma noção de moralidade dentro de uma relação entre mãe e
filho. A partir desta relação, Benigno passa a reprimir uma heterossexualidade, pois isto o
transformaria num incestuoso. Sua homossexualidade surge então como uma estrutura de
defesa, mas o incesto será confirmado, mais tarde, com a relação sexual que mantém com
Alicia, numa identificação que ele faz desta com o papel de sua mãe.
96

Porém, estas características exageradas do personagem que implica ingenuidade e


inocência desde o nome às ações, parecem ser a maneira que Almodóvar encontrou para
demonstrar o quanto são excluídos e vistos como diferentes aqueles que fogem ao modelo
hegemônico de homem. SIQUEIRA (1999) comenta que corresponder à masculinidade
hegemônica significa um grande esforço no sentido de adestramento do corpo e das emoções.
Este adestramento tem como preço a exclusão do masculino das trocas afetivas significativas,
por isso esta autora afirma que talvez, os homens estejam assumindo um jeito “feminino” de
serem pais, na busca de uma nova paternidade. Ou seja, o cuidado e a demonstração de
carinho são características que um homem tradicional não poderia assumir para si, sem que
fosse considerado um pouco feminino.

Almodóvar portanto não enfatiza o comportamento do enfermeiro como constituintes


de um ser patológico, mas como fazendo parte das ações de um indivíduo com modos
maternais, vivendo uma história de cuidado e ternura com duas mulheres que amou. Seu
personagem deveria mais ser visto como um adulto que pela história de vida de abandono
precoce pelo pai e convivência quase que exclusiva com a mãe, o deixaram numa condição
infantil, onde o que melhor representa isto é a constante fantasia que Benigno faz da
realidade. Sua idéia de se casar com Alicia é a prova de que ele não vê a paciente na
realidade, mesmo que Marco queira convencê-lo de que isto é um absurdo. Pois na sua
fantasia, ela está disponível como qualquer outra mulher.

O personagem de Marco é quem poderá assumir as fantasias de Benigno de forma


mais madura, reelaborada. Benigno se suicida por não conseguir lidar com a realidade, e o
que era nele, fantasia ou mesmo patologia, poderá ser reformulado através da figura do
jornalista. Almodóvar demonstra portanto o desenvolvimento e a evolução de um homem,
com o crescimento de Benigno por meio de Marco, que consegue lidar com o instinto de vida
e de morte, as perdas, ou seja, as coisas que então presentes em nós. Este fato é demonstrado
também na cena na prisão em que o jornalista e o enfermeiro colocam as mãos, a de um rente
a do outro, divididas pelo vidro. Quando as mãos ‘se unem’, a imagem de Marco se sobrepõe
à de Benigno.

Os modos delicados de Benigno se devem à relação com sua mãe, que foi
praticamente a única pessoa com quem se relacionou até a idade adulta. Apesar disto,
Almodóvar apresenta a figura da mãe numa posição diferente da que esteve em sua última
película Todo Sobre mi Madre, pois enquanto neste a maternidade era dissecada, em Hable
con Ella, não chega a ter tanta importância, tanto que a única mãe que tem uma presença mais
97

forte é a de Benigno, que sequer aparece, pois apenas ouvimos sua voz em uma das cenas. A
única mãe que aparece é a de Alfredo, no filme mudo, que não só está em preto-e-branco,
como não fala nada. Sobre ela sabemos que é ‘terrível’ e não vê o filho há mais de 10 anos.

Para discutir sobre as relações de gênero e os problemas de relacionamento,


Almodóvar utiliza os mais variados recursos, desde os tradicionais diálogos, a música, a
dança e algumas outras metáforas visuais, das quais uma de grande importância é uma
película muda de sete minutos, “Amante Menguante” (O Amante que Encolheu), que ele
inseriu dentro do próprio Hable con Ella.

Numa das noites de sua folga, Benigno vai à cinemateca, assistir ao filme em preto-
e-branco “Amante Menguante”. No dia seguinte, enquanto massageia Alicia, ele não se sente
bem e a cobre novamente com o lençol. Ele começa a narrar-lhe o filme, onde uma cientista
descobre uma fórmula revolucionária de emagrecimento, mas quando seu noivo bebe, começa
a diminuir cada vez mais de tamanho, até que, anos depois, numa noite, ainda sem ter
encontrado o antídoto, enquanto ela dorme, ele entra em sua vagina e “fica dentro dela para
sempre”. Este é o recurso utilizado para representar o que de fato ocorre neste momento, mas
que só vai se revelar mais tarde: Benigno havia engravidado Alicia. Neste instante, a tela fica
amarela e um fluxo vermelho a invade, indicando o que havia ocorrido: o estupro e a
concepção.

Almodóvar explica que esta é uma história que ele havia escrito há muito tempo e
encontrou a oportunidade nesta película de realizá-la. O filme em preto-e-branco “Amante
Menguante” introduzido para servir, como diz o próprio Almodóvar, de “tapadeira” para o
que realmente estava acontecendo entre Alicia e Benigno, foi muito comentado, mas não é o
primeiro que o diretor insere em uma obra sua. Em Matador, quando Maria Cardenal e Diego
Montes se encontram no cinema, está sendo rodado Duelo al Sol, e em Carne Trémula, passa
na televisão Ensaio de um Crime, quando Elena briga com Victor no apartamento dela, e um
tiro é disparado.

O próprio fato de o filme ser mudo já é em si bastante significativo. Primeiro devido


a Alfredo não ouvir o conselho de sua amante. Pois para se vingar por ela tê-lo chamado de
egoísta, ele bebe a fórmula, que ainda não havia sido testada. Segundo; a película não tem cor
nem som. E terceiro, porque o cinema mudo era a nova paixão de Alicia que, ironicamente
passa a não poder falar por um longo período. Almodóvar parece querer mostrar, com o
desfecho do filme mudo, que mesmo o grande amor não resiste à falta de diálogo em uma
relação.
98

O cartaz do filme: um homem minúsculo amparado e sob o domínio das mãos de


uma mulher, praticamente como se fosse um brinquedo, é de fato, o desejo que muitas
mulheres podem ter. Poder inverter uma situação histórica de submissão e dependência das
mulheres pelos homens, é realmente tentador. Porém o desejo dos homens de investigar ou
desbravar o relevo do corpo feminino também está aí representado, pois é Almodóvar quem
diz, que “fazia muitos anos que sonhava com a imagem do amante passeando pelo corpo de
sua amada, como se fosse uma paisagem”35.

Amparo é a cientista que elaborou uma fórmula para emagrecer, e Alfredo é seu
amante, que teima em tomar a fórmula antes de ser testada, e o efeito é minguar até
desaparecer. Mas antes disto, ele mergulha dentro da vagina de Amparo, numa referência aos
conceitos freudianos sobre o desejo de retornar ao útero materno. No plano da teorias sexuais
infantis conscientes ou pré-conscientes, a atribuição de um pênis à mãe e às meninas vai
servir como uma boa defesa dos meninos contra os desejos de penetrá-las, e por isso correr o
risco da castração.

Com o desenvolvimento da narrativa fílmica desta película, pudemos perceber que o


diálogo ou ao menos a tentativa de estabelecimento deste, foi a base fundamental de
sustentação para uma relação, seja ela qual for. E para que este diálogo se dê é importante o
‘falar com ela’ ou ‘falar com ele’, pois a diferença está justamente na distância que separa o
‘falar com’ do ‘falar para’ alguém. Almodóvar parece querer mostrar que o ‘falar para’ e o
calar se dirigem ao mesmo caminho: a solidão.

Mas ao mesmo tempo em que a palavra e o sexo devolvem a uma das personagens a
vida, são fontes da perdição de um dos homens. Talvez por que para tudo haja conseqüências
boas e más. É isto que a professora de balé, Katerina, vem falar. Ela é uma típica mestra, que
não apenas dá aulas, mas lições. No final do último espetáculo, ao qual assiste com Alicia e
encontra Marco, ela e o jornalista travam um diálogo que deixa claro o quanto é difícil e
complicado o ‘falar com’:

Katerina: --- Algum dia nós temos de conversar.

Marco: --- Sim, mas vai ser mais simples do que imagina.

Katerina: --- Nada é simples. Sou professora de balé e nada é simples.

35
site oficial. Tradução minha
99

É este espetáculo que deixa claro o que Almodóvar quis dizer sobre as relações entre
casais. Katerina comenta com Alicia sobre a coreografia: uma cantora deitada vai passando
por sobre os homens, que a erguem com as mãos enquanto estão deitados e enfileirados, no
chão:

Katerina: Ondas cruéis. O macho embaixo, a fêmea por cima.

A professora de Alicia incita uma discussão quanto à posição entre homens e


mulheres dentro de um relacionamento, ou mesmo, dentro da sociedade. Na apresentação, os
homens estão por baixo, mas a mulher é manipulada, como se não conseguisse andar. Ela é
levada pelas mãos masculinas. Está por cima, mas numa condição de dependência. Esta cena
indica toda a situação de Alicia no filme. Assim como no espetáculo que inicia Hable con
Ella, as mulheres ainda estão de camisola e ‘dormindo’, neste, só há uma mulher, que já está
acordada e falando, mas ainda não consegue andar – pois somente a bailarina sobreviveu, mas
ainda está se recuperando. A cantora em cena, é levada pelos homens, primeiro numa posição
deitada que indica o estado inerte, depois, outros homens a erguem, para que possa se levantar
e praticamente andar sozinha.

A representação da situação de Alicia neste espetáculo, ficará mais clara com a


segunda parte do mesmo. Surgirão casais, indicando a possibilidade de um romance. Estes
casais dançam, mas as mulheres fazem um rebolado, que lembra uma pessoa com debilitação
ou deficiência física, como se ‘puxasse’ uma das pernas. E gradualmente, os casais que vão
aparecendo, estão dançando cada vez mais sintonizados, pois a mulher vai deixando aos
poucos de fazer aquele movimento exagerado na perna. A então ex-paciente Alicia já
despertou do coma, mas ainda tem de enfrentar uma série de sessões de intensa fisioterapia
para sanar os efeitos de quatro anos com o corpo parado. Ela ainda está andando com a ajuda
de muletas, mas tudo indica que superará cada etapa e voltará a dançar como antes.

Neste momento, no teatro, aparece uma cadeira vazia entre as de Marco e Alicia.
Provavelmente a que Benigno ocuparia e que em sua ausência, abençoou a relação, ligando-
os, não deixando nenhum obstáculo entre eles. Isto é confirmado pela carta do enfermeiro a
Marco, onde Benigno escreve que está deixando para ele, o apartamento que construiu “para
viver com Alicia”. Então surge a legenda: “Marco e Alicia”, anunciando o relacionamento
que terá início.
100

Marco parece então ter encontrado o que queria: a felicidade de um grande amor.
Pois na primeira noite que passa na Clínica, é convidado por Benigno para entrar no quarto de
Alicia e no momento em que o jornalista conversa com o enfermeiro, aparece a capa do livro
La Noche del Cazador (A Noite do Caçador), como se indicasse que ele ainda estava à
procura de algo e naquele momento iria achar.

Almodóvar mostra com este filme, que não aprecia exatamente as mulheres, mas a
sensibilidade que elas ou os homens possam demonstrar. A força que une e move o
enfermeiro Benigno e o jornalista Marco são comparáveis ao lado humano e solidário de
Manuela e Huma Rojo em Todo Sobre mi Madre. A estrutura narrativa dos dois filmes é
bastante similar. Ambos colocam suas personagens principais como espectadores de tragédias
alheias. É como se o drama do palco – o teatro de Tenessee Williams em Todo Sobre mi
Madre e a dança de Pina Bausch em Hable con Ella – saltasse das coxias e viesse invadir e
modificar a vida das personagens.

Talvez por isso, Hable con Ella comece justamente no momento em que terminou
Todo Sobre mi Madre: um insert de uma cortina de teatro. Mas não é só na organização
fílmica e na relação com as personagens que os dois filmes se assemelham. No que diz
respeito aos temas e na maneira de tratá-los, as duas obras cabem perfeitamente num mesmo
contexto. Todo Sobre mi Madre falava sobre comportamentos fora dos padrões considerados
normais pela sociedade: transexualismo, prostituição, dependência química. Hable con Ella
chega a abordar o pesado tema da necrofilia.
101

Considerações finais

O que é próprio do homem e da mulher afinal? Por muito tempo foi construída e
seguida uma idéia de masculino e feminino como inerentes às figuras do homem e da mulher,
respectivamente, até que os estudos feministas – indiscutivelmente fundamentais para uma
nova noção de representação sexual – trouxessem, por meio dos ‘estudos das mulheres’, a
conceitualização e inserção do termo gênero dentro do contexto acadêmico.

A difícil compreensão e conceitualização do termo se deve muito a ele não ter vindo
substituir nenhum outro, mas também por desconstruir toda uma lógica cultural, social e
histórica de relação entre homem e mulher. A mulher conseguiu vencer muitas barreiras que a
impediam de competir ou mesmo conviver igualitariamente com um homem. Ela lutou e
continua lutando contra uma forma de opressão arraigada dentro de uma sociedade que delega
posições de acordo com o sexo.

Com a independência feminina, conquistada a muito custo por parte das mulheres,
alguns homens começaram a perceber que também são vítimas de uma educação castradora,
onde eles têm de seguir modelos e controlar emoções. Mas uma noção de que ambos os sexos
estão livres de comparações, pois cada um pode assumir as mesmas ou distintas
características, ainda não foi alcançada.

A pós-modernidade vem mostrar o quão confuso é admitir feminilidade às mulheres


e masculinidade aos homens quando um único sujeito passa a assumir diversas identidades,
algumas até mesmo contraditórias. Toda esta mudança por que passaram homens e mulheres e
suas diferentes identidades podem ser percebidas através dos meios de comunicação, com o
passar dos anos.

O cinema exemplifica bem como ambos os sexos e suas relações entre si foram
sendo representadas diferentemente com o decorrer do tempo. Homens com características
assumidamente femininas e mulheres fortes não são mais sinônimos de homossexualidade ou
desvios, apesar de ainda existir olhares conservadores. Quem comumente apresenta e defende
esta idéia de que homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais, transexuais, bissexuais
possam ter características em comum, é o cineasta espanhol Pedro Almodóvar.

O diretor ganhou fama e foi tachado como ‘diretor de mulheres’ por ter desenvolvido
muitos papéis femininos fortes e ter trabalhado mais com mulheres que com homens. Ele
possui uma filmografia recheada com diversas películas onde inegavelmente o poder feminino
102

é aclamado. Mas a negação de Almodóvar quanto a esta afirmativa pode ser levada em
consideração.

Ele nega que aprecie mais as mulheres ou que prefira trabalhar com elas, mas assume
que as considera interessantes e inspiradoras para comédias – gênero ao qual não abandona
nem mesmo ao compor dramas. E boa parte da crítica e do público começa a acreditar nisto.
Não porque ele tenha insistentemente falado, mas por um argumento constituinte de seu 14o
longa-metragem, Hable com Ella (Fale com Ela, 2002): Os dois protagonistas são homens.

A partir de então, o cineasta é dado como diferente e novamente tenta convencer a


todos de que não mudou, pois sempre falou tanto de homens quanto de mulheres em seus
filmes. No entanto, numa recapitulação de sua filmografia, fica clara a preferência em abordar
as mulheres. E ele as mostra tanto em sua força, quanto mostra os homens em sua
vulnerabilidade.

Subvertendo qualquer padrão ou modelo construído de como deve ser um homem ou


uma mulher, Almodóvar demonstra acima de tudo a androginia dos sexos, fazendo crer numa
equivalência, igualdade ou o que mais podemos anunciar a sexos que se deixam assumir em
suas identidades.

Não podemos negar uma predileção do cineasta em falar de mulheres. Gosto que se
deve à sua criação, rodeado por mãe e irmãs, mas também por ter sido delegada e assumida
pelas mulheres, características que ele considera interessantes, como o ‘não ter medo do falar
de seus medos’. Mas podemos também pensar em como os homens ainda são cobrados
socialmente para que não demonstrem características femininas, e como as mulheres
assumem cada vez mais aquilo que foi historicamente designado aos homens, como algumas
profissões, vestimentas, cargos de chefia, etc.

Em Hable con Ella, Almodóvar nos apresenta mulheres fortes e independentes e


homens sensíveis e amáveis. Paradoxos presentes na película fazem com que pensemos a todo
instante sobre as concepções que temos a respeito dos gêneros. O cineasta faz com que seus
personagens demonstrem o quanto o ser humano pode ser ambíguo em seus atos, e isto
independe de ser homem ou mulher.

Apesar de Almodóvar ter privilegiado as mulheres em muitas de suas películas,


nesta, ele demonstra mais uma vez, sua admiração por ambos os sexos, contanto que tenham
identidade própria. Isto já tinha sido feito anteriormente em Todo Sobre mi Madre, quando a
103

figura feminina era praticamente unânime dentro da película e a personagem que mais
demonstrava uma segurança identitária era o travesti Agrado.

Agora o personagem de Marco vem representar o que é o ‘novo homem’. Um


homem indubitavelmente viril, mas que chora facilmente de emoção. Lydia é a toureira que
sofre por amor e “morre” de medo de cobra, mas que é valente como qualquer homem, na
arena. Alguém, que independente de seu sexo pode assumir sua fraqueza ou sua força, seus
medos ou suas conquistas, suas emoções ou sua frieza. Este alguém pode ser um homem ou
uma mulher.

Com Hable con Ella, o diretor confirma sua posição em favor da crença na
androginia do ser humano e não consegue negar um apreço especial pelas mulheres, que
mesmo em estado de coma, fizeram-se presente tanto quanto os homens. Pedro Almodóvar
mostra que feminilidade e masculinidade não são variáveis exclusivas de um ou outro sexo,
mas de ambos. Que a identidade de um indivíduo se dá com o assumir de suas características.
E que algo é tão importante quanto o viver, ou mesmo necessário a este: o falar.
104

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Revista de Bibliografia de Geografia y Ciencias Sociales (http://www.ub.es/geocrit/b3w-
262.htm). Acessado em 11 jul. 2003.
110

UOL. Em um mundo sem Pedro Almodóvar. In: Set On Line


(http://www.uol.com.br/setonline/reportagens/185_almodovar_index.shtml). Acessado em 20
jun. 2003.

ZETA FILMES. Hable com Ella de Pedro Almodóvar. In: Zeta Filmes
(http://www.zetafilmes.com.br/criticas/hableconella.asp?pag=hableconella). Acessado em 13
jul. 2003.

Vídeos:

Laberinto de Pasiones (Labirinto de Paixões), Pedro Almodóvar, 1982.

Entre Tinieblas (Maus Hábitos), Pedro Almodóvar, 1983.

Matador (Matador), Pedro Almodóvar, 1985.

Mujeres al Borde de un Ataque de Nervios (Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos),


Pedro Almodóvar, 1987.

¡Átame! (Ata-me), Pedro Almodóvar, 1989.

Kika (Kika), Pedro Almodóvar, 1993.

La Flor de mi Secreto (A Flor do Meu Segredo), Pedro Almodóvar, 1995.

Carne Trémula (Carne Trêmula), Pedro Almodóvar, 1997.

Todo Sobre mi Madre (Tudo Sobre Minha Mãe), Pedro Almodóvar, 1999.

Hable con Ella (Fale com Ela), Pedro Almodóvar, 2002.

La Ley del Deseo (A Lei do Desejo), Pedro Almodóvar, 1986.

Tacones Lejanos (De Salto Alto), Pedro Almodóvar, 1991.

Tudo Sobre Desejo – o cinema passional de Pedro Almodóvar, Nick Cory Wright, 2003.
111

ANEXOS

• Pedro Almodóvar

Infância Ainda criança, com a família

Na adolescência, com uniforme de militar Nos anos 70

Nos anos 80 Nos anos 90


112

• Filmografia

Cartaz de Pepi, Lucy, Bom y Otras Chicas del Cartaz de Laberinto de Pasiones (1982)
Montón (1980)

Cartaz de ¿Que He Hecho Yo Para Merecer


Cartaz de Entre Tinieblas (1983)
Esto? (1984)
113

Cartaz de Matador (1985) Cartaz de La Ley del Deseo (1986)

Cartaz de Mujeres al Borde de um Ataque de Cartaz de ¡Átame! (1989)


Nervios (1987)
114

Cartaz de Tacones Lejanos (1991) Cartaz de Kika (1993)

Cartaz de Carne Trémula (1997)


Cartaz de La Flor de mi Secreto (1995)
115

Cartaz de Hable con Ella (2002))


Cartaz de Todo Sobre mi Madre (1999)
116

• Masculino e Feminino nos filmes de Almodóvar

Victor e Elena – homem inocente e violência Carbe Trémula (1997) – filme de homens, onde
perdoada. (Carne Trémula (1997) um é inocente, outro traído e outro (acima)
fica deficiente

Freiras de Entre Tinnieblas (1983) – crítica à Madre Superiora dorme com uma viciada – ela
Igreja também é viciada em heroína

Andréa Caracortada em Kika (1993) – crítica Kika e seu marido – ela é inocente, mas
aos meios de comunicação de massa consegue viver sua própria vida, no final
117

Homossexualidade assumida em Laberinto de Sexília faz sexo com seu pai – incesto e homem
Pasiones (1982) averso ao sexo. Laberointo de Pasiones (1982)

Leo e Paco – mulher dependente do casamento Leo encontra um novo amor e realização
em La Flor de mi Secreto (1995) profissional

Mãe e irmã estereotipadas em La Flor de mi


Secreto (1995) Dona de casa sofredora em ¿Que he Hecho
Yo? (1984)
118

Angel e Diego Montes – inocência X virilidade Diego e Maria Cardenal – androginia do ser
em Matador (1985) humano

Juiz Dominguez e Rebeca em Tacones Lejanos Rebeca, Becky e secretária – mulher frustrada,
(1991) – é ele quem está apaixonado de sucesso e fútil

O transexual Tyna, em La Ley del Deseo La Ley del Deseo – filme de homens
(1986) homossexuais
119

• Mujeres al Borde de um Ataque de Nervios

Elenco Pepa – em momento de desespero, prepara


bebida com soníferos para Iván

Lucía – roupas e cabelo dos anos 60 Carlos e Candela – ‘novo homem’ e mulher
estereotipada

Marisa tem um orgasmo dormindo – sem


precisar da ajuda de um homem
120

• Todo Sobre mi madre

Esteban escrevendo o roteiro sobre sua mãe Manuela e Esteban em dia de chuva à espera
do autógrafo de Huma Rojo

Manuela desesperada ao ver o filho atropelado Manuela em frente ao cartaz da peça Um


Bonde Chamado Desejo, na qual atua Huma

Manuela começa a trabalhar para Huma Manuela cuidando da irmã Rosa – nova
chance de ser mãe
121

Agrado – travesti é um personagem com Huma e Nina se preparando para entrar em


identidade própria cena – romance lembra relação ‘mãe-filha’

Huma em cena – não será Blanche também na Lola (Esteban) beija seu segundo filho –
vida esperança de um ‘novo homem’
122

• Hable con Ella

Espetáculo no Café Muller – bailarinas de olhos Espetáculo final – mulher fala e começa a andar
e boca fechados

Alicia – há quatro anos em coma Marco olha o corpo de Alicia aliciante

Benigno observa Alicia pela janela Alicia se espanta ao ver Benigno em seu quarto
123

Lydia – a toureira valente na arena Lydia abraça Marco, mas ainda sofre de amor
por El Niño

Entrevista de Lydia – crítica à mídia Lydia entra em coma e fica na mesma clínica
onde está Alicia

Caetano Veloso canta Cucurrucucú Paloma Marco – homem que chora de emoção
124

Cartaz do filme mudo Amante Menguante Reunião da equipe do Dr. Roncero com o diretor
da clínica

Reflexo de Marco sobre a imagem de Benigno – a Katerina é a professora de balé que dá lições e
evolução do homem mostra a delicadeza de ambos os sexos

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