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238 sama x car nr seo DK « rea, jo ee: ee i en BME LE ‘TERRAIL, JP. Du sens de I auto-exclusion / La mobilisation contre les probalités. In: TERRAIL, J~P. De I" indgalié scolaire, Paris: La Dispute/ SNEDIT, 2002. p. 46-54. VERRI, Gilda Maria Whitaker. Templarios da austncia em bibliotecas po- pulares. Recife: Editora Universiéria da UFPE, 1996. VIANA, Maria José Braga. Longevidade escolar em familias de camadas ‘populares. algumas condigbes de possiblidade. Belo Horizonte, 1998. ‘Tese (Doutorado em Educasic) ~ Faculdade de Eduetgio, Universida- de Federal de Minas Gerais, 1996. VIANA, Maria José Braga. As priticas socializadoras familiares como Iécus de consttaigio de disposigdes faciliadoras de longevidade €sco- Jar em meios populares. Educapdo e Sociedade, Sto Paulo: Comtez, v.26, 1, 99, janJabe. 2005, p. 107-125. ZEROULOU, Z. La réussite scolaire des enfants dimmgrés: 'appont d'une approche en termes de mobilisalion. Revue Frangaise de Sociologie, ¥ 29, n, 3, p. 447-470, 1988, Capitulo 8 (A TRANSMISSAO FAMILIAR DA LEITURA EDA ESCRITA: UM ESTUDO DE CASO ‘O que faz com que uma famfia se aproxime gradativamente da cultura escrita a0 longo de trés geragbes? Como se constr6l co gosto e um notével desempenho escolar nas praticas de leitur rae escrita pelos membros dessa familia? -Essas so as quesides que guiaram este estudo, originaria~ mente uma monografia! de conclusio de curso, que se iniciou incorporado & pesquisa mais ampla de que trata este livro. Buscou-se descrever € analisar os modos pelos quais uma fa iilia em proceso de ascensio social em diregio as camadas médias, da qual 0s ascendentes possuem niveis diferentes de insergao na cultura escrita, realiza a0 longo de tres geragbes ‘uma considerivel aproximagao das préticas do escrito. Em ou- tras palavras, pretendeu-se compreender como os membros dessa familia foram pouco a pouco se apropriando e transmi- tindo 0 dominio das habilidades do ler € escrever € também ‘um conjunto de disposigBes favordveis a uma pritica intensa € diversificada da leitura ¢ da escrita _ ONO ON "Tratowse de uma monografia de c vetrdade Federal de Minas Gerais, apr 4 por AntBnio Augusto Gomes Batista ae | yyossad OMOY 240 warn an ese ns es OK 8 geral se desdobra em questoes mais €s- pecificas, que auxiliam a responder o Ob} da pesquisa, tais easy ao longo cas diferentes geracoes, de que forms confi. fora a famia pesquisada? Qual é o envolviment dos pais € Shs com as priticas de leitura ¢ escrita? Como se do proves: + go, quando é este 0 caso, de mobilizacio da familia na Wins. missto de saberes, priticas e disposigbes que visam asseBurar F construc de umn gosto pela leitura e o sucesso na escolari- sacio das criangas? Como 0s filhos se apropriam desses sabe- es, pritcas € disposigdes € como véem esse processo? "A coleta de dados foi feita por meio de entrevistas com ment bros da segunda e da terceira geragdes ¢ da observagio em. Gomielio. A opsio de ouvir mais de uma geracdo explica-se pelo pressuposto de que uma dinfmica social se faz num perio- Bo de maior duracio, envolvendo no minimo, duas geragdes. Diane da impossibilidade de entrevistar a primeira gera lo, optou-se pela utlizacao de distintas fontes: ag, Memérias broduzidas por um dos membros da primeira geraglo, esti riginalmente com o objetivo de serem recordagdes para seus rnetos, assim como informacdes obtidas por meio da segunda geracto durante as entrevistas, que abordaram, entre outros temas, a histéria do grupo familiar. Outro material também ana- lisado foi um memori 19 escrito por um dos membros Sua trajet6ria de formag20 como leitora, bem como seu pap de mae-educadora. Atrajetéria familiar: aaproximagio da cultura escrita Apresentamse, a seguir, as trés geragoes (FIG. 1), a comegar pela caracterizacdo das segunda ¢ terceira geragoes, jé que 0 acesso 2 familia pesquisada se deu por meio delas. Além diss T'guas Memdrlas encontramse em (ase de edigao que sert financiada ar igo anciada pela to por essas priticas. fespectivamente: Antonio (40 anos), Vel (4 anos), Ana (11 anos), André is evidentes sobre a “trans- que as filhas mais velhas mam desenvoltura nas ha- considerdvel g0s- ccontram elementos ma 5 formam um snico nicleo fa- mie e por quatro filhos, onica (39 anos), Luisa (2 anos) e Adriana (6 meses)" ‘As segunda ¢ terceira geraoes elo pai, pela numa posigdo que os aproximam das Clas~ ges médias e habitam na cidade de Contagem, na Regidio Metro- mineiros com . A residéncia, heranga recebida por Antonio de seus pais, localiza-se num bairro de classe média. “A segunda geragio nasceu na cidade de Belo Horizonte, re- sultado da migragdo- dos pais. Ver6nica viveu toda a infancia € juvennude na regido central de Belo Horizonte ¢ AntOnio, em Contagem. Eles se conheceram no Centro Federal.de Educagao finas Gerais (CEFET), onde estudaram e, apés de trabalharem mais de dez anos como técnicos em eletrOnica, 0 casal retomou os estudos ingressando na Univer- sidade e, hoje, exercem a ocupacio de professores. Ele, como professor dos niveis fundamental, médio (em redes municipal e privada) e superior (na Universidade do Estado de Minas T para preservar a identidade dos sujeitos da pesqul izaram-se nomes ara i! pesquisa, «Xe que resp a cone da natalie, «fila parece nto apretentr wees mln deo cases dla, muons 2 exe console em 1280 See nvesamentesedeaconats Hoa carncteitea fara parece et fcuconada htjeiia em ascensdo da fa en, sobetudo, A ‘Raga as fafa b dona exp, como se ved mals alan + No memento da pesquisa fila prog do casa etava se preparando para 2 prova de seleglo dessa mesma escola técnica. ae o enure 2 segunda e a terceira gera | — A — Gerais ¢ em instituigao privada) e, ela, como professora , pani- cular de Matematica, ioe Cursou Matematica e se especializou em Educagio Matematica em um cento universatio particular em Belo Ho ja is tarde conclulu o curso de Mestrado em Educasa ‘uma universidade federal de prestigi. Posteriormente a entrada do marido no ensino superior, Verbnica curtou al periodos do mesmo curso na mesma Universidade, mas no chegou a conclut-lo. Prestou outro vestibular e, no momento da pesquisa, cursava Pedagogia* : Qs quatro filhos nasceram em Belo Horizonte infancia em Conagem. Lisa © An, a dss as ae ves, confessional de Comagem em Bc ero 3 ote respira) mesma instituigo na qual trabalha 0 pai como professor de Matemtica dos niveis fundamental e médio. Ambas apresen- tam consideravel desenvoltura nas habilidades de leitura ¢ es- crita (até mesmo leram a monografia ¢ realizaram criticas sobre ela) e vém apresentando trajet6rias escolares de sucesso se gundo a escola (constantemente sio premiadas como “alunas destaque” da escola, o que Ihes dé o direito de obter descontos nas mensalidades;’ em seus boletins escolares, as notas sto superiores 2 90%). Os dois filhos mais novos ainda nao fre- qhentam a escola, Dimeresane axtar que as wajtiras escolares de Vertnica © Antonio nto #0 lineares.O cariter inregolare acilentado do percurso escolar nos meos pope lares fox deserto por ZAGO (2000). Apés acompanhat, em intervalos de tempo ‘e durante sete anos, 4 esclarizagto dos filbos de 16 famflas de baixo pode quis, a autora observou 0 carter dindmico da formacto dos percusos Como su Kogica alo linear, feta de epressos, intemupgbes ¢ retornos 2 cxcolt 19Y, Deste modo, a pesqulsa merecera outras entrevista nas quals Yen 2 ti pen cm a eas wie me psn A familia ado se beneficia dos descontos nas mensalidades por melo dot Drtnios recebidos pelas crangas, ft que a stuagio do pal como professor + Gecola Thee concede 0 dieto de estudar de area “ tereeiro ano primario, Ap6s © casamento, o chef “Avro evr tetra ein Pari Cpl Revene 243 ‘ho se investigar a procedéncia desse nticleo familiar, perce- bese que a familia € origindria de meios populgres ¢ predo- rrinanternente rurais€reallzou um processo de mobilidade soca! (cade insergto no mundo urbano marcado por novos e distintos elo lado paterno, ambas as famflias do senhor José ¢ da senhora Ercilia so provenientes de meio rural. Sto proceden- tes de uma cidade que esté localizada na Zona Metalirgica de Minas Gerais, a 86 km de Belo Horizonte. Em ambas as familias, tc homens eram agecultores, e as mulheres, donas-de-casa. O Sr. José eursou até 0 quarto ano primario, ¢ D- Erilia, até 0 tomou operdrio de uma empresa que atua no ‘co, e a mulher continuou dona-de-casa. Passaram @ Contagem e tiveram apenas dois filhos. A ascensto do Sr. José entre da empresa permitiu a0 casal forte mobilidade social, cultural e escolar. Hoje, eles retornaram & regito de origem, morando em Belo Vale. Pelo lado mateo, a primeira geragao estudada também realiza uma trajet6ria social ascendente, ainda que relativamente “ertitica’ e que as posigbes sociais iniciais se beneficiem da vivencia num ambiente urbano € possibilitem um conjunto de lagos sociais importantes. ‘A familia do Sr. Geraldo, pai de Verénica, possula um cart6- tio numa pequena cidade do interior mineiro que se localiza aproximadamente a 290 km de Belo Horizonte, na Zona da Mata, conde seu pai tabalhava como escrivao. A profissto no Ihe ren ddeu ganhos expressivos. Sua mae era dona-de-casa. O Sr. Graldo conduit 6 quarto ano primrio ¢ sali de casa quando tina ape thas dez anos para trabalhar como atendente em uma farmécia. ‘A Sra, Irene, mae de VerOnica, tem origem portuguesa pelo lado patemo. Seu pai veio para o Brasil € trabalhou como gar gom. Com essa profissio, nao conquistou uma boa situagio f- fanceira. Sua mae, brasileira, era dona de casa. Entre-os membros da primeira geragio, foi ela quem atingiu o maior nivel de esco- laridade, tendo concluido 0 segundo ano ginasial ell ‘wossa ONEDY “prunes feria daira « da eocrita.— Patricia Cappsecte Revert, ey s, mudaram-se para Belo ae oe ‘ ‘consércio médico- ere ae : oa See de uma farm4- oe ami “propiedad de sua filha bioquimica. D. Irene = cosas costurava para fora. Atualmente & dona de casa. ‘Fyeram sete filhos. A dindmica pouco estével das vendas do pai impossibilitou uma situagao financeira mais favoravel. ‘Dessa forma, observando-se as préprias ocupagdes do casal éa segunda geracao (professores) € dos seus pais, membros da primeira geragao (agricultor e dona de casa; escrivao ¢ dona de casa/costureira), pode-se dizer que a familia viveu acentuado processo de acumulagto, ainda que extemporaneo, de capital ‘econbmico e cultural* para a conquista de uma nova posi¢lo no espago social. Quanto a escolarizagao, a familia caracteriza-se por uma Depois de casado: 2 considerdvel diferenga de capital escolar entre as duas primei- ras geragdes. Enquanto a primeira gerag4o estudada teve de quatro a seis anos de escolarizaco (sendo um pouco superior no lado materno), seus filhos (segunda geragio) chegaram 20 nivel superior ou até mesmo & pos-graduacdo. E evidente que parte desse salto se deve também a acentuada demanda e ofer- ta de escolarizacao que se inicia, no Brasil, sobretudo a partir i dos anos 1970.? e Diante dessa breve caracterizacdo da familia pesquisada, so portunas as perguntas apresentadas mais acima: como, de fato, se configura essa familia e que tragos socioculturais sugerem ‘uma relag4o com a transmissio do gosto pela leitura e escrita * Sobre 1 forte demands pela escolarizacto ROMANELLI (1998), RODRIGUES (1995) e 2AGO (2000), - eee es ‘Arma tert ers wrt. Pree Cppete Rents 247 Verénica comprava jogos de tabuleiro, “revistinhas” de coloris , ; ¢ ligar pontos, palavras cruzadas . da adquiriram OSt0 por eene paeee Para ler © escrever ¢ ain. ~ 70, principalmente na hora de Durante as entrevstas, perguniee Sobre a leitura na hora de dormir, VerOnicarecorda que leram descrigao da casa Pergi SOMO “Por favor, faca uma , 4 de Monteiro Lobato. ene a 2 sccegto Bar euNCla; “voce se lembra do seu peal 2 8 Fo S57 "0 que ele/ela lia”; “conte um panee /me ler alguma col. ‘tc. resultaram em longos relatos pelos sobre sua vida escolar, fam, 4 pritica continuou, mas as flhas acompanhavam a lettuce tals pude buscar com. Quando questionada a procedéncia dos livos lidos por Verenica Seder ea oa® famlares da cule exerts Co ese oe ‘fa mais velha diz quieeram comprados por sua pae ™ pase aide ends dos tee ‘Ana diz que as irmas também herdaram livros da tia, quan- aco familiares : eras cee cee 3 do a avé se mudou de Belo Horizonte para uma anaes ear at0, kmporianees a ee mise e costume de ler antes de dormi plies siete om Som scan a ae Vertnica tem lido crénicas de Luiz Fernando Vera, relagdes entre famtia e escola BOGS aco pon na dem POEs POF meio das falas dos entrevisados ¢ das © hnibio da mie de ler hisrias antes de donnie : ac fortes, que duas grandes insincias aunlaram a inser Z - a re Id Pros espe So pesqusido, cada una com sans Shiny Bex enh eh be eas, Umi de PrOprias especiiidades: a famfia ea escola, aay Feremes cultures do sudoeste dos Estados Unidos ensinam og As formas fomiliares da cultura escrita § antes de dormir como uma Como dito anteriormente, as filhas mais velhas do casa, Luisa ¢ Ana, apresentam grande desenvoltura nas habilidades de leitura e escrita. Aprenderam a ler com facilidade, lidam bem ‘AP Pat dos livros sto uma Com as tarefas escolares ¢ no-escolares que exigem fluencia © pa leiturae na escrita, além de exprimirem considerivel suces- Além disso, na mesma diregto, Lahite (1997) e Rego (1990) 80 escolar. Daseiam-se em Wells (1985 e 1986) para afirmar que 2 femian ‘Ambas ingressaram na escola aos quatro anos, em uma es (ade precoce da erianga com a escrita pode condutir a pritcas cola particular de pequeno porte préxima a casa onde moram € Passaram a infancia em meio a brincadeiras e jogos educativos. site 90 Inco da infncia que a8 cnancas veceberam maloe ndeiero cos como presence dos familiares Mais A ftene, referindo-se da Faia, Luisa comenta que raramente recebe livres como "* Bemard Lahire define disposicoes como “propensbes",“inclinagbes", “hibl a ce log Mendis, Tpit manent dese ue 8¢ manera ra nog omporamenis, ca opts dos indvin,podendo vt functo do momento no percurs0 biografico ¢ em fungio do conten® socializagdo (Lane, 2004, p. 2627). of leamed behavior as are 1g houses (Ham, 1987, p i 92" & wadugto € de minha fexsponsablidade, 248 ace dur erin cn XK 87% relacionadas ao sucesso escolar. De acordo com Rego (1990), a aquisigio da lingua escrita por algumas criangas se inicia antes mesmo de setem alfabetizadas, através do contato significative incentivadora do interesse infantil pela lei ‘ma perspectiva, Lahire aponta: soa leicura em vor alta de narrativas eseritas, combinadas com a Giscussto dessas marrativas com 4 crianga, esta em correlagto fextiema com 0 “sucesso” escolar 2, Quando a ctianga cconhece, ainda que oralmente, 3s escrias lidas por seus pais, ela capitaliza ~ na relagio furs textu de escrita, (Lana, 1997, p. 20) Ouuras atividades desenvolvidas pelas criangas € que tam- bém tem uma forte dimensio educativa sto a_preparacto de caulas para a evangelizagio no Centro Espirita," por meio da criagio de his ¢ ilustragbes, assim como da confecgio de fantoches, Mais adiante, voltarei a fazer referéncia sobre a pritica do espirtismo da familia, apesar de nao ser essa a énfa- se deste trabalho. No caso ‘la apresenta notével desempenho nas atividades de 1, bem como exprime considerdvel {gosto por essas pr eu desejo € ser escritora. Além do ccontato com priticas de leitura e escrita no seio familar, Luisa assistiu a sua madrinha fazer concursos hado alguns prémios. © convivio com foi importante, jd que mostrou que ser escritora era algo conereto es pslogrefado, no qual se relita 2 vida de uma pessoa eee ee ae e possivel. No entanto, segundo ela, € 2 escola que ocupa um fumar de destaque na construgao do desejo de ser eseritors, conforme poderi ser observado mais & frente ‘4 no caso se Ana, consigo entender melhor sua relagdo com a eserita e com a leitura quando ela fala de sua ligagio com @ font mais velha e da sua vida escolar. £ principalmente Lufsa ¢ a facola que 2 apresentam a0 mundo das letras, Ora Ana accita om prazer a introdugto pela itma no mundo da escrita, ora ela presenta certo receio. Era com grande prazer que ouvia as his- térias contadas pela ima, No entanto, demonstra certa resistén- cia quando a irma propde brincar de ‘escolinha”, Entendo que cla aprecia os momentos em que escrita aparece “naturalmen- te" e rejeita quando a escrita pode ser vivenciada como uma for- ma de avaliacao de seu desempenho pela irma mais velha. De fato, a visio que Ana tem da irma mais velha se confun- cde em duas perspectivas quase opostas, Ora fala com certa iro- nia do fato da irm& ter parado de brincar precocemente devido 0s seus compromissos com o estudo, ora fala com orgulho da ind ser uma aluna excepcional. Essa ambivaléncia leva a pen- sar que, a0 mesmo tempo em que ela quer se diferenciar de Luisa, pois continua achando que brincar € proveitoso que nilo é interessante uma pessoa estudar em excesso, ela admira a estudante comprometida que a irma é. Ela “opta", entio, por ‘uma posigao intermediéria: ndo pra de brincar, mas continua se dedicando as tarefas escolares. Eo que dizer sobre 05 dois tltimos filhos? Ser4 que eles apresentario o mesmo sucesso escolar e a mesma desenvoltu- 1a nas priticas de leitura e escrita? Essa questio fica ainda mais Instigante quando lembramos que b4 entre Luisa (14 anos) ‘Ana (11 anos), ¢ André (2 anos) ¢ Adriana (seis meses) uma considerdvel diferenga de idade, ¢ também uma notivel dife- renga no momento do percurso biogréfico da familia (inclusive em relagao as préprias ocupagées do casal). JA.se sabe que André gosta de ouvir os familiares lendo hist6- rias para ele, Diferentemente das irmas mais velhas, ele conta r 250 rin dear eerie veut 0K @ XK com todos os membros da familia para ler os livros. Em uma sitas em sua casa, presenciei Verbnica lendo dois livros ratura infantil para ele, Ela comegava a frase e ele com- pletava. Sabia de cor os dois livros. Ambos eram antigos, da €poca em que as duas irmas mais velhas eram pequenas, Além de ter contato com seus préprios livros, ele presencia os pais e as irmas lendo individual e silenciosamente. Tanto Ana quanto Luisa tm a mesma percepgio dos pais como leitores. Sobre a mie, as filhas comentam sobre suas lel- turas académicas para o curso de Pedagogia, sendo que Luisa também comenta sobre a leitura dos livros espiritas, com 0 in- tuito de preparar palestras que sto proferidas no Centro Espi- rita freqiientado pela familia. Apesar de também ser uma leitora de livros espftitas, Luisa diferencia-se da mae quanto as prefe- réncias de leitura, Enquanto sua predilecao recai sobre a litera- tura, sua mae prefere livros espiritas e textos académicos sobre educagao. Essa diferenciagZo entre os gostos pela leitura suge- re uma construgio de uma identidade individual distinta da mie. o que Francois de Singly (1996) indica acontecer entre a maioria de estudantes leitores que sao filhos de pais que tam bém Iéem com maior freqténcia, No caso do pai, elas enxergam a leitura como parte da sua profissao. Ele é um leitor profissional. Ana no consegue dife- renciar 0 que é leitura e o que é trabalho: (© meu pal... ev nio sei se ele mais Ié ou faz tem pro colégio.. ev nio sei..porque ele entra all pra sala e Fecha a porta..af fica assim ‘estudando Id 0s trem..preparando aula..esses trem... Cntrevista 3) E Luisa diz: [..] meu pai sempre foi da matemitica né? Eu lembro que ele ‘tengo pra leitura e tudo mais... o que eu mais lem- dele sentado na mesa... escrevendo ‘mesmo... que a gente via ele env af a sala ficou toda pra ele ali aquele material ros... entdo eu sempre tive contato com os livros Entrevista 4) antiga pel ‘A tenansss fila dn leitura de ecrta..~ Patrtela Cappuccio Resende, £9 ‘Além de se relacionar com a leitura ¢ a escrita para fins aca- demicos, em uma conversa informal com Vernica, tive acesso 4 outras priticas de leitura e escrita de Ant6nio, desde a época da juventude: constantemente escrevia poesias para Verénica € 0 faz ainda hoje, embora com menor intensidade. Segundo demonstra Verdnica em seu memorial, papel afetivo que a escrita apresenta na familia ultrapassa a relacio- namento do casal. Veronica e as ciiangas também utilizam a esctita para expor seus sentimentos. S40 comuns as trocas ‘entre os membros da familia de poesias, cartas e cartOes co- ‘memorativos. A nso afetiva da escrita tem uma historia familiar mais lado mateo, iniciando na primeira geragdo estu- dada, Contrariamente ao ambiente tenso da escola, Verénica Jembra como 0 ambiente familiar era acolhedor e, mesmo an- tes de ingressar na escola, vivenciou experiéncias de incenti- vo 2 leitura. ‘Além do estimulo 2 leitura dentro de sua familia, Ver6nica desfratou do exemplo do pai como leitor. Ela recorda de o ver ler constantemente jornais e revistas. E ele, pois, que transmite aos filhos a idéia de ra como algo natural. Apesar de também incentivar os filhos a ler, 0 habito de leitura de D. Irene nao era forte quando Verénica era crianga. ~ Somente mais tarde, com sua mudanga para o interior, resul- tante de um convite que uma das filhas fez para o pai de traba- Thar em uma farmécia, suas disposigdes se modificaram. Com mais tempo livre, jf que estava apenas com a filha cagula, € 1m mais recursos financeiros, ela adquiriu 0 habito de ler re- vistas sobre a rea da saude. Nessa época, AntOnio e Veronica jé eram casados. Ele era dono de uma banca de revistas ¢ cons- tantemente levava revistas como presente, que, segundo Ant6- no, ela lia com muito interesse. Anténio, por sua vez, também conta com a figura de uma leitora em sua familja, a sua mle. Ele se refere a ela como *su- porte intelectual” da casa e comenta de seu habito difrio de ler ? 5 252 rama dx ata eer eon XE «9 jomal depois do almogo, sentada & cozinha, Quanto 1 pai, ele. Jemfecorda de vé-lo ler, embora diga que estava sempre mals Scupado com atividades do fazer € nao indique 0s fextos suportes que © fato de a primeira geragdo estudada possuir pelo menos. um leitor parece ter certa relagio, ainda que mais ou menos ténue, com a construcio da identidade de Ant6nio ¢ Verdnica como leitores. Entre outros, os estudos de Galvao (2003), Lahi- re (1997) e De Singly (1993) apontam que, apesar de nao ser ‘um fator determinante, o exemplo dos pais leitores colabora na construcdo de filhos leitores Em pesquisa sobre a transmissio do gosto da universitirios, De Singly (1993) sugere que entre os jovens, além de outras formas do nascimento da necessidade de ler, como a mobilizaglo € outras estimulagdes exteriores, est a heranga. Segundo 0 autor, o exemplo dos pais leitores desempenha pa~ pel considerivel ~ quanto mais os pais Iéem, mais chances os filhos tém de se tornarem leitores. : Em uma perspectiva semelhante, Benard Lahire afirma: ra entre (0 fato de ver os pais lendo jornais, revistas ou livros pode dar a esses atos um aspecto “natural” para a crianga, cuja identidade social poderd construit-se sobretudo através deles (ser adulto ‘como seu pai ou sua mie significa naturalmente, ler livros... (1997, p. 20) Galvao (2003), ao analisar os dados do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional,“* aponta que os niveis de utiliza- Glo da leitura e escrita dos sujeitos tem correlagio, além de. outros fatores (como a pertenca etiria, social e geogrdfica) com ? WO Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional Clnaf) ¢ viva pesquisa que pare da inicatva do Instituto Paulo Montenegro ~ Asio Social do IBOPE € G2 ONG Acio Educativa, com 0 objetivo de “oferecer & sociedade brasileira tum conjuato de informagdes sobre habllidades ¢ priticas relacionadas & leita, escrta e matematica da populagio brasileira de modo a fomentar debate pablico € subsidiar a formulag2o de polticas de educagto e culturt® (nex0, 2003, p- 9. Indune « pikes an ttoun. Se ball & SS * pre- os niveis, : ; 1 escrito na infancia.”* senga de mater ‘Mobilizasdo pela escolarizacdo Desde cedo Veronica procurou desenvolver nat criangas nogbes de autonomia ¢ de responsabilidade ¢m relagdo 20s vonipromissos escolares. Nesse caso, foram as formas de exer- Shao da autoridade familiar que deram importéncia 20 ue controle, permitindo que as criangas se apropriassem da nogdo de autonomia, propicia ao sucesso escolar. na escola no era considerada signifi- cativa por parte de Verdnica, era grande a sua mobilizagto em. telacdo as atividades escolares a serem desenvolvidas em casa. © trecho seguinte do memorial de Ver6nica é bem esclarece- dor da relago que ela mantinha com a escolarizagao das fi- thas mais velhas: “Eu sempre as level [na escola] e as busquei e apesar das oportunidades, nunca me preocupei em dialogar com 0s profissionais (professoras, diretores, supervisores pe- dagégicos) a fim de conhecer © projeto politico pedagégico da instituicao”. Entretanto, mais a frente, destaca: empre participei das atividades extras 2 rotina didria, pesquisas, ma- quetes, construgées de aparelhos, como televiséo para contar hist6rias” (Menomt, p. 11). Tal fato pode sugerir que a mae considera que os capitais familiares podem suplantar os trans- jos pela escola. ‘Além disso, embora Verénica nao explicite, h4 uma preoau- pac em garantir que as filhas cumpram com seus deveres como estudantes, fazendo 0 “para-casa” e estudando para pro- vas. Ela no faz um acompanhamento sistemitico das ativida- des, mas cuida para que as criangas tenham tempo ¢ um ambiente Se a presenga fisica Apesar de explictar a relagao postva entre pais Ietores ¢ filhos letores, a tutor, ao dr ofse is eatsleas que contaram est cova, ¢ 20 Feconstruir duas trajetérias de sujeitos que esto em contradigio “ : com 0 que moscam 08 pate geras apreendides pelo Ia considera que exes f6- so importantes na consirugio de um lelior, mas nto determinaries. p 254. aint da cara aera stn 2 « propicio para o estudo. Exemplos desse cuidado sto o fato de ter escolhido segunda-feira como um bom dia para as entrevis- tas com a pesquisadora, jé que as meninas jé teriam adiantado, no fim de semana, o “para-casa” para os primeiros dias letivos; 2 iniciativa que teve de ligar para a biblioteca a fim de chamar ‘Luisa para a entrevista apenas quando eu estivesse disponivel, e, por iltimo a auséncia de imposi¢io do compromisso de cuir dar dos irmaos mais novos, deixando, dessa forma, o tempo das irmas mais velhas livre para os estudos. ‘Além dessas formas de mobilizaglo, fica evidente a preocu- pagdo da mie quanto ao respeito 4s autoridades escolares na seguinte passagem, também do Memor Embora a Pedagpgia tenha me sensibilizado a ver mais facilmen- te as incoeréncigs ou enganos dos professores, o discurso aqui fem casa € que elas saibam relevar algumas pequenas injustigas- Se quiserem reclamar algum suposto erro de corregao de pro- ya que 0 facam com respeito e educagto. (Meson, p: 15) Embora o pai nao apreserivé a mesma mobilizagto da mae na escolarizagio das criangas, ele também demonstra preocu- pago e valorizacto com a trajetéria escolar das filhas. Exem plos disso sto a preocupagio em garantira freqliéncia das filhas incentivos a0 estudo; os elogios sobre as notas & tes questionamentos 2 esposa, quanto a0 fato de a5 98 cot filhas terem ou nio feito as tarefas escolares. Todas essas atitu- des demonstram a tentativa do pai em verificar o cumprimento as regras escolares. Para isso, “o pai parece exercer uma autor dade baseada nio na violéncia fisica, mas na interiorizagho 62 legitimidade de suas palavras pelos filhos" (Larne, 1997, p. 170). "A mobilizagio para a escolarizacao dos filhos também est presente na primeira geracio. Do lado paterno, a familia, PEF tencente a meios populares e pouco escolarizados, ¢ um exer: plo de que a omissio parental em familias mals desfavorecidas um mito (Laue, 1997, p. 334). Certamente, Ant6nio viveu uma infancia muito diferenté | da de seus filhos: Na companhia de vizinhos e de seu 6nico ‘Atrauminte iad ara «ener Patrica Cappo Resende 255 ava a maior irmao, que quatro anos mais velho, ele pass rgani- parte do dia brincando na rua, Com uma rotina Pouce oF Jada, Antonio conta que nio tinha horftio preestabelecido para fazer as tarefas escolares. ‘Apesar de a familia nfo apresentar, entretanto, um acompa- 1 hamento sistematico das atividades escolares, outras priticas e atitudes ve para o rendimento escolar puderam ser ob- servadas. Nesse caso, foi principalmente a mae, D. Ercilia, quem mais se preocupou com as questdes educacionais dos Alhos, principalmente no que diz. respeito a escolha dos estabeleci- mentos de ensino. ‘AntOnio relata que a escolha pelo curso técnico em uma Instituigio federal de ensino fol incentivada pela mae. Esse in- ‘centivo estava baseado na idéia de que era preciso estudar para logo conseguir um emprego de natureza ndo-manual; € um cur ‘80 técnico, assim, seria interessante para esse fim,"” caso nid fosse possivel ao filho prosseguir numa carreira universitaria."* Foi sua mae quem o matriculou em um curso preparat6rio para a escola técnica, além de té-lo levado ao primeiro dia de aula, 0 immo de AmOnio € quatro anos mais velho do que ele ¢ teve um percurso ticolar bem diferente. NJo concluiv o ensino médio. A fala de interesse pelos festudos ¢ seu fracasso na escola levaram-no a optar pela vida no campo. E interessante notar que AniOnio € Verbnica nfo vilizaram 08 mesmos srBU- rmentos 20 3¢ feferiem 2 intengio da filha mais velha de estudar na mesma ‘escola, Eles destacam a qualidade do ensino e a exigéncia de autonomia. A ‘ropa escolha do curso foi diferente. Enquanto os pais cursaram 0 técnico ‘em BluSnica, Luisa eaava se preparando para a selesio para 0 curso iva fol 8 de que 0 cutso proporcionara formal .dores qualfictdos de um pélo petrogul: indos de uma pequena classe média. Sobre a trajetS- fia desses trabslhadores, o autor nos diz que: "A uma cena idade, geralmehte ar 95 estudos e, sein sitaram que uma carrera ; 2 posigio almejada: uma classe med ada € que gunhasse bem para os pauibed de Inca” (p etria parece tet sido vida por Antonio € Weir. 0 esi kerio fot pesido como um degrau, onde s Beas un po, até a acumblagdo de recutsos para © estudo superior. r Ip 256 vera de re eras hos XK 4 20 fa numa regiio de Belo Horizonte néo muito ‘um profissional competente. Aqui em Belo Vale no tinha uni- versidade” (Menons, p. 40). ‘mento possibilitou a transmissio de uma moral da perseveran- 62.” A esse respeito, Lahire pondera que: de existencia especificas. (Lanne, 1997, p. 24) Pelo lado mateo, também h4 forte mobilizac3o pela esco- larizagao dos filhos exercida pela figura da mie, D. Irene, tal- vez por sua mais alta escolaridade.” Assim como a mae de Anténio, a de Verbnica nfo acompanhava diariamente as ativi dades escolares. No entanto, ela escolhia os melhores estabe- lecimentos de ensino piblico para os filhos (mesmo que isso nou os estudos (ead de 1950), apenas nie 10 ¢ 19 anos chegava ao mesmo nivel oe vestidos de quadtilha que, segundo Ver6nic’y inhos". © capricho com esse material evi- 10 e uma valorizagdo com @ questao .do para uma boa escolaridade. ca) e costurava ficavam muito "bem feiti denciava uma preocupaca fescolar que acabava preparant ‘Alémn disso, sempre que as criangas apresentavam alguma aividade diferente para ser feta, geralmente relacionada as ar- tes, 2 mae ajudava com muito interesse. Mesmo nas atividades ‘extra-escolares, sempre foi grande seu incentivo pelas artes. (Queria que as filhas fizessem curses voltados para a'misica, a pintura, etc, mesmo em momentos em que os recursos finan- ceiros no eram grandes. No seu percurso escolar, além da mobilizagao da mae, Vero- nica contou com 2 influéncia de outros membros da familia, ‘como as irmas, um tio e alguns primos, no seu processo de escolarizagio. Por ser a sexta filha, ela pode vivenciar as dis- cussbes sobre a trajetbria educacional das irmas (onde estudar, que curso fazer, etc.) e aprender com elas. Diante da impossibi- lidade de o pai ajudar financeiramente, pagar um cursinho pre- parat6rio para os filhos que tentavam vestibular, era a ajuda dos irmaos que prevalecia® ‘Um dos tios por parte de mie ~ sto dois tios — teve impor- tancia significativa nos estudos de Verénica. Ele nao chegou a fazer curso superior. Trabalhava em escritério, era chefe de uma segio administrativa. Por nao se déncia de Verénica para fazer as cla prestou concurso para a escola técnica, foi ele quem pagou * Dos sete flbos, quatco izeram curso superior. Duas Ingressaram no ensino superior logo que sairam do ensino médlo, concluindo os cursos de Adminis- Verénica ingressou no ensino superior depois de dez anos que havia concluido © curso técnico. Qua inna sua ingressou apés rts Anos, jf que nto foi aprovada ros dots primelros vestbulares que fez. ©. 259 sta. = Patria Coppuceo Resende 258 Mina da edrr sree 0% 43 ‘a vramuise amir da ora od © curso preparatério, Foi ele também quem a influenciou pela escolha do curso técnico em eletrOnica, jf que tinha feito alguns ccursos nessa dea e julgava ser um bom campo de trabalho. Por parte de pai, eram 12 irmlos. Verénica nio sabe por que razio o mais velho foi morar com outras pessoas € aca- bou tendo a oportunidade de se formar em um curso superior, Além disso, todos os seus primos (filhos desse tio), assim que conclufam a educagao basica, ingressavam na uni dade, em cursos prestigiados, como os de Engenharia e reito, Somando-se ao exemplo do prépri ‘Verdnica também ouvia seu pai se referir to almente da escola, de que tinha ap ra a escrita. Exemplos dessas demonstragbes S30 8 Prt wee reeebidos em concursos de redagao, os elogios da i io € de seus primos irmao com mt sulho, 0 que possivelmente deixava nela o desejo de uum dia proporcionar ao pai o mesmo orgulho que ele sentia pelo irmdo. L.J a consciéncia, qualquer que seja sua forma ‘especifica, nao € tiata 2 ninguém. No maximo, o potencial para formar uma cons- Gnca € um dete humane natura. Tal poten ¢ atvado € ‘toma forma numa estrutura especifica através da vida de uma ‘esoa com oultos. A conseiénca individual € espectica & socie- dade. (p. 66) As formas escolares da cultura escrita No caso de Luisa, o bom desempenho na leitura e na eserita ¢ © gosto por essas priticas foram sendo construidos ainda na in- ancia, em pante por causa da familia, como j& anterior, € em parte por causa da escola. f principalmente por intermédio da escola que ela diz que a escrita “entrou em sua vida". Hoje, seu desejo € ser escritora,‘e a maiotia de suas produ ‘Goes escritas estd vinculada a escola; sejam elas atividades todos os alunos fazer, sejam concursos promovidos e divulet dos pela escola Saber desse desejo ¢ fundamental para entender melhor investimentos que ela faz para concreti2é-lo. Conforme diz Nor bert Elias (1995), ‘Além disso, desde 0 inicio de sua escolarizagao, sio constan- 08 epis6dios de leitura e escrta’ na escola lembrados de for- Positiva. Luisa gostava de ditado, apresentava sucesso na € na escrita na sala de aula. Ela diz recordar apenas de 15 no perfodo de sua alfabetizacio. Sobre o inicio de sua dlatizacdo, 0 Unico livro que ela lembra ter lido para a escola © da colesio “Bebé Maluquinho”, de Ziraldo. Nao gostou ito, pois nao se identificou com o livro. “(..] falava de bebé... inha nada a ver comigo” (Entrevista 4). Nesse perfodo, era Joritariamente a familia que possibilitava o acesso & literatura. A escola também teve papel importante na insergio de Ana mundo da escrita e no gosto pelas praticas de leitura e escri- Para se compreender alguém € preciso conhecer os anseios pri- Desdercedo ela estudou em escolas onde a escrita e a leitura mordais que este desea saistaven, A vide far sonia ne S30 ‘Cram muko exigidas. Nesse caso € interessante notar a ago da para as pessoas, dependendo da medida em que elas conse- sguem re ais aspiragoes [1 08 anseios nto estdo definidos esd os primeos anos de vida, os desejos vio evoluindo, ai ‘és do convivio com outras pessoas, ¢ vio sendo definidos, 8 dualmente, longo dos anos, na forma determinada pelo cu? da vida... (p. 13) 2 © na escolha dos estabelecimentos de ensino onde as filhas 2 & Zi 5 é = 260 tere eta enrit: eion XIK# XX dizendo que: “A escola nao estava atendendo as expectativas da familia, estava dando pouco ‘para-casa” (Entrevista 4). 05 relatos de episédios de leitura e escrita 20 escolar ou para ela. *Surpresinha literd- ria" € um desses epis6dios que é lembrado por Ana com gos- Ela apreciava as apresentagdes que havia sobre os livros literdrios. Entre outras atividades interessantes proporciona- das pelo colégio, ela destaca um concurso de parédia em que foi vencedora. £ com muito orgulho que diz: Gal af nesse ano também teve varias coisas que a gente concor . af eu também ganhei..e foi pro inho do colégio... af foi assim muito legal... Cntrevista 3) Embora as entrevistas no tenham evidenciado uma grande importincia da escola na apropriagto do gosto pela leitura escrita nas duas primeiras geragdes, so varios os casos de su- cesso escolar entre os membros da familia Na primeira gerag2o, ambos os avs nto deixaram, embora a escolorizagio reduzida, de alcangar sucesso na escola. No lado materno, Sr. Geraldo gostava de estudar e completou a quarta-série “com honra ao mérito”, o que parece ser motivo de muito orgulho para ele e para a familia: “... deve ter com minha mie ainda uma... louga... parabéns... honra ao mérito” (Entre- vista 2). No entanto, as dificuldades econémicas da familia 0 fizeram sair de casa 20s dez anos para trabalhar com seu irm&o ‘em uma farmécia no Rio de Janeiro. Segundo sua filha, era com muito sofrimento que ele falava de sua saida de casa. No lado paterno, o Sr. Ant6nio enfrentou dificuldades para ~ permanecer na escola, visto que tinha que andar nove quilé- ‘metros para chegar & escola mais préxima de sua casa, que se » Jala também teve acesso a essa atividade escolar, embora no a tenha ‘enfatizado durante 2 entevista. Ateainat amir ds tara da aera Patri Cappucele Rasende 261, x localizava na zona rural, Entretanto, em suas memérias, relata la. Recebia boas notas € gostava da professora, “Tirei o diploma da quarta-série com média 8° (Memonias, p. 10). ‘Todos os membros da segunda geragio ultrapassaram a es- colaridade dos pais e a maioria chegou a universidade ou a pés-graduagio, Também so comuns entre os membros dessa parte da familia aprovacdes em concursos de instituipdes de ensino prestigiadas, como 0 Centro de Educagao Tecnolégica de Minas Gerais e a Universidade Federal de Minas Gerais. A trajet6ria escola de Verénica se iniciou aos seis anos de idade. Segundo conta em seu memorial, Era uma menina muito assustada, tinha medo de ser chamada 4 atencio, de me perder dentro da escola, de fazer as atividades rradas, da minha irma esquecer de me buscar. (Mewonia, p. 3) No entanto, 0 ingresso de forma mais tensa na escola nao Pareceu prejudicar seu desenvolvimento, pois concluitt o pré- Primério sendo considerada a melhor aluna da classe, A primeira série foi vivida de forma wagica por Veronica. Seu grande medo era quando a professora cobrava leitura oral de improviso. Ela diz se lembrar de que nunca conseguia ler dlireito, gaguejava ¢ wemia. Até que um dia levou escondide Para @ casa © livro ¢ treinou a leitura, Seus problemas com Professora foram resolvidos. © incidente com a ia merece ser destacado, pois a levante na superagao da sua difi- apresentou problemas com a lei tur, sua mde, apés ser chamada & escola, manifestou um sentimento de confianga na filha. Em vez de uma incessante cobranga, ela soube ouvi-la e acreditou em sua capacidade. A esse respeito, Lahire (1997) menciona que: A heranga familar ¢, pois, também uma questto de sentimentos (Ge seguranca ou de insegurangs, de divida de st ou de confian. S@ em Si, de indignidade ou de orgulho, de modéstia ov de ar- 262 radia da cura snr sheen XIX 0 30 rogincia, de privaglo ou de dominio..., € a influéncia, na esco- latidade das criangas, da “transmissio de sentimentos” € impor- tante, uma vez que sabemos que as relagdes sociais,pelas méltiplas Injungdes preditivas que engendram, sto produtoras de efeitos de crengas individuais bem reais. (p. 172) nica estudou no Colégio Estadual Central, também uma instinuigio de prestigio na época e, pos- terlormente, como jé foi aprovada no concurso para 0 Centro de Educagio Tecnologica de Minas Gerais. No momen: to da pesquisa ela cursava Pedagogia na Universidade Federal de Minas Gerais. Ant6nio, por sua vez, foi quem alcangou maior longevidade escolar, No momento da pesquisa, ele havia concluido o curso de Mestrado em Educag%o na Universidade Federal de Mina: No ensino médio, Gerais, Nao apresentou nenhuma reprovagio ao longo do seu percurso escolar. Estudou até a sexta-série em escolas publi estaduais. Em virtude da ascensio de seu pai na empresa side- rirgica na qual trabalhava, cursou as sétima e oitavas séries em uma escola particular de Contagem, mesma instituigao ond trabalha como professor de Matemética e onde dam. Assim como sua esposa, concluit 0 curso técnico em Ele: ‘sOnica. Ap6s dez anos de trabalho como técnico, ingressou em uma faculdade privada, no curso de Matematica. Freqiiéncia @ biblioteca ‘A importincia da biblioteca esté especialmente presente na terceira geragao. Procuro saber a procedéncia dos livros lid pelas criangas e Luisa me diz que saramente ganha livros de presente, Recorda-se apenas de dois episédios. Uma tia a pre senteou com um volume da série Harry Potter" e um tio com ‘uma colecdo de contos. Segundo Lufsa, 0s familiares nao tem 3 Harry Potter € 0 tulo de uma colegio de livros literiros escrita por Joanne Kathleen Rowling © destinada a ciiangas e adolescentes. Aualmente, 4 entre of livros mals vendidos para essa faixa etiria. ‘Atrasmls farsar da tra «¢ nrean.~ Patria CappucioReenée 263 s. £ na biblioteca escolar que as dos livros que lem. ios selecionados pela escola, Luisa escolhe um por conta propria. ivro rodando...sabe...e assim quan- do nao tem nenhum livro pra ler eu pego dicionario e comego a Jer [risos) ..que eu gosto de ler diciondrio"™ (Entrevista ©. Também pergunto como € que Lulsa faz suas escolhas na biblioteca. Ela diz que procura escolher os melhores autores, " “recorre aos autores mais comentados. Entio questiono: Comen- tados por quem? E ela diz: habito de presentear cor ctiangas tém acesso & m: ‘Ah comentados...comentados pela midi ‘cuto mais falar né...af eu acho que/ é que € professora..e t& sempre falando. bem na escola. Entrevista 4) Je comentados tam- | Embora Lufsa no tenha clareza sobre a origem dos seus Conhecimentos a respeito de quem so os melhores autores, ercebe-se que ela ja esta construindo uma disposi¢io para a legitimidade cultural,® no caso, a literdria ‘Também no caso de Ana, 0 uso constante da biblioteca es- ‘olar € algo marcante, Ela me diz. que utiliza a biblioteca diaria- ‘mente, no tumo diferente das aulas, e nenhum colega de classe Loe A respeito do hibito de ler diciondsio, ela di 10, liz que gosta das 8. “Ld pene eect rate tn et ee 2 em alguna pala sion ev pepo © ler (sisos)" (Entrevista 4). og a Wears leptin oe iis pels pues dominanes No sna tae ox ment _ Pos domiadon cone os membros 06s Bg dan Cater abiirio inponto dessa etre aneey eae ‘oie como justo em si mesmo ¢ no como uma const ma malr discs sobre legimidade sate ar OT 1 264 iva cu etrn aera sor XK 0. faz o mesmo. De acordo com ela, a maioria dos alunos que fre aqoenta a biblioteca slo alunos do ensino médio. © objetivo de. cin freqlncia esté relacionado com uma leitura ¢ escrita para pesquisas e tarefas escolares, evando em conta que em casa muir fas vezes 0 ambiente nao € dos mais propicios a0 estudo, devido a presenca dos dois irmtos mais novos. S40 raros os momentos fem que ela procura a biblioteca para uma leitura desinteressada, Sobre os gostos de classe, Bourdieu (1983a) aponta que: a cada nivel de distibuigto, © que € raro € consttui um luxo la absurda para os ocupantes do nivel anterior ov inferio felegado & ordem do necessirio, do evidente, pelo aparecimento ‘de novos consumos, mais aos €, portanto, mais dstntvos. (p. 65) ‘Dessa forma, a leitura literdria pode se cor uma prati- ca cultural necesséria ou no, dependendo do nivel de capital cultural possuido, No caso pesquisado, as praticas de I estio, ‘veres, associadas & escola, 0 que, se por um lado nao € caracteristica de uma familia detentora de certo ca- pital cultural, por outro parece ser caracterstica de uma familia com uma acumulagio recente de capital cultural. ‘Conclusdo ‘Alguns tragos na configuragao familiar no caso pesquisado demonstram caracteristitas interessantes que permite compre ‘ender 0 modo como essa familia consegue “transmitir” 0 gosto pela leitura e escrita e também 0 sucesso na escolarizagao. primeiro trago € uma forte mobilizaglo para a escolariza~ ‘glo das criancas, que esti presente desde a primeira geragao. Esse investimento familiar estd, em todas as geragdes, mais re- lacionado com a figura da mie, Sao as maes que mais se preo- cupam com a escolha dos estabelecimentos de ensino, com as taiefas escolares, com 0 comparecimento em reunides na escola, ‘Em segundo lugar, em todas as geragées nota-se uma ordem moral doméstica baseada no bom comportamento e no respeito “pvr iar cra ee Pata CappicloRaende | excolares. Esse trago se fortalece da primeira para a a ria das vezes, € segunda geracio. Na primeira gera¢ao, na malo semae quem procura cobrar um comportamento dos filhos con- Sinente com as expectativas da escola. J4 na segunda geracho, fanto a mde quanto o pai procuram transmitir aos filhos nogbes de autonomia ¢ de respeito aos professores (eles préprios, além disso, sto professores). Em terceiro lugar, nto hé como desconsiderar as disposi- ‘goes econdmicas. Esse trago pode ser visto de dois angulos diferentes: © primeiro € a escolarizagao como estratégia para tum futuro melhor, perspectiva presente principalmente na pri- meira geragio. O segundo sto as possibilidades de estudo que ‘2 ascensio familiar da primeira geracdo permitiu a segunda, € por sua vez, esta vem permitindo & terceira geragio. No entanto, vale ressaltar que nenhum desses aspectos indi- «2 causas tinicas para o sucesso das criangas nas duas geragdes ‘ais escolarizadas e para o gosto pela leitura no caso da terceira geraclo. “O caso 86 pode ser entendido nas relagdes de interde- pendéncia dentro do contexto familiar” (Larne, 1997, p. 40). Dessa forma, sobre as relates entre os membros da conste- lagio familiar, percebe-se, a0 longo das geragdes, uma disponi- bilidade de tempo e oportunidades de socializagao da mae com 6s filhos. Além disso, 0 apoio moral, afetivo e simb6lico também esté presente na familia, Foram diversos os relatos de momentos de suport em relic 28 atvidades esolares, sejaajudando em Igo que a escola requereu, transmitindo confian- que estava com dificuldades, seja demonstran corgulho com a aprovacao do filho em um concurso. Ou a heranga familiar ¢, i : pois, também uma questdo de sentimen- ——— @ relaglo entre as filhas mais vel cnge de Saree Porn Cabe ressaltar a relago afetuosa que a escrita assume, prin- cipalmente nas segunda e terceira geragées, tanto nos mo- mentos de leitura, como o de histérias antes de dormir, quanto nos momentos de escrita, por meio das poesias e cartas escri- tas e trocadas entre os membros da familia para expressar os sentimentos. HA também, em cada uma das geragdes, uma distingto das finalidades da leitura. Para os membros da primeira geraglo ‘lo hd uma separagao muito clara entre as priticas de leitura mais desinteressadas € as priticas de leitura escolares, a0 pas- 's0 que os membros da segunda geracdo apresentam priticas de leitura escrita com uma nitida diferenciagao entre aquelas relacionadas & trajet6ria escolar e profissional, € aquelas rela clonadas 2 religito e a0 deleite. Jé para a terceira geracdo, 0 “gosto” pela leitura é algo que tem forte vinculo com a escola, ‘mas também com a familia. Finalmente, € importante explicitar que o estudo tratou de ‘apenas um caso e que nfo se trata necessariamente de um caso representativo de todas as familias em movimento de ascensio no interior das classes médias. Mas nao se pode deixar de con~ siderar que, mesmo um caso, trta-se de um "caso particular do provavel" € que, por isso, reproduz elementos presentes em familias que ocupam a mesma posiglo social. © modo pelo qual esses elementos se articulam e se determinam constitui suas naturezas proprias, que € incapaz de representar 0 con- junto de familias que vive condigbes de existéncia semelhan- tes. Dessa forma, apesar de a pesquisa nto permitir uma _generalizaglo estatistca, ela contribui para a compreensto do ‘complexo fenémeno de insergo na cultura escrita, assim como 68 outros capitulos deste livro. Fontes Memértas. 2004, Belo Vale, 48 p. ‘Memorial. Belo Horizonte: Faculdade de Educagio, Universidade Fede ral de Minas Gerais, 2004. 18 p. ‘Acre friar dora 4d tre. = Patric Cupp Rasande 267 Referéncias re. Gostos de classe € estilos de vida. In: ORTIZ, R. 10 Paulo: Atica, 19838. DE SINGLY, Prangois, Savoir hérter: la transmission du godt de la lecture FRAISSE, Emmanvel (Org). 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