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wf NN yeh Guerra e democracia na era do Império ia Michael HARDT e eee an autores de Império alin Qn CIP-Brasil. Catalogaao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Hardt, Michael, 1960- H238m = Multidio / Michael Hardt e Antonio Negri; tradug3o Clovis Marques. ~ Rio de Janciro: Record, 2005. Tradugio de: Multitude ISBN 85-01-07001-7 1. Imperialismo. 2. Representagio politica. 3. Resisténcia ao govemo |. Negri, Antonio, 1933-. IL Titulo. CDD ~ 323.32 05-0470 CDU ~ 3272 Titulo original em inglés: MULTITUDE Copyright © 2004 by Michacl Hardt ¢ Antonio Negri Publicada em acordo com The Penguin Press, uma divisiio da Penguin Press (USA) Inc. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodugdo, armazenamento ou transmissdo de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorizago por escrito. Proibida a venda desta edigdo em Portugal e resto da Europa. 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O projeto da multiddo no sé ex- pressa o desejo de um mundo de igualdade ¢ liberdade, nao apenas exige uma sociedade global democratica que seja aberta e inclusiva, como proporciona os meios para alcancé-la. E assim que nosso livro termi- nar4, mas nao podemos comegar por aqui. Nos dias de hoje, a possibilidade da democracia é obscurecida e ameacada pelo estado de conflito que aparentemente se instalou de maneira permanente em todo o mundo. Nosso livro deve comegar com este estado de guerra. E verdade que a democracia nao passou de um projeto inconcluso ao longo da era moderna, em todas as suas formas nacionais e locais, e € certo que os processos da globalizagao nas ilti- mas décadas sé vieram aumentar os desafios, mas o obstaculo basico enfrentado pela democracia € 0 estado de guerra global. Em nossa era de globalizag4o armada, pode parecer que o sonho moderno da demo- cracia perdeu-se para sempre. A guerra sempre foi incompativel coma democracia. A democracia é tradicionalmente suspensa em tempo de guerra, sendo o poder temporariamente confiado a uma autoridade central forte para enfrentar a crise. Como 0 atual estado de guerra é ao +9. PREFACIO mesmo tempo de alcance global ¢ de longa duragdo, sem safda A vista, a suspensao da democracia também se torna indefinida ou mesmo per- manente. A guerra assume um carater generalizado, estrangulando to- das as formas de vida social e impondo sua prépria ordem politica. A democracia parece entdo totalmente irrecuperdvel, totalmente enco- berta pelos regimes armados e de seguranga de nosso constante estado de conflito, E noentanto, a democracia nunca foi tio necessiria. Nenhuma outra via permitir4 encontrar o caminho que conduza para longe do medo, da inseguranga e da dominagao que permeia nosso mundo em guerra; nenhuma outra via nos levard a uma vida pacffica em comum. Este livro €a continuagao de nosso livro Império, que tratava da nova forma global de soberania. O livro anterior tentava interpretar a ten- déncia da ordem politica global em seu perfodo de formagao, ou seja, identificar como, a partir de toda uma série de processos contempo- rAneos, vem surgindo uma nova forma de ordem global que chama- mos de Império. Nosso ponto de partida era o reconhecimento de que a ordem global contempordnea jd nao pode ser entendida adequa- damente em termos de imperialismo, tal como era praticado pelas poténcias modernas, com base essencialmente na soberania do Esta- do-nago ampliada para territérios estrangeiros. Em vez disso, surge agora um “poder em rede”, uma nova forma de soberania, que tem como seus elementos fundamentais, ou pontos nodais, os Estados- na¢gdo dominantes, juntamente com as instituigdes supranacionais, as grandes corporagoes capitalistas e outros poderes. Consideramos que este poder em rede é “imperial”, e nao “imperialista”. Naturalmente, nem todos os poderes na rede do Império s4o iguais — pelo contririo, alguns Estados-nagio tém um poderio imenso, ¢ outros quase nenhum, o mesmo se aplicando as diferentes corporacées e instituigdes que constituem a rede —, mas apesar das desigualdades eles precisam +10- PREFACIO cooperar para criar e preservar a atual ordem global, com todas as suas divisdes e hierarquias internas. Assim é que nosso conceito de Império atravessa diagonalmente os debates que colocam o unilateralismo e o multilateralismo ou o pré-americanismo e¢ 0 antiamericanismo como Unicas alternativas politicas globais. Por um lado, argumentévamos que nenhum Esta- do-nagdo, nem mesmo o mais poderoso, nem mesmo os Estados Unidos, pode “ir em frente sem olhar para os lados” e manter a or- dem global sem colaborar com os outros grandes poderes na rede do Império. Por outro lado, sustentavamos que a ordem global contem- poranea no se caracteriza nem pode ser sustentada pela participa- 40 igualitdria de todos, ou sequer pela elite dos Estados-nagao, como acontece no modelo de controle multilateral sob a autoridade das Nagées Unidas. Em vez disso, nossa atual ordem global é definida por rigidas divisOes e hierarquias, em termos regionais, nacionais e locais. Nossa tese nao é apenas que o unilateralismo e 0 multilateralismo nao sao desejaveis, tal como tém sido apresentados, mas que nao sao pos- siveis, considerando-se nossas condigées atuais e o fato de que as ten- tativas de sustent4-los ndo serao capazes de manter a atual ordem global. Quando dizemos que o Império é uma tendéncia, queremos dizer que é a tinica forma de poder que serd capaz de preservar a atual ordem global de maneira duradoura. Caberia entéo responder aos projetos do unilateralismo global americano com a exortagio irénica adaptada do marqués de Sade: “Ameéricains, encore un effort si vous voulez étre imperials!” (“Americanos, vocés vao precisar batalhar se quiserem ser imperiais!”) O Império domina uma ordem global que nio sé é internamente fraturada por divisdes ¢ hierarquias como se vé acossada por uma guerra perpétua. O estado de guerra € inevitavel no Império, e a guerra fun- ciona como instrumento de dominio. A paz imperial de nossos dias, a Pax Imperii, exatamente como a da época da Roma antiga, é um arre- medo de paz que na realidade preside um estado de guerra permanen- mW: PREFACIO te. Toda esta andlise do Império e da ordem global, no entanto, fazia parte do livro anterior, e nao cabe aqui repeti-la. Este livro focaliza a multidao, a alternativa viva que se vem se consti- tuindo dentro do Império. Pode-se dizer, simplificando muito, que a globalizagao tem duas faces. Numa delas, o Império dissemina em cara- ter global sua rede de hierarquias e divisdes que mantém a ordem através de novos mecanismos de controle ¢ permanente conflito. A globalizagao, contudo, também é a criagao de novos circuitos de cooperagio e cola- boragao que se alargam pelas nagdes e os continentes, facultando uma quantidade infinita de encontros. Esta segunda face da globalizagao nao quer dizer que todos no mundo se tornem iguais; 0 que ela proporci- ona éa possibilidade de que, mesmo nos mantendo diferentes, descu- bramos os pontos comuns que permitam que nos comuniquemos uns com os outros para que possamos agir conjuntamente. Tambéma mul- tiddo pode ser encarada como uma rede: uma rede aberta e em expan- sao na qual todas as diferencgas podem ser expressas livre e igualitariamente, uma rede que proporciona os meios da convergéncia para que possamos trabalhar e viver em comum. Numa primeira abordagem, devemos distinguir a multiddo, em ter- mos conceituais, de outras nogées de sujeitos sociais, como 0 povo, as massas ea classe operdria. O povo tem sido tradicionalmente uma con- cepg4o unitaria. A populagao, como se sabe, é caracterizada pelas mais amplas diferengas, mas 0 povo reduz esta diversidade a uma unidade, transformando a populagao numa identidade nica: 0 “povo” € uno. A multidao, em contrapartida, é multipla. A multidio € composta de intimeras diferengas internas que nunca poderdo ser reduzidas a uma unidade ou identidade tnica — diferentes culturas, ragas, etnias, géne- rose orientagdes sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes ma- neiras de viver; diferentes visdes de mundo; e diferentes desejos. A multiddo é uma multiplicidade de todas essas diferengas singulares. As +12+ PREFACIO massas também se diferenciam do povo, pois tampouco elas podem ser reduzidas a uma unidade ou identidade. As massas certamente sdo compostas de todos os tipos e espécies, mas nado se pode realmente afirmar que diferentes sujeitos sociais formam as massas. A esséncia das massas € a indiferenga: todas as diferengas so submersas ¢ afoga- das nas massas. Todas as cores da populagao reduzem-se ao cinza. Es- sas massas s6 so capazes de mover-se em unfssono porque constituem um conglomerado indistinto e uniforme. Na multiddo, as diferengas sociais mantém-se diferentes, a multidao ¢ multicolorida. Desse modo, o desafio apresentado pelo conceito de multidao consiste em fazer com que uma multiplicidade social seja capaz de se comunicar e agir em co- mum, ao mesmo tempo em que se mantém internamente diferente. Finalmente, também devemos distinguir a multidao da classe ope- réria. O conceito de classe trabalhadora passou a ser usado como um conceito exclusivo, nao apenas distinguindo os trabalhadores dos pro- prietdrios que nao precisam trabalhar para se sustentar, mas também separando a classe operdria de outros que trabalham. Em sua utiliza- 40 mais estrita, o conceito é empregado para se referir apenas a traba- Ihadores industriais, distinguindo-os dos trabalhadores da agricultura, do setor de servigos e de outros setores; em seu sentido mais amplo, a expressdo classe operdria refere-se a todos os trabalhadores assalaria- dos, diferenciando-os dos pobres que prestam servigos domésticos sem remuneracio e de todos os demais que nao recebem salario. A multi- dao, em contrapartida, é um conceito aberto e abrangente que tenta apreender a importincia das recentes mudangas na economia global: por um lado, a classe operdria industrial j4 nao desempenha um papel hegeménico na economia global, embora quantitativamente nao tenha diminufdo em escala planetiria; por outro lado, hoje em dia a produ- do jA nado pode ser concebida apenas em termos econdmicos, deven- do ser encarada de maneira mais ampla como produgao social — nao apenas a producio de bens materiais, mas também a produgdo de co- municagées, relages e formas de vida. A multidao, assim, compée-se .43Be PREFACIO potencialmente de todas as diferentes configuragdes da produgio so- cial. Mais uma vez, uma rede distributiva como a Internet constitui uma boa imagem de base ou modelo para a multidao, pois, em primeiro lugar, os varios pontos nodais se mantém diferentes mas estio todos conectados na rede, e além disso as fronteiras externas da rede sao de tal forma abertas que novos pontos nodais e novas relagdes podem estar sendo constantemente acrescentados, Duas caracteristicas da multidao tornam particularmente clara sua contribuigio a possibilidade da democracia hoje. A primeira poderia ser apresentada como seu aspecto “econémico”, a nao ser pelo fato de que a separagio entre as realidades econémicas e os outros terrenos sociais rapidamente se esfacela aqui. Na medida em que a multidao nao € uma identidade (como 0 povo) nem € uniforme (como as massas), suas diferengas internas devem descobrir 0 comum [the common] que lhe permite comunicar-se e agir em conjunto. O comum que compar- tilhamos, na realidade, é menos descoberto do que produzido. (Relu- tamos em utilizar a expressao no plural os comuns [the commons], porque ela remete a espacos de partilha pré-capitalista que foram destrufdos pelo advento da propriedade privada. Apesar de um tanto estranho, o comum [the common] ressalta o contetido filoséfico do termo e deixa claro que nao se trata de uma volta ao passado, mas de um novo desenvolvimento.) Nossa comunicagao, colaboragao e coo- peracio nao se baseiam apenas no comum, elas também produzem o comum, numa espiral expansiva de relagées. Esta produgao do comum tende atualmente a ser central a todas as formas de produgio social, por mais acentuado que seja seu cardter local, constituindo na realida- dea caracteristica bisica das novas formas dominantes do trabalho hoje. Em outras palavras, o préprio trabalho, através das transformagées da economia, tendea criar redes de cooperagdo e comunicag4o e a funcio- nar dentro delas. Todo aquele que trabalha com a informagao ou 0 co- nhecimento — dos agricultores que desenvolvem propriedades especificas em determinadas sementes aos criadores de software — de- +146 PREFACIO pendem do conhecimento comum recebido de outros e por sua vez criam novos conhecimentos comuns. Isto se aplica particularmente a todas as formas de trabalho que criam projetos imateriais, como idéias, imagens, afetos e relagdes. Daremos a este novo modelo dominante o nome de “produgio biopolitica”, para enfatizar que nao s6 envolve a produgao de bens materiais em sentido estritamente econdmico como também afeta e produz todas as facetas da vida social, sejam econémi- cas, culturais ou politicas. Esta produgio biopolitica e a expansao do comum que acarreta € um dos principais pilares em que se assenta hoje a possibilidade da democracia global. A segunda caracterfstica da multidao que pode ser considerada particularmente importante para a democracia é sua organizagao “po- Iftica” (nao esquecendo que o polftico rapidamente se amalgama com. © econdémico, o social e o cultural). Podemos ter um primeiro vis- lumbre desta tendéncia democrdtica ao contemplarmos a genealogia das modernas resisténcias, revoltas e revolugées, que evidencia uma tendéncia para a organizagio cada vez mais democratica, das formas centralizadas de comando ou ditadura revoluciondria para organiza- ¢6es em rede que deslocam a autoridade para relagées colaborativas. Esta genealogia revela uma tendéncia das organizagées de resisténcia ¢ revoluciondrias nao s6 para se constitufrem em meios para alcangar uma sociedade democrdtica como para criar internamente, dentro de sua estrutura organizacional, relagdes democraticas. Além disso, a democracia vem-se tornando uma exigéncia cada vez mais dissemi- nada em escala global, as vezes explicita mas nao raro implicita nas inGmeras queixas e resisténcias manifestadas contra a atual ordem global. A moeda comum que circula hoje em dia em tantos movimen- tos e lutas de libertagao através do mundo — no nivel local, no regio- nal e no global — é o desejo de democracia. Nem é preciso lembrar que desejar e reivindicar a democracia global nao assegura sua con- cretizagdo, mas nao devemos subestimar o poder que essas demandas podem ter. +155 PREFACIO Tenha-se sempre em mente que este é um livro de filosofia. Dare- mos numerosos exemplos de maneiras como as pessoas trabalham atualmente para pér fim A guerra e tornar o mundo mais democratico, mas nao se espere que nosso livro responda a pergunta “O que fazer?” ou proponha um programa de agéio concreta. Acreditamos que a luz dos desafios e das possibilidades de nosso mundo, é necessario repen- sar os conceitos politicos mais basicos, tais como poder, resisténcia, multiddo e democracia. Antes de embarcarmos num projeto politico prdtico para criar novas instituigées democraticas ¢ estruturas sociais, precisamos saber se realmente entendemos o que significa (ou poderia significar) a democracia hoje. Nosso principal objetivo é desenvolver as bases conceituais sobre as quais se possa assentar um novo projeto de democracia. Empenhamo-nos no sentido de escrever numa lingua- gem que todos possam entender, definindo termos técnicos e explicando conceitos filosficos. Isto nao quer dizer que a leitura serd sempre f4- cil. Aqui e ali certamente haverd uma frase ou até mesmo um pardgra- fo cujo significado nao seja imediatamente claro. Pedimos que sejam pacientes. Continuema ler. As vezes essas idéias filos6ficas levam mais tempo para desenvolver-se. Pensem no livro como um mosaico cuja concepgio global vai gradualmente surgindo. Consideramos o movimento de um livro para outro, de Império para Multidao, como 0 inverso do que foi feito por Thomas Hobbes de De Cive (publicado em 1642) para Leviatd (1651). A evolugdo em sentido inverso fala da profunda diferenga entre dois momentos histéricos. Na aurora da modernidade, Hobbes definia em De Cive a natureza do corpo social e as formas de cidadania adequadas a nascente burguesia. A nova classe nao era capaz por si sé de garantir a ordem social; precisava de um poder politico que se posicionasse acima dela, uma autoridade absoluta, um deus na Terra. No Leviatd, Hobbes descreve o tipo de soberania que haveria de desenvolver-se subseqiientemente na Euro- 16° PREFACIO pa, sob a forma do Estado-nagao. Hoje, no alvorecer da pés- modernidade, tentamos inicialmente, em Império, delinear uma nova forma global de soberania; e agora, neste livro, tentamos entender a natureza da formagio da emergente classe global, a multidio. Enquan- to Hobbes se deslocava da nascente classe social para a nova forma de soberania, nosso percurso é o inverso — caminhamos da nova forma de soberania para a nova classe global. Enquanto a burguesia nascente precisava invocar um poder soberano para garantir seus interesses, a multiddo surge do interior da nova soberania imperial ¢ aponta para além. A multidao atua através do Império para criar uma sociedade global alternativa. Enquanto o burgués moderno precisava escorar-se na nova soberania para consolidar sua ordem, a revolugao pés-moder- na da multiddo olha para a frente, para além da soberania imperial. Em contraste com a burguesia e todas as outras formagées de classe limitadas e exclusivas, a multidao é capaz de formar a sociedade de maneira auté6noma; isto, como veremos, é fundamental para suas pos- sibilidades democréticas. Nao podemos comegar nosso livro com o projeto da multidio e as possibilidades da democracia. Estes serao os temas dos capftulos 2 e 3. Nosso ponto de partida deve ser o atual estado de guerra e conflito global, que muito facilmente pode ser encarado como um obstaculo intransponivel paraa democracia e a libertacdo. Este livro foi escrito a sombra das nuvens da guerra, essencialmente entre 11 de setembro de 2001 e aguerra de 2003 no Iraque. Precisamos investigar como a guerra mudou nossa época em matéria de politica e soberania, e precisamos articular as contradig6es que permeiam nosso atual regime de guerra. Esperamos, contudo, que jd esteja claro que a democracia, mesmo quan- do parece distante, é necessiria em nosso mundo, que constitui a Gni- ca resposta as inquietantes questées de nossa época e que € a Gnica maneira de sair de nossa eterna situacgio de conflito e guerra. Cabe a nés, neste livro, convencer o leitor de que uma democracia da multi- dao € ndo apenas necesséria, mas possfvel. “47+ 1. GUERRA 1.1 SIMPLICISSIMUS Nas atuais condi¢6es, a guerra leva todas as nag6es, até mesmo aquelas declaradamente mais democraticas, a se tornarem autoritdrias e totalitdrias. — JOHN DEWEY A replica esté perdida. — CICERO Excecdes O mundo esta mais uma vez em guerra, mas desta vez as coisas sao diferentes. A guerra é tradicionalmente entendida como um conflito armado entre entidades polfticas soberanas, ou seja, na era moderna, entre Estados-nagado. Na medida em que a autoridade soberana dos Estados-na¢ao, até mesmo os Estados-nagéo mais dominantes, vem declinando, comegando a se manifestar, em sentido inverso, uma nova forma supranacional de soberania, um Império global, as condigées e a natureza da guerra e da violéncia politica necessariamente estao mudando. A guerra transforma-se num fenémeno geral, global e inter- mindvel. Indmeros conflitos armados manifestam-se hoje através do plane- ta, alguns breves e limitados a um lugar especffico, outros prolongados +21e MULTIDAO expansivos.! Talvez esses conflitos nao devessem ser encarados como casos de guerra, e sim de guerra civil. Enquanto a guerra, como tradi- cionalmente entendida pelo direito internacional, é um conflito arma- do entre entidades politicas soberanas, a guerra civil é 0 conflito armado entre combatentes soberanos ¢/ou ndo-soberanos dentro de um mes- mo territorio soberano. Essa guerra civil j4 nao seria entendida agora no contexto de um espago nacional, pois deixou de ser esta a unidade efetiva de soberania, mas no ambiente global. A estrutura do direito internacional no que diz respeito 4 guerra foi solapada. Desta perspec- tiva, todos os atuais conflitos armados do planeta, sejam frios ou quentes —na Colémbia, em Serra Leoa ou Aceh, entre israelenses e palestinos, entre indianos e paquistaneses, no Afeganistao e no Iraque —, devem ser considerados como guerras civis imperiais, mesmo quando se veri- fica o envolvimento de Estados. Isto nao significa que qualquer um desses conflitos mobilize todo o Império — na realidade, cada um des- ses conflitas é local e espectfico —, e sim que todos eles existem no interior do sistema imperial global, condicionando-o e sendo por ele condicionado, Cada guerra local nao deve ser encarada isoladamen- te, e sim como parte de uma grande constelacio, ligada em graus variados tanto a outras zonas de guerra quanto a 4reas que atualmen- te ndo se encontram em guerra. A pretensdo de soberania desses com- batentes é na melhor das hipéteses duvidosa. Eles esto lutando, isto sim, por um dominio relativo no interior das hierarquias nos niveis mais altos e mais baixos do sistema global. Um novo marco que ul- trapassasse 0 direito internacional seria necessdrio para enfrentar esta guerra civil global.? Os atentados contra o Pentagono e o World Trade Center no dia 11 de setembro de 2001 nao criaram nem alteraram fundamentalmen- te esta situagao global, mas talvez nos tenham obrigado a reconhecer seu cardter geral. Nao ha como fugir ao estado de guerra no interior do Império, e no hd um fim A vista. Parece evidente que a situagao jA estava madura. Assim como a “defenestragao de Praga” ocorrida em +22° GUERRA 23 de maio de 1618, quando dois regentes do Sacro Império Romano foram jogados por uma janela do castelo de Hradtany, desencadeou a guerra dos Trinta Anos, assim também os atentados de 11 de setembro inauguraram uma nova era de guerra. Naquele episddio do século XVII, catélicos e protestantes se massacravam (embora os lados opostos nao demorassem a se confundir), e hoje os cristéos parecem opor-se aos mugulmanos (embora os lados também se confundam). Esta aparéncia de guerra religiosa serve apenas para mascarar a profunda transforma- g4o histérica, o inicio de uma nova era. No século XVII, tratava-se da passagem da Idade Média paraa modernidade na Europa, e hojea nova era é a passagem global da modernidade para a pés-modernidade. Nesse contexto, a guerra transformou-se numa condigao geral: em determi- nados momentos ¢ lugares, pode haver cessagao das hostilidades, mas a violéncia letal esta presente como potencialidade constante, sempre pronta a irromper em qualquer lugar. “Sendo portanto que a natureza da Guerra”, explica Thomas Hobbes, “nio consiste nos combates em si, mas numa reconhecida disposigéo neste sentido, durante todo o tempo em que nao houver garantia do contrario.”? Nao se trata aqui de guerras isoladas, portanto, mas de um generalizado estado de guer- ra global que de tal maneira torna menos distinta a diferenga entre guerra ¢ paz que j4 nao somos capazes de imaginar uma paz verdadeira ou de ter esperanga nela, Este mundo em guerra de certa forma se assemelha Aquele em que vivia Simplicissimus, o heréi camponés do grande romance escrito por Johann Grimmelshausen no século XVII.* Simplicissimus nasceu na Alemanha em plena guerra dos ‘Irinta Anos, uma guerra em que mor- reu um terco da populacao alem, e, como indica seu préprio nome, enxerga esse mundo com os olhos mais simples e ingénuos. De outra forma, como seria possivel entender semelhante estado de perpétuo conflito, sofrimento e devastagdo? Os diferentes exércitos — o fran- cés, o espanhol, o sueco e o dinamarqués, paralelamente as diferentes forgas germanicas — passam um apés 0 outro, cada qual se arrogando +236 MULTIDAO mais virtudes ¢ integridade religiosa que 0 outro, mas para Simpli- cissimus so todos os mesmos. Matam, estupram, roubam. Os inocen- tes olhos abertos de Simplicissimus conseguem registrar o horror sem serem por ele destrufdos; enxergam por tras de todas as mistificagdes que obscurecem essa brutal realidade. Alguns anos antes, do outro lado do Atlantico, no Peru, um amerindio, Huaman Poma de Ayala, escre- veu uma crénica semelhante de destruigao ainda mais devastadora.’ Seu relato, vazado numa mistura de espanhol, qufchua e imagens, dé teste- munho de atos de conquista, genocidio, escravizagao ¢ da erradicagao da civilizagao inca. Huaman Poma podia apenas dirigir humildemente suas observagées, denincias e pedidos de “bom governo” ao rei Filipe III da Espanha. Hoje, diante de intermindveis batalhas reminiscentes desses tempos antigos, deveriamos talvez adotar algo parecido coma inocente perspectiva de Simplicissimus ou as humildes stplicas de Huaman Poma ao poder estabelecido? Seriam realmente estas as nos- sas tinicas alternativas? A primeira chave para entender nosso brutal estado de guerra glo- bal esta no conceito de excegao, ou, mais especificamente, em duas excegdes, uma de origem germanica e a outra de origem americana. Precisamos voltar um pouco atrds e identificar o desenvolvimento de nossas excegGes contempordneas. Nao é mera coincidéncia o fato de que nossa atual situagdo nos leve a pensar no mais recuado periodo da modernidade européia, j4 que a modernidade européia sob certos as- pectos surgiu como reagao A generalizac4o dos estados de guerra, como nos casos da guerra dos Trinta Anos na Alemanha e¢ das guerras civis na Inglaterra. Um dos elementos centrais do projeto politico das mo- dernas teorias de soberania — tanto as liberais quanto as nao-liberais —era pér fim A guerra civil e acabar com o constante estado de guer- ra, isolando a guerra nas margens da sociedade ¢ limitando-a a perfodos excepcionais. Somente a autoridade soberana — vale dizer, o monarca ou o Estado — podia fazer a guerra, e somente contra outro poder soberano. Em outras palavras, a guerra era expulsa do ambito interno +24. GUERRA do campo social nacional, sendo reservada apenas a conflitos externos entre Estados. Desse modo, a guerra seria a excegdo, € a paz, a regra. Os conflitos no interior da nagao seriam resolvidos pacificamente atra- vés da interagio politica. Separar a guerra da politica era 0 objetivo fundamental do pensa- mento politico moderno e de sua prdtica, até mesmo para os chama- dos tedricos realistas que conferem importancia central 4 guerra nas questées internacionais. A famosa afirmagdo de Carl von Clausewitz de que a guerra éa continuacdo da politica por outros meios, por exem- plo, poderia dar a entender que guerra e politica sio insepardveis, mas na realidade, no contexto da obra de Clausewitz, esta idéia baseia-se acima de tudo na conviccao de que a guerrae a politica sio em princi- pio separadas ¢ diferentes.’ Ele quer entender como essas esferas sepa- radas podem eventualmente entrar em relagao. Em segundo lugar, é mais importante ainda ter em mente que para ele a “polftica” nada tem aver com relacées politicas no interior de uma sociedade, referindo-se exclusivamente a conflitos politicos entre Estados-nagio.’ Para Clausewitz, a guerra constitui mais um instrumento no arsenal do Es- tado, a ser usado no terreno da politica internacional. E portanto algo completamente exterior As lutas e aos conflitos polfticos que se mani- festam no interior de uma sociedade. O mesmo se aplica a afirmagao mais genérica — também compartilhada por pensadores politicos rea- listas, eminentemente Carl Schmitt — de que todos os motivos e atos politicos baseiam-se fundamentalmente na distingdo amigo-inimigo.® Também aqui pode parecer & primeira vista que a politica e a guerra s4o insepar4veis, mas também aqui a politica em questo nao é a que se verifica dentro de uma sociedade, mas apenas entre entidades sobe- ranas. Desta perspectiva, 0 tinico verdadeiro inimigo é um inimigo pé- blico, ou seja, um inimigo do Estado, na maioria dos casos outro Estado. Assim, o objetivo da moderna soberania era banir a guerra do terreno interno, civil. Esta concepgao era comum a todas as correntes domi- isolan- nantes do pensamento moderno, entre liberais e ndo-liberais: +25° MULTIDAO do-se a guerra em conflitos entre entidades soberanas, a politica no interior de cada sociedade, pelo menos em circunstancias normais, fica livre da guerra. A guerra era um limitado estado de excegao. Essa moderna estratégia de isolamento da guerra nos limites dos conflitos entre Estados torna-se hoje cada vez menos vidvel, em vista do surgimento de inumeras guerras civis globais, em conflitos arma- dos que se declaram da Africa Central 4 América Latina, da Indonésia ao Iraque e ao Afeganistao. Essa estratégia também é prejudicada, de maneira mais geral, pelo fato de que a soberania dos Estados-nagao esta em declinio, em face da formagao, em nivel supranacional, de uma nova soberania, um Império global. Devemos reconsiderar a esta nova luz a relagdo entre a guerra e a politica. Esta situago poderia parecer aconcretizagdo do moderno sonho liberal — desde 0 conccito kantiano de paz perpétua até os projetos praticos que levaram a Liga das Na- gGes e as Nagdes Unidas — de que o fim das guerras entre Estados soberanos seria o fim da possibilidade pura e simples de guerra e por- tanto o dominio universal da politica. A comunidade ou a sociedade das nagées poderia assim ampliar o espago da paz social interna para todo o planeta, e o direito internacional garantiria a ordem. Hoje, no entanto, em vez de nos movermos em diregao a paz na realizagao deste sonho, parece que fomos catapultados no tempo de volta ao pesadelo de um estado de guerra perpétuo e indefinido, com a suspensio do império internacional do direito e sem uma distingdo clara entre a manu- tengdo da paz e os atos de guerra. Como retrocederam 0 espago e 0 tempo isolados da guerra nos conflitos limitados entre Estados sobera- nos, fica parecendo que a guerra comegou a vazar de volta, inundando todo o terreno social. O estado de excecdo tornou-se permanente e generalizado; a excegio transformou-se em regra, permeando tanto as relagdes internacionais quanto o espago interno.’ O “estado de excegdo” € um conceito da tradig4o jurfdica alema que se refere 4 suspensdo temporaria da constituicdo e do império da lei, semelhante ao conceito de estado de sitio e A nogao de poderes de aie GUERRA emergéncia nas tradigdes francesa e inglesa.!° Uma longa tradigao de pensamento constitucional considera que em €épocas de graves crises e perigo, como o tempo de guerra, a constituigdo deve ser suspensa tem- porariamente, conferindo-se poderes extraordindrios a um executivo forte ou mesmo a um ditador, para proteger a repdblica. O mito fun- dador desta linha de pensamento é a Jenda do nobre Quincio Cincinato, o velho lavrador da Roma antiga que, instado por seus compatriotas, aceita com relutancia o papel de ditador, para fazer frente a uma ameaga A repiblica. Passados dezesseis dias, segundo o relato, o inimigo foi dizi- mado e a reptblica, salva, e Cincinato volta ao seu arado. O conceito constitucional de “estado de excegao” é evidentemente contradit6rio — a constituic¢do precisa ser suspensa para ser salva —, mas esta con- tradigao é resolvida ou pelo menos atenuada pelo entendimento de que 0 periodo de crise e excecao é breve. Quando a crise deixa de ser limi- tada e especffica, transformando-se numa onicrise generalizada, quando o estado de guerra e portanto 0 estado de excegio tornam-se ilimita- dos ou mesmo permanentes, como acontece hoje em dia, a contradigao manifesta-se plenamente, e 0 conceito adquire um cardter comple- tamente diferente. Por si s6, esse conceito jurfdico nao nos fornece um ponto de par- tida adequado para entender o novo estado de guerra global em que nos encontramos. Precisamos relacionar esse “estado de excegio” a uma outra exce¢do, o excepcionalismo dos Estados Unidos, a nica super- poténcia restante. A chave para o entendimento de nossa guerra global estd na intersegdo dessas duas excegdes. A nogio de excepcionalismo dos Estados Unidos tem uma longa hist6ria, e sua utilizagao no discurso politico contemporaneo é enga- nadoramente complexa. Vejamos esta declaragao da ex-secretéria de Estado Madeleine Albright: “Se precisamos recorrer 4 forga, € porque somos a América. Nés somos a nagio indispensdvel.”" A frase “por- que somos a América” traz em si todo o peso e aambigitidade do excep- cionalismo americano. A ambigitidade decorre do fato de que na +276 MULTIDAO realidade o excepcionalismo americano tem dois significados distintos ¢ incompativeis.'? Por um lado, desde suas origens os Estados Unidos se apresentam como sma excegdo a corrupgao das formas européias de soberania, e neste sentido tém-se comportado como paradigma da virtude republicana no mundo. Esta concepgao ética continua a fun- cionar atualmente, por exemplo, na idéia de que os Estados Unidos sio o lider global, incumbido da promogio da democracia, dos direi- tos humanos e do império internacional da lei. Os Estados Unidos sao indispensdveis, poderia dizer Albright, por suas exemplares virtudes re- publicanas. Por outro lado, o excepcionalismo americano também sig- nifica — e temos aqui um significado relativamente novo — excecdo diante da lei. A titulo de exemplo, os Estados Unidos eximem-se cada vez mais de acordos internacionais (sobre o meio ambiente, os direitos humanos, os tribunais penais, ¢ assim por diante) e consideram que seus militares nao precisam obedecer a regras a que outros esto sujei- tos, por exemplo, em questées como ataques preventivos, controle de armas e detengoes ilegais. Neste sentido, a “excegao” americana diz tespeito aos dois pesos, duas medidas de que se prevalecem os mais fortes, ou seja, a idéia de que aquele que comanda ndo precisa obede- cer. Na formulagio de Albright, os Estados Unidos também sao indis- pensdveis simplesmente porque sio os mais fortes. Alguém poderia alegar que esses dois significados do excepciona- lismo americano s4o compativeis e se reforcam mutuamente: como os Estados Unidos so movidos pela virtude republicana, todos os seus atos serdo bons, de modo que eles nao precisam obedecer as leis inter- nacionais; as leis devem coagir apenas as mds nag6es. Semelhante equa- ¢4o0, no entanto, pode ser considerada na melhor das hipéteses uma confusao ideolégica, ¢ mais comumente uma flagrante mistificagdo. Desde seu inicio, a idéia da virtude republicana estava voltada contraa nogao de que aquele que governa, ou qualquer outro, pode ficar acima da lei. Semelhante excec4o é a base da tirania, impossibilitando a coneretizagao da liberdade, da igualdade e da democracia. Desse modo, +28- GUERRA as duas nogées do excepcionalismo americano entram em contradiga0 direta. Quando dizemos que o estado de excegao que hoje prevalece, a eliminagio de garantias juridicas e liberdades em €épocas de crise, en- contra apoio e legitimagdo no excepcionalismo americano, deve ficar claro que esté sendo considerado apenas um dos dois significados da expresso. E verdade que a ret6rica de muitos dirigentes e partiddrios dos Estados Unidos muitas vezes recorre amplamente 4 virtude repu- blicana que faz da América uma excegio, como se esta base ética atri- buisse aos Estados Unidos o destino histérico de liderar o mundo. Na realidade, a verdadeira base do estado de excegdo hoje em dia € 0 se- gundo significado do excepcionalismo americano, seu poderio excep- cional ¢ sua capacidade de dominar a ordem global. De acordo com esta légica, num estado de emergéncia, o soberano deve posicionar-se acima da lei e assumir o controle. Nada existe de ético ou moral nesta inferéncia; trata-se de uma questo de pura forga, e nao de direito. Esse papel excepcional dos Estados Unidos no estado global de exceg4o serve apenas para eclipsar e desgastar a tradigdo republicana que atravessa a histéria do pafs. A intersegio do conceito jurfdico alemao de estado de excegio com 0 excepcionalismo dos Estados Unidos permite-nos ter uma primeira idéia da maneira como a guerra mudou no mundo de hoje. Nao se tra- ta apenas, é bom reiterar, de estar contra ou a favor dos Estados Uni- dos, nem tampouco est4 em questao uma escolha entre métodos unilateralistas e multilateralistas. Voltaremos adiante a analisar 0 pa- pel especffico dos Estados Unidos em nosso estado de guerra global, mas primeiro teremos de investigar muito mais profundamente as mudangas que se verificam nas relagdes entre a guerra, a politica ea ordem global. +29° MULTIDAO GOLEM Somos assombrados por um golem. Ele quer nos dizer alguma coisa. O golem transformou-se num icone de guerra ilimitada e destrui- ¢do indiscriminada, um stmbolo da monstruosidade da guerra. Na rica tradigdo do misticismo judaico, no entanto, a figura do golem é muito mais complexa. Tradicionalmente, o golem é um homem de argila, que ganha vida através de um ritual cumprido por um rabino. Literalmen- te, golem quer dizer matéria amorfa, e sua animacdo repete, segundo a antiga tradi¢ao mistica da cabala, o processo da criagao do mundo por Deus relatado no Génesis. Como, de acordo com os mitos judaicos da criagdo, o nome de Deus tem o poder de gerar vida, é posstvel infundir vida no golem pronunciando o nome de Deus sobre a imagem de argi- la, numa série de transmutagoes. Especificamente, cada letra do alfa- beto deve ser combinada com cada letra do tetragrama (YHWH), sendo cada um dos pares de letras assim formados pronunciado com todos os posstveis sons vocdlicos.” Criar um golem é algo perigoso, como véo deixando cada vez mais claro as sucessivas vers6es da lenda nos pertodos medieval e moderno. Um dos riscos particularmente presentes nas vers6es medievais é a ido- latria. Como Prometeu, aquele que cria um golem esté na verdade se arvorando em Deus, criador da vida. Tanta arrogancia deve ser punida. Na versdo moderna, o foco da lenda do golem transfere-se das pa- rdbolas de criagdo para as de destruigdo. As duas lendas modernas das quais decorre a maioria das outras datam dos séculos XVI e XVII. Numa delas, o rabino Elijah Baal Shem, de Chem, na Polénia, dd vida aum golem para que lhe sirva de criado, desempenhando tarefas domésticas. O golem torna-se maior a cada dia que passa, de modo que, para impe- dir que se torne grande demais, uma vez por semana o rabino volta a transformd-lo em argila, comecando tudo de novo. Até que em dado momento o rabino esquece de fazé-lo, permitindo que o golem se torne grande demais. Ao tentar devolvé-lo novamente a forma original, é Sar GUERRA engolfado na massa inanimada de argila e morre sufocado. Uma das morais deste conto fala do perigo de se arvorar como senhor e impor a servidao aos outros, A segunda versdo moderna, que se tem mostrado mais influente, deriva da lenda do rabino Judah Loew de Praga. O rabino Loew cria um golem para defender a comunidade judaica de Praga e atacar seus perseguidores. Mas a violéncia destrutiva do golem revela-se incon- troldvel. Ele efetivamente ataca os inimigos dos judeus, mas também comeca a matar os proprios judeus indiscriminadamente, até que 0 ra- bino finalmente consegue reduzi-lo novamente a argila. Este conto apresenta certas semelhancas com dentincias bastante conhecidas so- bre os riscos da instrumentalizagdo na sociedade moderna e formas tecnoldgicas descontroladas, mas o golem nao é apenas uma pardbola sobre a perda do controle do mundo pelos seres humanos e sua con- quista pelas maquinas. Fala também da inevitdvel cegueira da guerrae da violéncia. Na peca O Golem, por exemplo, escrita em iidiche por H. Leivick e publicada em Varsévia em 1921, 0 rabino Loew estd tao deci- dido a se vingar dos perseguidores dos judeus que chega a rechagar o Mesias e o profeta Elias quando se manifestam.'* Nao é aquela a hora deles, diz entao, aquela é a hora em que o golem deve banhar em san- gue nossos inimigos. Mas a violéncia da vinganga e da guerra leva a morte indiscriminada. O golem, o monstro da guerra, nao é capaz de distin- guir entre amigos e inimigos. A guerra leva a morte a todos indistinta- mente, E esta a sua monstruosidade. “Ele veio para salvar, mas derramou nosso sangue”, constata, perplexo, o rabino. “Estarfamos sendo puni- dos porque quisemos nos salvar?” Se nada fizermos, seremos destruidos por nossos inimigos, mas se partirmos em guerra contra eles, acabare- mos nos destruindo da mesma maneira. O rabino Loew identifica 0 terrivel paradoxo com que nos defronta o golem. Nao haveria uma al- ternativa a guerra que ao mesmo tempo nos permita escapar da perse- guicdo e da opressdo? -31e MULTIDAO Talvez devamos prestar mais atengdo 4 mensagem do golem. O que hd de mais notdvel a seu respeito em muitas das versbes modernas ndo é sua instrumentalizagdo ou sua brutalidade, e sim sua caréncia emo- cional e sua capacidade de afeto. O golem ndo quer matar, quer amare seramado. A maioria das versées da lenda derivadas da histéria do ra- bino Loew dd énfase ao fato de que a demanda de consolo do golem estd constantemente sendo rechacada pelo rabino e, ainda por cima, suas manifestagées de afeto pela filha do rabino provocam horror, re- pulsa e pdnico. Como se sabe, o golem do rabino Loew ndo é 0 tinico monstro moderno que ndo é correspondido no amor. Também o mons- tro do doutor Frankenstein s6 quer afeto, e suas iniciativas encontram o mesmo obstdculo, especialmente por parte do préprio médico, a mais desalmada das criaturas. Uma das cenas mais comoventes do romance de Mary Shelley é aquela em que 0 monstro faz amizade com o cego De Lacey em sua cabana no bosque, mas é violentamente rechagado ao ser visto pela familia do novo amigo. Em ambas essas hist6rias, os mons- tros sdo aqueles que evidenciam riqueza emocional e uma grande capa- cidade de sentimento, ao passo que os seres humanos sao como aleijados emocionais, frios e sem coragdo. Eles querem apenas ser amados, e parece claro que ninguém os entende, Precisamos encontrar uma maneira de identificar os sinais de ad- verténcia e também de reconhecer o potencial de nosso mundo con- tempordneo. Até mesmo os violentos golems modernos encerram todo 0 mistério e a sabedoria da cabala: juntamente com a ameaca de des- truigdo, também trazem a promessa e a maravilha da criacao. Talvez o que monstros como o golem estejam tentando nos ensinar, tentando sussurrar-nos secretamente em meio ao fragor de nosso campo de bata- Iha global, seja uma ligdo sobre a monstruosidade da guerra e a possi- bilidade de nossa redengdo através do amor. 0 3z« GUERRA O Estado de Guerra Global Voltemos atras para comegar de novo pelos elementos estruturais de nosso estado de guerra global. Quando o estado de exceg4o torna-se regrac o tempo de guerra é intermindvel, a tradicional distingao entre guerra e politica fica cada vez mais obscura. Toda a tradigao do teatro trdgico, de Esquilo a Shakespeare, nao se cansa de enfatizar o cardter intermindvel e proliferante da guerra." Hoje, no entanto, a guerra tende a ir ainda mais longe, transformando-se numa relagdo social perma- nente, Certos autores contemporaneos tentam traduzir esta novidade invertendo a férmula de Clausewitz anteriormente citada: talvez a guerra seja uma continuagdo da politica por outros meios, mas a pré- pria politica vem-se tornando cada vez mais a guerra conduzida por outros meios."* Isto significa que a guerra vai-se transformando no prin- cipio basico de organizacao da sociedade, reduzindo-se a politica ape- nas a um de seus recursos ou manifestagdes. Desse modo, aquilo que se nos afigura como paz civil serve apenas, na realidade, para pér fim auma forma de guerra e abrir caminho para outra. Naturalmente, h4 muito tempo os tedricos da insurreigdo e da po- lftica revoluciondria, especialmente nas tradig6es anarquista e comu- nista, vém sustentando teses sobre a impossibilidade de distinguir guerra de politica: Mao Tsé-tung, por exemplo, sustentava que a politica € apenas a guerra sem derramamento de sangue, e Antonio Gramsci, num contexto muito diferente, dividia as estratégias polfticas entre guerras de posigdo ¢ guerras de manobra. Estes teéricos, no entanto, tratavam. de perfodos sociais excepcionais, ou seja, épocas de insurreigdo e revo- lugio. O que ha de novo e caracteristico na tese de que a politica éa continuagio da guerra é 0 fato de se referir ao poder em seu funciona- mento normal, sempre e em toda parte, fora de cada sociedade e den- tro dela. Michel Foucault chega a afirmar que a fungao de pacificagao social do poder politico implica em estar constantemente reinscreven- do esta fundamental relacao de forga numa espécie de guerra silencio- +33- MULTIDAO. sa, reinscrevendo-a também nas instituigdes sociais, nos sistemas de desigualdade econémica e até mesmo na esfera das relagdes pessoais € sexuais.” Em outras palavras, a guerra transforma-se na matriz geral de todas as relagdes de poder e técnicas de dominagio, esteja ou nao envolvido o derramamento de sangue. A guerra transformou-se num regime de biopoder, vale dizer, uma forma de governo destinada nado apenas a controlar a populagao, mas a produzir e a reproduzir todos os aspectos da vida social.'® Essa guerra traz morte mas também, para- doxalmente, deve produzir vida. Isto nao significa que a guerra foi do- mesticada ou que sua violéncia tenha sido atenuada, e sim que a vida cotidiana e o funcionamento normal do poder passaram a ser permeados pela ameaga da violéncia da guerra. Basta examinarmos, como um sintoma da mudanga da natureza da guerra hoje em dia, a alteragao verificada no emprego corrente do con- ceito de guerra no fim do século XX e no inicio do século XXI. Como se sabe, a ret6rica da guerra hd muito é usada para se referir a ativida- des muito diferentes da guerra propriamente dita. Em certos casos, as metdforas de guerra sdo aplicadas a formas de competigao e a relagdes de forga que em geral nao envolvem violéncia letal ou derramamento de sangue, tais como os esportes, 0 comércio e a politica interna de um pais. Em todas essas formas de competigdo, temos competidores, mas nao realmente inimigos no sentido proprio. Esse emprego metaférico serve para chamar a ateng4o para os riscos, a competi¢ao e 0 conflito que estao envolvidos nessas diferentes atividades, mas também pressu- pée uma diferenga fundamental em relagio A guerra real. Em outros casos, 0 discurso metaférico da guerra é invocado como manobra po- lftica estratégica para conseguir a total mobilizagio de forgas sociais em torno de um objetivo de uniao que é tipico de um esforgo de guerra. Por exemplo, a guerra contra a pobreza langada no meado da década de 1960 nos Estados Unidos pelo governo Johnson recorria ao discurso da guerra para evitar os choques partiddrios e arregimentar as forgas nacionais em torno de um objetivo da politica interna. Como a pobreza -34- GUERRA € um inimigo abstrato e os meios para combaté-la nao sio violentos, o discurso de guerra neste caso é meramente retérico. No caso da guerra contra as drogas, contudo, que teve inicio na década de 1980, e ainda mais no caso da guerra contra 0 terrorismo deste inicio do século XXI, a retérica da guerra comega a adquirir um cardter mais concreto. Como no caso da guerra contra a pobreza, tampouco aqui os inimigos séo apresentados como Estados-nago ou comunidades polfticas especifi- cas, ou sequer como individuos, e sim como conceitos abstratos ou talvez um conjunto de prdticas. De maneira muito mais bem-sucedida que no caso da guerra contra a pobreza, esses discursos de guerra servem para mobilizar todas as forcas sociais e suspender ou limitar as trocas polfticas normais. E no entanto essas guerras nao s4o assim tao meta- f6ricas, pois, como no caso da guerra tradicional, envolvem combates armados e forga letal. Nessas guerras, € cada vez menor a diferenga entre o exterior ¢ 0 interior, entre os conflitos externos e a seguranga interna. Passamos, assim, das invocagdes metaféricas e retéricas da guer- ta para guerras reais contra inimigos indefinidos e imateriais. Uma das conseqiiéncias desse novo tipo de guerra é que os limites da guerra tornam-se indeterminados, em termos espaciais e temporais. A guerra A maneira antiga contra um Estado-nagao tinha claras delimi- tag6es espaciais, embora pudesse eventualmente disseminar-se por outros paises, e seu fim geralmente era marcado por uma rendigdo, uma vitéria ou uma trégua entre os Estados em conflito. Em contraste, a guerra contra um conceito ou um conjunto de praticas, mais ou menos como uma guerra de religiao, nao conhece limites espaciais ou tempo- rais definidos. Tais guerras podem estender-se em qualquer diregao, por perfodos indeterminados. E com efeito, quando os dirigentes ame- ricanos anunciaram sua “guerra ao terrorismo”, deixaram claro que deveria estender-se por todo o mundo ¢ por tempo indefinido, talvez décadas ou mesmo geragées inteiras. Uma guerra para criar ou manter a ordem social nao pode ter fim. Envolver4 necessariamente 0 conti- nuo e ininterrupto exercicio do poder e da violéncia. Em outras pala- +35- MULTIDAO vras, nao é possfvel vencer uma guerra dessas, ou, por outra, ela preci- sa ser vencida diariamente. Assim é que se tornou praticamente im- possfvel distinguir a guerra da atividade policial. Uma segunda conseqiiéncia desse novo estado de guerra é que as relagées internacionais ¢ a politica interna tornam-se cada vez mais parecidas e misturadas. Nesse contexto de entrecruzamento das ativi- dades militares e policiais para garantir a seguranga, é cada vez menor a diferenga entre o que est4 dentro e 0 que est4 fora do Estado-nagio: a guerra de baixa intensidade vai ao encontro das agées policiais de alta intensidade. O “inimigo”, que tradicionalmente era enxergado fora, e as “classes perigosas”, que tradicionalmente se encontravam dentro, tornam-se assim cada vez mais dificeis de distinguir, servindo conjun- tamente como objeto do esforgo de guerra, Trataremos detidamente do conceito de “classes perigosas” no pr6ximo capitulo, mas cabe aqui enfatizar que o fato de serem identificadas com “o inimigo” tende efe- tivamente a criminalizar as varias formas de contestagio e resisténcia social. A este respeito, a fusdo conceitual da guerra com o policiamen- to representa um obstdculo para todas as forgas de transformagao social. Uma terceira conseqiiéncia é a reorientagdo da concepgao dos la- dos da batalha ou das condigées de inimizade. Na medida em que o inimigo € abstrato e ilimitado, também a alianga de amigos ¢ expansi- va e potencialmente universal. Em princfpio, toda a humanidade pode unir-se contra um conceito ou pratica abstrata como o terrorismo.'9 Nao surpreende, assim, que 0 conceito de “guerra justa” tenha volta- do a se manifestar no discurso dos politicos, jornalistas ¢ académicos, especialmente no contexto da guerra contra o terrorismo ¢ das dife- rentes operag6es militares promovidas em nome dos direitos huma- nos. O conceito de justiga serve para universalizar a guerra além de quaisquer interesses particulares, para abarcar o interesse da humanida- de como um todo. Nao devemos esquecer que os modernos pensado- res politicos europeus tentaram erradicar o conceito de guerra justa— que se havia gencralizado ao longo da Idade Média, especialmente 136° GUERRA durante as cruzadas e as guerras religiosas —-, pois consideravam que tendia a generalizar a guerra além de seu alcance préprio, confundin- do-a com outros terrenos sociais, como a moralidade e a religido. O conceito moderno de guerra nada tem a ver com o de justica.® Ao sus- tentarem que a guerra é um meio de alcangar fins politicos, por exem- plo, os modernos teéricos do realismo nao pretendiam apenas associar a guerra a politica entre Estados, mas também desvinculd-la de outros terrenos sociais, como a moralidade e a religido. E verdade que muitas vezes ao longo da histéria varias outras esferas sociais tém sido sobre- Postos 4 guerra, para apresentar o inimigo como uma encarnagao do mal, algo repugnante ou sexualmente pervertido, mas os tedricos mo- dernos insistiam nessa separagio fundamental. Consideravam eles que a guerra podia dessa mancira ser isolada em suas fungdes necessdrias € racionais. As guerras “justas” do fim do século XX e do infcio do século XXI nao raro apresentam ressonancias explicitas ou implicitas das velhas guerras de religiao. E os diferentes conceitos de conflito civilizatério —o Ocidente contra o Isla, por exemplo — que inspiram uma impor- tante corrente da teoria sobre relacées internacionais e politica exter- na nunca est&o muito distantes do velho paradigma religioso das guerras de religio.”! Tudo indica que mais uma vez estamos diante da situagdo definida no lema seiscentista do Cujus regio, ejus religio, ou seja, aque- le que governa também determina a fé religiosa — uma perigosa si- tuag&o de opressdo contra a qual se tém insurgido todos os grandes movimentos modernos de tolerancia. Assim é que, paralelamente a nova versao do conceito de guerra justa, surge também, como se poderia prever, o conceito afim de mal. Apresentar 0 inimigo como encarnaga0 do mal serve para tornd-lo absoluto, assim como a guerra contra ele, tirando-o da esfera polftica —o mal é 0 inimigo de toda a humanida- de. (A categoria de crime contra a humanidade, que com efeito deixou de ser um elemento da Convengao de Genebra para passar a fazer par- te de um novo cédigo penal global, talvez seja 0 conceito jurfdico que +376 MULTIDAO. mais claramente torne concreta essa nog4o de mal.) Os filésofos euro- peus modernos também tentaram descartar este problema, o problema do mal, o grande debate cristdo sobre a teodicéia, ou seja, a justificagao de Deus frente ao mal, a questo de saber por que Deus teria permiti- do a existéncia do mal.” Eles tentaram deslocar esses problemas ou pelo menos separd-los das questoes de politica e guerra. A utilizagao em nossa era pés-moderna dos conceitos de justiga e mal na guerra talvez nao passe simplesmente de propaganda irracional e mistificagao moral-religiosa, nao muito diferentes das velhas exortagdes & destrui- 40 dos infiéis ou 4 fogueira para as bruxas, mas como tais mistifica- ges efetivamente tém efeitos muito concretos, devem ser seriamente contestadas, como fizeram fildsofos modernos como Voltaire. A tole- rancia, um valor fundamental do pensamento moderno, estd sendo perigosamente solapada. E, mais importante ainda para o nosso obje- tivo, a retomada desses discursos de justiga e mal constitui um sintoma da maneira como a guerra vem mudando e se esquivando As limitagées que a modernidade havia tentado impor-lhe. Devemos deixar claro que 0 conceito de terrorismo (como o de mal) nao representa um referencial conceitual ou politico sélido para o en- tendimento do estado de guerra global contemporaneo. No inicio do século XX, a palavra terrorismo designava basicamente os atentados anarquistas 4 bomba na Rassia, na Franga e na Espanha — exemplos da chamada propaganda pelos feitos. O atual significado da palavra é uma invengio recente. O terrorismo transformou-se num conceito po- Iftico (um conceito de guerra ou, na verdade, de guerra civil) que remete a trés diferentes fendmenos que as vezes se manifestam separadamen- te e outras vezes se confundem: (1) a revolta ou rebelido contra um governo legitimo; (2) 0 exercicio da violéncia politica por parte de um governo, violando direitos humanos (inclusive, na opiniado de al- guns, os direitos de propriedade); e (3) a pratica da guerra em violagao das regras de combate, inclusive com ataques a civis. O problema de todas essas definigdes € que variam de acordo com aquele que esteja + 38+ GUERRA definindo seus elementos principais: quem pode determinar, por exem- plo, o que é um governo legftimo, 0 que sao os direitos humanos ¢ quais as regras da guerra? Dependendo de quem defina esses elementos, na- turalmente, até mesmo os Estados Unidos poderiam ser considerados um Estado terrorista.% Dada a instabilidade de sua definigdo, o con- ceito de terrorismo nao fornece uma base sdlida para entender o atual estado de guerra global. A face interna das doutrinas da guerra justa e da guerra contra o ter- rorismo é um regime empenhado no controle social quase completo, descrito por alguns autores como uma transigao do Estado de bem-estar social para um Estado de guerra e caracterizado por outros como uma sociedade de tolerancia zero.*4 Trata-se de uma sociedade na qual a di- minuigo das liberdades civis ¢ oaumento dos indices de encarceramento constituem sob certos aspectos uma manifestagao de uma guerra social permanente. Cabe notar que esta transmutagao dos métodos de contro- le coincide com uma transformagio social extremamente forte, que no préximo capitulo descreveremos em termos de formas biopoliticas de producao. As novas formas de poder e controle funcionam em contra- digo cada vez mais acentuada com a nova composi¢io social da popu- lago, servindo apenas para bloquear suas novas formas de produtividade € expressio. Sustentamos em outro contexto que uma obstrugao seme- lhante da liberdade e da expressao produtiva levou 4 implosio da Unido Soviética.25 Trata-se, de qualquer maneira, de uma situaco altamente contraditéria, na qual as iniciativas dos poderes dominantes para man- ter o controle tendem a minar seus préprios interesses e sua autoridade, Finalmente, tal como a justiga, a democracia tampouco tema ver com aguerra. A guerra exige invariavelmente estrita hierarquia e obediéncia, € portanto a suspensao parcial ou total das trocas e da participagao de- mocraticas. “Em tempo de guerra”, explica o tedrico jurfdico Hans Kelsen, “o principio democratico deve ceder terreno a um princfpio es- tritamente autocrdtico: todos devem prestar obediéncia incondicional ao lider.”“6 Na era moderna, a suspensio da politica democratica em +39" MULTIDAO tempo de guerra geralmente era apresentada como temporaria, j4 que a guerra era entendida como uma condigao excepcional.?” Se nossa hipé- tese est correta e hoje em dia o estado de guerra transformou-se pelo contrario em nossa condi¢ao global permanente, a suspensio da demo- cracia tende também a tornar-se a regra, e nao a excegio. Deacordo com a declaragao de John Dewey que serve de epfgrafe a este capitulo, ve- mos que 0 atual estado de guerra global obriga todos os paises, inclusive os que se declaram mais democraticos, a se tornarem autoritdrios e tota- litdrios. H4 quem diga que em nosso mundo a verdadeira democracia tornou-se impossfvel, ¢ talvez mesmo impensdvel. Biopoder e Seguranca A esta altura, devemos mais uma vez voltar atrds para tentar entender este regime do biopoder de uma outra perspectiva, mais filoséfica. Embora, como dissemos, a guerra global se venha tornando cada vez mais dificil de distinguir da agio policial global, também tende agora para o absoluto. Na modernidade, a guerra nunca chegou a ter um ca- rater absoluto, ontolégico. £ verdade que os modernos consideravam a guerra um elemento fundamental da vida social. Quando os grandes tedricos militares modernos falavam de guerra, consideravam-na um elemento destrutivo mas inevitavel da sociedade humana. E nao deve- mos esquecer que freqiientemente a guerra aparecia na filosofia e na politica modernas como um elemento positivo envolvendo ao mesmo tempo a busca da gléria (basicamente na consciéncia e na literatura aristocraticas) e a construgao da solidariedade social (freqiientemente do ponto de vista das populages subalternas). Nada disto, contudo, tornava a guerra absoluta. A guerra era um elemento da vida social; ela nao dominava a vida. A guerra moderna era dialética no sentido de que todo momento negativo de destruigdo implicava necessariamente um momento positivo de construgao da ordem social. +40 GUERRA A guerra sé se torna efetivamente absoluta com o desenvolvimento tecnolégico de armas que pela primeira vez tornaram possivel a des- truigdo em massa e mesmo a destruigao global. As armas de destruigao global rompem a moderna dialética da guerra. A guerra sempre envol- veu destruigao de vida, mas no século XX esse poder destrutivo chegou aos limites da pura produgio de morte, simbolicamente representada por Auschwitz e Hiroshima. A capacidade de genocfdio e destruigéo nuclear atinge diretamente a propria estrutura da vida, corrompendo- a, pervertendo-a. O poder soberano que controla tais meios de des- truigado é uma forma de biopoder neste sentido mais negativo e terrfvel da palavra, um poder que decide de maneira direta sobre a morte — no apenas a morte de um individuo ou grupo mas da propria huma- nidade ¢ talvez mesmo de tudo que existe. Quando o genocidio e as armas at6micas colocam a prépria vida no centro do palco, a guerra torna-se propriamente ontol6gica.* Assim é que a guerra parece caminhar a0 mesmo tempo em duas diregdes opostas: por um lado, ela é reduzida a formas de ago policial, e por outro, elevada a um nivel absoluto, ontoldgico, por tecnologias de destruigio global. Mas esses dois movimentos nao so contraditérios: a redugdo da guerra a a¢ao policial ndo a priva de sua dimensdo on- tol6gica, e na verdade a confirma. O definhamento da fungao guerrei- ra e 0 espessamento da fungio policial mantém os estigmas ontoldgicos da aniquilac4o absoluta: a policia de guerra preserva a ameaga de geno- cidio e destruigéo nuclear como seu derradeiro fundamento.”? O biopoder nao exerce apenas o poder de destruigéo em massa da vida (como o que € ameagado pelas armas nucleares), mas também a violéncia individualizada. Quando chega a se individualizar em sua forma extrema, 0 biopoder transforma-se em tortura. Esse tipo de exercicio individualizado do poder constitui um dos elementos cen- trais da sociedade do controle em 1984, de George Orwell. “‘Como pode um homem afirmar seu poder sobre outro, Winston?’ Winston pensou um pouco. ‘Fazendo-o sofrer’, ele respondeu. ‘Exatamente. 41. MULTIDAO Fazendo-o sofrer. Nao basta a obediéncia.’”?° A tortura torna-se hoje em dia uma técnica de controle cada vez mais generalizada, a0 mesmo tempo em que se banaliza sempre mais. Métodos para obter confiss6es e informagio através de tormentos fisicos e psicolégicos, técnicas para desorientar prisioneiros (como a privagdo do sono) e simples formas de humilhagao (como as revistas corporais) constituem armas comuns no arsenal contemporaneo da tortura. A tortura € um dos principais pontos de contato entre a ago policial e a guerra; as técnicas de tortu- Ta usadas em nome da prevengao policial assumem todas as caracterfs- ticas da agdo militar. Temos aqui uma outra face do estado de excegao e da tendéncia do poder politico para se furtar ao império da lei. Na realidade, ¢ cada vez maior o ntimero de casos em que pouco efeito tém as convengées internacionais contra a tortura e as leis nacionais contra punigées cruéis e inusitadas.*! Tanto as ditaduras quanto as de- mocracias liberais utilizam a tortura, aquelas por vocagao, estas por suposta necessidade. De acordo com a légica do estado de excegao, a tortura constitui uma técnica de poder essencial, inevitavel e justificavel. O poder politico soberano nunca pode realmente chegar 4 pura produgio de morte, pois nao se pode permitir eliminar a vida de seus stiditos. As armas de destruigao em massa devem ser mantidas como ameaga ou utilizadas em casos muito limitados, e a tortura nao pode ser levada ao ponto de causar a morte, pelo menos nao de uma forma generalizada. O poder soberano sé se sustenta se preservar a vida de seus stiditos, ou pelo menos sua capacidade de produgao e consumo. Se chegasse a destruir isto, qualquer poder soberano necessariamente destruiria a si mesmo. Mais importante que as tecnologias negativas de aniquilacdo e tortura, entdo, é 0 carter construtivo do biopoder. A guerra global nao s6 deve trazer a morte como também produzir e re- gular a vida. Um dos indicios do novo carter ativo e constituinte da guerra €a mudanga da politica de “defesa” para a de “seguranga” promovida pelo governo americano, especialmente como um dos elementos da guerra +42+ GUERRA contra o terrorismo desde setembro de 2001.2 No contexto da politi- ca externa americana, a mudanga de defesa para seguranga significa transigao de uma atitude reativa e conservadora para uma atitude ati- va e construtiva, tanto dentro quanto fora das fronteiras nacionais: da preservacdo da atual ordem social e politica interna para sua transfor- magao, ¢ assim também de uma atitude de guerra reativa, ante ataques externos, para uma atitude ativa destinada a prevenir um ataque. De- vemos ter em mente que as modernas nagées democraticas baniram unanimemente todas as formas de agressdo militar, recebendo seus par- lamentos, das respectivas constituigdes, poderes apenas para declarar guerras defensivas. Da mesma forma, o direito internacional sempre proibiu de maneira decisiva quaisquer ataques preventivos, de acordo com os direitos da soberania nacional, Entretanto, a atual tendéncia para justificar ataques e guerras preventivos em nome da seguranga solapa abertamente a soberania nacional, tornando cada vez mais irrelevantes as fronteiras nacionais.*? Desse modo, tanto no interior da nagdo quanto fora dela, os partiddrios da seguranga exigem mais que a simples manutengdo da atual ordem, alegando que se esperarmos para reagir As ameacas, sera tarde demais. A seguran¢a exige que se esteja constante e ativamente condicionando o ambiente através de agées militares e/ou policiais. $6 um mundo ativamente condicionado pode ser considerado seguro. Este conceito de seguranga € portanto uma forma de biopoder, na medida em que encarna a miss4o de produzir e transformar a vida social em seu nivel mais geral e global. Esse carater ativo e constituinte da seguranga j4 se encontra na realidade implicito nas outras transformag6es da guerra anteriormen- te analisadas. Se a guerra j4 nao é uma situacao excepcional, mas 0 esta- do normal de coisas, vale dizer, se entramos agora num estado perpétuo de guerra, torna-se necessdrio que a guerra nao seja uma ameaga A atual estrutura de poder, nem uma for¢a desestabilizadora, e sim, pelo con- trdrio, um mecanismo ativo que esteja constantemente criando e re- forgando a atual ordem global. Além disso, o conceito de seguranga 43° MULTIDAO deixa clara a falta de diferenciagao entre o interior e 0 exterior, entre o militar e o policial. Enquanto a idéia de “defesa” envolve o conceito de uma barreira de protegdo contra ameagas externas, a de “seguran- ga” justifica uma constante atividade marcial, tanto no interior do pats quanto no exterior. O conceito de seguranga vincula-se apenas parcialmente e de ma- neira obliqua ao abrangente poder de transformagao a que nos referi- mos neste trecho. Num nfvel esquematico e abstrato, podemos encarar essa mudanga como uma inversao do dispositivo tradicional de poder. Basta pensar na disposigao dos elementos do moderno poder sobera- no como uma boneca russa do tipo matriochka, sendo que a de tama- nho maior representa o poder administrativo disciplinar, que contém 0 poder de controle politico, que por sua vez contém em ultima andli- se o poder de fazer a guerra. O cardter produtivo da seguranga, contu- do, exige que sejam invertidas a ordem e a prioridade dessas bonecas contidas uma dentro da outra, de tal maneira que a guerra passa a ser a boneca maior, dentro da qual se abrigam o poder do controle e final- mente o poder disciplinar. O que € especffico de nossa época, como indicamos anteriormente, é que a guerra deixou de ser o elemento fi- nal das seqiiéncias de poder — a forga letal como ultimo recurso — para se tornar o primeiro e fundamental elemento, constituindo a base da propria politica. A soberania imperial mdo cria a ordem pondo fim a “guerra de cada um contra todos”, como pretendia Hobbes, e sim propondo um regime de administragao disciplinar e controle politico diretamente baseado em continuas agSes de guerra. Em outras pala- vras, a aplicagéo constante e coordenada da violéncia torna-se condi- Ao necessdria para o funcionamento da disciplina e do controle. Para que possa desempenhar este papel social e polftico fundamental, a guer- ta deve ser capaz de desempenhar uma fungdo constituinte ou regula- dora: terd de tornar-se ao mesmo tempo uma atividade processual e uma atividade reguladora, de ordenagio, criando e mantendo hierar- + aae GUERRA quias sociais, uma forma de biopoder voltada para a promogdo e a regulagao da vida social. A definigado da guerra em termos de biopoder e seguranga altera toda a sua estrutura jurfdica. No mundo moderno, o velho preceito clausewitziano de que a guerra é a continuagao da politica por outros meios representava um momento de real esclarecimento, na medida em que entendia a guerra como uma forma de ago e/ou sancao politi- ca, pressupondo com isto uma estrutura jurfdica internacional de guerra moderna. Ele pressupunha ao mesmo tempo um jus ad bellum (o di- reito de guerrear) e um jus in bello (uma estrutura juridica para gover- nar a conduta na guerra). Na modernidade, a guerra era subordinada ao direito internacional, sendo com isto legalizada, ou, por outra, trans- formada em instrumento juridico. Se invertermos os termos, no entanto, passando a guerra a ser considerada como base da politica interna da ordem global, a politica do Império, entra em colapso o modelo mo- derno de civilizagdo que constitufa a base da guerra legalizada. Jé nao tem vigéncia a moderna estrutura juridica para a declaragao e a condu- go de uma guerra. Ainda nao estamos, contudo, diante de uma situa- ¢4o de puro e descontrolado exercicio da violéncia. Como base da politica, a guerra deve ela mesma conter formas legais, e mesmo erigir novas formas jurfdicas processuais. Por mais cruéis e estranhas que possam ser essas novas formas legais, a guerra nao pode deixar de ser juridicamente reguladora e ordenadora. Se anteriormente era regula- da mediante estruturas juridicas, a guerra passou agora a ser regulado- ra, gragas & construgao e a imposigao de sua propria estructura legal. Devemos frisar que o fato de a guerra imperial ser reguladora e or- denadora, contendo assim um elemento construtivo, ndo significa que ela seja um poder constituinte ou fundador no sentido préprio. As mo- dernas guerras revoluciondrias constitufram com efeito exemplos de poder constituinte; eram fundadoras na medida em que derrubavam a velha ordem e impunham do exterior novos cédigos jurfdicos e novas formas de vida. Em contrapartida, o estado de guerra regulador da nossa 145° MULTIDAO época imperial reproduz e regula a ordem vigente; ele cria a lei e a ju- risdigdo desde o interior. Seus cdigos juridicos sio estritamente fun- cionais em relagao 4 constante reordenagao dos territérios imperiais. Ele é constituinte, por exemplo, no sentido de que o sao os poderes implicitos da Constituigéo americana ou em que podem sé-lo as ativi- dades dos tribunais constitucionais em sistemas juridicos fechados. Estes s4o sistemas funcionais que, sobretudo em sociedades complexas, ser- vem de sucedaneo a expressio democratica — funcionando assim contra a democracia. Seja como for, esse poder de reordenago e regula- mentag4o pouco tem a ver com o poder constituinte propriamente dito, no sentido fundador. Trata-se antes de uma forma de desloc4-lo ¢ su- focd-lo.3 O programa polftico de “construgao nacional” em pafses devasta- dos como o Afeganistao e o Iraque constitui um exemplo central do projeto produtor de biopoder e guerra. Nada poderia ser mais pds- moderno e antiessencialista do que este conceito de construggo nacional. Ele indica, por um lado, que a nagio transformou-se em algo pura- mente contingente, fortuito, ou, como diriam os filésofos, acidental. Por isto € que as nagdes podem ser destrufdas e fabricadas ou inventa- das como parte de um programa politico. Por outro lado, as nagdes séo absolutamente necessdrias como elementos da ordem e da segu- ranga globais. As divisdes internacionais do trabalho e do poder, as hierarquias do sistema global e as formas do apartheid global que dis- cutiremos no préximo capitulo dependem todas do estabelecimento e da imposigao de autoridades nacionais. As nagGes precisam ser cons- trufdas! A construgao de nagées pretende, assim, apresentar-se como um processo constituinte e mesmo ontolégico, mas nao passa na reali- dade de uma pdlida sombra dos processos revoluciondrios dos quais nasceram as nagdes modernas. As revolugdes e os movimentos de li- bertac4o nacional modernos que criaram nagGes eram processos surgi- dos do interior das sociedades nacionais, frutos de uma longa histéria de desenvolvimento social. Em contraste, os projetos atuais de cons- + 46° GUERRA trugfo nacional s4o impostos 4 forca do exterior, mediante um pro- cesso que agora atende pelo nome de “mudanga de regime”. Essa construgao nacional assemelha-se menos ao moderno nascimento re- voluciondrio de nagées que ao processo pelo qual as poténcias colo- niais dividiam o planeta e desenhavam os mapas dos territérios submetidos. Também se assemelha, de uma forma mais benigna, as ba- talhas de reordenacao de distritos eleitorais ou administrativos para conquistar o controle polftico, j4 agora, naturalmente, numa escala global. Seja como for, a construgéo nacional é uma ilustragdo da face “produtiva” do biopoder e da seguranga. Encontramos outro exemplo da natureza produtiva e da capacida- de reguladora jurfdica do biopoder e da guerra global na retomada do conceito de “guerra justa”. O atual conceito de guerra justa nao deve ser reduzido ao direito de 0 poder constituido tomar decisGes e co- mandar unilateralmente, tal como acontecia em velhas concepgées da razio de Estado — concepgo sustentada por alguns dos falcées que hoje promovem as guerras imperiais. Tampouco devemos reduzir a guerra justa a um principio moral, como parecem pretender varios pen- sadores religiosos € tedricos juridicos utépicos (com o risco de trans- formar a guerra justa em fanatismo e superstigio). Trata-se em ambos os casos, na realidade, de concepgdes simplesmente antigas, pré-mo- dernas, ressuscitadas recentemente. Seria mais esclarecedor examinar uma genealogia muito mais recente da guerra justa e de sua capacidade constituinte, a saber, o conceito de guerra justa associado a guerra fria que serviu de base as teorias de conteng4o promovidas por estrategis- tas os mais diversos, de George Kennan a Henry Kissinger. A guerra fria, como tentaremos demonstrar adiante, era efetivamente uma guer- ra, mas uma guerra que introduzia elementos novos, freqiientemente conduzida através de conflitos simultaneos de baixa intensidade em varias frentes em todo o mundo. O que é relevante para nossa exposi- Gao aqui é que esses tedricos da contencao durante a guerra fria rein- terpretavam a moralidade tradicional da guerra justa. De seu ponto de 47+ MULTIDAO. vista, a guerra fria nao era uma guerra justa porque podia destruir as ameagas comunistas e soviéticas, mas porque era capaz de conté-las. Neste caso, a expressao “guerra justa” jA nao é uma justificagao moral de atos de violéncia e destruicgio limitados no tempo, como era tradi- cionalmente, e sim da permanente manutengao de uma estase da or- dem global. Esta concepgao de justiga e contengdo desenvolvida na guerra fria explica ndo s6 a duragao indefinida como as fungdes regu- ladoras e ordenadoras de que a guerra imperial pode revestir-se hoje. A guerra fria, contudo, nunca chegou a uma concepgio ontoldgica da guerra. Sua nogao de contengao era estatica ou talvez dialética. So- mente depois do fim da guerra fria é que a guerra comegou a se tornar verdadeiramente construtiva. A doutrina de politica externa de Bush pai, por exemplo, era constituinte na medida em que a guerra do golfo Pérsico de 1991, embora seu objetivo basico fosse restabelecer a sobe- rania nacional do Kuwait, também fazia parte de um projeto para criar uma “nova ordem mundial”, As politicas de guerras humanita Sy manutengao da paz construgio nacional do governo Clinton tinham aspectos andlogos, voltados por exemplo para a construgao de uma nova ordem politica nos Balcas. Ambos os governos promoviam, pelo me- nos parcialmente, o critério moral da guerra justa como elemento cons- trutivo da pol{tica, para redesenhar o mapa geopolftico, Finalmente, o governo de Bush filho, especialmente depois dos atentados de 11 de setembro e da mudanga de politica de defesa para politica de seguran- a, tornou explicitos 0 alcance global e a fungao ativa e constituinte da guerra na ordem global, embora este ainda seja um processo incom- pleto e desigual que por algum tempo continuaré avangando e recuan- do de varias formas. A guerra imperial tem a fungdo de moldar o ambiente politico global, tornando-se assim uma forma de biopoder no sentido positivo e produtivo. Pode ficar parecendo que chegamos ao momento de uma revolugao reaciondria, no qual a guerra imperial encontra uma nova ordem global, mas se trata apenas, na realidade, de um processo regulador que consolida a ordem vigente do Império.> + 48+ GUERRA Violéncia Legitima Devemos aqui encetar mais uma abordagem do estado de guerra glo- bal em que atualmente vivemos, desta vez do ponto de vista das mu- dangas nas concepgdes que se tem da violéncia legitima. Um dos pilares da soberania do moderno Estado-nagdo € 0 seu monopélio da violén- cia legitima, tanto no espaco nacional como frente a outros paises. No interior da nagdo, o Estado no sé dispde de esmagadora vantagem material sobre todas as demais forgas sociais em sua capacidade de violéncia como € também o tinico ator social que pode exercer a vio- léncia em carater legal e legitimo. Todas as demais formas de violéncia s40 a priori ilegitimas, ou pelo menos fortemente delimitadas e repri- midas, como no caso da violéncia legitima envolvida no direito sindi- cal de greve, se é que efetivamente podemos considerar a greve um ato de violéncia. No cenério internacional, os diferentes Estados-nagdo certamente dispéem de variados graus de capacidade militar, mas em principio tém todos o mesmo direito de usar a violéncia, ou seja, de promover a guerra. A violéncia legitima exercida pelo Estado-nagao baseia-se essencialmente em estruturas legais nacionais e, posteriormen- te, internacionais. (Trata-se, na expresso de Max Weber, de uma au- toridade legal, mais que tradicional ou carismatica.) A violéncia do policial, do carcereiro ou do carrasco dentro do territ6rio nacional ou ado general e do soldado fora dele nao é legitima por causa das carac- teristicas especificas dos individuos, mas com base nas fungdes que desempenham. Os atos imbufdos de violéncia legitima desses funcio- ndrios do Estado estao sujeitos, assim, a prestagdo de contas, pelo menos em principio, diante das ordens legais nacionais e internacionais em que se baseiam. Todas as teorias de ciéncia politica sobre o estado de excegdo — o estado de sitio e a ditadura constitucional, assim como os conceitos correspondentes de insurreicao e golpe de estado — ba- seiam-se explicitamente no monopélio de violéncia do Estado.” Os grandes protagonistas e teéricos da politica no século XX, tanto a es- 149° MULTIDAO querda quanto direita, concordam nesse ponto: Max Weber e Vladimir Lenin afirmam, em palavras quase idénticas, que em matéria de uso da forga o Estado é sempre uma ditadura.® Na segunda metade do século XX, no entanto, os mecanismos de legitimagao da violéncia de Estado comegaram a ser seriamente desmo- bilizados. Os avangos do direito internacional e dos tratados interna- cionais, por um lado, impuseram limites ao uso legftimo da forga por um Estado-nag4o contra outro, assim como & acumulagio de armas. Os acordos contra a proliferagao nuclear, por exemplo, juntamente com yarios limites ao desenvolvimento de armas quimicas e biolégicas, man- tiveram durante a guerra fria a esmagadora superioridade militar e 0 direito de promover guerras nas maos das duas superpoténcias, e por- tanto longe do alcance da maioria dos Estados-nagao.”? Por outro lado, especialmente nas dltimas décadas do século XX, 0 uso legitimo da forga também recuou dentro dos Estados-nagao. O discurso dos direitos humanos, juntamente com as intervengdes militares e as agées legais neles bascadas, fazia parte de um movimento gradual para deslegitimar a violéncia exercida pelos Estados-nagao até mesmo no interior de seus territérios nacionais.* Pelo fim do século XX, os Estados-nagio nao eram necessariamente capazes de legitimar a violéncia que exerciam, nem fora nem no interior de seus territérios. Hoje, os Estados ja nao tém necessariamente o direito legitimo de policiar e punir suas popu- lagdes ou de empreender guerras externas com base em suas préprias leis. Queremos deixar claro que n4o estamos afirmando que a violén- cia exercida pelos Estados contra seus proprios cidaddos ¢ contra ou- tros Estados diminuiu. Pelo contrario! O que diminuiu, isto sim, foram os meios de legitimar essa violéncia de Estado. O declinio do monopélio da violéncia legitima por parte do Esta- do-nagao reabre uma série de questdes inquietantes. Se a violéncia exer- cida pelo Estado-na¢ao deixou de ser considerada legitima a priori, com base em suas prdprias estruturas legais, como poderd entdo a violéncia ser legitimada hoje? Seriam igualmente legitimas todas as formas de + 50° GUERRA violéncia? Teriam por exemplo bin Laden e a al-Qaeda a mesma legiti- midade que os militares americanos para exercer a violéncia? Teria o governo iugoslavo direito de torturar e matar parcelas de sua popula- ¢40 compar4vel ao direito dos Estados Unidos de encarcerar e execu- tar parcelas de sua populagao? Seria a violéncia de grupos palestinos contra cidados israelenses tao legitima quanto a violéncia dos milita- res israelenses contra cidadios palestinos? Talvez a diminuigao da ca- pacidade dos Estados de legitimar a violéncia que exercem possa explicar, pelo menos em parte, o fato de se terem manifestado nas ul- timas décadas acusagées cada vez mais estridentes e confusas de terro- tismo. Num mundo em que nenhuma forma de violéncia pode ser legitimada, toda violéncia pode afinal ser considerada terrorismo. Como observamos anteriormente, as definigées contemporaneas de terroris- mo variam muito, dependendo de quem defina seus elementos centrais: governo legitimo, direitos humanos e normas de guerra. A dificuldade de estabelecer uma definigao estivel e coerente de terrorismo estd in- timamente ligada ao problema do estabelecimento de um conceito ade- quado de violéncia legitima. Muitos politicos, militantes e académicos invocam atualmente a moralidade e os valores como base da violéncia legitima, fora da ques- tao da legalidade, ou, antes, como base de uma nova estrutura legal: a violéncia é legitima quando sua fundamentag’o é moral e justa, mas ilegitima se sua fundamentaco € imoral e injusta. Bin Laden, por exem- plo, reivindica legitimagio apresentando-se como o heréi moral dos pobres e oprimidos do Sul global. De maneira semelhante, o governo dos Estados Unidos pretende a legitimagao de sua violéncia militar com base em seus valores, como a liberdade, a democracia e a prosperida- de. De maneira mais geral, numerosos discursos dos direitos humanos sustentam que a violéncia pode ser legitimada em bases morais (e s6 assim). O conjunto dos direitos humanos, sejam considerados univer- sais ou determinados por negociacées polfticas, apresenta-se como uma estrutura moral acima da lei ou como um sucedaneo da prépria estru- +51: MULTIDAO tura legal. Muitas concepgées tradicionais opunham os direitos huma- nos a todasas formas de violéncia, mas 4 sombra do Holocausto, e com toda clareza depois da “intervengo humanitéria” em Kosovo, esta visio evoluiu para algo a que poderfamos nos referitr como a “Doutrina Annan”, do nome do secretério-geral da ONU. A posigdo majoritaria a respeito dos direitos humanos defende atualmente o emprego da violéncia a servico desses direitos, legitimada em sua fundamenta¢do moral e promovida pelos capacetes azuis das forgas da ONU.*! Tais alegagdes morais efetivamente alcangam hoje em dia um certo tipo de legitimacgao0, mas devemos ter em mente que esta legitimagao tepousa de maneira precdria na radical pluralidade dos contextos e julgamentos morais. Em 1928, empenhado numa campanha de desar- mamento, Winston Churchill contou uma parabola para ilustrar as conseqiiéncias catastréficas da presungao de que nosso préprio uso da violéncia pode ser universal.** Um belo dia, todos os animais do zoolé- gico decidiram que se desarmariam e renunciariam ao uso da violén- cia. O rinoceronte proclamou que o uso dos dentes era algo barbaro e devia ser proibido, mas que o uso dos chifres era basicamente defensi- vo, e devia ser permitido. O veado e 0 porco-espinho concordaram. O tigre, no entanto, manifestou-se contra os chifres e defendeu os dentes e até mesmo as patas como elementos dignos e pacificos. Finalmente, © urso se insurgiu contra dentes, patas e chifres. Propds entao que sem- pre que os animais entrassem em desacordo, seria necessdrio apenas um bom abrago. Cada animal, conclui Churchill, acredita que seu pré- prio uso da violéncia é estritamente um instrumento de paz e justiga. A moralidade sé pode constituir uma base s6lida para legitimar a violén- cia, a autoridade e a dominagao quando se recusa a admitir diferentes perspectivas e julgamentos. Uma vez que aceitemos a validade de dife- rentes valores, uma tal estrutura imediatamente entra em colapso. Tradicionalmente, as estruturas legais t¢m proporcionado um con- texto mais estavel para a legitimagao do que a moralidade, e hoje em dia muitos estudiosos insistem em que o direito nacional e internacio- +525 GUERRA nal continua sendo a tinica base valida de legitimagao da violéncia.® Devemos ter em mente, contudo, que o direito penal internacional consiste num conjunto extremamente insuficiente de tratados e con- vengdes dotados dos mais clementares mecanismos de aplicagdo impositiva. A maioria das tentativas de fazer valer as leis penais inter- nacionais tem sido infrutifera. As agées legais movidas contra 0 ex-di- tador chileno Augusto Pinochet em tribunais britanicos e espanhdis, por exemplo, constitufram tentativas de estabelecer o precedente de que os crimes de guerra e os crimes contraa humanidade esto sujeitos a uma jurisdigdo universal e podem ser objeto de leis nacionais em qualquer parte do mundo. Existem pretens6es semelhantes de proces- sar o ex-secretario de Estado americano Henry Kissinger por crimes de guerra cometidos no Laos e no Camboja, mas, como se poderia es- perar, nenhuma delas chegou a se concretizar juridicamente. Novas instituigées para a punigdo da violéncia ilegitima tém sido criadas. Tais instituig6es estendem-se muito além do velho esquema do direito na- cional e internacional, estando entre elas organismos como os Tribu- nais Penais Internacionais para a ex-Iugoslavia e Ruanda, criados pelo Conselho de Seguranga da ONU em 1993 ¢ 1994, ¢ (caso mais impor- tante) o Tribunal Penal Internacional permanente fundado em Haiaem 2002 (ao qual os Estados Unidos se recusaram a aderir, enfraquecendo consideravelmente seus poderes). Enquanto o antigo direito interna- cional baseava-se no reconhecimento da soberania nacional ¢ dos di- reitos dos povos, a nova justica imperial, que tem como elementos 0 conceito de crime contra a humanidade e as atividades dos tribunais internacionais, tem como objetivo a destruicao dos direitos e da sobe- rania dos povos ¢ nagées, através de praticas jurfdicas supranacionais. Vejam-se, por exemplo, as acusagées formalizadas contra Slobodan Milosevic e outros dirigentes sérvios no Tribunal Penal Internacional para a ex-lugoslavia. Nao est4 em questao se a violéncia exercida pelos dirigentes sérvios violava ou nao as leis do Estado iugoslavo — na ver- dade, algo completamente irrelevante. Sua violéncia é considerada ile- 153+ MULTIDAO gitima de um ponto de vista exterior ao contexto juridico nacional e mesmo internacional. Em outras palavras, nado eram crimes contra as leis nacionais ou internacionais, mas contra a humanidade. Essa mu- danga identifica o possivel declinio do direito internacional e a ascen- so, em seu lugar, de uma forma global ou imperial de direito. Esse enfraquecimento do direito internacional nao €, em nossa opi- nido, algo negativo em si mesmo. Temos perfeita consciéncia do nu- mero de vezes em que 0 direito internacional foi utilizado no século XX apenas para legitimar e apoiar a violéncia do forte contra o fraco. Mas a nova justiga imperial, embora com cixos e delineamentos de certa forma diferentes, parece contribuir da mesma forma para criar e man- ter as hierarquias globais. Temos de reconhecer como € seletiva essa aplicagao da justiga, que os crimes dos menos poderosos sio julgados com freqiiéncia, e muito raramente os dos mais poderosos. Sustentar que os mais poderosos também devem obedecer As leis e sangGes im- periais parece-nos uma estratégia nobre mas cada vez mais utdpica. Enquanto continuarem dependentes dos poderes globais, como o Con- selho de Seguranga da ONU e os Estados-nagio mais poderosos, as instituigdes da justiga imperial e os tribunais internacionais que punem crimes contra a humanidade necessariamente haverdo de interpretar e reproduzir a hierarquia politica do Império. A recusa dos Estados Uni- dos de permitir que seus cidadios e militares se submetam A jurisdigZo do Tribunal Penal Internacional ¢ ilustrativa da desigualdade na apli- cagio das normas e estruturas legais.** Os Estados Unidos imp6em san- ges legais a outros, seja através de sistemas internos normais ou de esquemas ad hoc, como no caso do encarceramento de combatentes na baia de Guantdnamo, mas nao permitem que os seus sejam subme- tidos a outros organismos juridicos nacionais ou supranacionais. A desigualdade de poderio parece tornar impossfvel 0 estabelecimento da igualdade diante da lei. Seja como for, hoje em dia o fato de a vio- léncia estar de acordo com o direito internacional vigente ou com o nascente direito global nao garante a legitimagao, e a violago nao sig- + 54+ GUERRA nifica que ela seja considerada ilegitima — longe disto. Precisamos buscar além dessas estruturas legais para encontrar os mecanismos ou contextos que se mostram eficientes na fundamentagio da violéncia legitima. A nés parece que atualmente a violéncia nao é legitimada de ma- neira mais eficaz com base em alguma estrutura estabelecida a priori, seja moral ou legal, mas apenas a posteriori, de acordo com seus resul- tados. Poderia parecer que a violéncia do forte é automaticamente le- gitimada, e a violéncia do fraco, imediatamente taxada de terrorismo, mas a ldgica da legitimagio tem mais a ver com os efeitos da violéncia. E o reforgo ou restabelecimento da atual ordem global que legitima retroativamente o uso da violéncia. Num perfodo de pouco mais de uma década, assistimos a uma total mudanga nessas formas de legi- timagao. A primeira guerra do Golfo foi legitimada com base no direi- to internacional, j4 que oficialmente se destinava a restabelecer a soberania do Kuwait. Em contraste, a intervengao da Otan em Kosovo buscava legitimagao em motivagées morais e humanitdrias. A segunda guerra do Golfo, uma guerra preventiva, invoca a legitimag4o essen- cialmente com base em seus resultados.** Qualquer poder militar e/ou policial ser4 investido de legitimidade somente na medida em que se mostrar eficaz na corregao de desordens globais — nao necessariamente restabelecer a paz, mas manter a ordem. Por esta ldgica, um poder como as forgas armadas americanas pode exercer uma violéncia que seja ou nao legal ou moral, e enquanto esta violéncia resultar na reprodugdo da ordem imperial, sera legitimada. Assim que a violéncia deixar de proporcionar ordem, no entanto, ou assim que se mostrar incapaz de pre- servar a seguranca da atual ordem global, a legitimidade ser retirada. Trata-se de uma forma de legitimagio das mais precérias e instaveis. A presenga constante de um inimigo e a ameaga de desordem sao necessdrias para legitimar a violéncia imperial. Talvez nao deva sur- preender o fato de que, quando a guerra constitui a base da politica, o inimigo se torna a fungao constitutiva da legitimidade. Assim é que 55° MULTIDAO 0 inimigo deixa de ser concreto e localiz4vel, tornando-se algo fugidio ¢ inapreenstvel, como uma cobra no paraiso imperial. O inimigo € des- conhecido e invisivel, e no entanto estd sempre presente, como se fos- se uma aura hostil. O rosto do inimigo aparece na bruma do futuro e serve para amplificar a legitimacao, 14 onde ela recuou. Esse inimigo, na realidade, nao é apenas fugidio, mas completamente abstrato. Os individuos invocados como alvos principais — Osama bin Laden, Saddam Hussein, Slobodan Milosevic, Muamar Khadafi e Manuel Noriega, entre outros — constituem por si mesmos ameagas muito li- mitadas, mas sdo amplificados e transformados em figuras gigantescas que servem de sucedaneo a ameaga mais geral e apresentam a aparén- cia de objetos de guerra concretos e tradicionais. Eles talvez sirvam como ferramenta pedagégica (ou fachada mistificadora) ao permitir a apre- sentac4o desse novo tipo de guerra soba forma antiga. Os objetos abs- tratos de guerra — drogas, terrorismo e assim por diante — tampouco podem ser realmente considerados inimigos. Seriam mais apropriada- mente entendidos como sintomas de uma realidade desordenada que representa uma ameaga a seguranga e ao funcionamento da disciplina ¢ do controle. Existe algo de monstruoso nesse inimigo abstrato confi- gurado numa espécie de aura. Esta monstruosidade € uma primeira indicagao do fato, que logo analisaremos mais detidamente, de que a assimetria e os desequilfbrios de poder no mundo nao podem ser ab- sorvidos no contexto da nova legitimagao do poder imperial. Por en- quanto, bastard constatar que o inimigo é um exemplo, ou, melhor ainda, um experimentum crucis para a definigao da legitimidade. O inimigo deve servir como esquema légico no sentido kantiano, mas na diregdo oposta: nao terd de demonstrar o que é 0 poder, mas aquilo de que o poder nos salva. A presenga do inimigo demonstra a necessidade de seguranga. Devemos deixar aqui bem claro que a seguranga em si nao implica necessariamente repressio ou violéncia. Na segunda parte do livro, analisaremos detidamente as novas formas de trabalho social que se + 56° GUERRA baseiam em produtos imateriais, como a inteligéncia, a informagio e os afetos. Essas formas de trabalho ¢ as redes sociais que criam séo organizadas e controladas internamente, através da cooperagao. Tra- ta-se aqui de uma forma real de seguranga. O conceito de seguranga que vimos discutindo, que se baseia numa concepgio de inimigos abs- tratos e serve para legitimar a violéncia € restringir as liberdades, é im- posto externamente. Os dois conceitos de seguranga, um baseado na cooperacdo € 0 outro assentado na violéncia, nao apenas sao diferen- tes, portanto, mas entram diretamente em conflito um com o outro.” No inicio deste novo milénio, havia no planeta quase dois mil con- flitos armados permanentes, ¢ eles estio aumentando. Quando, a par do monopélio da forga legitima, as fungées soberanas dos Estados-nagaéo entram em declinio, os conflitos comegam a se manifestar por tras de uma infinidade de emblemas, ideologias, religides, exigéncias e identi- dades. E em todos esses casos a violéncia legitima, a criminalidade e 0 terrorismo tendem a se confundir. Isto nao quer dizer que todas as guer- ras ¢ todas as partes armadas se tenham tornado as mesmas, nem que nao sejamos capazes de entender as causas das guerras. Significa, isto sim, que os termos modernos de avaliagdo tendem a entrar em colap- so: as distingdes entre violéncia legitima e ilegitima, entre guerras de libertagdo e guerras de opressdo tendem a ficar confusas. Todas as for- mas de violéncia tornam-se cinzentas. A propria guerra em si, inde- pendentemente das distingdes que tentemos fazer, € que nos oprime. & a perspectiva cfinica de Simplicissimus. Consideremos, por exemplo, a barbara e genocida guerra entre hutus e tutsis em Ruanda no infcio da década de 1990. As causas do conflito certamente podem ser entendidas, por exemplo, em funcao do legado do sistema colonial belga, que privilegiava os tutsis mino- ritérios, como uma raga colonizada superior aos hutus majoritarios.“* Tais explicagGes das causas, naturalmente, nao constituem uma justifi- cagio, como tampouco estabelecem um caminho para a libertagdo. Tanto a violéncia hutu quanto a violéncia tutsi carecem de legitimida- 157° MULTIDAO de. O mesmo se aplica A violéncia de croatas e sérvios nos Balcas, as- sim como a violéncia de hindus e mugulmanos no Sul asidtico. Todas elas tendem a tornar-se igualmente ilegitimas e opressivas. Naturalmente, podemos continuar a dividir as atuais guerras de acordo com varios parametros — por exemplo, guerras de ricos con- tra pobres, de ricos contra ricos e de pobres contra pobres —, mas tais categorias tendem a ser irrelevantes. S40 relevantes para os envolvi- dos, com certeza, mas nao no contexto de nossa atual ordem global. Uma tnica distingdo efetivamente importa, ¢ ela se sobrepée a todas as demais: violéncia que preserva a hierarquia contemporanea da ordem global e violéncia que ameaca esta ordem. E esta a perspectiva da nova guerra imperial, que investigaremos em detalhe na préxima segio. Numerosas guerras contemporaneas nem contribuem para a hierarquia global vigente nem a prejudicam, e por isto deixam indiferente o Im- pério. Isto nao quer dizer que elas terao fim, mas pode ajudar a enten- der por que no sao objeto de intervengao imperial. SAMUEL HUNTINGTON, GEHEIMRAT Todas as grandes obras modernas de ciéncia politica fornecem fer- ramentas para transformar e derrubar os poderes constituidos e nos li- bertar da opresséo. Até O principe, de Maquiavel, considerado poralguns o manual do governante iniquo, éna realidade um panfleto democrati- co que poe a compreensdo da violéncia ea habilidosa utilizagao do poder a servico da inteligéncia republicana. Hoje, no entanto, a maioria dos cientistas politicos nao passa de técnicos trabalhando para resolver os problemas quantitativos da manutengao da ordem, e os demais per- correm os corredores de suas universidades e as ante-salas do poder, tentando obter acesso ao ouvido do soberano para sussurrar seus con- selhos. A figura paradigmdtica do cientista politico tornou-se entdo 0 Geheimrat, o assessor secreto do soberano. +58: GUERRA Samuel Huntington pode ser considerado o melhor exemplo de Gcheimrat imperial, aquele que mais éxito alcangou no aluguel do ouvido do soberano. Em 1975, juntamente com Michel Crozier e Joji Watanuki, ele publicou para a Comissdo Trilateral um volume sobre a “crise da democracia”.* Seu diagnéstico era que a partir da década de 1960 a “democracia” foi posta em risco nos Estados Unidos por exces- so de participagao e excesso de exigéncias por parte do sindicalismo e de grupos sociais recém-ativados, como as mulheres e os americanos de descendéncia africana. Democracia demais, afirmava ele, paradoxalmen- te, havia deixado doente a democracia americana, levando a um “des- tempero democritico”. Talvez esta légica contraditéria fizesse sentido apenas durante a guerra fria, quando a gestao social capitalista, qual- quer que fosse a sua forma politica, era necessariamente considerada “democratica”, ante a ameaca do totalitarismo soviético. Na realida- de, o texto de Huntington é um evangelho decididamente anti-republi- cano e antidemocrdtico que prega a defesa da soberania ante as ameagas de todas as forgas e movimentos sociais. O que Huntington mais te- mia, naturalmente, e encontramos aqui a motivagao central de sua l6- gica, eraa democracia em seu sentido proprio, ou seja, como 0 governo de todos por todos. A democracia, dizia ele, deve ser temperada coma autoridade, e varios segmentos da populagdo devem ser impedidos de participar muito ativamente da vida politica ou de exigir demais do Estado. Nos anos subseqiientes, com efeito, o evangelho de Huntington serviu de guia para a destruigao neoliberal do Estado de bem-estar social. Vinte anos depois, o assessor Huntington volta a sussurrar no ouvi- do do soberano. As necessidades do poder mudaram, e assim também os seus conselhos. A guerra fria fora um principio estdvel que havia organizado os Estados-nagdo entre aliados e inimigos, com isto defi- nindo a ordem global, mas isto jd passou. No fim do século XX, quando a guerra fria chegou ao fim e até mesmo a soberania dos Estados-nagao estdé em declinio, nao parece claro como configurar a ordem global e como exercer e legitimar a violéncia necessdria para manter esta ordem. -59° MULTIDAO A recomendagao de Huntington é que as linhas de organizagao da or- dem global e do conflito global, os blocos que redinem os Estados-na- ¢do em campos aliados e inimigos, néo mais sejam definidos em termos “ideolégicos”, e sim como “civilizagées”.®° E 0 auspicioso retorno de Oswald Spengler! A velha toupeira do pensamento reaciondrio volta a mostrar a cabecinha, Nao fica claro em absoluto o que poderiam ser essas estranhas identidades historicas chamadas civilizagées, mas na concep¢ao de Huntington logo se verifica que elas se definem em gran- de medida em termos raciais e religiosos. O cardter genérico das civili- zagdes como critério de classificagdo torna ainda mais facil subordinar a “ciéncia” as prdticas politicas, usando-as para redesenhar o mapa geopolitico. O “assessor secreto” do soberano recorre aqui a uma velha hip6tese reaciondria que apresenta os agrupamentos politicos como comunidades fusionais (Gemeinschaften), situando a realidade do po- der (Machtrealititen) no interior de entidades espirituais. Ele invocou o fantasma dessas civilizagées para identificar nelas um grande esque- ma capaz de reordenar a divisdo amigos-inimigos que é essencial a po- litica. Os que pertencem a nossa civilizagao sdo nossos amigos; outras civilizagées sdo nossos inimigos. Venham entdo ouvir a boa noticia: a guerra transformou-se num choque de civilizagées! Spinoza muito ade- quadamente se referia a tais invocagées de medo e inimizades como superstic¢ao, e bem sabia que esta supersticdo leva invariavelmente a radical barbdrie da perpétua guerra e destruigdo. A grande habilidade de Huntington como Geheimrat na década de 1970 foi adiantar-se as necessidades do soberano, fornecendo anteci- padamente um manual antidemocrdtico de como fazer para as revolu- ¢6es de Reagan e Thatcher. Da mesma forma, sua tese sobre o “choque de civilizagées” antecedeu o 11 de setembro e a guerra que se seguiu contra o terrorismo, que foi imediatamente concebida pelos meios de comunicagao e os grandes poderes politicos, as vezes com ressalvas pru- dentes mas freqiientemente sem esta preocupacdo, como um conflito do Ocidente contra o Isla. Nesse contexto, na realidade, a hip6tese de + 60° GUERRA um choque de civilizag6es se nos apresenta ndo tanto como uma des- crigdo da atual situagao do mundo, e sim como uma explicita injungdo, um grito de guerra, uma tarefa que “o Ocidente” precisa levar a cabo.*! Em outras palavras, essas civilizagées, em vez de serem primordiais, es- pirituais ou mesmo histdricas, constituem preceitos politicos e estraté- gicos que precisam gerar organismos politicos concretos para servir como amigos e inimigos no estado de guerra permanente. Desta vez Huntington errou o alvo, e o soberano deu-lhe as costas. Ah, triste destino o do Gehcimrat, sujeito aos caprichos do soberano! O governo americano vem repetindo insistentemente desde o 11 de se- tembro que sua estratégia global de seguran¢a nada tem a ver com um choque de civilizagées.* O que nao acontece, basicamente, nio porque os dirigentes politicos americanos se mostrem sensiveis as implicagées racistas da hipdtese/proposta de Huntington, e sim porque a idéia de uma civilizagdo é por demais limitada para sua visdo global. Huntington continua preso ao velho paradigma da ordem mundial, tentando confi- gurar novos conjuntos de Estados-nagdo, jd agora em forma de civili- zagGes, para substituir os blocos da guerra fria. Os horizontes do Império, no entanto, sao mais vastos. Toda a humanidade deve ser submetida ao seu dominio. Neste novo mundo, as civilizagées imaginadas por Huntington e as fronteiras que as dividem nao passam de obstaculos. Nao deixa de haver algo triste num assessor ansioso que foi repelido pelo soberano e expulso da corte. +616 que efetivamente acreditam sua forga e em sua Capacidade ae a si mesmas. O que casamento de realismo e idealism LT ead a Pelee Mele [a |

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