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Colegio PHILOSOPHICA ‘coordenads por RACHEL GAZOLLA + Acéncia eo mundo mademo ‘Alfred North Whitehead + Introd a Flesfa Ange: Premises ligase otras “fersamentes de taba” vio Rosset + Busca do covhecinonte: Enis de fils no sa Medion Rosalie Helena de Soura Perea (rg.) + Ceamalois: Cinco enon sobre Flesfa da Natureza Rachel Gazolla (org) + As ambigidedes do praner ensaigsobre o razr na filsoi de Plato Francisco Bravo + Soft Giovanni Casertano + Pato e Arsttles a doutina do Nows de Plotioo “Thomas Alesander Solezdi + Aart 0 pansamento de Herd: Una diodes fagmentos com tradugdoecomentrio ‘Charles Kahn + Epinoae Vermeer, Imaninciana espa ena pintra ‘sara Home + A sabedoria Grogs ol1- Dinko, Apolo, les, Orfeo, Museo, perbore Exiga Giorgio Col +0 pensementa de Gaderer Jean Geondin (0-8) + Etat esiyificado da Metafia de Aristtles Enrico Bert + Abra dos Sofstas- ua interpreta filossfie ‘Mario Uneerstelner Enrico Bernt ESTRUTURA E SIGNIFICADO DA METAFISICA DE ARISTOTELES \ ' 10 aulas Prémio Internacional de Filosofia Antonio Jannone — 2005 Pontificia Universidade da Santa Cruz Organizado por anazio Yarza Paulus “Ticulo orginal: Stuttusesigicato della Metajsica di Aristotle © Eduse sl 2008-2" edigao (SBN 976-88-8333-192-3, “Tradlusio: José Boron Diresio edicoria:Zolfrine Ton Coordenacio editorial: Clediano Aveo des Santos Assistente editorial: Jaqueine Mendes Fontes Revisdo: Caio Peri: Teal Baers Lopes Diagramagio: Dirlne Franz Nobre da Sibo ‘Capa: Marelo Campanka lnmpresséo e acabamerto: PAULUS Dados internacionais de Catslogagao ma Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livo, SP, Brasil) Beri, Enrico Estrutua e significado da Mecafsca de Arinételes / Enrico Bert: organizado por Ignazio Varza;(traduelo José Bortolni]. — So Paulo: Paulus, 2012. — (Colegio Philosophica / coardenada por Rachel Gazolla) “Tuo original: Srutturae signficato della metafisica di Aristotle ISBN 978-85-349-3404-6 1. Arstceles- Metaftica I Yarza ignaio, I Gazolla, Rachel I. Tuo. IV Série. 1207206 cops, Indices para cadlogo sistemtico: 1 Metafisica: Filosofia aristotélica 185 1 edigio, 2012 (© PAULUS - 2012 ‘Rus Francisco Cruz, 229 -04117-091 - So Paulo (Brasil) Fax (11) 5579-3627 Tel. (11) 5087-3700 wort paulus.com-br- editoral@paulus.com.br ISBN 978-85-349-3404-6 9 7 53 87 19 151 191 193 SUMARIO Apresentagio ESTRUTURA E SIGNIFICADO DA METAFISICA DE ARISTOTELES Inerodugao Uvnos A, a, 8-1, It Lvros P, 4,E-IV,V, Vl Luvnos 2, 11, © - Vil, Vil, Luvnos I,K, A ~X, Xi XIE (caps. 1-5) Luvaos A, M,N -XIl (aps. 6-10), Xl, Edigdes da Metafticae obras de autores modernos ctadas Enrico Ber -Princpais publicagbes Ist APRESENTAGAO, ‘A tarefa destas paginas, além de fornecer algumas, noticias acerca da génese ¢ do contetido deste breve vo- } lume, é basicamente uma s6 e precisa ser logo mostrada: + garantir ao leitor que tem em mos um daqueles livros que toda pessoa que deparou com a Metafisica de Arist6- teles teria desejado ler; quem ainda nfo se aproximou da Metafisica, fato improvivel para todo aquele que tem de lidar com a filosofia, tirard da sua leitura enorme proveito. Esta foi exatamente a razio, a utilidade destas aulas — va- lorizada pelo parecer unanime dos seus ouvintes -, que nos impeliu a preparar a publicagio, De fato, 0 texto que estou apresentando é a transcricfo escrita de dez aulas dadas em Roma pelo professor Enrico Berti sobre este ‘tema: Estrutura e significado da Metafisica de Aristételes, entre os dias 27 de fevereiro ¢ 3 de marco de 2006. O motivo das aulas foi a entrega ao professor Enrico Berti por parte da Faculdade de Filosofia da Pontificia Univer- sidade da Santa Cruz do Prémio Internacional de Filo- sofia Antonio Jannone,.no passado 25 de novembro de 2005, meméria de santa Catarina de Alexandria, patrona da Universidade de Pédua.e da Faculdade de Filosofia da Ww | Enaico Beer | Pontificia Universidade da Santa Cruz. Na ocasiao, Berti proferiu uma palestra intitulada O que subsiste hoje da Metafisica de Aristételes,! como prelitdio do supracitado curso de dez. sessdes que aconteceria alguns meses depois, na mesma universidade, Antes de voltar ao livro que estou apresentando, gostaria de dedicar alguma palavra e alguma lembranga a0 Prémio Internacional de Filosofia Antonio Jannone. A primeira vez que ouvi falar de sua existéincia remonta ao més de junho de 1996, data em que aconteceu em Roma, no Palazzo Firenze, uma convengio internacional sobre A sociedade civil e a sociedade politica no pensamento de Aris- t6teles promovida pelo Centro Internacional de Filosofia ‘Antiga ‘Antonio Jannone”. Foi naquele encontro que co- nheci dom Jannone (Lauro, 1906 - Roma, 2007), criador ¢ patrocinador do prémio, além de estudioso aristotél co, professor emérito da Sorbonne e conhecido princi- palmente por sua edigdo critica do De anima publicada por Les Belles Lettres. Na ocasido, nao se podia imaginar que menos de dez anos depois dom Jannone ter-se-ia di- rigido & Pontificia Universidade da Santa Cruz a fim de confiar 4 sua Faculdade de Filosofia, mediante um comité cientifico, a diregio do prémio que ele criou. Até aquele momento, ahonra 20 mérito, criada como reconhecimen- to pelos méritos académicos no ambito do pensamento clissico, havia sido conferida a trés insignes professores: Renato Laurenti, Jacques Brunschvig ¢ Klaus Ochler. Su- cessivamente, receberam o prémio, consignado a cada trés anos, o professor Giovanni Reale (2002) e, como disse- mos, o professor Enrico Berti. CF, “Acta Philosophica” Il, 15 (2006), p. 273-286. is | Anresentacto | ‘Tendo informado a ocasiao em que essas aulas foram proferidas, desejo acrescentar alguma considerago que possa ajudar na melhor apreciacio do texto e na sinali- zagio dos critérios que adotei para preparar a publicagio. Em primeito lugar, € ébvio que dez. aulas sao insu- ficientes para expor 0 contetido de um dos livros mais importantes e mais dificeis de toda a historia do pensa- mento filoséfico. Além disso, o puiblico ao qual as aulas se destinavam nao era composto exclusivemente de peritos. Em certo sentido, foi uma agradavel surpresa tanto para o relator quanto para os organizadores ver um puiblico sempre numeroso ¢ sempre atento, apesar de, ao mesmo, tempo, ser um ptiblico muito diversificado, composto de} docentes ¢ estudantes de varias Faculdades e de varias! instituigdes universitérias. Consciente disso, 0 professor Berti sublinhou desde o comeco sua intengao de tornar suas aulas compreensiveis para todos, bem como a ne- cessidade de deter-se exclusivamente nos problemas cen- trais da obra aristotélica — mais especificamente em sua natureza e em sua estrutura —, deixando de lado muitas questdes ou simplesmente fazendo aceno a elas. Embora essas circunstancias delimitem, sem divi- da, 0 alcance do texto que estou apresentando, considero que constituam notével mérito, porque, em certo sentido, obrigaram Berti a dar o melhor de si, a,tornar disponivel de forma simples e sintética 0 saber adquirido apés longos anos de pesquisas € de reflexiio, de discussées e de con- fronto com outros estudiosos e intérpretes aristotélicos. Em minha opiniio, mais do que nas discussdes técnicas, na exposicdo da solugio de problemas circunscritos e limita- dos que intesessam sobretudo aos académicos, um mestre demonstra sua maestria sobretudo nas exposicGes sintéti- fel | Exuco Beam | cas, nas visbes de conjunto, obtidas apés previo e paciente trabalho de exame dos textos, de diélogo e de confronto com outros estudiosos e, sabretudo, no nosso caso, com o proprio Aristételes. Tomas de Aquino, héspede frequente estas paginas, na 11* questo do De veritate, explica que o verdadeiro mestre é aquele que possui “explicite et perfecto” 6 saber que transmite? Nao se alcanga meta elevada de onde poder dominar amplo horizonte sem,antes percorrer ongo caminho, superar passagens dificeis, tomar decisdes, discutir com aqueles que anteriormente se encaminharam rumo A mesma meta, bem como com os préprios compa- nheiros de viagem... Sem sombra de davida, a compreen- sao de Metafisica do professor Berti é aquela de quem a es- tas alturas atingiu 0 vértice e pode fazer uma apresentacao de conjunto, assinalando a quem deseja seguir seus passos ‘0s pontos mais controvertidos, as solucdes mais originais, 05 caminhos alternativos que outros seguiram. E isso que oferece o presente volume, uma visio panorémica cons- truida sobre profundo conhecimento da Metafisica, da sua historia, das suas interpretagdes e dos seus problemas. Em suas aulas, ha uma passage na qual Berti manifesta certa impaciéncia dignte da atitude daqueles filésofos contem- porineos que preferem a pesquisa como fim em si mesma, ‘em vex. de querer alcancar a verdade; ele afirma que esta nao tem sido uma postura aristotélica, e nés acrescenta- mos que também nio é a posigio do professor Berti. Nao pretende que a sua seja a tnica reconstrucso possivel da Metafisica aristotélica; pela contrario, 0 autor ndo esconde as dificuldades ¢ os pontos ainda obscuros; todavia, esté convencido de que suas pesquisas atingiram alguns pontos 2CF, Deveritate, q. 11 a 2.0. 110} y &f é [ AnnesentasAo | fiemes, algumas verdades, que ele propoe de modo autori- zado ¢ com clareza singular. \Na Erica a Nicémaco, ‘Aristételes aponta a necessida- de de iniciar a exposicdo de um tema, realizando antes um_ esboco, apresentando as linhas gerais que, num segundo momento, deverdo ser completadas com os detalhes.} Po- demos afirmar que foi isso que Berti fez nestas dez aulas desenhar 0 esbo¢0, 0 esquema, as Tinhas mestras da Meta- fisica aristotélica, delegando a nés ouvintes — leitores - a ‘tarefa de continuar o trabalho, de levar a termo com a te- flexaio pessoal a compreensio aprofundada da obra-prima aristotélica, Por esse motivo, este breve ensaio pode ser, entendido como um encaminhamento, uma introducao 8) leitura da obra, a ser em seguida completada mediante 0! estudo pessoal e 0 conhecimento apurado das maltiplas quiestdes simplesmente acenadas. Para quem, pelo contré- rio, é foi introduzido na Metafisica, o texto pode ser lido como proposta interpretativa sob certos aspectos nova, capaz de esclarecer e dar a justasistematizacio € aleance as doutrinas parciais, aos ensinamentos particulares até agora adquiridos, ou para por em discussfo ou confirmar ‘a visio de conjunto que havia formado da obra. Diferentemente de outros intérpretes, Berti conside- ra que a metafisica aristotélica é uma ciéncia, no fim das contas, unitaria, embora a unidade da obra que a con~ tém exija a reconstrucio de sua historia ¢ a explicagio de alguns problemas evidentes. Na realidade, esta seria em sintese a conclusio partilhada com outros estudiosos: 05 catorze livros que conhecemos seriam 0 conjunto da edi- «ao original da Metafsica, composta por dez livros, mais 3 CF, ENI 1098 a 20-22. im} | Enmico Bex | outros quatro — blocos peregrinos - de origem diferente: © livro Alfa menor; o livro Lambda ou Sobre a substincia, tratado independente, provavelmente precedido por Alfa menor como introducao ¢ primeiro esbogo daquilo que a seguir se tornarda filosofia primeira; o livro Delta, também ele um tratado independente sobre o significado de diver- sos termos; ¢ 0 livro Capa, que, como outros estudiosos, Berti considera no auténticoJA unidade tedrica da filo- sofia primeira é, pelo contrario, fundada sobre a pesquisa das primeiras causas do ente enquanto ente; pesquisa pre- cedida pela doutrina das causas desenvolvida na Fisica de algum modo sustentada pela especulacao dos filésofos precedentes\A metafisica aristotélica ndo seria simples- mente nem uma ontologia nem uma teologia - sequer uma ontoteologia -, mas, propriamente, uma protologia, ciéncia das primeiras causas ¢ dos primeiros principios Besa caracterizacio da metafisica, fundada nos textos, é plenamente coerente com a interpretagdo que Berti faz das mais importantes doutrinas aristotélicas. Em minha opinio, esse seria o aspecto mais original da posigi0 do autor, proposta, aprofundada e defendida, entre outros, ha varios anos, mediante numerosos artigos e ensaios. A busca das causas ¢ dos principios do ente enquanto ente nao desigua somente numa ontologia, pois, para Aristé- teles, ente é em primeiro lugar a substancia, mas sequer somente numa teologia, porque o motor primeiro nao é a danica causa primeira. Nao que Aristoteles desconhecesse a distingio entre ente e ser, mas nio lhe concede o relevo assumido na sucessiva metafisica escoldstica nem o relevo pretendido pela interpretacao heideggeriana. Para Arist6- teles, o ente em sentido forte é justamente a substancia, até o ponto de compreender que sua Metafisica, além de 12] | | i | Avaeserracio | protologia, é também ousiologia, e segundo Berti, em Aris- tételes nao ha espaco para reconduzir a substancia, como 2 sua tinica causa, a um primeiro ente, a uma primeira substancia cuja esséncia seja 0 esse ipsum. Penso que um dos méritos da leitura que Berti faz da ‘Metafisica seja justamente procurar tirar da obra aristoté- lica aqueles revestimentos com os quais as sucessivas in- terpretacées — dos medioplaténicos aos modernos ~ pau- latinamente a sobrecarregaram. Obviamente, no sendo possivel nestas poucas aulas apresentar todos os temas a favor das suas teses, Berti limita-se a assinalar sua posi¢ao, declarando de modo claro quando se trata da posicdo mi noritaria e as razGes de fundo que a sustentam. Juntamente associados a interpretagio daquelas que seriam as linhas mestras da Metafisica, nas aulas de Ber-’ ti comparecem muitos outros acenos e pistas para temas fundamentais, nos quais frequentemente ele se afasta da- quele que muitos consideram a versao canénica da filo- sofia aristotélica, Consciente de estar sob certos aspectos apresentando um Aristételes na contramio, Berti insiste na plausibilidade da sua posicao justamente em relago as questdes mais controversas, naqueles pontos em que consi- dera que a tradi¢ao tenha condicionado de modo mais for te a Icitura do pensamento aristotélico original, como, por ‘exemple, seria o caso da causalidade do motor primeiro, mais especificamente sua condigao de causa final univer- sal, ou da precedentemente acenada interpretacao de uma substancia cuja esséncia seja o ser per si ou o um per si. Aléin disso, toda essa opcragio de restauragio do pensamento aristotélico original nos aproxima de um conhecimento melhor daquelas correntes filoséficas que no decurso da histéria se dirigiram a ele como principal 1131 | Ewruco Bes | ‘ou pelo menos um dos mais importantes mestres. Assim, por exemple, fica mais clara a contribuigio da mediagio platénica na transmissio e configuragio do aristotelismo medieval, bem como o papel decisivo da fé monoteista e criacionista na interpretagéo arabe e cristé da metafisica aristotélica e, de forma indirefa, na génese do neoplatonis- mo, Naturalmente, so temas e questées que mereceriam maior atenco, porém considero que a esse respeito estas piginas fornecam indicagées de grande utilidade, que po- dem servir ndo apenas para aprofundamento posterior do texto aristotélico, mas também para reconstrugio mais cuidadosa e rigorosa de algumas paginas importantes da historia do pensamento. Preparando este volume para publicagao, considerei conveniente apresentar 0 texto assim como foi pronun- ciado, Lendo-o, constata-se obviamente que se trata de texto transcrito, de estilo coloquial, de textos nao redi- gidos e de aulas as vezes interrompidas pelas perguntas dos ouvintes. Como o proprio Berti explica, a divisio do texto obedece & composicao da Metafisica em-catorze li- vros e as dez horas de aula a disposigio. Por essa razio, cada dia de aula é dedicado a trés diferentes livros da Me- tafisica. Evidentemente, nio se atribui a mesma atengao a todos os livros, Berti sublinha a centralidade do livro Dzeta, dedicado a substancia, e do livro Teta, sobre 0 ato e a poténcia, e considera ser especialmente importante dedicar especial atengio ao livro Lambda, a fim de escla- recer aqueles que considera serem os mais graves mal- -entendidos do texto aristotélico. Para evitar que 0 texto perdesse sua fluidez, renun- ciei As notas de rodapé, introduzindo somente entre pa- rénteses o numero de pagina e de linha das palavras de [14] i t | Apwesenracho | Aristételes citadas ou onde se encontram os conceitos, os termos, as ideias aos quais 0 texto se refere, acrescentando no fim uma pagina com os dados completos das moder nas edigdes da Metafisica citadas, bem como das obras dos intérpretes aos quais Berti remete em suas aulas. As refe- réncias entre parénteses ao texto aristotélico nem sempre so uniformes; as vezes, indicam as linhas exatas de uma citago literal, ao passo que em outras ocasides remetem a0 texto em que Aristételes expde a doutrina a qual se faz alusio. Em alguns casos, as aulas seguem mais de perto 0 texto aristotélico, em outros, a complexidade e exten- so das argumentagées aristotélicas obrigam a apresentay uma sintese e a remeter de forma menos exata aos textos, Naturalmente, a intengio de tais anotagdes nfo é poupar’ © leitor da leitura das passagens restantes da Metafisica,’ mas antes, orientar tal leitura, ajudando-o a habituar-se em meio as paginas aristotélicas. Frequentemente, as au- las foram interrompidas por perguntas dos ouvintes, que pediam explicagées ou recordavam interpretacdes alter- nativas, As respostas de Berti foram introduzidas no texto. Penso que o livro deva ser lido assim como as aulas foram ouvidas, isto 6, com uma edigao bilingue da Metafisica a0 alcance das maos. Portanto, nao se pretende oferecer um pequeno resumo de um texto bastante complexo, mas uma leitura que sirva para adquirir confianga ¢ ajude a descobrir e a se aprofundar nas inimeras riquezas que a ica oculta, Nao foi sem ironia que Gomez Davila compés este aforismo: "A metafisica foi sepultada tantas vezes, de tal forma que acontece julgé-ls imortal”4 Creio 41N. Gomez DAA, In margine aun texto implicta, Adelphi, Mildo, 2007, p41 115] { Eivnico Bern | que os cinco dias de aula do professor Berti tenham sido evidente prova nao s6 do interesse por Aristételes, mas também da necessidade e, portanto, da vitalidade de um pensamento autenticamente metafisico. Até aqui, nao falei nada da biografia e da produgéo académica do autor, e de minha parte seria evidente falta de cortesia se se tratasse de um autor menos conhecido. ‘Todavia, penso que sua notoriedade ¢ seu prestigio aca- démico em ambito italiano ¢ internacional me eximem do dever de delongas em muitos aspectos. Titular de Historia da filosofia antiga desde 1964, o professor Berti (Valeggio sul Mincio, 1935) lecionou primeiramente em Periigia ¢ a seguir, desde 1971, na Universidade de Padua, onde, por varios anos, foi diretor do Departamento de Filosofia. Docente também na Universidade de Genebra e de Bruxelas, ex-presidente da Societa filosofica italiana, vencedor do prémio Federico Nietzsche para a filosofia e membro de numerosos organismos cientificos italianos e internacionais, o professor Berti é autor de numerosas pu- licages, das quais fornecemos o elenco quase comple- to nas tiltimas paginas deste volume. Testemunha da sua maestria pedagogica, caso fosse ainda necessario, é 0 texto que apresentamos ¢, talvez ainda mais, a atenta escuta de todos aqueles que seguiram suas aulas, que, invaria- velmente, terminavam com sincero e espontaneo aplauso, por motivos dbvios, nao transcrito nestas paginas. Ignazio Yarza 161 sooner | ESTRUTURA E SIGNIFICADO. DA METAFISICA DE ARISTOTELES \ 4 INTRODUGAO Desejo agradecer a Universidade da Santa Cruz, acim de tudo, uma vez. mais, o prémio que generosamente m4 foi concedido e agradecer também esta oportunidade de. dar um curso sobre um dos temas de que mais gosto, que’ sio objeto dos meus estudos hé muitos anos, Sinto-me fe- liz por estar aqui, vejo que ha um piiblico inclusive muito numeroso, ¢ espero que ninguém saia daqui decepcionado. Meu problema é falar de modo que todos me compreen- dam, pois imagino que existam varios graus, varios niveis de conhecimento; entao, para ser entendido por todos, devo procurar manter-me no nivel mais elementar possivel. Por isso, muitas coisas que eu disser jé serio conhecidas, jé sen- tidas e poderao parecer repetigdes; todavia, espero que seja uma experiéncia instrutiva para todos nés, comecando por mim, essa releitura embora répida que faremos da Metafi- sica de Aristételes. © tema do curso é justamente Estrutu- rae significado da Metafisica de Aristételes, e sinto-me feliz de desenvolvé-lo aqui com vocés, nesta Universidade com a qual ha muitos anos mantenho relagdes de colaboragao ¢, espero poder dizé-lo, também de amizade, motivo pelo qual me sinto verdadeiramente entre amigos. 1191 | Exmuco Been | ‘A Metafisica de Aristételes é talvez 0 livro mais estu- dado, mais debatido e que com certeza exerceu maior fluéncia sobre toda a histéria da filosofia ocidental. Dela se fala hé mais de vinte séculos, pois a primeira citagio da Metafisica se encontra num autor antigo do primeiro seculo depois de Cristo, Nicolau: de Damasco, ¢ se supde que a Metafisica tenha sido publicada pela primeira vez. no primeiro século antes de Cristo, talvez aqui em Roma, pois a primeira edigio das obras de Arist6teles, confor- me um ilustre estudioso desses temas, Paul Moraux, te- ria sido realizada por Andrénico de Rodes, exatamente aqui, no tempo de Cicero, Como lhes disse, sua primeira citacdo se encontra alguns anos depois em Nicolau de Damasco, ¢, daquele momento em diante, a Metafisica comeca a ser comentada, discutida ¢ a exercer influén- cia profunda sobre a filosofia. Hé pouco falei de filosofia ocidental, porém, nao ¢ justo dizer ocidental, pois é pre- ciso ter presente também todo o mundo arabe, a cultura islimica — um dos centros onde a Metafisica é traduzida em érabe Bagdé, no nono século -; por isso, tanto no Ocidente quanto no Oriente ela ocupa posico central na historia do pensamento. Nao obstante isso, porém, como todos sabemos, a Metafisica de Aristételes nao é um livro, melhor dizendo, nao nasceu, nao foi criada por seu autor como um livro,Aristételes nao tinha esse livro, nio tinha nas mos a Metafisica e sequer conhecie a pa- lavra “metafisica”Rssa palavra, que acabou para sempre associada ao seu nome, nao € 0 titulo de um livro, pois, exatamente como eu recordava ha pouco, parece que a obra foi coligida, assim como nés a recebemos mediante a tradi¢éo dos manuscritos, por esse Andrénico, prove- niente de Rodes, que foi o editor de todas as obras, de 1201 | terroousto | todos os tratados que Aristételes havia composto para 0 ensino em sua escola. Outras obras de Aristételes j4 haviam sido publica- das e eram os didlogos, obras escritas em forma de did- logo, imitando Platio. Antes da publicagio de todo o corpus por aco de Andrénico, o mundo antigo conhecia de Aristételes quase somente os diélogos. Quando em seguida foram publicados seus grandes tratados escols- ticos, ou seja, as obras de légica — 0 Organon —, as obras de fisica, a Metafisica, a Etica a Nicémaco, a Politica, a Retérica, a Poética, isto é, todos os grandes tratados, que fizeram a histéria da filosofia ocidental, entdo os didlo; ‘gos, conhecidos anteriormente, atrairam sempre meno§ © interesse dos filésofos, pois nao podiam competir em. importincia, em amplidio e em profundidade com esses grandes tratados. Ha pouco, citei Paul Moraux ~ ele era um estudioso belga que em seguida ensinou em Berlima, um dos maiores estudiosos de Aristételes e do aristotelis- mo ~, portanto, segundo Moraux, talvez, ja cxistisse uma edigdo da Metafisica de Aristoteles antes mesmo que An- drénico de Rodes publicasse todo o corpus aristotélico; porque, numa das listas, num dos catélogos antigos das obras de Aristételes, que remonta a um periodo anterior a Andrénico, isto é, remonta ao terceiro século a.C., 0 catalogo atribuido a Hesiquio, entre gs obras de Aristo- teles menciona-se uma obra intitulada Metafisica. Pro- vavelmente, trata-se da Metafisica, porém em dez livros, ‘ao passo que aquela que nos foi transmitida na tradi¢ao manuscrita, isto 6, aquela que nds lemos hoje, compoe-se de catorze livros. Dois grandes estudiosos de Aristételes, além de Moraux, isto é, 0 alemao Werner Jaeger e o inglés David Ross, consideraram que daquela edicao original da iat | Enrico Been | Metafisica nao fizessem parte quatro livros — mais adian- te, nestas aulas, falaremos disso -, ou seja, 0 livro Alfa menor, que € 0 segundo, 0 livro Delta, que é 0 quinto, 0 livro Capa, que é 0 décimo primeiro, 0 livro Lambda, que € 0 décimo segundo. Portanto, se excluirmos esses quatro livrus, subsistiré uma Metafisioa om dez livros que talvez jé existisse antes da edigdo de AndrOnico; porém, so todas conjecturas, no temos nenhuma certeza ou se- guranga a esse respeito. Isso vale também no que se refere ao titulo, ao nome desta obra, em grego ta metd ta physika, que significa “as coisas que vém depois daquelas de fisica’, ou os livros que vém depois. Vejam; segundo a tradicao, esse titulo no inicio teria indicado simplesmente a posigdo em que essa obra havia sido colocada por Andrénico, isto é, depois das obras de fisica. Se vocés se lembram de como se compoe © corpus das obras de Aristételes, perceberdo que em pri- meiro lugar estdo as obras de légica, isto ¢, 0 Organon, a seguir vém as obras de fisica, a Fisica propriamente dita, 0 De caelo, o De generatione et corruptione, os Meteorologica, 0 De anima, em seguida todas as obras de biologia, isto ¢, aquelas obras sobre os animais, que se encaixam na fisica entendida em sentido aristotélico, e depois de todas essas obras encontramos a Metafisica. Entao, muitos disseram: ‘0 nome “metafisica” significa simplesmente “aquilo que vem depois da fisica”. Em grego, meté significa “depois” ¢, portanto, nao tem um significado filoséfico, tem simples- mente fungio referente a ordem da biblioteca, o lugar ‘onde pér essa obra nas bibliotecas. Porém, também a esse respeito, o proprio Moraux afirmou que, assim como num dos mais antigos comenta- tios, o de Alexandre de Afrodisia, afirma-se que, segundo 122) J nrosucio | o método de Aristételes, é preciso laquilo que nos € mais conhecido, ou seja, daquilo que esta ao alcance da nossa percepgao, da nossa experiéncia e das coisas que ‘nos so mais conhecidas para remontar aquelas que so, diz Aristoteles, as mais conhecidas per si ou por nature- za, pois so a causa que torna inteligiveis todas as outras, portanto, se temos presente essa doutrina de Aristételes, podemos compreender que a Metafisica é chamada assim no s6 porque foi colocada depois da fisica, mas devia ser colocada depois da fisica porque, segundo a ordem natural do conhecimento teorizado por Aristételes, em primeiro lugar, é necessério conhecer a realidade fisica & somente depois conhecer aquilo que se encontra além;, aquilo que ndo esté mais ao alcance dos nossos sentidos, da nossa experincia, aquilo que est além, Com efeito, a preposicio grega metd nao significa somente “depois", mas quer dizer também “além”, corresponde ao latim trans, indica, portanto, aquilo que transcende a fisica, aquilo que transcende a experiéncia. Portanto, segundo Moraux, esse titulo deveria ter também um significado filos6fico no somente associado a ordem, & edicao feita por Andrénico. Também a esse respeito nio se pode ter nenhuma certeza, sio todas conjecturas mais ou menos convincentes. Certo € que a palavra “metafisica” ndo existe em Aristételes. A ciéncia que ele expée, a disciplina que ele expde nesse livro, como veremos, é por ele chamada de “filosofia primeira” ou “ciéncia primeira’ ,Em Aristételes, © termo “filosofia” ¢ 0 termo “ciéncia’, isto €, epistémé, substancialmente se equivalem,No tempo de Arist6teles, a palavra “filosofia” jé havia entrado em uso, nao significa- va mais simplesmente o amor pelo saber, como vemos em 23] | Enrico Bean | Sécrates, talvex ainda em Platio, mas jé significava uma forma de saber. Portanto, era sinénimo de ciéncia, de epis- témé, e aquela que € exposta aqui neste livro é justamente a filosofia primeira ou a ciéncia primeira, isto ¢, a primeira entre todas as ciéncias, Veremos mais adiante por qual motivo Aristételes 2 considerava primeira. Outra coisa que deve ser lembrada & que 0 conjunto atual dos livros nao significa que tenham sido compostos todos em sequéncia, um apés outro, e @ 6rdem em que esto atualmente dispostos corresponda ordem em que Aristoteles os concebera. {Todos os tratados de Aristételes publicados por Andrénico foram publicados trés séculos apés a morte de Aristételes, pois ele nunca os publicara; eles nao eram obras escritas por Aristteles em vista da- quela publicagio, eram textos por ele usados em suas au- las, Portanto, eram parcialmente escritos por ele, mas em parte podiam também conter anotacées, apontamentos, feitos por seus ouvintes, por seus alunos. O nome com o qual eram citados era logoi. Logoi em grego significa “discursos”. Talvez corres- pondessem aquilo que nés hoje chamamos os “cursos que sio dados na universidade, razao pela qual se pode fazer um curso de l6gica, um curso de ética, um cur so de politica, Também esses cursos, esses logoi, tendo todos um tinico tema, isto é, referindo-se todos a essa assim chamada filosofia primeira, ciéncia primeira, fo- ram postos juntos pelos editores, por Andrdnico ou por algum outro autor que the antecedeu, talvez aquele que tinha em mios a Metafisica em dez livros, isto é, foram postos juntos numa determinada ordem, que é 2 ordem em que chegaram a nés. Veremos que essa é uma or- dem em boa parte justificada e justificavel, porém sob i241 | Ivrronugao | algum aspecto também discutivel, e de qualquer modo no temos motivo para considerar que fosse a ordem desejada por Aristételes. Pois o carter de discursos, de textos preparados em vista do ensino, tornava possivel também a intervengao posterior & primeira redagio, @ primeira composicao. Portanto, podemos imaginar que Aristételes, quando precisava dar um curso em sua es- cola, em primeiro lugar, ele préprio escrevia um texto, mas em seguida podemos pensar que, durante o trans- correr desse curso, sentisse também a necessidade de introduzir acréscimos, inserir mudangas no texto que havia preparado, e € provavel que, em seguida, quando 6 texto era oralmente comunicado a seus alunos, tam} bém eles inserissem alguma anotagio, algum comenté. rio, algum acréscimo. Isso faz. com que 0 texto & nossa disposi¢ao_ nao seja, por assim dizer, um texto com toda seguranga auténtico; no é como um didlogo de Platao. ‘Também entre os didlogos de Platio encontramos dié- logos auténticos e ndo auténticos, mas no que se refe- re aos auténticos, tomemos por exemplo a Repiiblica, © Banquete, 0 Fédon, podemos ter certeza de que séo formados por palavras escritas por Platao, todas, da pri meira a tiltima, também porque sio escritos num esti lo de grande artista, que somente Platio era capaz de executar. Pelo contrario, nos tratados aristotélicos, pode acontecer que alguma palavra no seja de Aristoteles, que haja algum acréscimo, algum comentario, as vezes também comentirios ou acréscimos feitos pelo proprio Aristteles em ocasides sucessivas. De fato, Aristételes ensinou por muito tempo, isto é, por muitos anos; talvez j4 lecionasse quando ainda estava na escola de Plato, pois permaneceu nela por muito tempo, até os trinta [2s | | Exnico Been | quatro anos, quando ja ndo era mais um jovem, nao era mais um estudante, e é possivel que Plato Ihe desse os cencargos do ensino. Por exemplo, no que se refere a Re- térica, o fato parece adquirir consisténcia, mas é possivel que isso tenha acontecido também com a Metafisica. A seguir, apés a morte de Platdo, Aristételes se transferiu. para uma cidade da Asia Menor, Assos, onde também teve alunos, e provavelmente ai também deu cursos. Fi- nalmente, como vocés sabem, regressou a Atenas, fun- dou sua escola e nela lecionou por onze ou doze anos. Portanto, também a Metafisica provaveimente foi objeto de varios cursos, em anos distintos, em anos sucessivos. Werner Jaeger, o grande estudioso alemao que citei anteriormente, é da opinido que pode individuar entre os catorze livros da Metafisica alguns livros mais antigos e ‘outros mais recentes, isto é, escritos, compostos em épo- cas distintas da vida de Aristételes. Portanto, temos de lidar com todos esses problemas quando lemos esse livro; nao é leitura simples, facil; € ivro de extrema dificuldade, que apresenta uma infinidade de problemas e, nao obs- tante, é um livro também de grande beleza, de grande profundidade, motivo pelo qual é certamente uma das obras mais preciosas de toda a histéria da filosofia. ‘Tive de prestar atengdo ao tempo que tenho a minha disposigao. Tendo de dar nesta semana dez aulas, isto é, duas por dia, calculei que em cada aula devo falar - os livros da Metafisica sio catorze, portanto, siio mais nu- merosos que as horas que tenho a disposigao — de mais de um livro, Entdo, eu pensava que as duas aulas de hoje poderiam ser dedicadas aos primeiros trés livros, que, em minha opiniao, como procurarei mostrar a vocés, sao trés introdugées diferentes a Metafisica. 1261 Livros A, o, B - 1, Il, Ill © que queremos dizer com a expressio“os primeirok trés livros”? Aqui se apresenta outro problema, o proble} ma dos niimeros, porque, enquanto todas as outras obras. de Aristételes tm 0 primeiro livro, segundo, terceiro, quarto, quinto — vocés sabem que os gregos, para indicar ‘os ntimeros, usavam as letras do alfabeto: alfa, beta, gama, delta... — infelizmente, no caso da Metafisica, temos dois livros Alfa, que seria 0 mesmo que dizer dois primeiros livros, pois alfa quer dizer primeiro, alfa indica 0 namero um. Temos, portanto, dois livros Alfa e,em seguida, aquele que vern depois, que deveria ser o terceiro, tem, todavia, como niimero, Beta, que em grego quer dizer segundo. Portanto, evidentemente, quando foi colocado 0 ntimero para todos os livros, havia um tinicolivro Alfa, porque, se houvesse dois, um teria sido chamado Alfa, o segundo te- ria sido chamado Beta; visto que Beta é, porém, o némero atribuido ao terceiro, isso quer dizer que, inicialmente, isto ¢, a0 menos na edi¢do de Andronico, havia um tinico livro Alfa. Qual? E dificil dizé-lo. Normalmente, os edito- res os distinguem chamando-os de Alfa maior e Alfa me- nor, simplesmente porque um é mais extenso ¢ 0 outro |271 | Enrico Bex | é mais curto: Alfa maior compreende dez capitulos, Alfa menor compreende somente trés, portanto, é chamado ‘menor por esse motivo, e também na escritura Alfa maior é indicado com Alfa maitsculo e Alfa menor com alfa miniisculo, e em seguida vem Beta. © que contém esses livros? Quais diferencas apre- sentam entre si? Em primeiro lugar, como eu lhes dizia, 0 fato de termos dois livros Alfa levantou dividas que um dos dois nao seja auténtico, nao seja de Afistoteles. Alem disso, h4 uma indicagao nesse sentido num manuscrito, no manuscrito mais antigojOs manuscritos de Aristételes nao so tio antigos como sio, por exemplo, os manuscri- tos do Novo Testamento, que remontam aos primeiros séculos depois de Cristo; 0 mais antigo manuscrito das obras de Arist6teles foi redigido em Bizancio, entéo capi- tal do império bizantino, entre 0 nono século e o décimo, e foi levado para a Itdlia no tempo do Concilio de Flo- rencajEm 1439, quando houve por um momento 3 reu- nificagdo entre a Igreja catdlica e a Igreja grega ortodoxa, muitos tedlogos, filsofos, cardeais, bispos, personagens importantes da Igreja grega participaram do Concilio. Estes, viajando para a Itélia, levaram consigo varios ma- nuscritos, entre os quais também as obras de Aristételes. Um dos mais famosos foi o cardeal Bessarion, que mais tarde, ao falecer, deixou todas as suas obras em Veneza, biblioteca de S40 Marcos, 4 biblioteca Marciana, onde ainda hoje & possivel ver 0s manuscritos deixados por ele. O manuscrito do qual estou falando, em vez disso, que & 0 mais antigo de todos, foi parar e permanecer em Florenga. Quando Florenga se tornou posse dos Médici, tomados a seguir gréo-duques, uma das senhoras da casa Médici casou-se com o rei da Franga, Henrique IV, ante- 128} [ Uvnos A, 8-151 1 | riormente rei de Navarra tornado mais tarde rei da Franca = aquele que disse “Paris bem que vale uma missa”, isto 6, converteu-se ao catolicismo a fim de poder tornar-se rei da Franca — e Maria de Médici, entre as muitas-coisas que levou a Paris como dote, levou esse manuscrito de Aristételes, que, portanto, hoje se encontra na biblioteca nacional de Paris com 0 nome Parisinus Regius, isto é, c6- dice parisiense, de propriedade do rei, que na ocasiao era Henrique IV. No Parisinus Regius - se vocés forem a Paris, a biblioteca nacional, poderio pedir para vé-lo, é belissi- mo, é justamente o mais antigo manuscrito de Aristoteles ha a Metafisica, e h4 sobretudo o livro Alfa maior, coma, em todas as edicdes que possuimos, e em segundo luge encontra-se Alfa menor, mas no meio, entre o fim do ps meiro livro e 0 inicio do segundo, a margem da folha, ha um dbice. O que é um obice? E uma anotacio feita pelo ama- nuense, isto 6, por aquele que transcreveu a obra de Aristételes no manuscrito, ¢ nesse ébice afirma-se apro- ximadamente o seguinte: “este livro, segundo alguns, foi composto por Pasicles de Rodes’, que era sobrinho de Budemo, Eudemo era um aluno de Aristételes; com efei- to, uma das duas éticas de Aristoteles — uma € a Etica a Eudemo ou Eudemeia -, chama-se assim porque prova- velmente foi publicada por esse Eudemo, aluno direto de Aristoteles. Eudemo tinha um sobrinho chamado Pasi- cles, que era também ele de Rodes, como Eudemo. Pois bem, no ébice esta escrito: “este livro — afirmam alguns = notem bem, nao € 0 pensamento daquele que escreve, mas é uma noticia que ele fornece -, afirmam alguns que é de Pasicles de Rodes", ou seja, ndo € de Aristételes, Eis, pois, a divida de que um dos dois livros Alfa nao fosse 1291 | Enrico Bern | de Aristételes ja havia sido levantada no tempo em que foi redigido o manuscrito mais antigo. S6 que esse dbice é posto numa posicéo tal, exatamente na metade entre 0 fim do primeiro livro e 0 inicio do segundo, de modo que nao se compreende bem de qual dos dois livros esta fa- lando; quando afirma “este livro”, pode querer dizer tanto “este que ven depois” quanto o contrario, “este que acaba de terminar”. Por isso, alguns disseram que ele se refere a0 segundo livro e conclufram que 0 segundo nao é auténti- co; outros, pelo contrario, afirmaram que ele se refere a0 primeiro e concluiram que o primeiro nao é auténtico. Nesse ponto, a discussdo esta em aberto: de acordo com a maior parte dos estudiosos de hoje, eu creio que ambos devam ser considerados auténticos, tanto o livro Alfa maior quanto o livro Alfa menor, isto é, que ambos sejam de Aristételes, porém é evidente que nao deviam estar juntos, isto é, ndo estavam os dois na mesma obra, porque uma obra pode ter somente um primeiro livro, nfo pode ter dois livros primeiros; portanto, alguém os és juntos. Mas ambos sao livros introdutérios. Eu fiz pes- ‘quisas sobre esse problema, hé varios anos ocupei-me com certa dedicacio e inclusive tive debates com petitos, como Moraux e a sua escola, os quais eram eximios paledgrafos, isto é, especialistas em manuscritos antigos, ¢ criei a ideia de que os primeiros dois livros sejam ambos introdugdes a duas diferentes edigdes da Metafisica, uma mais antiga e ‘uma mais recente: uma comecava com o livro Alfa menor, © em minha opinido, é a mais antiga, sendo seguida por outros livros — em minha opiniio, o livo Lambda e talvex olivro Ni, que é 0 Ultimo, isto , 0 décimo quarto, a0 passo que Alfa maior era o primeiro de outra edicio da Metafisi- ca que compreendia todos os outros livros. | 30} | Laos A, a, B=1, 11, | Portanto, é bom que tenhamos presentes os dois, porém, conscientes de que se trata de duas distintas in- trodugées & Metafisica. Em certo sentido, também o ter- ceiro livro, isto é, o livro Beta, é uma introdugao, porém, por outros motivos, Como veremos, também ele € um livro introdutério, no qual Aristételes ainda nao expde a ciéncia que forma o objeto desta obra, mas a apresenta, prepara-a. A seguir, a auténtica exposicao inicia-se com 0 livro Gama, aquele que vem imediatamente apés Beta, que € 0 quarto da série que nés temos, do qual falaremos amanha. Comecemos falando do livro Alfa maior. Para seguin, estas minhas aulas, é util que vocé tenha os olhos voltados', para uma tradugio moderna ou, se alguém conhece 0 gre-', g0, para o texto grego ao qual procurarei referir-me. Hé duas ediges da Metafisica, duas edigdes criticas fortes, ndo se trata de edigdes recentes, pois a Metafisica é uma obra tio dificil que ninguém arrisca fazer uma nova edi- do, mas essas duas edigdes sio absolutamente as melho- res. Ha algumas produzidas no século XIX, porém hoje no sio mais usadas, As tltimas duas, aquelas que ainda so usadas por todos, so estas: a primeira, de William David Ross, o inglés que jé citei, que a publicou em 1924, para as edicdes da universidade de Oxford, com um co- mentirio que ainda hoje é um dos melhores; a outra edi- g40 foi também produzida em Oxford pelo estudioso ale- mio que ja citamos, Werner Jaeger, em 1957, isto é, mais de trinta anos apés a edigao de Ross, e depois disso nao surgiram outras. Ponscm, por cxemplo, na Franga, onde inclusive eles tém aquelas magnificas colegdes de edigses ceiticas da editora Les Belles Lettres, nao ha uma edicdo critica da Metafisica. Para esse fim, hoje, esta trabalhando 131] | enrico Bexn | uma equipe, mas os trabalhos jé duram vinte anos, ¢ sou do parecer que nunca chegardo ao fim, pois é compos- ta por um numero excessivamente grande de estudiosos que nao esto de acordo entre si. Eu trouxe comigo a edicdo de Jaeger e trouxe também uma tradugao italiana, a mais clara e mais util, a traducao de Giovanni Reale, an- ‘tigamente publicada por Rusconi, que agora se encontra nas edigdes Bompiani, e tem a vantagem de ter ao lado 0 texto grego, 0 texto grego reproduzido por Reale é o de Ross. Portanto, tendo-o aqui com a sua tradugdo de Jae- ger, estamos de posse das duas edigdes mais importantes. Quando eu ler alguma passagem — pois devemos ler e comentar alguma passagem da obra -, lerei a tradugio de Reale e em algum caso vou propor a vocés uma tradugdo minha, pois nem sempre é possivel estar satisfeito com as. tradugdes existentes, passiveis de melhoras ¢ de aperfei- ‘soamentos. A essas alturas seria necessdrio comegar a leitura da obra, € néo escondo que ao fazé-lo experimento certa emocio, toda vez que abro o livro e leio aquelas mara- vilhosas linhas iniciais: “Todos os homens por natureza _desejam conhecer” (980 a 21). Assim se abre a Metafisica de Aristételes, E frase que merece reflexio, porque em primeiro lugar diz “todos os homens’, pantes anthrépoi. Em grego, anthropos significa o ser humano. Hoje, nos paises de lingua inglesa, prefere-se dizer human beings, porque nés dizemos “homens’, mas entio alguém obje- ta: © as mulheres? Ao contrario, anthropoi significa tanto homens quanto mulheres, O fato é importante porque ~a sociedade grega antiga era uma sociedade machista na qual, por exemplo, as mulheres ndo recebiam educacio, nfo frequentavam escola, no possuiam cultura nenhuma 132] | Lvaos A, @, B= I, 1, | ¢, portanto, nao podiam fazer filosofia. Apesar disso, Aris- toteles diz pantes anthrépoi, todos os seres humanos, ho- mens e mulheres, desejam saber, desejam conhecer. Além disso, havia outras distingdes feitas pelos gregos, pois nao eram apenas uma sociedade machista, eram também uma sociedade escravagista; como todas as sociedades antigas, também os romanos, distinguiam os homens entre livres € escravos, Mas anthépoi sao todos, tanto os livres quanto 0s escravos, portanto, € uma nogéo que abraca todos os seres humanos, independentemente do sexo ou, como se diz hoje, do género, independentemente das condicées “sociais. E, além disso, havia uma terceira distingdo feity “pelos gregos: gregos ¢ barbaros. Os gregos se considera vam 0 tinico povo civilizado e chamavam todos 0s outros. “barbaros”, também porque os gregos no compreendiam: sua lingua, parecia que balbuciassem, por isso os chama- vam barbaros. Porém, quando Aristételes diz, “todos _homens”, com essa expressio, abraga homens e mulhe- “tes livres e escravos, gregos e birbaros. Com efeito, todos so homens e — acrescenta Aristételes — por natureza de- sejam conhecer, isto é, nao por alguma razio acidental, por alguma contingéncia histérica, por algum fato casual, niio, nao... por natureza, isto 6, pelo fato de que sio se- res humanos, em virtude do seu ser humano; pelo fato de que sio_seres humanos, desejam conhecer. Portanto, existe a preocupagio de mostrar que desejo de conhe- cer est enraizado na propria natureza humana, acima €_ _além de qualquer distingao. Quando leio esse texto, vem- =me a mente aquilo que diré so Paulo: no hé mais nem homem nem mulher, nem escravo nem livre, nem grego nem bérbaro (Cl 3,11; Gl 3,28). Isso acontece também aqui, todos por natureza desejam conhecer. 1331 | Exrico Been | Em seguida, Aristételes continua dizendo: “prova dis- so é 0 praver que experimentam pelas sensagdes, especial- mente a da visio” (980 a 22-24). O prazer de ver... Quem no desejaria ver? Os gregos privilegiavam a visio acima de todos os outros sentidos, mas a visdo é considerada por todos um bem precioso, tanto é verdade que existem tam- bém muitas formas de dizer onde se sublinha o valor da visio; diz-se a alguém: vocé é a luz dos meus olhos, para dizer que vocé é para mim uma coisa muito importante, ou ento: vocé é como 2 minha pupila, para dizer que vocé a coisa mais querida que tenho; além disso, em inglés, pupil significa aluno, quer dizer, o discipulo... portanto, a visio & considerada um grande bem, todos sentem prazer em ver, por isso, a visio é preciosa para nés. Aristételes afirma que a visdo, entre todos os sentidos, é aquele que nos faz, captar maior numero de diferengas (980 2 26-27). ‘Todas as cores, as formas, sio infinitas, toda a variedade do mundo da experiéncia € captada mediante a visio, e, portanto, a visio nos faz conhecer mais do que todos os outros sentidos, por isso nés a amamos, € por isso ela nos produz. prazer. Mas se a visto nos produz prazer, esse € 0 _sinal de que queremos conhecer, de que desejamos saber, de que por natureza os homens desejam conhecer. mi ~~~ “‘Acabamos de ver 0 exérdio do livro Alfa maior, isto é, do primeiro livro.,Aristételes justificou sua pesquisa afirmando que est enraizada na mais profunda nature- za do homem, ¢ prossegue indicando uma série de graus Q@rx0 de conhecimento, que partem do mais baixo, do mais simples, daquele que podemos chamar “percepgio” \Aris- tételes a chama aisthesis, que literalmente seria a sensa- 40, mas com esse termo cle entendia o conhecimento abrangente que temos dos objetos mediante os sentidos: 1341 32g Rho wen 3 GeAD | Lvaos A, a, B11 | a visio, a audicao, 0 tato etc, isto é, aquela que nés cha- mamos percepcio. Sucessiva forma de conhecimento em relagio a per- cepgio & a “recordacio”, que alhures Aristételes define como aquilo que subsiste de uma percepgao quando 0 objeto nao esta mais presente. De fato, quando 0 obje- to esta presente, eu o percebo com os sentidos; a seguir, quando 0 objeto nao esté mais presente, portanto, num momento sucessivo, conservo sua recordacdo, mneme, em rego, de onde deriva a palavra “meméria’. A faculdade de conservar as recordagées é justamente a meméria, que no fundo esté no mesmo nivel da percepcio, mas € possi vel também quando o objeto nao est presente. ‘A seguir, hé 0 terceiro nivel, que Aristételes chama! empeiria e que nés com a ajuda do latim traduzimos como “experiéncia”. Todavia, devemos ter presente o significado peculiar que essa experiéncia tem para Aristoteles, porque ha filésofos modemos, chamados empiristas, como Locke, como Hume, que entendem a experiéncia em sentido diferente, isto é, colocando-a no nivel mais baixo, como a simples percepgdo, ou como aquelas que Aristoteles chamava sensagdes. Ao contririo, para Aristételes, a ex- periéncia 6 um grau de conhecimento mais avancado. Ele a define da seguinte forma: “muitas recordagées de um mesmo objeto” (980 b 29), Fim primero lugar, tive a per cepgao de um objeto; depois, quando o objeto nao esta mais presente, mantive sua recordagdo; quando_ponho juntas muitas recordagées do mesmo objeto, entio, tenho “uma experiéncia, uma empeiria. Como vocés podem ver, 'a experiéncia denota aquele grau de conhecimento que se possui quando se é, como diriamos hoje, experto. Também “experto” vem de “experiéncia’, Dizemos que alguém é 1351

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