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Abstract The article analyzes the discourse Resumo O artigo analisa discursos sobre o risco
about the risk represented by HIV/Aids and do HIV/Aids e das drogas, extraídos de duas pes-
drugs, found in two qualitative researches carried quisas qualitativas desenvolvidas entre jovens de
out with youngsters from public schools and from escolas públicas e jovens participantes em progra-
public social services and programs. The data mas e serviços sociais públicos. Os dados provie-
came, for the first research, from focus groups, ram de grupos focais, oficina e resposta escrita a
workshops and a written answer to an open ques- uma questão aberta; e questionário com questões
tion; and for the second one, a questionnaire with fechadas e abertas. O texto se baseia em dois eixos
close and open questions. This text is based on de análise presentes no caso da aids e das drogas.
two analysis axes which occur in both cases, aids O primeiro se relaciona à projeção do risco para
and drugs. The first one is related to the projec- um território distante estabelecido pela figura do
tion of the risk to a distant territory established “outro”. O segundo se refere à busca do prazer tra-
by the figure of the “other”. The second one is re- zido pelo sexo e pelas drogas, prazer constituído
lated to the search for pleasure provided by sex pela sensação de vertigem, de êxtase, de perda dos
and drugs, pleasure which derives from dizziness, sentidos, componente oposto à racionalidade es-
ecstasy, senses’loss, opposed to the rationality ex- perada pelo discurso preventivo. A compreensão
pected by the preventive discourse. The sociocul- sociocultural do risco nos levou a considerar que,
tural comprehension of the risks led us to consider embora cientes do discurso preventivo relaciona-
that, in spite of the knowledge about the preven- do aos efeitos negativos das drogas e do HIV/Aids,
tive discourse of the negative effects related to aids os jovens o incorporam de forma particular, na
and drugs, this is done with inconsistency, am- qual aparecem inconsistências, ambivalências e
bivalence and ambiguities. It is concluded that ambigüidades. Concluímos que a linguagem do
1 Departamento
the language of the risk for the youngsters is dif- risco para os jovens é diferente daquela presente
de Serviço Social.
Universidade Estadual ferent from the one presented in the health area. na área da saúde. Os riscos são concebidos e con-
de Londrina CESA/UEL, These risks are conceived and controlled within trolados em meio a diferenças culturais e não re-
Campus Universitário, the framework of cultural differences, not being duzidos à probabilidade de ocorrência de um
C. P. 6.001. 86051-990,
Londrina PR. reduced to the probability of a negative event, as evento negativo, como tratado pela linguagem ra-
mangela@londrina.net in the modern rational language. cional moderna.
2 Departamento
Key words Risk, HIV/Aids, Drugs, Youth Palavras-chave Risco, HIV/Aids, Drogas, Jovens
de Ciências Sociais.
Universidade Estadual
de Londrina, CCH/UEL
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Paulilo, M. A. S. & Jeolás, L. S.
representações sociais elaboradas sobre a Aids rária, de caos provisório. Seria uma forma con-
e a forma de se pensar o risco do HIV. No en- trolada de perder o controle dos sentidos.
tanto, refluiu-se a referência direta aos homos- Observamos nas falas dos entrevistados, de
sexuais, às prostitutas e aos travestis como gru- um lado, o discurso da razão e, de outro, o da
pos mais suscetíveis para se contrair e transmi- des-razão, da irracionalidade, do descontrole.
tir o HIV, nota-se ainda a prevalência da legiti- Eles se expressam da seguinte maneira: de um
midade das relações heterossexuais e monogâ- lado, ter consciência, pensar bem, planejar, ter
micas. cabeça; de outro lado, o vacilo, o descuido, a
Em síntese, no que concerne ao componen- marcação, o não planejado, o espontâneo, a falta
te cultural de projeção do risco para o “outro”, de cabeça, a bobeira, o tesão, a hora “h”. A natu-
pode-se afirmar que tudo o que o “eu” quer evi- reza do amor, do desejo e da paixão, domínios
tar, tudo o que o “eu” receia para si, tudo o que dos sentimentos e das sensações, do imponde-
o “eu” não reconhece em si é simbolicamente rável, do não-planejado, do espontâneo, da não
deslocado para o “outro”. Em outras palavras, o racionalização transforma-se em mais um ele-
“outro” é construído para permitir a ancoragem mento de vulnerabilidade.
do inverso, do oposto, do avesso do “eu”. So- Chama ainda a atenção, nos discursos so-
mente a aceitação do múltiplo, do plural, do di- bre o risco representado pelo HIV/Aids, a idéia
ferente, abriria espaço para a aceitação do es- da inevitabilidade, seja da força das atrações,
trangeiro fora e dentro de cada um de nós. dos amores e das paixões, seja do sentimento
Ainda na esfera da Aids, o segundo compo- de impotência em face da fatalidade. De um la-
nente analisado, ou seja, a busca do êxtase e da do, o discurso das paixões, de outro lado, um
vertigem proporcionados pelo sexo se faz pre- sentimento de inevitabilidade, e mesmo de fa-
sente de forma muito marcante. Através de prá- talidade, com relação ao risco da Aids, contra o
ticas sexuais, quando livremente desejadas, as qual o sujeito nada pode; suas ações são enca-
pessoas se ligam entre si, constroem vínculos, radas como incapazes de mudar o curso supos-
trocam afeto, amor ou prazer. O sexo contém tamente inevitável dos acontecimentos. Traba-
um elevado investimento afetivo e apresenta lha-se com uma noção de pessoa sujeita às for-
um conteúdo simbólico muito forte de ligação ças do destino, à vontade de Deus ou incapaz
com o ato de viver e de se sentir vivo. Sexo é, de de controlar sua própria vontade. Citamos al-
fato, um motivo poderoso, exerce uma atração guns exemplos:
que fascina, sua prática traz gratificação ime- – (...) imagino ser algo terrível que muitos até
diata, é reforçado por fantasias e mantido por choram querendo voltar ao seu passado livre. Por
experiências passadas prazerosas e desejo de isso peço a Deus que eu não seja mais um dos es-
momentos futuros igualmente prazerosos. colhidos pela Aids.
É previsível, portanto, que as atividades se- – É como se fosse uma pedra no caminho e eu
xuais sejam particularmente difíceis de serem tropeço, não tem hora para vir/ (...) se tiver que
mudadas, em função de construções culturais acontecer, acontece, não dá pra ficar pensando
já sedimentadas aliadas às sensações inebrian- nisso.
tes dos sentidos que sua prática provoca. – A questão do vírus da Aids, da contamina-
A vertigem, o êxtase e a embriaguez tor- ção, é uma questão do destino de cada um, se ti-
nam-se, nos dias de hoje, mais e mais presen- ver que acontecer vai acontecer mesmo, não
tes. Aparecem na proliferação das atitudes de adianta fazer nada.
risco que têm nestas figuras a sensação procu- O discurso racional da prevenção, assim co-
rada particularmente no universo dos esportes mo a linguagem dos riscos pressupõem sujeitos
radicais e das drogas aos quais nos remete Le da modernidade racionalista, burocratizante e
Breton (1991). O autor parte do pressuposto de secularizadora. Vê-se, no entanto, sujeitos so-
que, em sendo a morte o significante último, ciais lançando mão de forças outras para sua
jogar com a vida com o risco de perdê-la é jo- proteção, trabalhando com a noção de pessoa
gar simbolicamente com a existência, com o sujeita às forças do destino, à vontade de Deus,
objetivo de conseguir o surplus de sentido que ou incapazes de controlar suas ações, necessi-
tornaria a vida mais plena. É o caso dos ralis tando de forças transcendentes que os prote-
automobilísticos, da asa delta, do salto com jam, guiem ou definam sua sorte, principal-
elástico, todos riscos socialmente aprovados e mente em se tratando de domínios tão refratá-
valorizados. Nos jogos de vertigem prevalece o rios à racionalidade, como o são o do prazer,
sentimento de abandono, de desordem tempo- do amor e da paixão.
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quando a força de um desejo extremo de fazer sas, pois o nome já diz, droga é uma droga //
uso da droga não mais significa prazer desfru- Uma coisa horrível que eu não quero nem passar
tado e a necessidade. Nas palavras de Sissa perto // É uma droga. Distância // Nada, pois
(1999), não tem mais nada a ver com uma vita- evito até de pensar, pois o nome já diz tudo é
lidade feliz, ao contrário, torna-se um estado fí- uma droga // Não gosto nem de ouvir falar, é um
sico e psíquico atroz. Aos poucos, continua a au- assunto sério. Algo que eu jamais quero experi-
tora, o desejo não acha mais na droga um prin- mentar // Que eu tenho medo, e nunca vou usar.
cipio motor, mas uma exacerbação tão despótica No que se refere ao uso de clichês, concor-
que esse mesmo desejo a ela se agarra sem poder damos com Vuysteek (1991), quando nos diz
mais se mover no sentido de alguma outra coisa. que há hoje uma confiança exagerada no poder
A dose seguinte, em vez de trazer uma volúpia, benéfico da mídia quando se trata de educação
evita uma queda no sofrimento. É sob essa forma para a saúde. No entanto, o que nos é dado a
que daí em diante surge a necessidade: uma dor perceber é a repetição, muitas vezes irrefletida,
insuportável e, entretanto, irresistível. do clichê divulgado pela mídia. O posiciona-
Como diz Mesquita (1992) é impossível mento se faz por meio de um “lugar comum”,
abstrair o fato de que a droga traz prazer. No deixando dúvida sobre sua compreensão ou
caso do uso compartilhado da droga, a possibi- sobre sua influência nos comportamentos. São
lidade de overdose vem ilustrar, de forma cris- repetições do discurso oficial – da família, da
talina, o paradoxo discutido por Le Breton escola, do Estado – sobre as drogas.
(1991). O usuário se arrisca e, por meio da As falas relacionadas ao “outro” tratam-no
overdose, toca simbolicamente a morte ao ora como alguém a quem são atribuídos carac-
mesmo tempo em que se preserva ao confiar teres depreciativos, imperfeições que o deni-
no manejo, ainda que precário, do grupo que o grem tais como a fraqueza, a fragilidade, a falta
socorre. A overdose fornece-lhe o surplus neces- de caráter ora como alguém dotado de força de
sário à continuidade de sua existência. vontade e possibilidade de escolha, conforme
A fala não sou eu que fumo, são as drogas que ilustram as falas abaixo:
me fumam é exemplar. Expõe tal simbiose sim- Eu penso que quem usa drogas só pode ser
bólica entre o usuário e o produto utilizado tonto // (...) falta de amor a si próprio // Uma
que chega à inversão entre o sujeito e o objeto, droga que uma pessoa fraca não pode superar //
à medida que transfere à droga propriedades Pessoas sem caráter // Que as pessoas não têm
de seres animados como é o caso do querer e consciência do que estão fazendo // Momento de
do agir. O usuário, neste caso, passa a ser o “fu- fraqueza, solidão e ajuda // Algo que prejudica,
mado”; a droga torna-se o sujeito da ação. mas para muitos jovens a saída da realidade pa-
Risco, loucura, prazer, vertigem e abando- ra uma viagem sem fim // Eu acho que às vezes
no irrompem, portanto, das falas dos jovens as pessoas usam porque não conseguem encarar
entrevistados, frutos de suas vivências, senti- a realidade // Às vezes por serem mal-informa-
dos, memórias e interpretações. das, as pessoas que usam não sabem do mal que
O segundo componente analisado, ou seja, ela provoca // Só os fracos e ignorantes usam //
a projeção do risco para o “outro”, aparece, co- Quem usa a droga não tem cérebro, só tem per-
mo no caso da Aids, associado à negação do turbação // Quem usa drogas quer se matar //
risco ou ao seu afastamento para algo remoto Alguém que tem problemas e tenta se refugiar em
ou para um ser depreciado, quando não, des- drogas // Entra quem quer nessa bobeira //
prezível. Quem quer se recupera.
As falas relacionadas à negação e/ou ao Nota-se nestas falas, uma tensão entre duas
afastamento contêm elementos de jargão e ele- concepções de pessoa ou de sujeito social. Por
mentos associados ao medo e à apreensão. Em um lado, fazem emergir um sujeito ciente de
todas elas, contudo, aparece nitidamente ex- suas ações e capaz de controlar seus desejos,
presso o distanciamento do tema. É interessan- trata-se aí de um sujeito racional que pode con-
te notar que a negação e/ ou afastamento são trolar a potência atribuída às drogas e mesmo a
terrenos propícios para o risco, uma vez que as dependência em relação a ela. Por outro lado,
pessoas se consideram imunes a ele e, portan- trazem igualmente à tona a imagem de um su-
to, não se preocupam em evitá-lo. Seguem al- jeito frágil, incapaz de controlar seus desejos, de
guns exemplos entre pessoas não usuárias: enfrentar a realidade, pouco inteligente, fraco
Nem morta // Não gosto, saio de perto // Ja- ou, em uma avaliação mais generosa, alguém
mais eu usaria // Que nunca entraria numa des- mal-informado. Entre uma e outra concepção
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Colaboradores
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