Professional Documents
Culture Documents
Centro de Humanidades
Projeto Experimental
FORTALEZA
JANEIRO DE 2004
2
Centro de Humanidades
Projeto Experimental
FORTALEZA
JANEIRO DE 2004
3
BANCA EXAMINADORA
- Luiz Gonzaga
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, que permitiu que eu concluísse este trabalho, à medida que o tempo se encurtava.
À minha orientadora, Ana Rita, por tamanha paciência, apoio, disposição, carinho, atenção,
instrução e comprometimento que teve comigo durante a feitura deste trabalho.
À minha família, que teve de se privar por tantas vezes de minha presença durante este
semestre.
A cada um dos meus amigos, de dentro ou fora da Universidade, que me apoiaram e ajudaram
a realizar este trabalho.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................... Pág. 07
2 – A OBRA DE ALMODÓVAR................................................................................................
Pág. 40
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................................... Pág.104
ANEXOS..................................................................................................................................... Pág.111
7
Introdução
Este mesmo sexo feminino, que já foi interpretado de tantas formas: uma prostituta
grávida de um travesti, uma freira homossexual e viciada em drogas, um transexual
violentado pelo pai, e toda sorte de personagens que o cineasta pudesse criar para discutir
temas principalmente ligados à sexualidade, trouxe à tona uma outra discussão: onde estão as
identidades de gênero?
Um cinema composto por tantos párias e mulheres parecia indicar algo mais que uma
simples preferência por trabalhar com estas. Almodóvar começou a produzir em um período
de contravenção na cultura espanhola, onde em fins da era da ditadura franquista, grupos
clamavam por liberdade, inclusive de expressão. Foi neste cenário que o cineasta e seus
amigos se colocaram à frente de movimentos culturais, que influenciaram expressivamente
sua obra.
Para tornar mais clara a compreensão do que representa este filme dentro do conjunto
cinematográfico produzido por ele, tentaremos fazer uma exposição de não somente quem é
esta figura ‘Pedro Almodóvar’, mas em que ambiente ele construiu a base de sua produção.
No segundo capítulo, Pedro Almodóvar e obra serão expostos. Serão feitas também
recapitulação e apresentação de fatos de significativa importância dentro do contexto espanhol
e madrilenho, ambiente em que viveu o cineasta as conseqüências de uma guerra civil e uma
repressiva ditadura. Uma análise de gênero introdutória tentará abordar a feminilidade e a
masculinidade dentro do conjunto de sua obra, sendo enfatizada a exposição de duas de suas
películas, consideradas extremamente “femininas”.
1. O conceito de Gênero
“Cem anos depois”. Prerrogativa comum no cinema, mas que pode resumir uma
história ainda em construção. Um século se passou e as mulheres continuam lutando por
igualdade de direitos e por respeito às diferenças. Trajetória iniciada pelo Movimento
Feminista, que se tornou organizado, na Europa, em princípios do século XX, mas que já
vinha dando sinais de sua formação desde o final do século anterior, quando sinhás e
mulheres da elite publicavam jornais femininos, reivindicando basicamente uma melhor
educação feminina e seu direito ao voto.
Com o alcance de algumas de suas metas, o movimento foi apanhado por uma certa
acomodação, o que resultou em menos focos de luta e um freio no avanço de conquistas, por
muitos anos. Retomado pela denominada “segunda onda”, em fins da década de 1960, a luta
feminista, além das preocupações sociais e políticas, se voltava agora para as construções
propriamente teóricas. Em 1975, a instauração, pela Organização das Nações Unidas, do Ano
Internacional da Mulher, contribuiu para que as reivindicações femininas fossem retomadas
com força, apesar do desfavorável contexto de alguns governos militares, como nos casos de
Brasil e Espanha.
Grande parte das mudanças por que passa a sociedade brasileira a partir de meados
do século XX, deve-se a intensificação do processo de modernização que atinge o País. A
entrada maciça das mulheres de classe média no mercado de trabalho; a disseminação da
pílula anticoncepcional; a importação de modelos de comportamentos, que reforçados pelos
1
Movimento que reivindicava às mulheres o direito ao voto
10
Os anos 70, no Brasil, foram marcados pelas intensas violência e repressão às forças
oposicionistas. A ditadura política que assolava o País “passa a ser abertamente contestada
por operários em greve e por movimentos estudantis. Neste período, embora a economia
estivesse em expansão com a industrialização acelerada e urbanização crescente, os salários se
deterioravam e o custo de vida subiu muito”. (BRUSCHINI apud SILVA, 2000:2). É a partir
deste período que se formam os primeiros movimentos de mulheres no Brasil. Apesar de estes
serem heterogêneos e não possuírem uma linearidade, surgem símbolos nacionais, como a
atriz Leila Diniz, que se tornou paradigma da “nova mulher”, devido às suas atitudes
inovadoras2.
Não apenas no Brasil, mas principalmente nos países capitalistas avançados, a crise
da cidadania social corresponde a dois fenômenos ocorridos a partir do final da década de 60:
a crise do Estado de bem-estar social, ou Estado Providência, e o movimento estudantil de 68.
São a difusão social da produção e o isolamento político do movimento operário que facilitam
a emergência de novos sujeitos sociais e novas práticas de mobilização social.
2
A atriz Leila Diniz escandalizou a sociedade da época ao desfilar grávida na praia de Ipanema, no Rio de
Janeiro, vestida apenas com um biquíni. Além disso, era sabido que carregava um filho de um homem com quem
não era casada, subvertendo o estereótipo de mãe tradicional, seduzida e recatada
3
POSADA, 1989 apud ANDERSON
11
sistema patriarcal, que não podia admitir à mulher a liberação de seu papel de cuidadora do
lar.
4
SCALON apud ANDERSON.
12
Universidades, fez com que emergissem ainda mais seus temas e problematizações, seu
universo, suas inquietações, suas lógicas diferenciadas, seus olhares desconhecidos. Lia-se
Simone de Beauvoir (Lê deuxième sexe, 1949), Betty Friedman (The feminine mistique,
1963), Kate Milett (Sexual politics, 1969). A sexualidade era tema de muitos livros neste
período. Livros como Mrs. Dalloway e Orlando, de Virgínia Woolf, e O Quarteto de
Alexandria, de Lawence Durrel, eram descobertos ou mesmo lidos sob outro enfoque.
Surgem os estudos da mulher. Estes tinham como objetivo trazer visibilidade àquela
que foi por tanto ocultada. Inicialmente, eles “se constituíam, muitas vezes em descrições de
vida e de trabalho das mulheres (...) denunciando a opressão e submetimento feminino.
Contam, criticam e, algumas vezes, celebram as ‘características’ tidas como femininas”.
(LOURO, 1997, p.17-18). Os primeiros estudos transformaram as poucas referências à mulher
em tema central, fazendo com que uma das mais significativas marcas dos Estudos Feministas
fosse o seu caráter político.
Mas é exatamente devido a esta imposição social e cultural do que é ser homem e ser
mulher, que a construção de um novo paradigma pelos estudos de gênero demonstra seu
caráter reivindicatório a respeito do simbólico das relações, apontando tanto para uma
diferenciação quanto para um indiferenciação, e principalmente para uma instabilidade de
caracterização para os gêneros, possibilitando um número indefinido de gêneros dentro de
uma cultura.
Esta divisão binária remete a uma atribuição de papéis como “padrões ou regras
arbitrárias” estabelecidas, pela sociedade, para seus membros. Para LOURO (1997), é este
tipo de segregação que faz com que não sejam examinadas as múltiplas formas que as
masculinidades e as feminilidades podem assumir, como também as complexas redes de
poder que (através das instituições, discursos, práticas e símbolos) constituem hierarquias
entre os gêneros. Ela argumenta que o conceito de gênero passa então a exigir que se pense de
modo plural, enfatizando que os projetos e as representações sobre mulheres e homens são
diversos.
Já AZEREDO (1994)5 lembra que “é preciso considerar o gênero tanto como uma
categoria de análise quanto como uma das formas que relações de opressão assumem numa
sociedade capitalista, racista e colonialista”. Este aspecto já era uma preocupação central nos
Estudos Feministas, mas LOURO (1997) considera que ao mesmo tempo em que “a denúncia
foi imprescindível, ela também permitiu, algumas vezes, que se cristalizasse uma vitimização
feminina ou, em outros momentos, que se culpasse a mulher por sua condição social
hierarquicamente subordinada”. Sendo assim, a concepção que atravessou boa parte destes
estudos, a de um homem-dominante versus uma mulher-dominada, precisa ser desconstruída.
5
AZEREDO, 1994 apud LOURO, 1997: 55
15
A fragmentação das identidades, onde o unitário carrega uma variedade dentro de si,
é recorrentemente citada como uma das diferenças que separam a modernidade da pós-
modernidade. HALL (1992) explica que a partir do processo de descentramento ou
deslocamento do sujeito, surge a chamada “crise de identidade”, onde caem velhas
identidades estabilizadoras do social e surgem novas, fragmentando o indivíduo moderno,
antes visto como um sujeito unificado.
Ele nos apresenta três concepções de identidade, que foram se modificando, ao longo
da história, através das mais variadas transformações sofridas pelos indivíduos. São elas: o
sujeito do iluminismo (totalmente centrado, unificado, racional, dotado de um núcleo interior,
que permanecia essencialmente o mesmo ao longo da existência do indivíduo); o sujeito
sociológico (tinha consciência de que este núcleo interior do sujeito era formado a partir da
interação com a sociedade e a cultura); e o sujeito pós-moderno (sua identidade se fragmenta
e ele está composto de várias identidades possíveis, assumidas em diferentes momentos e não
unificadas ao redor de um “eu” coerente).
Para este mesmo autor, com movimentos como o feminista, nasce uma “política de
identidade”, que tem como idéia a premissa de uma identidade para cada movimento. A partir
do slogan “o pessoal é político”, o Feminismo questiona a distinção clássica de ‘privado’ e
‘público’, abrindo à contestação política arenas da vida social e particular e o tema da
produção dos indivíduos como sujeitos generificados. Apesar de um início de contestador
social, o movimento feminista expandiu-se e ao politizar a subjetividade, a identidade e o
processo de identificação, incluiu em suas discussões a formação das identidades sexuais e de
gênero, substituindo a noção de que homens e mulheres eram parte de uma mesma identidade,
a “Humanidade”, pela questão da diferença sexual.
16
Uma série de interrogações feitas por LAGO (1999) questionam a posição de alguém
que não se enquadre no modelo de heterossexual, enquanto dissonante com a identidade de
gênero que lhe foi atribuída socialmente, pelo motivo da escolha de seu objeto amoroso. Ela
nos faz refletir o quanto pode ser confuso para um sujeito que não se identifica com a
identidade que lhe é cobrada e, por vezes, sente-se desautorizado a se representar como
homem ou mulher. As questões ligadas à sexualidade estão intrinsecamente contidas nas
17
Não podemos desligar os conceitos de gênero e de sexualidade, mas deve-se ter uma
compreensão clara de significação dos termos. Da mesma forma que parte do senso comum
atribui aos homossexuais um gênero falho, desprezível, são atribuídas qualidades de
‘feminino’ aos homens gays e de ‘masculino’ às mulheres lésbicas. Neste sentido, a
homofobia tanto pode se expressar numa recusa deste gênero defeituoso, como numa espécie
de temor pela perda do gênero. Há muito, portanto, já vêm os movimentos gay e lésbico
constatar que o esquema polarizado linear não sustenta a complexidade social.
GIDDENS (1993) afirma que nas últimas duas décadas, a homossexualidade sofreu
tantas transformações quanto à heterossexualidade. Muito mudou desde que aquela ainda era
enquadrada clinicamente, junto a outros distúrbios psicopatológicos, como o masoquismo ou
a ninfomania. Mas apesar de não haver mais uma corroboração da medicina psiquiátrica com
esta idéia da homossexualidade, ainda hoje, o fenômeno é encarado, por muitos
heterossexuais, como uma perversão, ou no mínimo, algo não-natural, moralmente
condenável.
6
BRAH, Avtar 1992 apud LOURO, 1997: 54
18
tem como desvio ou anormal aquilo que se distancia do padrão. Mas por que ao se exercer o
direito der ser diferente estaria significando necessariamente ser anormal?
Os gêneros são, portanto, produzidos nas e pelas relações de poder. Sobre o conceito
foucaultiano de ‘bio-poder’ como controlador das populações, podemos pensar em trocas e
regras por quais são instituídas e nomeadas as diferenças e desigualdades, tais como a
normalização de conduta dos meninos e meninas ou o conjunto de práticas criadas e
acionadas para controlar homens e mulheres, distinguindo lugares diferentes para os gêneros,
como as medidas de incentivo ao casamento e à procriação.
seres humanos, que são os filhos. Responsável pela casa, por seus bens e
suas almas, a mãe é a sagrada ‘rainha do lar’. (BADINTER, 1985, p.222).
Este mesmo autor afirma que a “revolução sexual” nos últimos 40 anos envolve
como elemento básico a autonomia sexual feminina. Ele lembra que as circunstâncias comuns
da contração do matrimônio, na Europa pré-moderna, como sendo pela situação econômica,
começou a se transformar no final do século XVIII, com o casamento romântico. Ele
diferencia o ‘amor paixão’ como tendo uma qualidade de encantamento, do ‘amor romântico’,
que tem seu surgimento marcado por influências que afetaram as mulheres, como a criação do
lar, a modificação das relações entre pais e filhos e a invenção da maternidade. Na época
atual, os ideais de amor romântico tendem a se fragmentar sob a pressão da emancipação e da
autonomia sexual feminina.
20
7
TREVISAN apud RAMOS, 1999: 321
21
As dificuldades que têm os homens em redefinir sua subjetividade não são para
menos, visto que houve uma contradição nos conceitos. Pesquisas científicas, datadas do
século XVIII, demonstram a construção histórica da formação de identidades diferenciadas
para homens e mulheres. As pesquisas tratavam as emoções como definidoras biológicas das
diferenças de gênero, baseadas no estudo da circulação do sangue. Desde já o ser sensível era
relegado à mediocridade, sob a premissa de que tenderia a perder suas faculdades mentais.
Sendo assim, todo homem deveria evitar demonstrações de sensibilidade:
perigo de pensar o machismo como ideologia apenas masculina, pois considera que ele está
incorporado à visão de mundo tanto de homens quanto de mulheres, além de ser o pivô de
uma trama política maior, que transcende os indivíduos.
Apesar disso, muitos homens têm filhos como se estivessem cumprindo mais uma
etapa de suas vidas, numa reafirmação de sua virilidade ou esclarecendo possíveis dúvidas
sobre sua identidade sexual. A partir daí, a constituição de uma família vai implicar numa
‘idéia de proteção’, que para os homens, vai estar calcada sobre duas vertentes: a financeira,
de provedor (proteção material) e as exigências morais (proteção moral). Neste aspecto,
podemos incluir o ‘trabalho’ como uma das principais referências na construção de um
modelo de comportamento masculino. O capitalismo incentiva e a sociedade cobra do homem
que ele obtenha sucesso no trabalho, produzindo a idéia de realização, sem a qual será um
fracassado. Isto explica porque o desemprego e a aposentadoria são tormentos tão maiores
para os homens que para as mulheres.
8
O sistema de organização patrilinear é fundamentado na descendência de parentesco e embasado na figura
paterna, enquanto o matrilinear, na figura materna.
24
violência a que estavam submetidos os homens na infância, fazendo com que fosse
constituído um estereótipo que não o impelisse a refletir sobre sua condição. A disciplina e o
condicionamento a comportamentos viris e agressivos produzem um aprendizado de uma
postura diante do mundo, que se inicia na infância e se prolonga no desenrolar da vida adulta,
resultando numa incapacidade em contatar as próprias emoções e demandas afetivas.
O controle sexual dos homens sobre as mulheres é muito mais que uma
característica incidental da vida social moderna. À medida que esse controle
começa a falhar, observamos mais claramente revelado o caráter compulsivo
da sexualidade masculina – e este controle em declínio gera também um
fluxo crescente da violência masculina sobre as mulheres. (GIDDENS, 1993,
p.11)
9
TREVISAN apud RAMOS, 1999: 321
25
Apesar da inveja, o mesmo autor indica o receio que a maioria dos homens tem em
se ‘transformar’ em uma mulher, ou ainda o medo dela, como outro aspecto da relação. “A
10
O Complexo de Édipo foi designado por Freud, segundo Laplanche, como sendo um conjunto organizado de
desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais. Apresenta-se como um amor pelo progenitor
do sexo oposto e ódio ciumento ao progenitor do mesmo sexo. O Complexo desempenha papel fundamental na
estruturação da personalidade e na orientação do desejo humano.
26
É na traição que o homem tem uma das suas permissões sociais para chorar. O choro,
assim como as demais formas de demonstrações emotivas, é visto pela sociedade e pelo
próprio homem como sinal de fraqueza e vulnerabilidade. Por isso, os casos em que se
costuma admitir e perdoar o choro masculino são aqueles onde o ser humano não está apto a
exercer controle sobre a vida, como as situações irreversíveis de doenças graves e morte,
mesmo porque nestes casos as lágrimas também podem indicar uma sensibilidade humana. E
um terceiro caso em que o choro se faz aceito é o da embriaguez – por ser uma atividade
considerada como tipicamente masculina e retirar o controle sobre si mesmo –,
principalmente se for por questões amorosas.
11
CONNEL apud ALMEIDA, 2001: 28
27
Para NOLASCO (1995), tentar atribuir características femininas aos homens, para
vê-los diferentes, significa oprimir, da mesma forma do discurso conservador, que cobra um
comportamento através das estratégias de controle. Mas negar a presença de características
“femininas” e “masculinas” no mesmo sujeito pode levar ao não reconhecimento e expressão
dos afetos entre si, fazendo com que os homens se erotizem mutuamente, adotando atitudes
homofóbicas ou homoeróticas.
Mas BARBOSA (1998) considera que a busca pela androginia como equilíbrio,
neutralidade, pressupõe uma noção utópica, já que diferenças, lutas e estratégias de poder não
podem ser completamente eliminadas e o feminino e o masculino não conseguiriam se
desnudar de atributos culturais e sociais taxativos. Já OLIVEIRA (1998) fala de uma
igualdade entre homens e mulheres como não exatamente ligadas ao andrógino e à eliminação
de diferenças, pois “dissolver e fundir homens e mulheres, masculino e feminino, no magma
da natureza humana diferenciada, é romper a própria dinâmica da vida”. (OLIVEIRA apud
BARBOSA, 1998, p. 342)
O controle de comportamento sofrido pelos homens, nas suas mais variadas etapas, é
decorrente de uma educação castradora a que os meninos são submetidos durante a infância.
São estas as condições em que surge, no homem, o desejo de definir a virilidade como forma
de identidade, o que faz com que muitos se apresentem emotivamente inseguros e hesitantes.
NOLASCO (1995) dá o nome de “controles pedagógicos” às regras impostas aos meninos nas
relações sociais, com a família e na escola, de como um homem macho deve se comportar.
A procura por uma linguagem para expressar suas emoções, a busca de uma redução
nos níveis de violência, um novo posicionamento frente a qualidades e comportamentos ditos
de “natureza feminina”, a incorporação da sensibilidade e afetividade à nova representação
masculina – onde o chorar passa a ser uma medida charmosa de vulnerabilidade e
emotividade –, as discussões expostas nos Grupos de Homens13 que se disseminam por vários
países, e enfim, a intensificação do envolvimento com a paternidade, são os principais
aspectos destas mudanças que as novas masculinidades vêm assumindo.
Estas características são refletidas justamente no novo pai, que vai estar, por sua vez,
influenciando na construção de novos homens. As novas formas de ser pai e mãe são
determinantes na criação de um filho, visto que estes são os responsáveis principais pelos
cuidados que a criança precisa nos primeiros anos de vida, assim como os modelos e
representações de que a ela se apropriará nestes vínculos iniciais.
Porém, muitos autores acreditam que o modelo patriarcal coexista com esses novos
desempenhos do papel de gênero e da paternidade, dando margem, por exemplo, a idéias de
que a responsabilidade pelos filhos é, em última instância, da mulher, e a imagem paterna
construída sobre a ausência e o silêncio, sem maior ligação afetiva com os filhos seja
apontada hoje como problemática.
13
Os Grupos de Homens estão cadastrados na publicação Le Repertoire de la Condition Masculine, produzida
em Montreal, em 1988. No Ocidente, em 1995, já existiam mais de 120 Grupos de Homens. Estes tentam
reavaliar os valores do sistema patriarcal e reconhecer e incorporar à nova representação masculina tanto a
sensibilidade como a afetividade, procurando um caminho para suas vidas fora da identificação com a falocracia.
30
14
No caso do Brasil, a licença-paternidade é de cinco dias em contraposição aos quatro meses da materna; com o
divórcio, a guarda dos filhos é dada à mãe, preferencialmente; é o homem quem geralmente paga pensão à
mulher, que por sua vez, tem o direito de continuar na casa da família. Tudo isto, mantém a segregação entre pai
e filho, que muitas vezes, tem sua relação regulada pelo dinheiro
15
O termo "indústria cultural" foi criado, nos anos 40, pelos filósofos da Escola de Frankfurt Horkheimer e
Adorno, para substituir o obsoleto 'cultura de massa'. Essa massa tomada como homogeneidade pode ser de
efetiva existência (se tomarmos como exemplo uma superprodução cinematográfica destinada a um público
indistinto). O termo foi aplicado às novas manifestações artísticas surgidas no início do século XX (e fins do
século XIX) com as inovações tecnológicas, como o cinema e a música popular. "Indústria Cultural"
configurava-se como um termo pejorativo, com previsões pessimistas em que a cultura se transformaria numa
grande fábrica de sardinha, de enlatados
31
que levou Getúlio Vargas ao poder, quando a produção industrial não tinha raízes nacionais e
quase todos os produtos eram importados, é o cinema americano que vai substituir a
influência cultural francesa e servirá de modelo para a vida dos brasileiros.
Marilyn Monroe, Grace Kelly, Fred Astaire. São apenas alguns dos inumeráveis
mitos fabricados pela indústria hollywoodiana. Idolatrados pelo público e retratados em
outros espaços culturais, como a literatura, os símbolos da época de ouro do cinema (iniciada
na década de 30) mostravam seu estrondoso impacto sobre o cotidiano das pessoas. Neste
período, as discussões sobre masculinidade e feminilidade, provenientes do Movimento
Feminista, já estavam a todo vapor em países europeus e nos Estados Unidos, e o cinema e a
literatura não escapam de sua influência.
16
Publicado na revista mítica Screen
33
Esta década está dividida em dois momentos marcantes para o cinema: antes e depois
de 1933. A primeira parte, que se trata dos resquícios dos anos 20, época da maior
libertinagem sexual da história até o então momento, sofrerá mudanças geradas
principalmente devido ao código de censura da época. No geral, os modelos femininos deste
período não são modelos de beleza física, mas mulheres com muita atitude. O modelo
masculino era o de aventureiro, macho e bem dotado fisicamente, como o galã Cary Grant. As
relações se dão entre um homem honrado e cumpridor de sua palavra, que se casa com uma
mulher inocente e recatada, que só deve se mostrar desnuda na intimidade com o marido.
A Segunda Guerra Mundial acaba com esta idade da inocência. E junto com estas
mulheres existiu um modelo feminino onde se mesclava beleza e uma certa dose de atitude,
como os vividos por Vivian Leigh, Greta Garbo, Ingrid Bergman, entre outras. Elas não são
deusas, mas são fortes e mantêm uma frieza aparente que se desfaz ao ser conquistadas por
um homem, como Clark Gable, Humphrey Bogart. Homens que não eram muitos bonitos,
mas com atitude suficiente para serem irresistíveis. Gone with the Wind (E o vento levou...,
1939) é um exemplo de um filme marcante para se perceber este retrato das relações: há uma
mulher charmosa, que tem de se preocupar exageradamente com o físico (usando apertado
espartilho), amar seu país e não ter muito caráter para poder se casar.
O modelo de mulher que não é dona-de-casa, é aquela que para vencer num mundo
de homens, tem de abrir mão de sua vaidade para ser uma igual. Mas frágil por natureza, por
mais que resista, logo se apaixona por aquele homem conhecedor da alma feminina. Os
homens necessitam de mulheres mais frágeis para reafirmar sua virilidade, e para que um
homem mostre sua sensibilidade, é necessário que uma mulher o abrande.
A Segunda Guerra Mundial foi um evento que transcendeu todos os âmbitos da vida
norte-americana e mundial. No cinema, isto aparece nos homens da década de 40, que deviam
ser heróis, com armas e na vida. E nas mulheres, que deviam ser fortes para apoiá-los.
Ressurgem modelos de mulheres bonitas e inocentes, anteriores a 1933, por um lado, e por
outro, deusas ou mulheres fatais. A mulher boa e forte perdia terreno para se tornar objeto
34
inocente e troféu que cai aos pés dos homens que voltam da guerra. Os homens mantêm e
acentuam o estereótipo de rudes e feios, como Clark Gable e Humphrey Bogart.
Como os homens passavam anos fora, na Guerra, surge o tema da infidelidade. São
homens que perdem a esposa para um mais atencioso ou mulheres que amam o marido
incondicionalmente e acima de qualquer traição. Começa a se falar de alternativas ao
matrimônio monogâmico e eterno. Impõe-se a dicotomia mulher inocente X mulher fatal: em
Blood and Sand (1941), Linda Darnell, como Carmem, é carinhosa, tímida e está
completamente apaixonada e Rita Hayworth, como Dona Sol, é sensual, desinibida,
progressista, quer dominar o melhor toureiro da Espanha, que por sua vez, é casado.
Nas décadas de 50 e 60, em substituição aos heróis dos anos 30 e 40, aparecem anti-
heróis, representados por rebeldes sem causa, pistoleiros, vagabundos rudes e estúpidos. A
vida era representada como um jogo, onde não havia ganhadores. O modelo masculino da
década de 50 se afasta mais dos estereótipos e os rudes galãs vão cedendo lugar a
protagonistas mais belos, como Gregory Peck e Tony Curtis. Mas além destes, existiam
também os charmosos e perigosos, como James Dean e Marlon Brando, que tanto atraíam as
mulheres.
os dois. O modelo de mulher sensual começa a perder espaço para a mulher ameninada e
erotizada, como a provocante Lolita (1962), de Stanley Kubrick. O modelo de casal ideal das
comédias românticas dos anos 60 é constituído por Rock Hudson e Doris Day.
Completamente estereotipado, o homem é viril, conquistador e experiente e as mulheres
inocentes, femininas e tipicamente norte-americanas.
Last Tango in Paris (O Último Tango em Paris, 1972) vem romper com este tipo de
relação ideal, apresentando um relacionamento apenas baseado no desejo e na paixão, que
sem romantismo, estaria fadado ao fracasso. Ainda nesta década, temas como a
homossexualidade começam a ser tratados sem uma vinculação obrigatória a risos e dramas.
Surge uma nova representação de erotismo com Brooke Shields, uma menina que desde os 10
anos já trabalhava em papéis sensuais como o de The Blue Lagoon (A Lagoa Azul, 1980),
onde isolada numa ilha deserta com um garoto de sua idade, vai conhecer os prazeres sexuais
e as dificuldades de uma vida a dois.
As relações entre os casais, nos anos 80, vão perdendo o caráter de idealismo, para se
tornar mais conflitivos, verídicos e neuróticos. Encontros amorosos que começam em festas
de trabalho que vão parar na cama e a infidelidade são temas a se discutir, em tempos de
AIDS. 9 ½ Weeks (Nove e Meia Semanas de Amor, 1986) é uma espécie de versão moderna
da relação atípica e autodestrutiva apresentada em Last Tango in Paris, mas agora se trata de
uma mulher que tem sua entediante rotina transformada pelas brincadeiras e emoções
prazerosas de um homem, que por sua vez é um perverso-obsessivo, que na verdade, não é
capaz de se relacionar da maneira tradicional.
36
As mulheres dos anos 90 têm corpos trabalhados e o busto avantajado. Surge uma
nova Marylin Monroe: Pámela Anderson. O modelo masculino másculo perde enfoque e se
atualizam em homens como Mel Gibson e Bruce Willis. O homem perde sua qualidade de
macho, como Magnum, muito comum nos anos 80, e passa a ser mais delicado, sensível e
compreensivo, como em The Bridges of Madison County (As Pontes de Madison, 1995),
capaz de amar fortemente uma mulher. Vão desaparecendo os galãs conquistadores, dando
lugar a homens capazes de compartilhar uma vida de igual para igual com uma mulher,
participando na criação dos filhos e divisão de tarefas, sem grandes conflitos, ao menos
aparentemente.
Sem subestimar a dimensão política desta resistência por parte dos universitários
masculinos, é necessário constatar que a idéia de um ‘singularidade francesa’ nas relações
entre os sexos é largamente partilhada pelas elites intelectuais na França. Singularidade das
relações sexuadas na vida social, incentivada por relações de sedução, que nos permitiria fazer
economia de uma ‘guerra de sexos’ à americana, particularmente nefasta para a elite
cultivada, se coloca em questão as hierarquias culturais. A resistência dos gender studies, em
geral, e aos sexual politics (estudos das relações de poder entre os sexos), em particular,
encontra assim suas origens na França, em uma história das idéias em que se misturam
inextricavelmente o político e o cultural. (SELLIER, 2002, p.3-4)
17
A chamada Cena Primitiva ou Cena Originária é, segundo Laplanche, a cena da relação sexual entre os pais,
observada ou suposta segundo determinados indícios e fantasiada pela criança. Geralmente, é interpretada pela
criança como uma violência por parte do pai
18
ler nota 8
38
Mas é com a leitura da obra de Agnès Varda, “mãe da nouvelle vague”, quando
Lewis analisa Cléo de 5 a 7 (1963) e Sans Toit ni Loi (1986), que este acredita que a mulher
vai passar do status de objeto do olhar ao de sujeito. A cineasta se interroga, por meio da crise
pessoal sofrida pela protagonista Cléo (ela acredita ter câncer), sobre a maneira como o
cinema transformou as mulheres em imagens. Na segunda película, conforme Lewis, Varda
desconstrói os mitos românticos de liberdade masculina e da mulher misteriosa. Através da
narrativa dos últimos dias de uma jovem (cuja falta de estabilidade social se articula a uma
ausência de imagem própria, levando-a à autodestruição) encontrada morta numa vala,
oferece a renúncia de transformar a personagem e o corpo feminino em objeto sexual.
Nana (1926), considerado por muitos o mais importante filme mudo de Renoir, está
totalmente focalizado em torno da frenética agitação da protagonista. Demonstrando
sensibilidade ao abordar o gênero feminino, em La Chienne (A Cadela, 1931), o cineasta
recusa a divisão simplória entre ‘bons’ e ‘maus’, base de todo o cinema clássico
hollywoodiano. Desta última película, foi feita uma refilmagem em 1945, sob o título de
Scarlett Street, e direção de Fritz Lang.
Antonioni discute as relações entre casais misturando amor e morte em seu primeiro
filme de ficção, Cronaca di un Amore (Escândalo de Amor, 1950), onde dois antigos amantes
39
Nos últimos anos, na Espanha, a sexualidade tem tido grande evidência. Há uma
variedade nos enredos, desde Entre las Piernas (Entre as Pernas, 1998), onde Victoria Abril e
Javier Bardem interpretam dois viciados em sexo, a Lucía y el Sexo (Lúcia e o Sexo, 2001),
em que toda a iniciativa do relacionamento parte da mulher, seja Lúcia ou a babá de Luna,
filha de Lorenzo, que por sua vez é criada só pela mãe. O cineasta espanhol que mais incita
discussão sobre as relações de gênero é, sem dúvida, Pedro Almodóvar. Mas esta perspectiva
de abordagem contestadora, tanto social, quanto política, de que ele tanto se vale não se dá
por acaso, mas se deve muito a todo um contexto de mudanças de comportamento social e
político do País, nas últimas décadas, como o fim do regime franquista.
40
2. A obra do cineasta
2. 1 A Espanha de Almodóvar
Um país cercado por ele mesmo, praticamente sem contato com o mundo exterior.
Assim era a Espanha dos tempos de Guerra Civil e Ditadura Franquista. A Constituição de
1931, cujo texto descrevia o desejo de fazer da Espanha uma “república democrática para os
trabalhadores de todas as classes”, trouxe à nação drásticas reformas – separação entre Igreja
e Estado; Regime Parlamentarista; voto universal, inclusive para mulheres e soldados;
abolição dos títulos de nobreza; implantação do divórcio, entre outras –, que foram barradas
pela violência generalizada de greves e rebeliões e nem chegaram a se efetivar.
Francisco Franco foi escolhido Chefe de Estado e Comandante Supremo, pela recém-
formada Junta de Defesa Nacional, e estabeleceu um governo provisório em Burgos, em
1938. As tropas franquistas receberam apoio da Alemanha nazista e da Itália fascista,
confirmando sua superioridade e conquistando diversas regiões. Já os republicanos tiveram
grande ajuda da então União Soviética e do México, mas em abril de 1937, aviões alemães,
em apoio aos nacionalistas, bombardearam a cidade basca de Guernica, provocando a revolta
da opinião pública mundial.
Logo depois desta, que foi a maior tragédia da Guerra Civil Espanhola, os
nacionalistas venceram os republicanos, numa batalha, em Brunete. Madrid estava devastada
e castigada pela fome. Mais de meio milhão de pessoas morreram em combate e outras
incontáveis, por fome, desnutrição e doenças, provocadas pela Guerra. Após três anos, é
declarado o fim do conflito e instaurado o regime franquista. Francisco Franco se torna Chefe
de Estado de um país arruinado, com sua população dizimada nos campos de batalha.
totalitários dos regimes italiano e alemão. Em 1950, a Guerra Fria favorece a situação de
Franco, que passa a ter o apoio de governos ocidentais e ingressa na Organização das Nações
Unidas.
Somente na década de 50, o País, que ainda vivia uma grave escassez de produtos
básicos, começa a recuperar os níveis de produção anteriores à Guerra Civil. Na Catalunha,
aos poucos vai sendo formada uma indústria moderna de produção têxtil. Além desta, a partir
da exportação de ferro, empresários bascos criam uma potente indústria siderúrgica e uma
moderna frota mercante. É dado o início para a grande concentração industrial em Madrid. Na
década de 60, o País experimenta um intenso desenvolvimento econômico, favorecido pela
expansiva conjuntura européia, os investimentos estrangeiros e as divisas proporcionadas por
milhões de turistas e imigrantes.
No início dos anos 80, um novo golpe de estado fracassa e novas eleições são
disputadas. O Partido Socialista Operário teve maioria absoluta e, apesar de decepcionar os
partidários mais radicais, ainda obteve vitória nas três eleições seguintes. Apesar do
crescimento do desemprego, que já atingia cerca de 20% da população, o Governo conseguiu
manter uma certa estabilidade econômica e, em 1986, a Espanha se torna membro efetivo da
Comunidade Econômica Européia. No final da década, o País era social e politicamente
estável – mas abalado por tendências desagregadoras surgidas em algumas nacionalidades,
mais precisamente no País Basco, onde uma minoria buscava a independência nacional – e já
42
era considerado desenvolvido, apesar de continuar mantendo uma certa distância do padrão
dos países europeus mais desenvolvidos, devido principalmente à tardia expansão industrial.
Em 1951, José Antônio Nieves Conde lança Surcos e foge ao padrão conformista. O
filme contava o drama de uma família camponesa que buscava uma nova vida na cidade, onde
encontra uma série de dificuldades, como o oportunismo, o mercado negro, a pobreza e a
prostituição. Mas é com Muerte de um Ciclista (A Morte de Um Ciclista) de Juan Antônio
Bardem, em 1955, que se costuma indicar como o ponto de partida do renascimento do
cinema espanhol. Este sofreu a influência do neo-realismo italiano, muito demonstrado neste
filme, que é, de uma certa forma, uma variação da obra de Antonioni, Cronaca di Um Amor
(Crônica de um Amor, 1950) que encena os problemas psicológicos e afetivos de
representantes da alta burguesia. Mas a severa crítica à Espanha provinciana, fez com que
Bardem, que era ligado à esquerda, tivesse diversos problemas com as autoridades espanholas
e chegasse a ser preso durante as filmagens.
43
Buñuel foi outra vítima do regime franquista. Ele se refugiou nos Estados Unidos e,
no ano de 1946, foi para o México, onde voltou a filmar e produzir as obras primas Los
Olvidados (1950) e Nazarin (1958). Em 1961, lança Viridiana, obra anticlerical rodada em
plena ditadura de Franco e que foi proibida na Espanha, mesmo ganhando a Palma de Ouro
em Cannes, depois de ser atacada pelo Vaticano. Até hoje o filme é considerado por muitos
críticos de cinema como um dos 100 melhores de todos os tempos. Ele realiza em seguida El
Angel Exterminador (O Anjo Exterminador, 1962), onde faz uma severa crítica aos valores
burgueses.
Em sua fase européia, Buñuel volta a criticar a Igreja, a hipocrisia moral dos
burgueses e o poder constituído com os filmes O Estranho Caminho de Santiago (1969),
Tristana (1970), El Discreto Encanto de la Burgesía (O Discreto Charme da Burguesia,
1972), El Fantasma de la Libertad (O Fantasma da Liberdade, 1972) e seu último filme, Ese
Oscuro Objeto del Deseo (Esse Obscuro Objeto de Desejo, 1977). Neste, um chauvinista se
apaixona por sua empregada e tenta conquistar um amor que parece, além de impossível,
incompreensível.
Dá-se início, então, a uma Espanha livre, e acima de tudo, sedenta por liberdade de
expressão. A decepção trazida pela Revolução Social dos anos 60, que pouco impacto causou
à vida espanhola, era transformada em nova esperança, criatividade e rebeldia, pelo
Movimento de Contracultura, que efervescia a noite madrilenha no início dos anos 80.
Batizado de “La Movida” (O Movimento), pela imprensa espanhola, era através do
movimento, que esta nova sensação de liberdade era canalizada a todos, por meio de artistas
como Pedro Almodóvar.
44
Suas primeiras impressões artísticas foram a pintura, que abandonou aos 11 anos, e a
literatura. Começou a escrever aos 8 anos e aos 9 já ganhou um prêmio literário. Em 1967,
após concluir os estudos, convenceu o pai a deixá-lo ir morar sozinho em Madri, pois sua mãe
ficara sabendo de uma vaga de trabalho na Companhia Telefônica. E aos dezesseis anos,
instala-se em Madri, com um objetivo certo: estudar para fazer cinema. Como não podia se
matricular na Escola Oficial de Cinema, fechada há pouco pelo General Franco, tem de
aprender a fazer filmes na prática.
Seus curtas tratavam basicamente de sexualidade. São eles: Dos putas o Historia de
Amor que Termina em Boda (1974), Film Político (1974), El Sueño o la Estrela (1975),
Homenaje (1975), La Caída de Sodoma (1975), Blancor (1975), Sea Caritativo (1976),
Muerte em la Carretera (1976), Sexo Vá, Sexo Viene (1977), Salomé (1978),
Folle...Folle...Fólleme Tim (1978).
A relação de Almodóvar com sua mãe era de cumplicidade. Além de gostar de contar
histórias, contava-as muito bem desde menino, fazendo com que as irmãs preferissem que ele
narrasse os filmes, com suas eventuais modificações, a assisti-los. Desde muito cedo o
ambiente feminino em que cresceu e a proximidade com a mãe fizeram com que ele se
inspirasse para criar seus inúmeros personagens femininos e conquistasse a futura fama de um
“diretor de mulheres”.
Almodóvar declarou que entre tantos personagens femininos, este é um dos seus
favoritos. Patty Diphusa é extremamente otimista, com tiradas do tipo: “pelo menos quando
me violentaram não estava chovendo!”. Ela é verborrágica, engraçada, sincera e destila suas
piadas em quem estiver ao alcance. Numa fala confessional do polêmico livro Patty Diphusa,
o diretor escreve: “Desprezo a moral habitual e toda essa gente que é capaz de classificar o
mundo entre bons e maus”. O texto é escrito com o ritmo da fala cotidiana, e abusa de todo e
qualquer meio textual para dirigir a entonação do leitor, como se este estivesse ouvindo
diretamente a própria personagem.
Nesta época, o espanhol entra para o prestigiado grupo de teatro Los Goliardos e
passa também a interpretar pequenos papéis no teatro profissional, onde conhece Carmen
Maura. Com Fábio McNamara, ele cria um grupo de punk-rock, no qual se travestem de
mulher para parodiar a própria realidade. Segundo Almodóvar, o ambiente que ele
freqüentava neste momento e sua vontade infinita de fazer um filme custasse o que custasse,
46
resultou em seu primeiro longa-metragem comercial, Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del
Montón, que em princípio era um curta de 20 minutos, chamado Ereciones Generales.
Com a ajuda dos amigos do teatro, Carmem Maura e Félix Rotaeta, conseguiu
realizar Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón, em 1980. Os três, durante os finais de
semana, iam buscar patrocínio e uma equipe de voluntários para a realização da película, que
custou meio milhão de pesetas (moeda espanhola) e demorou mais de um ano para ser rodado.
O filme causou polêmica entre a crítica, mas teve sucesso entre o público, permanecendo por
quatro anos nas sessões noturnas dos Cines Alphaville de Madri e transformando Almodóvar
em um novo ícone do movimento madrilenho.
O diretor explica que o filme é “uma história sobre seres humanos fortes e
vulneráveis que se entregam à paixão, que sofrem o amor e se divertem”. O roteiro desta
ácida comédia, que foi escrito em 1978, foi influenciado pela agressiva ideologia punk,
representada pelo personagem Bom, interpretado por Olvido “Alaska” Gara. Carmen Maura
vive Pepi, Félix Rotaeta é um policial, Eva Sica, Luci, e Cecília Roth, com quem Almodóvar
continuará trabalhando em muitos outros filmes, é a apresentadora, e o próprio cineasta faz o
papel de Chico. Nesta película são abordados abertamente temas como drogas, sexo e
sadomasoquismo feminino.
A partir de então, Almodóvar passa a fazer um filme por ano e o próximo é Entre
Tinieblas (Maus Hábitos, 1983). Na película, que foi produzida pela produtora Tesauro, ele
aborda pela primeira vez o tema da religião, que aparecerá em muitas de suas obras
posteriores. A personagem principal se chama Yolanda Bell (Cristina Sánchez Pascual), uma
jovem cantora de bolero que usa drogas e tem sua vida constantemente exposta ao perigo. Ela
47
presencia a overdose de heroína do namorado, que o leva à morte, após ter misturado a droga
com a estricnina que ela havia levado, acabando com uma relação de dependência e
destruição que havia entre eles. Assustada, ela decide desaparecer e se esconde no convento
das Redentoras Humilhadas, cuja Madre Superiora (Julieta Serrano) a admira e já tinha ido
vê-la cantar. A cantora começa a reviver com a Madre o mesmo tipo de relação destrutiva que
tinha com o namorado e uma série de acontecimentos passa a envolver os membros da
comunidade religiosa, numa severa crítica à Igreja.
No ano seguinte, ele roda o que, na definição de seu site oficial, foi seu filme mais
naturalista e social: ¿Qué he Hecho yo para Merecer Esto? (Que Fiz para Merecer Isto?,
1984). Uma tragicomédia que conta os dramas e misérias da vida cotidiana de uma humilde
dona de casa, Glória, interpretada por Carmen Maura. Na Madri dos anos 70, as dificuldades
de uma família pobre formada por uma mãe faxineira, um pai taxista, que sonha com uma
decadente cantora alemã, um filho que vende drogas e outro que se prostitui, além da avó que
raciona alimentos para vendê-los à própria família.
Beneficiando-se da Lei de Pilar Miró, de 1983, o cineasta e seu irmão mais novo
Agustín, criam, em 1985, uma produtora própria, “El Deseo”. La Ley del Deseo (A Lei do
Desejo, 1986), seu próximo filme, teve dificuldades para receber ajudas oficiais e se torna o
primeiro produzido por eles, talvez por isto, perceba-se uma extrema liberdade de criação.
Tina (Carmen Maura), que mantinha relações sexuais com o pai e nunca mais teve nenhum
outro homem, mudou de sexo há uns 20 anos e agora é ‘a irmã’ de Pablo (Eusébio Poncela).
Com Tina, vive a filha de uma modelo, que nutre uma paixão infantil por Pablo. Este, por sua
vez, está apaixonado por Juan (Miguel Molina), mas se envolve com o possessivo Antônio
48
(vivido por Antônio Bandeiras), que provoca a morte de Juan, chantageia Tina e termina por
se matar.
Em Tudo Sobre Desejo ..., Almodóvar assume ser a maior realização de sua vida, ter
se tornado diretor de cinema, “porque era algo tão difícil como ser toureiro no Japão”. “O
cinema deu forma e propósito à minha vida, deu-me um caminho a seguir. Acho que sem essa
vocação eu estaria completamente perdido, talvez morto”, completa. Mas o diretor, que passa
a ser conhecido pelo seu estilo kitsch, suas cores berrantes e mulheres fortes, acredita que a
arte da fazer cinema não possa ser ensinada. Para ele, “é preciso descobrir sozinho como fazer
filmes, sem ter medo de, no primeiro, não saber onde colocar a câmera. Pouco a pouco, vai se
familiarizando com a imagem e se interessando por ela e não só pela história, mas pelo modo
de contá-la. Então fazer cinema é algo que se aprende, não dá para ensinar”.
No ano de 1987, Almodóvar atinge projeção internacional quando seu filme Mujeres
al Borde de un Ataque de Nervios (Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos) é indicado ao
Oscar de melhor filme estrangeiro. Nas palavras do próprio diretor, este foi catapultado sobre
o público do mundo com o sucesso do filme. A película, que chega a receber até 50 prêmios
nacionais e internacionais, marca o fim de sua parceria com a atriz Carmen Maura, sem que
fosse divulgado o motivo. Talvez percebendo em que o cineasta tirou inspiração para o roteiro
(as comédias americanas dos anos 60), os Estados Unidos compraram os direitos do filme e
decidiram refilmá-lo. Isto aconteceria pela primeira vez com um filme espanhol, mas não
chegou a se concretizar.
Uma parada é dada em 1988, ano em que Almodóvar viaja incessantemente, tanto
para divulgação de seu filme, como a turismo. E uma nova parceria nasceria em 1989, com
Victoria Abril, em ¡Átame! (Ata-me) O enredo gira em torno de Rick (Antônio Bandeiras),
que é órfão desde os três anos, e passou a vida indo de uma instituição a outra. Quando
completa 23 anos, sai de um centro psiquiátrico e tem um dia e uma noite para realizar um
triplo projeto: encontrar uma mulher, formar uma família e conseguir um trabalho. Mas o
49
personagem encontra como solução usar a força física e seqüestra Marina (Vitória Abril) para
propor-lhe de modo inocente e imaturo, que seja sua mulher e mãe de seus filhos. Após dias
presa, ela acaba se apaixonando por ele.
Nos Estados Unidos, ¡Átame! foi acompanhado por uma grande polêmica, quando o
órgão encarregado pela qualificação das películas, a Motion Pictures Association of América
(MPAA), tarjou-o com a marca X de impróprio. Com o apoio da Miramax, a distribuidora do
filme no País, Almodóvar e outros artistas iniciaram uma batalha legal, que resultou numa
nova qualificação. O código NC17 indicava que a obra era de natureza explícita, e não mais
pornográfica.
No início, como era de se esperar de uma sociedade fechada sob uma ditadura por
tantos anos, Almodóvar provocou muita polêmica e foi extremamente criticado por suas
películas recheadas de sexo. Mas à medida que o diretor ganha notoriedade, a crítica
espanhola passa a condená-lo também por ter criado, à custa de escândalos e jogadas de
mídia, um mundo particular e de mentira, descrito em seus filmes, que vende ao restante do
mundo como se fosse a Espanha.
Em 1993, o diretor surge com outra produção, Kika, em que cada personagem
representa um gênero cinematográfico e novamente os males e manias da sociedade são
dissecados. Kika (Verônica Forqué), uma maquiadora muito alegre e ingênua, vive com
Ramón (Alex Casanova), um fotógrafo obcecado pela morte da mãe. A protagonista tem uma
amiga chamada Amparo (Anabel Alonso) que a trai, uma máscula empregada (Rossy de
Palma), que está apaixonada por ela, uma inimiga, Andréa ‘Caracortada’ (que é a
inescrupulosa apresentadora de um reality show, sendo interpretada por Victoria Abril), e está
tendo um caso com o padrasto de Ramón. O irmão da empregada, Paul Bazzo (Santiago
Lajusticia), um ex-ator de filme pornô e fugitivo da prisão, vai pedir ajuda à irmã e ao
encontrar Kika dormindo, violenta-a. Finalmente Ramón descobre que a mãe fora morta pelo
padrasto, que é morto por Andréa e Kika decide deixar Ramón e aproveitar a vida.
Almodóvar não se tornou apenas uma celebridade, mas sua obra e vida passaram a
ser objetos de estudo de diversos trabalhos acadêmicos, bem como tema para muitos livros e
sites da internet. O “Almodovarlândia” é um dos sites onde se encontra até mesmo receitas de
51
comidas que aparecem em algumas das películas do cineasta. Alguns dos livros publicados
sobre ele são: Desire Unlimited: The Cinema of Pedro Almodovar, de Paul Julian Smith; El
Cine de Pedro Almodovar, de Nuria Vidal e Pedro Almodovar, de Antonio Holguin. O
próprio Almodóvar também mantém sites oficiais com dados bibliográficos e informações
sobre suas películas, além de já ter publicados alguns livros, como: Fuego en las Entrañas,
Patty Diphusa e Otros Textos e Cuentos sin Câmara.
Uma das obras do diretor mais aclamadas pela crítica é Carne Trémula (Carne
Trêmula, 1997), que na opinião dele, “é um filme de machões, um filme genital”. Este foi o
primeiro roteiro adaptado por ele, do romance de Ruth Rendell. A película começa ainda na
era franquista, do início dos anos 70, quando a jovem prostituta Isabel Plaza (Penélope Cruz)
começa a sentir contrações e acaba tendo seu bebê a caminho da maternidade, ainda dentro do
ônibus. Passam-se 20 anos e Vitor Plaza (Liberto Rabal) está obcecado pela mulher que tirou
sua virgindade, Elena (Francesca Neri), que não quer vê-lo. Num incidente na casa desta, o
policial David (Javier Bardem) acaba sendo atingido por uma bala, ficando paraplégico e
Vitor é tido como culpado e preso. David se casa com Elena e se torna um grande atleta
paraolímpico, enquanto Vitor sai da prisão e quer vingança. Este inicia um caso com Clara
(Ângela Molina), que se apaixona por ele, mas é casada com o ex-parceiro de David, Sancho
(José Sancho), que foi quem provocou o disparo que o deixou numa cadeira de rodas, para se
vingar por também tê-lo traído com “sua” Clara. No fim, Vitor e Elena acabam ficando
juntos.
(Tony Cantó), que também era o pai de seu filho. A assistente morre na hora do parto,
deixando seu filho com Manuela, que tem a oportunidade de reviver a maternidade. O nome
do filme se deve ao roteiro de cinema que Esteban (o filho morto), interpretado por Eloi
Azorín, estava escrevendo sobre sua mãe.
Assediado por atores e produtores americanos, o diretor iria filmar, nos Estados
Unidos, o longa-metragem The Paper Boy, uma adaptação de Pete Dexter, mas acabou
desistindo por ainda não considerar que pudesse trabalhar em uma outra língua, num outro
país. Ele voltou à sua terra natal e começou a escrever um novo roteiro, La Mala Educación,
baseado em seu próprio conto não publicado, La Visita. O diretor afirma que esta será a
primeira vez que se confrontará diretamente com suas lembranças, principalmente as da
infância. Apesar de não ser a história de sua vida, tem muito a ver com ela, principalmente
com a educação que teve nos colégios religiosos. É uma película dura, que abordará temas
como a violência sexual de padres contra os alunos.
Hable con Ella (Fale com Ela, 2002), que entre outros prêmios, ganhou o Globo de
Ouro de Filme Estrangeiro e o Oscar de melhor Roteiro Original, fala de amizade,
sensibilidade e comunicação. A história gira em torno de Benigno (Javier Cámara), um
enfermeiro, apaixonado pela aluna de balé Alicia (Leonor Watling). Esta sofre um acidente
que a deixa em coma e sob os cuidados dele. Uma forte amizade se desenvolverá entre o
enfermeiro e o jornalista Marco (Dario Randinetti), que também tem sua namorada, a toureira
Lydia (Rosário Flores), na mesma situação em que se encontra Alicia. Benigno estupra Alicia
e é preso, cometendo suicídio na cadeia. Enquanto Alicia, com o choque do parto, perde o
bebê, mas desperta do coma. Esta dramática película causou muita discussão por seus
protagonistas serem homens, já que Almodóvar por tanto tempo foi considerado um “diretor
de mulheres”.
53
Prostitutas, freiras, mães, atrizes, cantoras. São tantas as mulheres de Almodóvar, que
já se tornou até clichê falar delas. O cineasta diz aceitar o rótulo de ‘diretor de mulheres’
apenas por educação, mas confessa ter escrito mais papéis femininos que masculinos ou
neutros, e encontrado mais atrizes que atores talentosos, além de estes lhe inspirarem dramas,
enquanto afirma que aquelas lhe inspiram comédias – um de seus traços mais marcantes.
Enfim, o que se tem percebido ao longo de sua obra, é uma grande sensibilidade para tratar
temas tanto relativos aos gêneros masculino ou feminino, mas na medida do que poderíamos
chamar de um questionamento em relação à diferença entre eles.
Antônio também se apaixona por seu primeiro amor, Pablo. Mas neste caso, chega a
desistir de sua vida por ele, cometendo suicídio, porque sabe que será preso e não mais poderá
ter Pablo só para si, como queria. Tal qual Antônio, está Benigno, em Hable con Ella, que
viveu sempre a cuidar de duas mulheres, primeiro a mãe e depois a paciente Alicia. Mas ao se
ver na cadeia, longe da segunda, percebe que sua vida não mais faz sentido e se mata. Seriam
os ‘projetos de homem’ que Almodóvar estaria retratando?
talvez numa não admitida homossexualidade – em ser, um famoso toureiro – ícone máximo
da masculinidade na Espanha. Mas Diego, que seria um homem crescido, apresenta uma
peculiaridade costumeiramente presente em outros filmes do diretor, a violência. O toureiro
mata suas amantes, excitando-se justamente com a destruição de seu objeto de prazer. A
película se inicia com Diego se masturbando ao assistir a cenas de mulheres sendo trucidadas.
Num outro momento, Maria e Diego conversam sobre o desejo que os dois sentem
em matar seus parceiros sexuais. Travando o seguinte diálogo, Diego explica porque não
consegue deixar de matar, passando dos touros às mulheres:
20
O fetiche é uma perversão atribuída ao ser masculino como forma de denegar a castração através da
substituição do sexo feminino por objetos
55
Maria: --- Os homens pensam que matar é um delito. As mulheres não pensam assim. Todo
criminoso tem algo de feminino.
O que deve ser observado portanto, não é o sexo do personagem, mas suas
características em geral, que aparecem ora numa estereotipização, ora numa referência aos
conceitos generalizados de feminino e masculino. Melhor dizendo, a partir de uma construção
cultural de formação destes conceitos, Almodóvar transmite, através de seus personagens,
independentes de ser homem ou mulher, o quanto confuso e contraditório é atribuir esta ou
aquela peculiaridade a um dos gêneros.
A força que as mulheres de Almodóvar têm em relação aos homens pode ser
equivalente ao uso da violência por estes, para dominá-las. Pois, os homens aparecerem em
diversas de suas películas, fazendo mal às mulheres, através do uso da força física – como são
os casos de Paul Bazzo estuprando Kika, no filme homônimo; Rick seqüestrando Marina, em
¡Átame!; Victor ameaçando Elena com uma arma, em Carne Trémula; Benigno estuprando
Alicia, em Hable com Ella; Angel tentando estuprar Eva e Diego matando suas amantes, em
Matador.
Mas talvez, por ser a forma que estes homens encontraram de ser fortes, ou de
expressar seu amor ou desejo, por diversas vezes, a violência masculina é colocada por
Almodóvar, como um ato perdoável, por provavelmente estar ligado à própria fragilidade. São
exemplos o estupro de Alicia por Benigno (Hable com Ella) e o seqüestro de Marina por Rick
(¡Átame!). Este casal demonstra, através de diversos diálogos, as freqüentes estereotipizações
apresentadas pelo diretor, ao longo de sua obra.
O homem é visto primeiro como quem não controla seus impulsos sexuais, quem
deve honrar sua palavra e, como o encarregado de prover a família, protegendo a mulher e
depois os filhos, tanto física quanto materialmente:
Marina: --- Você só quer trepar comigo, não é? Portanto seja rápido e saia logo.
Rick: --- Tentei falar, mas você não deixou, então a raptei para conhecê-la melhor. Eu sei que
você gostará de mim como eu gosto de você. Tenho 23 anos, 50 pesetas e estou só no mundo.
Tentarei ser um bom marido e um bom pai.
(...)
Almodóvar parece não ter medo de estereótipos na medida em que deseja mostrar o
que é popularmente conhecido, sem encobrir ou mascarar nenhum detalhe. Seguiu chocando o
mundo não apenas com suas películas repletas de sexo, mas também por seus constantes
questionamentos sobre a sexualidade. Personagens homossexuais, travestis e transexuais estão
presentes em praticamente todas os seus filmes. Sobre o filme Filadélfia (1993), que trata
sobre um casal homossexual, em que um dos parceiros tem Aids, Almodóvar, em entrevista à
Folha de São Paulo (1994), diz: “Acho que Jonathan Demme foi vítima do modo como os
estúdios de Hollywood tratam determinados temas, como o homossexualismo e a Aids. É
como se dissessem: ‘Vamos falar de um personagem homossexual, mas sem que pareça
homossexual’”.
muito provável que o diretor tenha realmente uma paixão pelo universo feminino, não por
suas qualidades, mas porque cresceu rodeado por ele, no convívio com a mãe e as irmãs:
“Minha mãe representou as melhores qualidades que exploro e adoro nas minhas
personagens: autonomia, independência, força; foi dela que herdei o senso de humor, ousadia
e determinação”, diz.
Muito criticado pelo tom folclórico de seus personagens, Almodóvar também estaria
munido de um outro aspecto: o de filmar mulheres como se fosse uma mulher? Como
resultado de uma pesquisa feita pela belga Marie Mandy, para seu documentário Filmar el
Deseo (2000) , a respeito de como são filmados as mulheres e seus desejos, ficou-se sabendo
que as européias, americanas e canadenses, em geral, focalizam suas respostas em um maior
ou menor afastamento da perspectiva de gênero. Elas afirmam que o cinema feito por
mulheres trata o desejo e o corpo de forma diferente: é enfatizada a nudez completa e não
apenas nas zonas erógenas; mostrando o prazer sexual das mulheres e não somente dos
homens; e destacando que qualquer apropriação do corpo é ideológica21.
Apesar do diretor, por vezes, irritar-se ao lhe perguntarem por que dá preferência a
personagens femininos em suas tramas, ele diz não ver razão para ter de dar explicações para
isso. Mas freqüentemente lhe é sugada uma resposta: “As mulheres são mais divertidas, têm
mais capacidade de surpreender; elas são criticadas por conversar sobre moda e decoração,
mas acho os detalhes interessantes e, além disso, elas não têm
22
vergonha, contam para as amigas todas as suas intimidades”.
Fato é que os temas femininos são tanto mais freqüentes quanto mais fortes e
determinantes. A começar por em algumas películas, os poucos homens que aparecem serem
meros coadjuvantes; inexpressivos na trama. Isto ocorre em Entre Tinieblas, Mujeres al
Borde de um Ataque de Nervios e Todo Sobre mi Madre, e em menor grau, em Tacones
Lejanos e La Flor de mi Secreto, onde os maridos das protagonistas de ambos e um novo
homem que lhes aparece têm influência em suas vidas – porém a existência dos maridos,
como um passado, e dos novos homens, como um futuro, só tem sentido enquanto ligados a
mulheres.
Em Entre Tinieblas, o padre apenas se faz notado quando assume seu amor por uma
das freiras do convento, que confessa amá-lo. Já enquanto o namorado de Yolanda Bell morre
de overdose, esta consegue se reerguer, fazendo um show para a Madre Superiora e deixando
21
CHALER, 2002, p.1
22
Depoimento no documentário Tudo Sobre Desejo – O cine Passional de Pedro Almodóvar.
58
o convento para finalmente voltar a viver. Neste mesmo filme, vários tipos inusitados
aparecem: a fútil marquesa, que encerra as doações ao convento; o triunfo da irmã Rata, que
se torna uma escritora de sucesso, mas pára de escrever quando percebe que sua irmã é a
única que usufrui dele; a salvação da irmã Esterco, que era assassina, mas agora tem de cuidar
da Madre Superiora, que apesar de forte, tem sua derrocada quando perde mais uma de suas
‘meninas’, com quem mantinha uma doentia relação de drogas, amor platônico e
autodestruição.
La Flor de Mi Secreto é um exemplo de como uma mulher pode ser bem sucedida,
mas de quanto pode vir à ruína por causa do amor por um homem. Almodóvar fala sobre a
traição em vários sentidos, seja quando a romancista, Leo, é traída por seu marido com sua
melhor amiga – situação que também aparece em Kika –, seja quando trai a si própria, no
desejo de salvar um casamento que há muito já não tem solução, sem querer enxergar que
Paco já não a ama. Leo consegue se reerguer e está pronta para formar uma nova vida com um
novo homem; o jornalista que a admira profissional e pessoalmente. Vitória que Leo
consegue, inclusive com a ajuda da amiga que abdica do romance em nome da amizade.
Alguns outros aspectos relacionados ao gênero são tanto contraditórios, que parecem
críticas ou questionamentos. Tina, a transexual de La Ley Del Deseo, é um homem que,
violentado por outro homem, deseja se transformar em mulher. Poderíamos pensar na inveja
masculina em relação à mulher. Por que ele ia querer teoricamente se tornar mais fraco e não
mais forte, para conseguir se defender de outros que lhe aparecessem?
Em uma outra ocasião, poderíamos chamar uma das cenas de Matador de anti-
feminista, quando Angel vai à delegacia confessar um estupro e a recepcionista diz: “Existem
mulheres que têm sorte!”. Talvez os impulsos que fizeram com que esta frase fosse dita,
tenham sido os mesmo que fizeram com que Eva, uma moça independente em tudo, fosse
completamente submissa a Diego, o matador.
A temática principal da película gira em torno das frustrações que as mulheres têm
com o sexo oposto. Logo de início, ainda na apresentação dos créditos, as fragmentações e
confusões do mundo feminino que aparecerão ao longo do filme, são ilustradas através da
fragmentação do corpo de uma mulher em várias partes, como na forma de uma colagem. Esta
seqüência desemboca em um corpo feminino inteiro ao lado de uma mariposa, o que significa
as transformações e a evolução por que as mulheres deste filme experimentarão. As imagens
são acompanhadas pela canção Soy Infeliz, que conta a história de três mulheres infelizes –
enredo do filme.
Pepa (Carmen Maura) está grávida e acaba de ser abandonada por seu amante Iván
(Fernando Guillén). Candela (María Barranco) é amiga dela e está amedrontada por ter tido
uma aventura amorosa com um terrorista xiita. Lúcia (Julieta Serrano) é a enlouquecida
esposa de Iván. As três irão representar as transformações sociais que a Espanha está vivendo
no então contexto do final dos anos 80, momento de surgimento de um “novo homem” e uma
“nova mulher”. Através de uma perspectiva de gênero, Almodóvar apresenta estas mudanças
de conceitos de uma forma desafiadora e redefinidora, desestabilizando os estereótipos
tradicionais.
Pepa: --- Passo dois dias recebendo negativas de todo mundo, agora sou eu quem digo que
‘não’!24
Junto a isto, algumas cenas corroboram com a idéia de uma nova mulher, com uma
nova identidade, independente e autônoma. A aparição de Pepa em um comercial de televisão
de sabão OMO, que por si já é uma referência fonética ao masculino e à presença de Ivan,
mostram uma Pepa dona-de-casa completamente diferente da verdadeira. Comercial que
parece representar uma severa crítica ao machismo. A outra cena é a de Pepa queimando os
pertences de seu antigo amante e jogando fora a secretária eletrônica, que “carregava” a voz
dele, já que ele havia terminado o relacionamento por meio de uma mensagem.
23
minha tradução
24
idem
62
aeroporto, em que Iván pede que reate a relação, mas ela lhe dá um contundente ‘não’,
dizendo ser tarde demais.
Esta mesma autora considera que o local escolhido para a cena – o aeroporto – tem
um significado especial: representa o vôo que Pepa faz em seu interior em busca de uma
identidade própria. Assim, ela superaria a perda de uma identidade subjetivamente sexuada. A
decisão de assumir sozinha sua gravidez é uma ação que a define como uma nova mulher,
com segurança suficiente para retornar à sua cobertura, que tem agora um outro significado
para ela: um refúgio desligado de todo o domínio masculino.
Almodóvar parece fazer, neste filme, uma caricatura das características femininas,
através das várias personagens. A respeito das representações das demais mulheres na
película, PASTOR (2002) considera que:
Além das vestimentas e maquiagem dos anos 60 serem uma forma de Lucía mascarar
a desintegração de sua feminilidade, o vínculo obsessivo e de dependência desta personagem
25
idem
63
com seu marido (Iván) revela a carência de identidade própria que sofre. Ela vai preferir ficar
presa em um Hospital Psiquiátrico, em vez de tentar construir uma nova identidade feminina,
com valores e direitos próprios, livre das amarras patriarcais, simbolizadas por Iván:
A imagem de Iván como um Don Juan vai se desfazendo para dar lugar a de um
homem fraco e covarde. Um homem ultrapassado, que fracassou com marido, pai e amante.
Ele deixa para Carlos um bilhete que diz: “De teu pai, que não te merece!”. Através de Carlos,
Almodóvar propõe uma alternativa para o modelo patriarcal masculino, representada pelo
64
“novo homem”. Carlos é um personagem mais sensível e capaz de manter uma relação de
reciprocidade com uma mulher.
Todas estas mulheres formam um laço solidário entre elas, por terem sido vítimas de
um mesmo infortúnio: decepções em relacionamentos com outros homens. Uma rede de
relações que vai resultar em um laço de amizade, proteção, crescimento, sofrimento,
solidariedade e companheirismo, que também é o que move Todo Sobre Mi Madre.
Um tanto menos caricatural e mais sentimental, parece ser esta película. A amizade e
solidariedade entre as mulheres, a capacidades que estas têm de representar e a maternidade
são os temas que fazem de Todo Sobre mi Madre (1999) uma película extremamente feminina
e emocional. Assim como em Mujeres al Borde de um Ataque de Nervios (1987), a figura de
65
um homem praticamente não aparece, mas causa um grande efeito nas demais personagens, e
é isto que vai gerar todo o conflito da trama. Neste caso, o homem aparece como travesti.
A Manuela (Cecília Roth) de Todo Sobre mi Madre é uma mãe dedicada, que cria
sozinha seu filho Esteban (Eloy Azorín), e é capaz de ir com ele, em dia de chuva, esperar
durante horas por um autógrafo da atriz Huma Rojo (Marisa Paredes). Era o aniversário de
Esteban e ela não podia negar o presente de ele ver sua ídola, já que lhe negava o que ele mais
queria, que era saber sobre seu pai. Mas o jovem tem um fim trágico: é atropelado e morto
antes de conseguir o autógrafo de Huma, que apenas lhe olha através do vidro da janela do
carro. É Manuela agora quem se vê na situação de ter de decidir doar os órgãos de seu filho.
Esta personagem é a própria figura de ‘mãe’ que Almodóvar parece acreditar que deva existir:
uma mulher forte, lutadora, protetora e disposta a ajudar os outros.
O título do filme é uma homenagem a uma outra atriz: Betty Davis, de All About Eve
(A Malvada, 1950). É a partir deste filme, a que Esteban assiste com sua mãe, que ele tem
inspiração para titular o roteiro que está escrevendo para ela. Esta é a primeira de muitas
outras referências sobre à profissão de atriz, durante a película.
26
Tradução de RODRIGUES
66
Huma é a famosa atriz admirada por Esteban. De aparência forte, esconde uma
enorme fragilidade interior. Ela mantém uma relação amorosa com Nina de total dependência,
mas com a ajuda de Manuela, tornar-se-á mais independente. Nina, por sua vez, será
dependente de diversas drogas, além de parecer odiar todas as pessoas. É uma relação
completamente fechada em si, não permitindo que ninguém a conheça profundamente,
penetrando em suas inseguranças, nem mesmo Huma. A relação delas, por vezes, lembra a
relação de mãe e filha, onde uma (Huma) bem mais velha que a outra (Nina), exerce as tarefas
de cuidar, proteger e dizer o que está certo ou errado. Mas nem sempre consegue controlar
certos comportamentos rebeldes, e Nina acaba deixando-a para fugir com um homem.
Para a maioria das feministas dos anos 60, segundo FOX-GENOVESE (1992), a
competitividade e a hierarquia dos homens deveria ser substituída pelo igualitarismo não-
competitivo que elas acreditavam caracterizar a política de “irmandade” (sisterhood) entre as
mulheres. A autora afirma que, para estas feministas, a mulher usa uma linguagem diferente
da dos homens e tem concepções diferentes de moralidade, justiça e política, pois a
experiência feminina de compartilhar uma história de opressão e submissão, teria feito com
que desenvolvessem uma irmandade. Esta faria com que elas suportassem a situação e
opusessem resistência, levando a mulher a uma aversão à competição e a valorizar a
reciprocidade e a comunidade.
67
Uma das personagens que atrai a atenção, inevitavelmente, por seu tipo espalhafatoso
e singular, sua irreverência e sua comicidade é Agrado (Antonia San Juan). Seu nome é este
porque faz com que a vida do outros seja agradável. É interpretado por uma atriz, mas no
filme é um travesti que está juntando dinheiro para sua próxima cirurgia: a mudança de sexo.
Numa das noites de apresentação de A Streetcar Named Desire, há uma briga entre Huma e
Nina e o espetáculo é cancelado. Esta será a oportunidade de ele apresentar seu próprio
espetáculo, que nada mais é do que a história de sua vida, repleta de momentos hilários e
cirurgias plásticas.
Manuela terá outras chances de ser mãe novamente e não desperdiçará nenhuma.
Cuidará da irmã Rosa (Penélope Cruz) durante toda sua gravidez, e depois do filho desta. Já
Rosa, parece perceber sua culpa na relação de indiferença que manteve com a filha, de mesmo
nome, quando a vê fraca e doente, morando na casa de Manuela sendo cuidada por uma
estranha e não por ela, que é sua mãe:
Rosa mãe: --- Rosa, não sei o que fazer. O que espera que eu faça?
Rosa mãe (triste, mas realista): --- Não espera nada de mim?
Irmã Rosa: --- Não é isso. Quero dizer que não deixe mais difícil!
Ao sair do quarto em que está a filha, Rosa tem uma conversa com Manuela que a
faz se arrepender de não ter dado mais carinho e atenção à filha. Quando Rosa diz a Manuela
que não sabe o que fez de errado para que sua filha parecesse um “extraterrestre”, pergunta à
Manuela se ela tem filhos e se dá-se bem com eles, e esta responde que ele está morto.
Almodóvar parece dizer com isto, que uma mãe sempre terá instinto maternal, mas de forma e
em intensidade diferentes. Além disto, uma má mãe, mereceria algum tipo de punição,
enquanto uma boa mãe; recompensas. Manuela perdeu o filho, mas poderá ser mãe outra vez.
Rosa se mostra uma mulher amarga e preconceituosa. Ela reclama de Manuela por
ter deixado Lola (Tony Canto) beijar seu neto, sem saber que era ele o pai dele. Para
contrastar a amargura e falsidade – seu trabalho é falsificar quadros – representadas por Rosa,
sua filha encarna a bondade das mulheres, trabalhando como assistente social e vivendo para
ajudar os outros – quase todos em situação de risco27. Apesar de ser boa, não se livra de um
triste fim: morre por ter contraído AIDS do pai de seu filho, o travesti Lola.
27
Na antiga designação dos ‘grupos de risco’ de ser contaminados pelo vírus HIV, estavam incluídos os
homossexuais, transexuais e usuários de drogas injetáveis, que eram as pessoas ajudadas pela irmã Rosa e suas
companheira
69
segundo, sabia que já não teria tempo de exercer a paternidade, pois estava prestes a morrer,
vítima de AIDS. O segundo Esteban, filho de Manuela, deixava bem claro o quanto o pai lhe
fazia falta. Ele diz:
Esteban: --- Esta noite minha mãe me mostrou uma foto de quando ela era jovem que faltava
a metade. Não quis dizer, mas falta isto também em minha vida.
Depois deste filme, Almodóvar não mais seria chamado de “enfant terrible”, apelido
que recebeu da crítica espanhola, por seu estilo subversivo. Ele mesmo brinca, dizendo que
sua mãe só passou a acreditar nele, depois que ganhou o Oscar por esta película. Nesta, o
cineasta se mostra bem mais intimista que nas suas demais obras, parecendo querer perscrutar
a “alma” feminina através do sofrimento, das relações e da força da mulher. É também sua
película, onde menos tem personagens estereotipados, apesar de não dispensar seus párias e
tipos tão característicos, que fogem ao padrão e não à normalidade/realidade, e seus temas
polêmicos, como a mudança de sexo e a homossexualidade feminina. Mas a diferença está
justamente nos seus tipos e temas, que desta vez parecem bem mais querer levantar discussões
através de análises profundas sobre os papéis relativos aos gêneros, que propriamente
aparecer enquanto diferenças.
Mesmo com o foco voltado para a trajetória de mulheres – onde mesmo os poucos
homens que aparecem em também poucos momentos, são tomados de extrema feminilidade –,
ou talvez exatamente utilizando isto como artifício, Almodóvar faz uma crítica ao machismo
latino, através da fragilidade do universo masculino. E apesar de muitos críticos terem
70
3.1.1 O filme
Em cartaz: Hable con Ella (Fale com Ela, 2002). O 14º longa-metragem de Pedro
Almodóvar é precedido por uma enxurrada de críticas que dividem opiniões e ao estrear nas
telonas, segue gerando uma certa curiosidade por um motivo em especial: o famoso “diretor
de mulheres” agora traz dois homens como seus protagonistas. O filme, que faz nascer tantas
distintas percepções à crítica e ao público, rende ao cineasta o Oscar de Melhor Roteiro
Original, o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, sete indicações ao Goya, o César de
Melhor Filme da União Européia, entre muitos outros prêmios.
Muito alarde foi causado. O próprio estilo kitsch, tão característico do diretor foi
dado como encerrado. Dizia-se que ele se atém agora ao melodrama, que está iniciando uma
nova fase, que está abandonando a comédia, que não quer mais trabalhar com mulheres;
enfim uma série de especulações e posições a respeito de um novo trabalho, que traz os
mesmos temas recorrentes do cineasta espanhol, que se caracterizou e consagrou por seus
tipos bizarros, cores berrantes e mulheres fortes.
Se Hable con Ella tem tudo isto, porque tanta polêmica a respeito? Talvez seja uma
irônica contradição, mas poderíamos pensar que desta vez Almodóvar foi além na
representação do feminino. Ele afirma que a intenção era mostrar duas mulheres em coma, ou
seja, inertes, que tivessem tanta presença quanto se estivessem de pé e falando com os homens
em cena. E consegue. Além disto, os personagens masculinos só ganham importância na
medida em que se relacionam com o sexo oposto e começam a deixar transparecer suas
expectativas, inseguranças e frustrações.
Dois homens que vivem “em” duas mulheres, estas que continuavam fortes e
teimando em viver, ambas em estado de coma. Numa profissão tipicamente feminina, o
enfermeiro Benigno (personagem central, interpretado por Javier Câmara) não consegue
enxergar sua vida sem estar perto de Alicia (Leonor Watling). Ênfase na arte – música, mas
28
Ficha Técnica:/ Título Original: Hable con Ella/ Gênero: Drama/ Tempo de Duração: 116 minutos/ Ano de
lançamento (Espanha): 2002/ Site Oficial: www.sonyclassics.com/talktoher/ Estúdio: El Deseo S. A./
Distribuição: 20th Century Fox/ Sony Pictures Classics/ Warner Bros./ Direção: Pedro Almodóvar/ Produção:
Augustín Almodóvar/ Música: Alberto Iglesias/ Fotografia: Javier Aguirresarobe/ Desenho de Produção: Antxón
Gómez/ Figurino: Sonia Grande/ Edição: José Salcedo/ Elenco:/ Javier Câmara (Benigno Martins)/ Darío
Grandinetti (Marco Zuloaga)/ Rosario Flores (Lydia Gonzales)/ Leonor Watling (Alicia Roncero)/ Geraldine
Chaplin (Katerina Bilova)/ Mariola Fuentes (Rosa)/ Fele Martinéz (Alfredo)/ Paz Vega (Amparo)/ Chus
Lampreave (Concierge)/ Elena Anaya (Angela)/ Participações especiais: Caetano Veloso, Marisa Paredes e
Cecilia Roth
72
principalmente a dança. São detalhes que, ao mesmo tempo em que resumem, apresentam as
que poderiam ser consideradas ‘entrelinhas femininas’ da película: sensibilidade e delicadeza.
Não há dúvidas de que Almodóvar tenha um certo apreço especial pelas mulheres.
Podemos nos perguntar se isto se deve a algo que sempre vem tentando demonstrar em seus
filmes: a ambigüidade humana. O diretor dá a impressão de que a mulher assume melhor
tanto suas características dadas como femininas ou masculinas, e por isso seria capaz de ser
mais forte, por poder ter uma identidade própria e não ter medo de assumi-la. Porém Hable
con Ella vem mostrar que o homem também pode estar neste papel. E não ter medo de
demonstrar fragilidades e inseguranças, entre outras qualidades que provavelmente seriam
chamadas de ‘coisas de mulher’.
De um lado a crítica ataca dizendo que com esta película, “o diretor disfarça a
fixação pelo feminino, trazendo os homens para primeiro plano”29, de outro diz que
“gradualmente, Pedro Almodóvar vai mudando seu cinema”30, migrando das cores berrantes e
dos risos histéricos para o campo do mental. Era dito que ele agora havia se tornado um
cinema mais contido, menos provocador e exagerado, e que aposta mais nas emoções e no
melodrama do que na comédia escrachada e no lado absurdo das situações.
Ele afirma ainda que o próprio fio que veio a dar origem à idéia do filme tenha sido
constituído por muitos fios menores: falar sobre algo que faça um homem chorar; as notas que
havia tomado sobre mulheres que despertavam do coma após um longo período e mais
interessante, que elas podiam escutar mesmo neste estado; um estupro de uma mulher por um
assistente no hospital; elementos como as apresentações de dança – ensaiadas pela coreógrafa
alemã Pina Bausch, uma das mais inovadoras deste século, e que tem como tema favorito a
29
Revista de Cinema – Elaine Guerini
30
Site – Ruy Gardnier
73
denúncia dos códigos de sedução –, que apesar de tirar a história de seu caminho linear,
enriquecem e dão coesão para a história inteira.
Apesar da extrema feminilidade que Hable con Ella demonstra, as mulheres neste
filme, em sua maior parte, são vistas sob a ótica dos homens. Pois mesmo com a forte
presença incontestável delas, são o enfermeiro e o jornalista os reais protagonistas.
Almodóvar diz que “queria fazer um filme que abordasse a amizade no universo masculino, e
como metáfora, a demorada convalescença das feridas provocadas pela paixão”.
No início dos anos 80, onde a provocação era a marca registrada do diretor e a
liberdade sexual era uma das bandeiras levantadas por Almodóvar, em sua contestadora
“Movida”, não parecia estranho que as personagens masculinas fossem em sua maioria
homossexuais (Laberinto de Passiones, 1982 e La Ley del Deseo, 1987). Agora, em Hable
con Ella, os homens-heterossexuais são protagonistas absolutos da história que envolve drama
familiar, amores impossíveis, amizade e morte, temas até então reservados às mulheres.
Quanto à perda do estilo kitsch e banimento das cores berrantes, não precisam muitas
explicações ser dadas, pois a toureira Lydia (Rosário Flores) encarna toda a obrigatoriedade
do vermelho forte e das roupas extravagantes. O momento em que estes dois elementos
aparecem, são justamente os que demonstram a força que Almodóvar quis lhe dar.
Não poderíamos falar em um auto-retrato, mas talvez Hable con Ella seja em grande
parte um reflexo de muito do que o diretor pensa a seu próprio respeito. É ele mesmo quem
assume que este filme seja uma espécie de confissão e antologia pessoal de um homem que se
emociona facilmente e além de maturidade, também ganhou muitos quilos com o tempo –
características explicitamente demonstradas através dos dois personagens principais –: Pedro
Almodóvar.
31
ALMODOVAR apud CUNHA. Revista de Cinema.
74
O enfermeiro fala com Alicia como se estivesse ela acordada e insiste para que
Marco faça o mesmo com sua namorada, mas este não consegue. E é justamente em uma das
noites em que Benigno narra à sua paciente, um filme que havia visto na cinemateca,
“Amante Menguante”, que ocorre o fato que só se saberá mais tarde: o enfermeiro havia
violentado e engravidado Alicia. Na cadeia, Benigno tem o apoio de Marco, que fica sabendo
que a bailarina despertou com o choque do parto, mas não conta a novidade para ele, que se
suicida. Apesar disto, tudo indica o enfermeiro tenha “abençoado” o subentendido
relacionamento que Marco e Alicia iniciarão algum tempo depois.
Benigno Martins
Benigno passou sua vida inteira cuidando de duas mulheres. Primeiro foi sua mãe, de
quem começou a cuidar ainda quase menino, e depois Alicia, por quem se apaixonou ao
observá-la da janela de sua casa. O enfermeiro tem hábitos tradicionalmente atribuídos às
75
mulheres, não apenas em sua profissão e nos cursos que fez (para ser esteticista, maquiador e
cabeleireiro), mas ao cuidar com tanto esmero de casa, bordar e aguar as plantas.
Ele não tem divertimentos até começar a cuidar de Alicia, quando passa a reservar
suas horas livres para fazer aquilo que ela gostava de fazer, e depois lhe contar. Suas folgas
são secundárias, pois cuidar de Alicia é mais que um trabalho, é a realização de um sonho;
estar em contato com seu amor. Ele apresenta uma destreza maior que as dos demais ao lidar
com a paciente em estado inerte, demonstrando que não apenas só conseguia se relacionar
com alguém que estivesse à sua mercê, como isto lhe dava prazer, já que apreciava os dias de
chuva, pois foi num destes que Alicia sofrera o acidente e fora parar na Clínica. E foi um
destes também que escolheu para cometer suicídio oito meses depois.
Alicia Roncero
Almodóvar diz que “o corpo de Leonor Watling agüenta a presença dos grandes
atores (Javier Câmara e Darío Gradinetti) sem que o espectador a perca de vista. Comparte o
plano com ambos e na ocasião os rouba e os transporta a um lugar misterioso, que nem eu
mesmo conheço. Watling é Alicia habitando a parte mais obscura do outro lado do espelho”.32
32
ALMODOVAR apud PENEDA. Tradução minha
76
Marco Zuloaga
É ele quem melhor representa aquilo que Almodóvar quer dizer com seus
personagens com múltiplas identidades e características ligadas aos dois sexos. É um homem
heterossexual, que contraria as máximas do macho, mostrando-se sensível e sentimental,
chorando a cada vez que se emociona (e não são poucas as vezes). Ele se apaixona
perdidamente, acredita cegamente no amor e mantém uma relação de muita ternura com outro
homem, Benigno.
Lydia González
A toureira é uma mulher que demonstra seu talento num nicho de homens, por isso
lhe recaem suspeitas sobre sua competência, como se uma mulher não pudesse desempenhar
uma tarefa considerada masculina, com tamanha desenvoltura. Porém, a valentia profissional
de Lydia não se estende à sua vida pessoal. Apesar de não temer os enormes e pesados touros,
tem um pavor fóbico de cobras. A cobra, além de ser um animal fálico, é um bicho que se
esgueira, que não se deixa agarrar, invocando o que poderíamos pensar com algo que escapa à
lógica fálica. Daí a associação da serpente com a mulher, ou o que é representado no filme,
como o estado de coma, pois é Benigno quem diz que “a mente das mulheres é um mistério,
ainda mais neste estado”.
O que faz com que ela fique em estado de coma é um trágico acidente em sua última
tourada, onde ela se coloca numa posição quase de joelhos para receber o touro e fica sem ter
como se defender. Tudo parece indicar que ela se deixou abater. Este acontecimento poderia
ser pensado como o preço máximo (a vida) que estava disposta a pagar para saldar a dívida de
sua transgressão, já que teve a ousadia de “passar por cima” do lugar paterno. Pois era seu pai
que tanto queria ser toureiro, mas só conseguiu ser banderilheiro, tendo escolhido Lydia para
ocupar o lugar que ele não conseguiu, apesar de toda a oposição da mulher e da outra filha,
77
mãe e irmã de Lydia, respectivamente. Marco já afirmava ao conhecer a toureira, que “seu pai
selou seu destino”.
El Niño de Valência
É o toureiro que conseguiu fama às custas de Lydia e também é o grande amor de sua
vida. Seu comportamento parece querer dizer o quanto “masculino” é sua realidade: é
toureiro, abandona Lydia e sequer a procura para que possam conversar e manter uma boa
relação após a separação. Ele pede que um amigo a procure e converse com ela, dizendo que
El Niño não tem tempo para outras preocupações, pois precisa se concentrar para a próxima
apresentação, num ato de extrema covardia.
Apesar disto, quando Lydia sofre o acidente e fica em estado de coma, é ele quem
consegue conversar com ela, e não Marco, demonstrando que não é o homem fechado que
parece, que pode mudar ou que também pode ter momentos de sensibilidade para com a
mulher que ama. Ele, por fim, também sofre um pequeno acidente que o deixa, por no mínimo
dois meses, longe das touradas, e reserva este tempo, que confirma sua fragilidade, para ficar
ao lado dela.
completo, pois suas pernas continuam erguidas por alguns instantes, até que tocam o chão
para que elas possam se levantar novamente e andar. Enquanto isto, um homem que também
expressa muita tristeza, retira todos os objetos da frente delas, para que não esbarrem em
nada.
Mas também é provável que esta grande tristeza signifique a decepção e a melancolia
de homens ‘em crise’, por perceberem que a mulher não é mais aquele ser dependente,
indefeso e fraco, que se submetia a ele. Essas crises masculinas nascem nos países de
79
civilização refinada, onde as mulheres gozam de mais liberdade que em outros lugares,
fazendo com que o modelo de homem que subjuga a mulher e esta dependa dele, caia. E isto
conseqüentemente vem gerar, nos homens, um sentimento de perda de identidade e
impotência diante do fato da independência feminina.
Katerina: --- É lindo, porque da morte surge a vida, do masculino surge o feminino, da terra
surge (...) o etéreo, o impalpável, os fantasmas.
Matilde: --- Benigno, pode ficar hoje? É que minha irmã não pode e não tenho com quem
deixar as crianças.
(...)
Benigno: --- Não é culpa sua se seu marido a abandonou com três filhos.
O abandono da enfermeira pelo marido também trata de um outro tema que o autor
deixa claro em diversos momentos da película: as relações problemáticas entre os casais. Por
diversas vezes, a solidão e o diálogo são expostos e parecem ser estes os principais elementos
que compõem o sucesso ou o fracasso de uma relação.
A dança do Café Müller mostra dançarinas não apenas com os olhos fechados, mas
com a boca também. Mulheres e homem não dialogam, em contraposição ao espetáculo que
encerra o filme. Neste, além da cantora, que pode se expressar através da canção (no caso,
cantada em inglês), os outros bailarinos também conversam. A conversa surge já no final da
segunda parte da apresentação, quando uma moça passeia rente ao muro de plantas e um
rapaz a aborda, travando um diálogo entre eles, mas que nós não podemos ouvir.
E será este o principal apelo do filme, explicitamente demonstrado já por seu título.
Benigno conversa com sua paciente, por mais que muitos pensem que ela não pode ouvir. É
no momento em que Marco lhe diz que não consegue tocar em Lydia, pois não reconhece seu
corpo, que o enfermeiro lhe diz: “fale com ela!”. Mas apesar de toda a insistência de Benigno,
Marco continua sem conseguir falar com Lydia, o que faz com que se sinta desprezível por
causa disto. E quando o jornalista resolve viajar por ter descoberto que a toureira, na verdade,
iria romper com ele no dia do acidente porque ainda amava El Niño, Benigno lhe pergunta se
brigaram, explicando que já sabia que “mais cedo ou mais tarde isto iria acontecer”. O
enfermeiro diz que por algum motivo que não sabe qual, percebia que a relação deles tinha
algo que não funcionava. Este algo era a tentativa do diálogo, que simplesmente inexistia,
enquanto El Niño conseguia falar com Lydia.
Benigno deixa claro o esforço que deve ser feito para que homem e mulher se
entendam mutuamente. Mas acima de tudo, Almodóvar traz, por meio deste personagem, a
discussão sobre a necessidade de um espaço para que a mulher possa falar. Ele faz uma critica
ao comportamento masculino tradicional, que considerava o “silêncio feminino” como uma
virtude e as conversas entre mulheres, uma banalidade. Esta crítica se repete em outros
momentos da película. Chega a ser irônico, mas Benigno, que apenas teve a experiência de
81
conviver com duas mulheres – sua mãe e uma paciente em coma –, explica a Marco o que
uma mulher precisa para que uma relação possa dar certo:
Benigno: --- Tem de prestar atenção nelas, falar com elas, pensar nos pequenos detalhes,
acariciá-las. Lembrar que existem, que estão vivas e que são importantes para nós. Essa é a
única terapia, falo por experiência.
Nesta cena, Almodóvar faz a primeira crítica à profissão de psicólogo, que ele
desacredita. O diretor afirma que cada um deve procurar resolver seus problemas sozinho, e
coloca na fala de Benigno, que não há necessidade de terapia. Uma outra crítica vem mais
tarde, com a figura do Dr. Roncero, pela forma cômica e irônica com que trata a entrevista de
Benigno:
Dr. Roncero: --- E durante esses (últimos) 15 anos, não fez nada a não ser cuidar de sua
mãe?
(...)
Dr. Roncero: --- Não é isso, mas teve uma adolescência que podemos chamar de especial.
Uma questão interessante, que o diretor enfatiza, é o fato de Marco ser jornalista (um
profissional da comunicação) e, no entanto, não conseguir se comunicar com sua namorada,
quando esta entra em coma. Isto parece confirmar, indiretamente, a dupla crítica que o diretor
faz aos meios de comunicação – por meio da zeladora de Benigno e a entrevista de Lydia.
Marco diz a Benigno que gostaria de poder falar o que sente à Lydia, mas se recusa,
afirmando que ela não pode escutar. Então o enfermeiro lhe diz que ele não pode ter tanta
certeza disto, pois “a mente das mulheres é um mistério, ainda mais neste estado”. Podemos
82
fazer uma leitura do coma das duas mulheres como um lugar na mulher onde não se encontra
o compreensível ou mesmo o dizível. Onde para nada servem os roteiros de viagem de Marco.
Desde muito tempo, a mente das mulheres foi vista como algo imperscrutável, onde
o místico e o ‘maléfico’ poderiam reinar e dominar a mente e o corpo do homem, bem como
manipular suas ações. Não era coincidência que a figura das bruxas, na Idade Média, estivesse
ligada ao feminino. Por isso, o medo que fez com que Igreja e sociedade se unissem contra
essas mulheres, providenciando o conhecido fim que tiveram aquelas que detinham algum
conhecimento a mais do que o “necessário” para cuidar das ações de casa: a fogueira.
Almodóvar nos diz que a mulher precisa que lhe entendam, mas também que deixem
que ela se expresse, mesmo que não por meio de palavras. O silêncio feminino, que perdurou
por séculos, pode ser a chave para compreender o que o diretor quer dizer com aquela que
está impossibilitada de falar, de agir, mas teima em sobreviver. A recuperação de Alicia
parece estar ligada a um feliz resultado que tiveram todos os movimentos de mulheres, que
lutaram por uma independência, lugar e voz dentro da sociedade. Mas além de lenta,
Almodóvar parece querer mostrar que este crescimento ainda não se concluiu completamente,
pois ainda há o que conquistar para uma realidade de iguais entre homens e mulheres.
Porém, o diretor deixa clara a diferença entre este ‘falar com’ e o ‘falar para’, pois
apenas no primeiro se estabelece não somente um diálogo, mas uma relação. Provavelmente
por isto, o diretor repete duas vezes a cena em que Lydia diz a Marco que precisam conversar,
pois não quer “que se passe nem mais um dia sem que” se falem:
O poder da palavra chega a ser tão forte que ele serve de tijolo inicial na escalada de
sentimentos das personagens mesmo quando a vida já se extinguiu. A palavra cria vida e
muda a vida das pessoas e dos que estão ao seu redor.
83
Uma outra leitura possível é a de que os homens devem fazer: encontrar ou ‘falar’
com sua porção feminina, sua sensibilidade que foi reprimida e que também faz parte dele.
Almodóvar expressa o quanto admira a relação que as mulheres conseguem estabelecer não
apenas com o parceiro, mas principalmente entre si. Seriam as mulheres capazes de superar
melhor as dificuldades, por que conseguem verbalizá-las com desenvoltura? Na fala de
Benigno, no momento em que ele e Marco estão com as duas pacientes no terraço, o diretor
coloca algo não só peculiar às mulheres, mas considera ser necessário aos homens:
Benigno: --- Olhe só para elas. Parece que falam de nós. O que acha que dizem? As mulheres
falam tudo umas para as outras. Tudo mesmo!
Benigno: “(...) Você é meu único amigo. (...) Onde quer que me levem, venha me ver e fale
comigo. Me conte tudo, não me faça segredos. Adeus, amigo”
Marco chora. Provavelmente não apenas por ter perdido o amigo, mas por ter
percebido que deveria ter lhe contado toda a verdade: que Alicia tinha despertado. Pois
Benigno morreu sem saber o que houve, algo que ele tanto dizia precisar saber. E somente no
cemitério, ao túmulo de Benigno, que Marco lhe atende o pedido e lhe conta o ocorrido.
Talvez Almodóvar queira justamente dizer o quanto é preciso falar no momento, e não esperar
que seja tarde demais. MERLEAU-PONTY (1989)33 usa a denominação “fala autêntica” para
aquilo que é dito ao mesmo tempo em que se pensa ou se sente. Ao contrário das “expressões
33
MERLEAU-PONTY é citado por AMATUZZI
84
segundas”, onde há uma premeditação, uma razão antes da fala, na “fala autêntica” ou
“expressão primeira”, o falar não vem primeiro no sentido cronológico, mas no de uma nova
experiência.
Entrevistadora: --- As pessoas falam que muitos touros não a enfrentam pelo fato de ser
mulher.
A própria entrevistadora diz que ela deve admitir que há muito machismo nas
touradas, mas sua fala acaba por chegar a um outro ponto, onde Almodóvar faz uma segunda
crítica, já antes feita, em Kika (1993): à invasão da mídia na vida privada. Os problemas
sentimentais de Lydia são expostos pela entrevistadora, por mais que a toureira já houvesse
dito nos bastidores, que não gostaria de falar sobre o rompimento de seu romance com El
Niño. Este, um também famoso toureiro, a havia abandonado e deixado desolada. Mesmo
assim a apresentadora do programa insiste em obter respostas confirmativas, até que Lydia
consiga deixar o estúdio:
Entrevistadora: --- “El Niño de Valência” concordou em dividir cartazes com você por
vários meses.
Entrevistadora: --- Acha que ele fez isto só para se promover e depois a deixou?
Lydia: --- Eu falei nos camarins que não queria falar sobre este assunto.
85
(...)
Entrevistadora (puxando Lydia pelo braço e quase caindo no chão): --- Você deveria admitir
que foi usada.
Amigo: --- Ela está dedicando a ti. É capaz de deixar o touro matá-la só para que tu vejas.
Após a tourada, o amigo de El Niño diz a Lydia que este tem de se concentrar e não
tem tempo para outras preocupações. Estas preocupações seriam apenas uma conversa com a
toureira para encerrar o relacionamento. O que demonstra o quanto assuntos amorosos e
sentimentais são considerados bobagens ou ‘coisas de mulher’. Logo depois, Marco tenta
falar com Lydia, que só tem olhos para El Niño. Os dois saem juntos conversando, quando
aparece a legenda: “Lydia e Marco”, porém, mais tarde ficará claro que o jornalista nunca
conseguiu ocupar o lugar do toureiro no coração de Lydia. Marco finalmente fala sobre a
reportagem e ela pergunta se ele escreve sobre touradas, pois não se lembra de seu nome, ao
que ele responde:
34
Além da música "Por Toda a Minha Vida", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, o Brasil também é
referenciado quando Benigno lê um dos guias de viagem que Marco lhe dá, que é sobre o Brasil; quando o
mesmo Marco cita a frase "O amor é a coisa mais triste do mundo quando acaba" e lembra que seu autor é
Jobim; e quando Caetano Veloso aparece cantando em espanhol "Cucurrucucú Paloma", de Tomas Mendéz.
86
Uma toureira que não se cansa de surpreender na arena, mas o que realmente desperta
o interesse das pessoas é sua vida particular, precisamente, suas desilusões amorosas. Por que
Lydia não poderia ser vista como a profissional que é, como acontece com os toureiros
homens com quem trabalha? Por que ela teria de expor sua vida, como se para se sentir
realizada tivesse necessariamente de ter um companheiro? A vida amorosa dos toureiros não
seria dissecada pela mídia e curiosos, porque a visão que se costuma ter do homem é a de uma
figura que pode se realizar na profissão, construir uma família, ou estar solteiro, conforme
queira. Ao contrário, se uma mulher está só é dada como infeliz ou mal amada.
Ao mesmo tempo em que Lydia é uma mulher forte e segura numa profissão onde há
predominância masculina, ela mostra que na intimidade pode ser frágil e indefesa, quando se
trata de perder o homem que ama ou se deparar com uma cobra, animal a que é fóbica. Numa
espécie de aquecimento antes do espetáculo, Lydia, em trajes de toureira, não se diferencia
dos demais homens na arena. Mas depois de ter descido do carro de Marco furiosa, Lydia
87
entra em casa e emana um grito apavorante, pois encontrou uma cobra e muito assustada,
pede que a tire de lá.
Já no hotel em que passa a noite, pois não suporta voltar a sua casa, pede também
que Marco não conte sobre o ocorrido para ninguém, pois apenas sua família sabe sobre a
fobia, demonstrando que sabia que esta sensibilidade ou fragilidade abalaria a imagem que
tem para o público. Quando Marco lhe telefona no dia seguinte, pergunta como ela está, ao
que ela responde “nua”. Algum tempo depois, poderemos perceber, o que mais ela quis dizer,
pois não estava apenas despida de roupas, mas de força e coragem. Isto fica mais claro,
quando Marco lhe fala sobre sua ex-namorada, que tinha a mesma fobia. Na cena, ele narra à
Lydia, em flashback, o estado de Ângela (que seria o mesmo da toureira):
Marco: --- (...) Ela tinha a mesma fobia. Ela estava fora da barraca, horrorizada, indefesa e
completamente nua. Havia descoberto a cobra enquanto dormíamos.
Na casa de Lydia, Marco mata o animal, como um “macho” deveria fazer, mas logo
depois, chora, como jamais um “macho” deveria fazer. O jornalista é um homem que não
parece deixar dúvida quanto à sua sexualidade. Fato demonstrado no diálogo que as
enfermeiras travam na copa da clínica:
Enfermeira que cuida de Lydia: --- Adoro o namorado da toureira, aposto que é bem dotado.
Enfermeira que cuida de Lydia: --- Não, mas essas coisas se vêem na cara deles. E
principalmente no volume entre as pernas! (risos) Eu tenho um sexto sentido.
Enfermeira que cuida de Lydia: --- Claro que não, o que você está falando!
Porém, mesmo com sua preferência sexual confirmada, Marco é um homem sensível,
que chora facilmente de emoção. Ele chora ao ouvir Caetano Veloso cantar, chora ao matar a
cobra na casa de Lydia e chora ao assistir ao espetáculo no Café Müller. Já Benigno, que trata
de Alicia com mais sensibilidade que as próprias enfermeiras e tem a desconfiança das
pessoas quanto a sua preferência sexual, não consegue chorar. Na cena em que Marco
conhece Benigno, este diz ao jornalista que se lembra dele do Café Muller, pois chorou
diversas vezes. Neste momento coloca colírios nos olhos de Alicia e lhe cochicha ao ouvido,
que é aquele o homem que chorava no espetáculo e que ele havia mencionado.
Além desta, outra cena que também deixa claro o quanto o choro é aceito apenas nas
mulheres, é quando Lydia chora muito com o casamento da ex-namorada de Marco. Pois mais
tarde, El Niño vai confessar ao jornalista que tinha reatado o romance com a toureira há um
mês e era por ele (El Niño) que ela chorava. Lydia havia ligado para o toureiro para dizer que
havia chorado pensando nele, numa demonstração de como o choro da mulher é visto com
‘naturalidade’.
Benigno chega a se irritar com uma pergunta feita pelo pai de Alicia sobre sua
sexualidade. Ele afirma à Rosa que o “Dr. Roncero utilizou a forma americana de se
expressar, que é mais sutil”, perguntando sobre sua orientação sexual. O enfermeiro mente a
ele, fazendo da homossexualidade um artifício, já que o pai da paciente havia lhe questionado
pelo motivo da grande intimidade que tinha com ela, manipulando seu corpo diariamente.
Mas de alguma forma, o enfermeiro também sabia que seus modos sensíveis e cuidadosos
com Alicia, faziam com que Dr. Roncero não apenas desconfiasse de sua “preferência por
homens”, como acreditasse nesta. Ele considera uma intromissão do psiquiatra e convence
Rosa do preconceito:
Benigno: --- Como se atreve a perguntar se gosto de homens ou mulheres? Quem se importa?
Neste filme, não há homo ou bissexuais – indivíduos ainda excluídos, por não
pertencer ao modelo de homem másculo e heterossexual –, mas Almodóvar encontra uma
forma de falar sobre o preconceito através dos modos de Benigno, considerados em
demasiado femininos. Ele coloca a personagem da enfermeira Rosa como representando a
vontade de uma sociedade sem preconceitos, mas ainda embebida nele. Ela trava um diálogo
com outras duas enfermeiras, onde demonstra que também é preconceituosa, pois fala desta
orientação sexual como se fosse algo ruim ou negativo. Elas suspeitam da homossexualidade
do enfermeiro, e Rosa diz:
Rosa: --- Meu Deus! Vou sair para que continuem falando mal dele.
Enfermeira chefe: --- Não aprovo que ele (Benigno) seja tão próximo da paciente, mas o Dr.
Vega disse para eu não me preocupar. Que Benigno não gosta de mulher, gosta de homem.
Quanto à violência que o enfermeiro comete, podemos observar que não é a primeira
vez que Almodóvar aborda a violência como um tema passível de perdão, desde que ‘seja em
nome do amor’. Apesar de o estupro de Alicia por Benigno parecer algo detestável – como ele
próprio reconhece, por meio do pedido para Marco lhe conseguir outro advogado, pois o que
atual “praticamente vomita” quando o vê –, o diretor faz com que seu ato se transforme em
algo aceitável, e até mesmo merecedor de complacente ternura.
Já se tornou até mesmo comum aos filmes de Almodóvar, a violência ser abordada
de uma forma tal que não apenas não desejamos punição para o culpado, mas que ele consiga
o que deseja. Assim ocorreu com Victor Plaza, em Carne Trémula, que queria, por meio da
força física, obrigar Elena a ter um relacionamento com ele, pois ela havia tirado sua
virgindade e ele estava apaixonado. E com o seqüestro de Marina por Rick, em ¡Átame!, onde
a vítima acabou se apaixonando por ele.
atraiu os olhares do jornalista por mais de uma vez. Isto é demonstrado pela fala de Benigno
ao vê-lo conversando com a paciente, quando o jornalista chega a perceber as mudanças
provocadas no corpo de Alicia, pela gravidez:
Benigno: --- Ainda que negue, percebi que estava olhando para os seios dela.
Além disto, é ela, quem após quatro anos de coma, contraria todas as expectativas
médicas e quase que por um milagre, acorda. Apesar de parecer frágil, bem ao contrário de
Lydia, será Alicia quem ‘retornará’ à vida, e não a forte toureira, que vem a falecer depois de
alguns meses.
O milagre que faz com que Alicia ressurja do coma é mencionado numa conversa
entre Benigno e Rosa, na qual o enfermeiro diz que cortará o cabelo da paciente tal qual
estava quando ela chegou à clínica, para que ela não note a diferença quando acordar. Neste
momento, Rosa diz que acordar após quatro anos seria um milagre e ela não acredita em
milagres, ao que Benigno contesta dizendo que deveria crer, pois precisa deles.
Irmã de Lydia (acendendo velas para os santos): --- Se não pudermos confiar nos padres, o
que vai ser de nós?
92
Marco: --- Antes, eles violentavam as nativas. Por causa da AIDS, passaram a violentar as
freiras.
Irmã de Lydia (horrorizada): --- E eu, que colocava os missionários num pedestal.
Senhor: --- Não tenho certeza de que todos eles são estupradores.
Esta crítica à Igreja é mencionada também através das medalhas de santos que Lydia
carrega sempre no pescoço e que não serviram para lhe salvar do acidente na arena. E num
outro momento, já na sala de espera da U.T.I., a irmã da toureira, ao ouvir dos amigos que
tenha fé, responde que continua acendendo as velas, “mas ter fé dá muito trabalho”.
Irmã de Lydia: --- Tenho de voltar à Córdoba. O bar está há três semanas fechado, as
crianças estão na vizinha e não estou dando atenção a ele (referindo-se ao marido).
Além destas, uma outra mulher traz os modelos estereotipados tão freqüentes em
Almodóvar. Esta é Concierge, a zeladora do prédio de Benigno, que representa a mulher
tradicional. O diretor apresenta uma senhora com características tradicionalmente atribuídas
às mulheres: curiosa, fofoqueira, exibida e intrometida. Quando Marco lhe pede as chaves do
apartamento de Benigno, ela faz diversos rodeios para saber o que ocorreu com o enfermeiro:
Zeladora: --- E Benigno? O coitado não teve sorte nem na cadeia. Recebeu pouca
publicidade. Não apareceram redes de TV ruins ou paparazzis. Com tantos programas ruins
e ninguém se dignou a aparecer e me entrevistar. É triste o estado das mídias de massa neste
93
país. (...) A propósito, sabe porque Benigno está na cadeia? Era tão quieto que da última vez
que veio aqui, não deu um piu.
Zeladora (incisiva): --- Claro que sabe, só não quer me dizer. Mas eu vou descobrir.
Almodóvar faz, através da zeladora, uma nova crítica aos programas de televisão
voltados para o grande público. Mas desta vez, ele responsabiliza também os telespectadores,
pois são estes que dão margem para que as televisões apresentem uma programação de baixo
nível.
Um outro aspecto que Almodóvar parece querer tratar é o da inveja que o homem
tem da mulher. NOLASCO (1995) fala sobre esse tema, citando o mito de Adão e Eva,
representado no filme, por um curativo que Alicia tem sobre a costela esquerda. A inveja,
inicialmente tomada como um sentimento de mulheres, mostra-se presente nos homens, por
meio da análise deste mito bíblico, onde a primeira mulher nasce de um homem, e
posteriormente, casa-se com este homem-mãe, numa demonstração de inveja do poder
feminino de engravidar.
94
O diretor afirmou que um dos temas que quis abordar nesta película era a amizade
entre dois homens. E a forte amizade entre o enfermeiro e o jornalista é demonstrada com
muita sensibilidade em diversos momentos. Na cadeia, onde Benigno está preso, ocorrem os
momentos de maior ‘encontro’ entre os dois. Uma cena em que a amizade deles se mostra
como desprovida de preconceitos, tão comuns a grande parte dos homens, dentro de um
relacionamento, é a que o enfermeiro diz que esteve pensando muito nele e gostaria de
abraçá-lo, pois havia abraçado muito poucas pessoas na vida – numa referência à solidão.
Neste momento, Benigno diz que pediu um vis-à-vis – recurso para que o preso
possa ter contato físico com um visitante – e perguntaram se Marco era seu namorado, mas
não ousou dizer que sim, receando que ele se incomodasse. Mas o jornalista diz que não se
incomodaria nem um pouco, que ele podia dizer o que quisesse. E Benigno coloca sua mão
rente ao vidro, para que Marco posa colocar a sua do outro lado, junto à do enfermeiro, numa
simetria, que os deixa com lágrimas nos olhos. Este momento reforça a idéia que Almodóvar
quer passar com a proximidade possível, entre dois homens, numa relação apenas de amizade,
onde eles podem se tocar e demonstrar carinho, sem serem parentes próximos ou
homossexuais.
Marco também confessa à Lydia a solidão, quando esta lhe pergunta se está solteiro e
ele responde: “estou só”. Mas o momento mais enfático, e que também significa um
prenúncio do que ocorreria entre Benigno e Alicia, é quando o Dr. Roncero vai à Clínica e
pergunta a Benigno sobre sua orientação sexual:
Benigno: --- Mais ou menos. Não estou mais sozinho, não tenho mais esse problema.
95
O enfermeiro mente quanto à preferência por homens, mas fica implícito que sua
solidão foi afastada pela companhia de Alicia. Nesta cena, quando o psiquiatra chega ao
quarto de Alicia, Benigno a está massageando. Ele chega a fazer movimentos que indicam
muita habilidade com as mãos, mas também muito erotismo.
Benigno vai relatar, algum tempo depois, que os quatro anos que esteve cuidando de
sua paciente foram os melhores de sua vida. Isto nos faz pensar na relação patológica que
mantém com Alicia, demonstrando traços perversos, como o gosto pelo outro inerte; o
fetichismo, ao roubar a presilha do quarto da paciente, fazendo deste um objeto valioso; e
mesmo quando afirma que nada para ele importa, pois o problema não é estar preso, mas sim
não estar perto nem ter notícias de Alicia.
Estes traços também são demonstrados na relação que mantinha com a própria mãe,
de quem cuidou desde que era quase um menino. O enfermeiro admite a Dr. Roncero que a
mãe não era inválida nem louca, mas um pouco preguiçosa, por isso era ele quem a banhava,
cuidava de sua aparência – pois afirma que ela era muito bonita. Ele afirma que fazia quanto
mais fosse preciso para ela, sem uma noção de moralidade dentro de uma relação entre mãe e
filho. A partir desta relação, Benigno passa a reprimir uma heterossexualidade, pois isto o
transformaria num incestuoso. Sua homossexualidade surge então como uma estrutura de
defesa, mas o incesto será confirmado, mais tarde, com a relação sexual que mantém com
Alicia, numa identificação que ele faz desta com o papel de sua mãe.
96
Os modos delicados de Benigno se devem à relação com sua mãe, que foi
praticamente a única pessoa com quem se relacionou até a idade adulta. Apesar disto,
Almodóvar apresenta a figura da mãe numa posição diferente da que esteve em sua última
película Todo Sobre mi Madre, pois enquanto neste a maternidade era dissecada, em Hable
con Ella, não chega a ter tanta importância, tanto que a única mãe que tem uma presença mais
97
forte é a de Benigno, que sequer aparece, pois apenas ouvimos sua voz em uma das cenas. A
única mãe que aparece é a de Alfredo, no filme mudo, que não só está em preto-e-branco,
como não fala nada. Sobre ela sabemos que é ‘terrível’ e não vê o filho há mais de 10 anos.
Numa das noites de sua folga, Benigno vai à cinemateca, assistir ao filme em preto-
e-branco “Amante Menguante”. No dia seguinte, enquanto massageia Alicia, ele não se sente
bem e a cobre novamente com o lençol. Ele começa a narrar-lhe o filme, onde uma cientista
descobre uma fórmula revolucionária de emagrecimento, mas quando seu noivo bebe, começa
a diminuir cada vez mais de tamanho, até que, anos depois, numa noite, ainda sem ter
encontrado o antídoto, enquanto ela dorme, ele entra em sua vagina e “fica dentro dela para
sempre”. Este é o recurso utilizado para representar o que de fato ocorre neste momento, mas
que só vai se revelar mais tarde: Benigno havia engravidado Alicia. Neste instante, a tela fica
amarela e um fluxo vermelho a invade, indicando o que havia ocorrido: o estupro e a
concepção.
Almodóvar explica que esta é uma história que ele havia escrito há muito tempo e
encontrou a oportunidade nesta película de realizá-la. O filme em preto-e-branco “Amante
Menguante” introduzido para servir, como diz o próprio Almodóvar, de “tapadeira” para o
que realmente estava acontecendo entre Alicia e Benigno, foi muito comentado, mas não é o
primeiro que o diretor insere em uma obra sua. Em Matador, quando Maria Cardenal e Diego
Montes se encontram no cinema, está sendo rodado Duelo al Sol, e em Carne Trémula, passa
na televisão Ensaio de um Crime, quando Elena briga com Victor no apartamento dela, e um
tiro é disparado.
Amparo é a cientista que elaborou uma fórmula para emagrecer, e Alfredo é seu
amante, que teima em tomar a fórmula antes de ser testada, e o efeito é minguar até
desaparecer. Mas antes disto, ele mergulha dentro da vagina de Amparo, numa referência aos
conceitos freudianos sobre o desejo de retornar ao útero materno. No plano da teorias sexuais
infantis conscientes ou pré-conscientes, a atribuição de um pênis à mãe e às meninas vai
servir como uma boa defesa dos meninos contra os desejos de penetrá-las, e por isso correr o
risco da castração.
Mas ao mesmo tempo em que a palavra e o sexo devolvem a uma das personagens a
vida, são fontes da perdição de um dos homens. Talvez por que para tudo haja conseqüências
boas e más. É isto que a professora de balé, Katerina, vem falar. Ela é uma típica mestra, que
não apenas dá aulas, mas lições. No final do último espetáculo, ao qual assiste com Alicia e
encontra Marco, ela e o jornalista travam um diálogo que deixa claro o quanto é difícil e
complicado o ‘falar com’:
Marco: --- Sim, mas vai ser mais simples do que imagina.
35
site oficial. Tradução minha
99
É este espetáculo que deixa claro o que Almodóvar quis dizer sobre as relações entre
casais. Katerina comenta com Alicia sobre a coreografia: uma cantora deitada vai passando
por sobre os homens, que a erguem com as mãos enquanto estão deitados e enfileirados, no
chão:
Neste momento, no teatro, aparece uma cadeira vazia entre as de Marco e Alicia.
Provavelmente a que Benigno ocuparia e que em sua ausência, abençoou a relação, ligando-
os, não deixando nenhum obstáculo entre eles. Isto é confirmado pela carta do enfermeiro a
Marco, onde Benigno escreve que está deixando para ele, o apartamento que construiu “para
viver com Alicia”. Então surge a legenda: “Marco e Alicia”, anunciando o relacionamento
que terá início.
100
Marco parece então ter encontrado o que queria: a felicidade de um grande amor.
Pois na primeira noite que passa na Clínica, é convidado por Benigno para entrar no quarto de
Alicia e no momento em que o jornalista conversa com o enfermeiro, aparece a capa do livro
La Noche del Cazador (A Noite do Caçador), como se indicasse que ele ainda estava à
procura de algo e naquele momento iria achar.
Almodóvar mostra com este filme, que não aprecia exatamente as mulheres, mas a
sensibilidade que elas ou os homens possam demonstrar. A força que une e move o
enfermeiro Benigno e o jornalista Marco são comparáveis ao lado humano e solidário de
Manuela e Huma Rojo em Todo Sobre mi Madre. A estrutura narrativa dos dois filmes é
bastante similar. Ambos colocam suas personagens principais como espectadores de tragédias
alheias. É como se o drama do palco – o teatro de Tenessee Williams em Todo Sobre mi
Madre e a dança de Pina Bausch em Hable con Ella – saltasse das coxias e viesse invadir e
modificar a vida das personagens.
Talvez por isso, Hable con Ella comece justamente no momento em que terminou
Todo Sobre mi Madre: um insert de uma cortina de teatro. Mas não é só na organização
fílmica e na relação com as personagens que os dois filmes se assemelham. No que diz
respeito aos temas e na maneira de tratá-los, as duas obras cabem perfeitamente num mesmo
contexto. Todo Sobre mi Madre falava sobre comportamentos fora dos padrões considerados
normais pela sociedade: transexualismo, prostituição, dependência química. Hable con Ella
chega a abordar o pesado tema da necrofilia.
101
Considerações finais
O que é próprio do homem e da mulher afinal? Por muito tempo foi construída e
seguida uma idéia de masculino e feminino como inerentes às figuras do homem e da mulher,
respectivamente, até que os estudos feministas – indiscutivelmente fundamentais para uma
nova noção de representação sexual – trouxessem, por meio dos ‘estudos das mulheres’, a
conceitualização e inserção do termo gênero dentro do contexto acadêmico.
A difícil compreensão e conceitualização do termo se deve muito a ele não ter vindo
substituir nenhum outro, mas também por desconstruir toda uma lógica cultural, social e
histórica de relação entre homem e mulher. A mulher conseguiu vencer muitas barreiras que a
impediam de competir ou mesmo conviver igualitariamente com um homem. Ela lutou e
continua lutando contra uma forma de opressão arraigada dentro de uma sociedade que delega
posições de acordo com o sexo.
Com a independência feminina, conquistada a muito custo por parte das mulheres,
alguns homens começaram a perceber que também são vítimas de uma educação castradora,
onde eles têm de seguir modelos e controlar emoções. Mas uma noção de que ambos os sexos
estão livres de comparações, pois cada um pode assumir as mesmas ou distintas
características, ainda não foi alcançada.
O cinema exemplifica bem como ambos os sexos e suas relações entre si foram
sendo representadas diferentemente com o decorrer do tempo. Homens com características
assumidamente femininas e mulheres fortes não são mais sinônimos de homossexualidade ou
desvios, apesar de ainda existir olhares conservadores. Quem comumente apresenta e defende
esta idéia de que homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais, transexuais, bissexuais
possam ter características em comum, é o cineasta espanhol Pedro Almodóvar.
O diretor ganhou fama e foi tachado como ‘diretor de mulheres’ por ter desenvolvido
muitos papéis femininos fortes e ter trabalhado mais com mulheres que com homens. Ele
possui uma filmografia recheada com diversas películas onde inegavelmente o poder feminino
102
é aclamado. Mas a negação de Almodóvar quanto a esta afirmativa pode ser levada em
consideração.
Ele nega que aprecie mais as mulheres ou que prefira trabalhar com elas, mas assume
que as considera interessantes e inspiradoras para comédias – gênero ao qual não abandona
nem mesmo ao compor dramas. E boa parte da crítica e do público começa a acreditar nisto.
Não porque ele tenha insistentemente falado, mas por um argumento constituinte de seu 14o
longa-metragem, Hable com Ella (Fale com Ela, 2002): Os dois protagonistas são homens.
Não podemos negar uma predileção do cineasta em falar de mulheres. Gosto que se
deve à sua criação, rodeado por mãe e irmãs, mas também por ter sido delegada e assumida
pelas mulheres, características que ele considera interessantes, como o ‘não ter medo do falar
de seus medos’. Mas podemos também pensar em como os homens ainda são cobrados
socialmente para que não demonstrem características femininas, e como as mulheres
assumem cada vez mais aquilo que foi historicamente designado aos homens, como algumas
profissões, vestimentas, cargos de chefia, etc.
figura feminina era praticamente unânime dentro da película e a personagem que mais
demonstrava uma segurança identitária era o travesti Agrado.
Com Hable con Ella, o diretor confirma sua posição em favor da crença na
androginia do ser humano e não consegue negar um apreço especial pelas mulheres, que
mesmo em estado de coma, fizeram-se presente tanto quanto os homens. Pedro Almodóvar
mostra que feminilidade e masculinidade não são variáveis exclusivas de um ou outro sexo,
mas de ambos. Que a identidade de um indivíduo se dá com o assumir de suas características.
E que algo é tão importante quanto o viver, ou mesmo necessário a este: o falar.
104
Referências Bibliográficas
Livros:
AMATUZZI, Mauro Martins. O Resgate da fala autêntica. Campinas, São Paulo: Editora
Papiro, 1989.
BARSA Encyclopaedia Britannica do Brasil. São Paulo: Publicações LTDA, 1997. 6.v.
FOX-GENOVESE, Elizabeth. Para além da irmandade. Tradução de Vera Pereira. In: HILL,
Chapel. Feminism without illusions a critique of individualism. 1992.
WERBA, Graziela C. (Org.) Violência e Gênero – coisas que a gente não gostaria de saber.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
LAGO, Mara Coelho de Souza. Identidade: a fragmentação do conceito. In: SILVA, Alcione
Leite da, LAGO, Mara Coelho de Souza; RAMOS, Tânia Regina Oliveira (Org.) Falas de
Gênero: Teoria, análises e leituras. Editora Mulheres: Santa Catarina, 1999.
RAMOS, Regina Oliveira Tânia. Os brutos também choram: dores e refletores. . In: SILVA,
Alcione Leite da; LAGO, Mara Coelho de Souza; RAMOS, Tânia Regina Oliveira. (Orgs.).
Falas de gênero: teorias, análise, leituras. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999.
SADOUL, Georges. História do cinema mundial III – da origem aos nossos dias. Lisboa:
Livros Horizonte, 1983.
SCALZO, Fernanda. Pedro Almodóvar. In: LABAKI, Amir (Org.). Folha conta 100 anos de
cinema: ensaios, resenhas, entrevistas. Rio de Janeiro: Imago, 1995
106
Revistas:
BARBOSA, Maria José Somerlate. Chorar, verbo transitivo. In: BESSA, Karla Adriana
Martins. (Org.) Cadernos PAGU – Trajetórias do Gênero, masculinidades, Campinas:
PAGU, 1998.
CERDEIRA, Cleide Maria Bocardo. Mitos femininos no cinema e sua influência na imagem
da mulher brasileira. Estudos Acadêmicos, São Paulo: Unibero, ano VI, v. 6, n. 11, p. 31-40,
jan-jul/2000. ISSN-14143577.
GUERINI, Elaine. Fiel ao Melodrama. Revista de Cinema, São Paulo: Krahô, ano III, n. 31,
p. 32-35, nov. 2002. ISSN-1518032-8.
MACHADO, Lia Zanotta. Gênero, um novo paradigma? In: BESSA, Karla Adriana Martins.
(Org.) Cadernos PAGU – Trajetórias do gênero, masculinidades, Campinas: PAGU, 1998.
Endereços eletrônicos:
AGUILAR, Pilar. Hable con Ella (pero si ella no responde) (punto de vista 2.). In:
Mujereshoy (http://www.mujereshoy.com/secciones/181.shtml). Acessado em 15 set. 2003.
107
ALTMANN, Helena. Gênero, Sexo e Sexualidade: Interfaces com o Corpo. In: Congresso
Corpo I (http://www.congressocorpo.hpg.ig.com.br/comun.%20htm/HelenaAltmann.htm).
Acessado em 11 jul. 2003
AZEVEDO, Beatriz. Almodovar nos Trópicos. In: Site oficial de Cristiane Tricerri.
(http://www.christianetricerri.com.br/almodovar.html). Acessado em 09 nov. 2003.
BRANDÃO, Myrna Silveira. Perda, dor e sentimento no último filme de Moretti. In:
Mnemocine (http://www.mnemocine.com.br/cinema/crit/hablaconela.htm). Acessado em 01
out. 2003
COSTA, Ana Maria Medeiros. Fricotes. In: Estados Gerais de Psicanálise de São Paulo
(http://www.geocities.com/HotSprings/Villa/3170/AnaMariaMedeirosdaCosta5.htm).
Acessado em 14 dez. 2003.
LLANOS, Gabriela Castellanos. Hable com Ella (Punto de vista 1.). In: Mujeres Hoy
(http://www.mujereshoy.com/secciones/180.shtml). Acessado em 11 jul. 2003
NAVARRO, Murilo da Silva. LUIS BUÑUEL – 20 anos sem o mestre espanhol. In: Rádio
UFS (http://www.rnufs.ufs.br/rede/radio/news0029.asp). Acessado em 09 ago. 2003
109
PAIVA, Andréa Carla Mousinho. Eros e Thänatos em Matador de Pedro Almodóvar. In:
Agora (http://www.weblab.unp.br/agora/segundas/artigos/artigo023.html). Acessado em 22
nov. 2003.
RUBIO, Consuelo. El cuerpo en el cine dirigido por mujeres: de Cléo a Onwurah. In: El
Cuerpo (http://www.alfonselmagnanim.com/debats/79/quadern07.htm). Acessado em 13 out.
2003.
SELLIER, Genevière. A Contribuição dos gender studies aos estudos fílmicos. MACHADO,
Liliane (trad.). In: UnB (http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/sellier1.html). Acessado
em 28 set. 2003.
SILVA, Suzana Veleda da. Os Estudos de Gênero no Brasil: Algumas Considerações. In:
Revista de Bibliografia de Geografia y Ciencias Sociales (http://www.ub.es/geocrit/b3w-
262.htm). Acessado em 11 jul. 2003.
110
ZETA FILMES. Hable com Ella de Pedro Almodóvar. In: Zeta Filmes
(http://www.zetafilmes.com.br/criticas/hableconella.asp?pag=hableconella). Acessado em 13
jul. 2003.
Vídeos:
Todo Sobre mi Madre (Tudo Sobre Minha Mãe), Pedro Almodóvar, 1999.
Tudo Sobre Desejo – o cinema passional de Pedro Almodóvar, Nick Cory Wright, 2003.
111
ANEXOS
• Pedro Almodóvar
• Filmografia
Cartaz de Pepi, Lucy, Bom y Otras Chicas del Cartaz de Laberinto de Pasiones (1982)
Montón (1980)
Victor e Elena – homem inocente e violência Carbe Trémula (1997) – filme de homens, onde
perdoada. (Carne Trémula (1997) um é inocente, outro traído e outro (acima)
fica deficiente
Freiras de Entre Tinnieblas (1983) – crítica à Madre Superiora dorme com uma viciada – ela
Igreja também é viciada em heroína
Andréa Caracortada em Kika (1993) – crítica Kika e seu marido – ela é inocente, mas
aos meios de comunicação de massa consegue viver sua própria vida, no final
117
Homossexualidade assumida em Laberinto de Sexília faz sexo com seu pai – incesto e homem
Pasiones (1982) averso ao sexo. Laberointo de Pasiones (1982)
Leo e Paco – mulher dependente do casamento Leo encontra um novo amor e realização
em La Flor de mi Secreto (1995) profissional
Angel e Diego Montes – inocência X virilidade Diego e Maria Cardenal – androginia do ser
em Matador (1985) humano
Juiz Dominguez e Rebeca em Tacones Lejanos Rebeca, Becky e secretária – mulher frustrada,
(1991) – é ele quem está apaixonado de sucesso e fútil
O transexual Tyna, em La Ley del Deseo La Ley del Deseo – filme de homens
(1986) homossexuais
119
Lucía – roupas e cabelo dos anos 60 Carlos e Candela – ‘novo homem’ e mulher
estereotipada
Esteban escrevendo o roteiro sobre sua mãe Manuela e Esteban em dia de chuva à espera
do autógrafo de Huma Rojo
Manuela começa a trabalhar para Huma Manuela cuidando da irmã Rosa – nova
chance de ser mãe
121
Huma em cena – não será Blanche também na Lola (Esteban) beija seu segundo filho –
vida esperança de um ‘novo homem’
122
Espetáculo no Café Muller – bailarinas de olhos Espetáculo final – mulher fala e começa a andar
e boca fechados
Benigno observa Alicia pela janela Alicia se espanta ao ver Benigno em seu quarto
123
Lydia – a toureira valente na arena Lydia abraça Marco, mas ainda sofre de amor
por El Niño
Entrevista de Lydia – crítica à mídia Lydia entra em coma e fica na mesma clínica
onde está Alicia
Caetano Veloso canta Cucurrucucú Paloma Marco – homem que chora de emoção
124
Cartaz do filme mudo Amante Menguante Reunião da equipe do Dr. Roncero com o diretor
da clínica
Reflexo de Marco sobre a imagem de Benigno – a Katerina é a professora de balé que dá lições e
evolução do homem mostra a delicadeza de ambos os sexos