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Elciene Azevedo O direito dos escravos oLutas juridicas e abolicionismo na provincia ds Sao Pauls na segunda melade do seule XIX Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Historia do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientagdo da Profa. Dra. Silvia Hunold Lara Este exemplar corresponde & redagao final da Tese defendida e aprovada pela Comissio Julgadora em 26/02/2003. BANCA, Profa, Dra. Silvia Hunold Lara (orientadoray) Giluia. thactd dara. Profa. Dra. Keila Grinberg (tpl eo | Prof. Dr. Eduardo Spiller Pen: Profa, Dra. Maria Cristina Wissenbach (suplente) Prof. Dr. Jaime Rodrigues (suplente) Fevereiro de 2003 UNICy FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP JAz2sd Azevedo, Eleiene (O direito dos escravos : lutas juridicas ¢ abolicionistas na Provincia de Sao Paulo na Segunda metade do século XIX / Elciene ‘Azevedo, — Campinas, SP : {s.n.], 2003 Orientador: Silvia Hunold Lara. ‘Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. 4. Gama, Luis, 1830-1882. 2. Castro, Antonio Bento de Souza e, 1843-1898. 3. Abolicionismo - Brasil. 4. Justiga. 5. Abolicionistas - So Paulo (SP). |. Lara, Silvia Hunold. il. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. III. Titulo. " Resumo Esta tese tem por objetivo analisar 0 processo de consolidagao do movimento abolicionista em Sao Paulo na segunda metade do século XIX. Através de vasta documentagao produzida por Juizes de Direito e Chefes de Policia, além de artigos publicados em folhas de diversas matizes politicas e processos criminais, mostra como este movimento ganhou forga ndo somente a partir da atuagao dos advogados como Luiz Gama e Antonio Bento, mas também da aco dos préprios escravos — cuja presséo sempre crescente mostrava que a escravaria, longe de estar isolada e acéfala nos eitos, daya a seu modo 0 tom e 0 argumento juridico de muitos advogados. Procura assim explicar como 0 Direito péde se transformar em um aliado dos escravos em sua busca pela liberdade, desmontando habituais distingdes e rupturas entre fases “legalistas” e “radicais” do abolicionismo paulista. Abstract The aim of the present thesis is to analyze the process through which the abolitionist movement was consolidated in Sao Paulo in the second half of the nineteenth century. The research was based on a variety of documents produced by magistrates and police chiefs; lawsuits; as well as articles published in newspapers of different political persuasions. This work shows that the abolitionist movement gained strength not only through the action of lawyers such as Luiz Gama and Antonio Bento, but also through the actions of the slaves themselves. The growing pressure of the slaves indicated that, far from being an isolated and voiceless party, the slaves guided in their own way the legal argument of many lawyers. This thesis is thus an attempt at explaining how the law was used in favor of the slaves in their quest for freedom. An additional outcome of this work is the deconstruction of the usual distinctions and ruptures between “legalist” and “radical” phases of the abolitionism in Sao Paulo. bit Vv Agradecimentos Dizem que escrever os agradecimentos é a parte mais dificil de uma tese. Sem divida, nao é tarefa das mais faceis — principalmente quando se deixa para fazé-lo por Ultimo, quando © cansago e 0 tempo impedem maiores arroubos literérios. Sendo assim, € jé que a objetividade sem muita pieguice € a melhor saida nesses momentos, comego pelo CNPq, que financiou grande parte do tempo gasto para o desenvolvimento desta tese, permitindo que eu pudesse neste perfodo me dedicar exclusivamente & pesquisa. Contei com a enorme colaboragao dos funcionérios dos arquivos pelos quais passei - como Arquivo Edgard Leuenroth, Instituto Hist6rico e Geogréfico de Séo Paulo, Biblioteca da Faculdade de Direito da USP e 0 Arquivo do Estado de Sao Paulo. Os atendentes do Arquivo do Estado, em especial, foram pessoas com as quais convivi por um longo tempo. Acabaram assim fazendo parte do meu cotidiano e concorrendo para que 0 trabalho drduo da pesquisa tivesse algumas pausas Iidicas. Nao poderia deixar de registrar aqui também um agradecimento ao Brés, do Instituto Histérico. Sempre atencioso, e acostumado a minha presenca desde as pesquisas feitas para a monografia de graduagio, esse historiador, além de ser un bom interlocutor nas horas das descobertas, faz 0 que pode para tornar a precéria estratura de consulta deste Instituto um pouco mais acessivel aos interessados. No Departamento de Histria da UNICAMP tive a sorte de compartilhar a convivencia com historiadores rigorosos, com os quais aprendi tudo 0 que sei. Alguns deles, depois de mais de dez anos acompanhando de perto minha vida académica, desde 08 primeiros anos de graduag2o, acabaram se tomando mais do que mestres respeitados admirados. Espero ter feito jus ao ambiente sempre instigante de intenso debate intelectual do qual participei durante a concepeo deste trabalho, na linha de pesquisa de Hist6ria Social da Cultura e no Cecult - formado pelos professores Maria Clementina da Cunha, Silvia Lara, Claudio Batalha, Sidney Chalhoub e Robert Slenes. Os dois tiltimos compuseram a banca de qualificagio deste trabalho, ajudando a corrigir e refinar muitas das questées aqui presentes. Na UNICAMP fiz ainda alguns de meus melhores amigos, fosse em sala de aula ou nos cafezinhos ¢ cervejas da cantina. Alguns sao de longa data, ¢ muitas vezes me emociono quando penso que pessoas como Paula, Cristiana, Cldudia, Mauricio, Marcio e Gei . que tive a sorte de ter como colegas de graduago, ainda stio tao presentes e importantes em minha vida. Os colegas de pés-graduagdo, como Ana, Gino, Alvaro, Marcus, Henrique e Carlo, entre muitos outros que me brindaram com sua amizade convivéncia, foram também fundamentais neste percurso. Mila, Nand, Jorge, Marcelo e, recentemente, Mariana, acompanharam muito de Perto as anguistias ¢ tensdes que inevitavelmente envolvem a elaboragio de uma tese de doutorado. A eles devo ndo sé as palavras de constante incentivo, mas também o apoio € companheirismo que nunca me negaram em nossos muitos anos de amizade. Para Silvia Lara, minha orientadora, o agradecimento € quase impossfvel. Como expressar em palavras uma relagdo de quase dez anos, na qual o rigor académico se fez sempre acompanhar de uma acolhedora amizade? Foi sua paciéncia com meus atrasos € Joucuras, junto com minha confianga no seu rigoroso profissionalismo, que tornaram Possivel 0 término desta tese. A disponibilidade com que me acompanhou na reta final deste trabalho, mesmo estando téo envolvida com suas préprias tarefas e prazos, foi a prova cabal de tudo que esté dito acima Aos meus pais e irmios, ¢ aos meus avés, devo o equilibrio necessério para continuar, mesmo quando o desanimo parecia ser maior do que a vontade de me tomar doutora, Além de todo o resto, minha gratidio € imensa por terem me proporcionado algo que eles ndo puderam ter. Tom continua achando que “s6 atrapalhou”, sem entender 0 quanto, na verdade, ensinou-nos a todos a forca da unio. Leonardo, além do interlocutor sempre critico, se mostrou mais uma vez meu Porto seguro. Seu companheirismo me acompanhou em todos os momentos deste trabalho. Por isso, a ele dedico esta tese ¢ o meu amor. VI Sumario Introducao. 1 Capitulo 1 — Os eseravos ¢ 0 direito. 19 Agostinha e as dentincias contra os senhores 19 Joaquim e Davi: as penas de morte e de galé perpétua, 40 José Mulato encontra Luiz Gama 58 Capitulo 2 — Nos tribunais e além. 3 A politica da lei 75 O direito nas ras. 100 Nas trincheiras da Justiga 108 Capitulo 3 — Legalistas radicais 137 Propaganda e meméria 138 Antonio Bento, “homem rude do sertdo” 155 A liberdade e as normas juridicas. 166 cies e reagdes, 181 Epilogo 197 Fontes e Bibliografia 213 vu vu Introducao Joaquim Nabuco, um dos mais ilustres participantes do processo da aboligao da escravidio, definia 0 movimento social mais marcante do século XIX no Brasil como resultado de um impulso nascido das camadas médias urbanas, que através da organizagio de seus agentes considerados modemizadores ~ principalmente os profissionais liberais — conduziram 0 escravo a liberdade, orientados por sentimentos humanitérios. De forma geral, a historiografia tendeu a endossar 0 ponto de vista de Nabuco, atribuindo a uma elite branca e ilustrada o papel de organizar e promover a passagem do trabalho escravo para o livre no Brasil, apoiada por uma legislagao emancipacionista gradual que garantiu a legalidade e a ordem do processo. Esta interpretacdo paternalista casou-se muito bem com a corrente historiogréfica sobre a escravidéo no Brasil segundo a qual o escravo, espoliado de sua humanidade pela violéncia do regime escravista, seria desprovido de qualquer ago auténoma, cabendo aos abolicionistas, movidos por sentimentos humanitérios € progressistas, 0 papel de resgaté- los do cativeiro.’ " Refiro-me aqui especialmente as teses da chamada Escola de Sao Paulo, que tem entre seus ‘expoentes Florestan Femandes, Fernando Henrique Cardoso, Emilia Viotti da Costa ¢ Octivio anni. Para uma critica a essas abordagens, conferir, entre outros, Sidney Chalhoub, Visdes da liberdade. Uma histéria das tltimas décadas da escravidéo na Corte, Sao Paulo: Cia. das Letras, 1990; Silvia Hunold Lara, Campos da violéncia. Escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; Célia Maria Marinho de Azevedo, Onda Esses pardmetros orientaram parte importante dos estudos cléssicos sobre a escravidio e seu término na provincia de Séo Paulo. Emflia Viotti da Costa, por exemplo, argumemtou que gragas ao desenvolvimento urbano e, com ele, a multiplicagéo de empresas € profissdes liberais, pode se formar uma “camada menos comprometida com a escravidio ¢ que ird servir de suporte para a aco abolicionista.”? De cardter estritamente urbano, este movimento s6 teria se expandido para o campo tardiamente, com o intuito de desorganizar 0 trabalho ¢ acelerar as reformas. Sendo assim, 0 protesto espontineo da senzala foi interpretado por Viotti da Costa como explosées que brotavam da revolta “sem dirego nem programas”. Diante de negros incapazes de conferir um sentido politico & sua resisténcia, cabia aos Iideres do movimento a tarefa de conscientizé-los e Politizé-los.* Guardadas as devidas diferencas, premissas muito semelhantes sobre a atuagio do movimento abolicionista e seu contato com os escravos podem ser também encontradas em dois outros importantes trabalhos sobre S40 Paulo: o de Ronaldo Marcos dos Santos, Resisténcia e superagdo do escravismo na Provincia de Séo Paulo*, ¢ de Suely R. R. Queiroz, 4 aboligdo da escraviddo*. Afirmando que as formas de protesto dos escravos eram ineficazes por estarem condicionadas pela iniensa repressio que a sociedade escravista mantinha, estes autores concluem que 0 abolicionismo orientou € sistematizou 0 protesto dos cativos, transformando-o num “mecanismo de pressio direta negra medo branco. O negro no imagindrio das elites do século XIX, Rio de Janeiro: Paz ¢ Terra, 1987 * Emilia Viotti da Costa, Da senzala d coldnia, So Paulo: Livraria de Ciéncias Humanas, 1982, 5. 21. * Idem, p. 430. * Ronaldo Marcos dos Santos, Resisténcia e superacdo do escravismo na Provincia de Sao Paulo (1883 - 1888), Sio Paulo: IPE, 1980, (IPE/USP - Ensaios econémicos, 5). * Suely R.R. De Queiroz, 4 aboli¢do da escraviddo , So Paulo: Ed, Brasiliense, 1981. Cf. também, da mesma autora, Escraviddo Negra em Sao Paulo, Rio de Janeiro: José Olympio/INL, 1977. contra o sistema econémico.”® O que se pode observar é que estes estudos seguiram, de certa forma, os mesmos principios gerais, reiterando a interpretagio de Nabuco ~ associada a um dos modelos marxistas de luta politica, segundo 0 qual uma parcela da sociedade ilustrada ¢ esclarecida tem por miso levar aos oprimidos a consciéncia necessdria para transformar a sociedade.” E dentro dessa perspectiva, contudo, que se encontra um dos primeiros estudos académicos especificamente voltado para a campanha abolicionista em Sao Paulo na década de 1880, Ao estudar 0 movimento liderado por Antonio Bento ¢ sediado na Confraria de Nossa Senhora dos Remédios, Alice Aguiar de Barros Fontes afirma, em A pratica abolicionista em Sao Paulo: os caifazes (1882 - 1888), que “os caifazes nada mais foram do que os elementos que, sem terem vinculos e compromissos diretos com os interesses agrérios, emergem das préprias contradigées do sistema em agonia para fazé-lo avangar”.* Fruto da “‘realidade sécio-econémica de Sao Paulo”, este movimento teria nascido da “ago consciente daqueles que lutaram” em meio as contradigées inerentes & expansao da cafeicultura e sua prosperidade econdmica. Tal contexto teria gerado transformagées sociais profundas, das quais emergiram setores sociais autnomos ¢ mais permedveis aos progressos urbanos ¢ aos apelos imigrantistas.” Para a autora, estes aspectos teriam desarticulado 0 sistema escravista permitindo o florescimento de uma “aclio revolucionéria” por parte destes abolicionistas, abordada a partir de duas © Ronaldo Marcos dos Santos, op. cit, p.119. 7 Posigao esta ja bastante criticada pela historiografia. Conferir, por exemplo, Célia Maria M. De Azevedo, Onda negra medo branco, Sao Paulo: Paz ¢ Terra, 1987. No capitulo Ill a autora faz ‘uma revisdo sucinta, porém, bastante diditica e pertinente sobre esta historiografia 5 Alice Aguiar de Barros Fontes, A prdtica abolicionisia em Sao Paulo: os caifazes (1882 - 1888). ‘Sao Paulo, dissertagio de mestrado, FFLCH / USP, 1976, p. 127, 9 Idem, p. 20. caracteristicas principais: a desorganizacao do wabalho escravo e a organizagio do trabalho assalariado, Em nenhuma destas frentes de andlise, porém, a participagdo do escravo - maior interessado no assunto - 6 levada em conta. A desorganizac&o do trabalho escravo € explicada pela grande vitalidade das agdes empreendidas pelo grupo de Antonio Bento que, entrando nas fazendas, promovia as fugas ¢ conduzia os escravos a0 Quilombo do Jabaquara - fundado em 1882 pelos chamados caifazes para sanar a necessidade de um refiigio seguro para estes fugitivos. J4 a segunda etapa da atuacdo destes caifazes consistiria justamente em adequar estes foragidos ao trabalho assalariado. O que leva a autora a concluir que “os quilombolas do Jabaquara nfo tiveram poder de decisao sobre suas vidas” e a sua integragio no mercado de trabalho s6 era Possivel através de uma “deciso abolicionista’."” Mesmo quando a autora se volta para a ago dos escravos — em uma tinica e répida passagem ~ 0 faz apenas para ressaltar que, embora as téticas empregadas pelos caifazes fossem “resultado da experiéncia negra, que teve na fuga e no trabalho assalariado um dos muitos recursos de combate & escravidio”, coube aos abolicionistas a sistematizagio destas “formas de protesto negro”, estimulando “a reacdo escrava”.' Visto como um “comportamento revolucionério” de “coeréncia inquestiondvel”!”, o movimento dos caifazes, simbolizados na figura de Antonio Bento, ganha assim nesse trabalho todos os créditos da grande agitacdo abolicionista que tomou o Paulo na década de 1880, restando aos escravos 0 papel de coadjuvantes ou simples destinatérios de suas agdes. '° dem, p. 122. *\ Tdem, p. 93. * Idem, p. 14. Em contrapartida a esta visto do “redentora” do abolicionismo em Sao Paulo, a historiadora Célia Azevedo procurou mostrar papel determinante que os conflitos (reais, ou potenciais) gerados pelos escravos tiveram na agéo dos que defendiam o fim da escravidio. A imagem herdica ¢ tantas vezes repetida de homens que romperam com 0 sistema escravista em busca de uma nova ordem revoluciondria € desconstruida pela autora, que contextualiza estes personagens ¢ os identifica como pertencentes a uma elite branca e letrada, sendo eles informados conseqtlentemente pelos valores de seus pares — ‘como o racismo, a autoridade em relagdo ao negro, a defesa do direito & propriedade. Os diferentes projetos emancipacionistas e abolicionistas que tentavam definir 0 destino do negro na sociedade brasileira teriam sido, assim, formulados ao longo do século XIX a partir do medo que uma massa de negros miserdveis, escravos ou livres gerava em ricos proprietarios — que a todo custo tentavam formular politicas que Ihes garantissem 0 controle das tensées raciais. O “nao quero dos escravos” (titulo de um de seus capitulos), que se tomou mais sonoro ao longo das décadas de 1870 ¢ 1880 através do acirramento dos conflitos e do aumento das revoltas escravas, aparece neste trabalho como um fator fundamental na decisio dos politicos de decretarem legalmente o fim da escravidao. Seguindo estas premissas, a autora aborda também a atuagio dos caifazes de Antonio Bento — por meio de seu érgo de propaganda, 0 jomal 4 Redengdo. Através dos artigos publicados neste jomal conclui que, embora se declarassem contririos aos interesses escravistas, deslegitimando a propriedade escrava, na verdade acabaram propondo “medidas de controle social sobre os ex-escravos a fim de devolver aos fazendeiros esta mesma forca de trabalho que Ihes escapava, agora porém na condigao de assalariada.””" Desta forma, nao fugiam A preocupagio, comum a seu tempo, de assegurar a sujeigao do negro livre aos interesses agrdrios. Ao concentrar, contudo, 0 foco de suas investigagdes nos diversos projetos que foram elaborados para dar conta de uma transigdo segura do trabalho escrayo para o livre, a autora acaba por reduzir 0 movimento abolicionista a um projeto elitista, comprometido com interesses dos grandes Proprietdrios de terras, que teria como preocupasio maior controlar e direcionar as reivindicagées escravas. © abolicionismo teria funcionado entdo, como bem observou Maria Helena Machado, como uma “barragem conservadora” & aco destes escravos.'* Partindo da percepgo desta tendéncia das anélises historiogréficas, Maria Helena P.T. Machado, em estudo sobre os movimentos sociais na ultima década da escravidao em Sao Paulo, problematizou a crenga em uma lideranca das camadas médias urbanas, apontando para a existéncia de uma série de outras atuacdes e projetos diversificados dentro do que se convencionou chamar genericamente de movimento abolicionista. Questionando as conclusées generalizadas que ora vém os abolicionistas como herbis € ora como malfeitores, seu trabalho tem o propésito de “elativizar as liderangas incontestes destas visdes, apontando para uma complexa interacao de projetos e atuagdes diversas que, ao atingir extratos sociais perigosamente instaveis, colocou em curso uma atuagao politica muito menos comprometida com os cfnones do liberalismo, do imperialismo e do racismo cientifico do que até 0 momento se tem admitido.”'* Levando em conta a participacdo de diferentes setores sociais, ¢ o entrecruzamento de idéias de natureza bastante diversas, a autora trata 0 abolicionismo em sua feigdo “mais popular e dem, p. 257 Maria Helena P. T. Machado, O plano e 0 pinico. Os movimentos sociais na década da aboli¢ao. Sao Paulo: EDUSP, 1995, Idem, p. 146. radical”'®, com a intengdo de recuperar as pontes entre os movimentos de escravos nas fazendas ¢ 0 abolicionismo urbano — apresentando assim uma interpretagtio. mais dindmica ¢ portanto muito mais rica e complexa do processo abolicionista em So Paulo. De modo geral, contudo, a historiografia que trata do movimento abolicionista em Séo Paulo, das mais diversas vertentes, se muitas vezes foi feliz em contestar a meméria redentora que Joaquim Nabuco criou para 0 movimento abolicionista, acabou por endossar um aspecto fundamental dessa meméria, ressaltado pelo proprio Nabuco e seus contempordneos: sua periodizacao. Esta questéo chamou a atengdo de Célia Azevedo — que, ao discutir o legado desta meméria abolicionista, ressaltou a importancia dos trabalhos mais recentes preocupados em resgatar o papel de imigrantes, pobres livres, negros e escravos neste processo.'” Ao mesmo tempo, no entanto, a autora percebeu que estes estudos esto restritos & década de 1880 — periodo a partir do qual Joaquim Nabuco declarou ter comegado de fato a campanha abolicionista, defendendo assim uma meméria parlamentar, de carter legalista, para 0 movimento que depois se popularizou.'* Na historiografia sobre So Paulo esta periodizagdo aparece de forma bastante marcante, € pode-se acrescentar que no menos informada e reforgada por uma certa meméria paulista sobre o movimento, que se sobrep6s a outras. Ao investigar 0 processo ‘que transformou em legenda um dos principais lideres abolicionistas de Sto Paulo, Luiz ‘Gama, pude perceber como essa construgio comegou a ser forjada a partir de sua prépria ‘© Idem, p. 17. " Célia M. M. Azevedo, “Abolicionismo ¢ meméria das relagées raciais”, Estudos Afro - Asidticos, 26: 5 - 19, seterbro 1994. *© Joaquim Nabuco em Minka formacdo, Brasilia: UNB. 1963, aponta o dia 5 de margo de 1879 ‘como marco de inicio do movimento abolicionista. Neste dia 0 deputado Jerdnimo Sodré, da Bahia, proferiu um discurso na Cémara Geral do Império reivindicando a aboligéo total da escravidio, Apud Célia M. M. Azevedo, idem, p. 14. experiéncia, no calor de seu engajamento politico pela abolicao imediata da escravidao,!? Esta meméria foi se consolidando apés a sua morte, fazendo dele naquele momento um dos simbolos principais da luta abolicionista em um processo em que aparecem as mais diversas e dfspares interpretagdes sobre sua atuagdo neste movimento, construfdas por seus contemporaneos nas paginas dos jomais paulistanos. Em 1888, entretanto, os varios Projetos abolicionistas elegeram personagens distintos para disputar o pedestal de “verdadeiro her6i" da abolicao. Um dos embates mais explicito foi o expresso no jornal A Liberdade, editado por Antonio Bento, Ifder dos caifazes; “Enquanto o abolicionismo limitou-se a reconhecer a lei, requerendo o arbitramento dos libertandos; enquanto Luiz Gama e Américo de Campos trabalharam no recinto das Lojas Mag6nicas, (...) 0 escravagismo respondeu-lhes com a lei, dizendo-Ihes que defendiam uma propriedade legitimamente adquirida. Eles, bem como Ferreira de Menezes e José do Patrocinio assim pareciam acreditar, porque, em vez de recorrerem aos meios decisivos de que langou mao Antonio Bento, contentavam-se em promover quermesses e passeatas, com o fim de estimular o sentimento nacional.” Luiz Gama aparecia ento, neste jomal, como simbolo de um abolicionismo essencialmente legalista, a0 qual este movimento fazia questio de se opor. O tom Pejorative conferido & sua atuagdo, entendida por estes homens como legitimadora da propriedade escrava, ressaltava valorativamente a praticidade e a eficiéncia dos meios ilegais empregados por Antonio Bento € 0 grupo dos corajosos caifazes. Um outro joral chegou mesmo a afirmar que a propaganda abolicionista em Sao Paulo teria se iniciado a partir de Antonio Bento, “porque s6 entéo apareceram os resultados praticos.” Foi quando 08 caifazes, “que nfo eram graduados em direito, arrogaram-se outro “direito’, ndo de "° ‘Sobre a trajet6ria de Luiz Gama, conferir Eleiene Azevedo, Orfeu de Carapinha. A trajetéria de Luiz gama na Imperial cidade de Sdo Paulo, Campinas: Ed, da UNICAMP! CECULT, 1999, * J, Vieira de Almeida, “Antonio Bento”. 4 Liberdade, 17 de maio de 1888. entrar nos tribunais ¢ langar nas conchas da balanga da justiga os trinta dinheiros,(...) mas © ‘direito’ de escalar os quadrados”, libertando os escravos.”! Atrayés das folhas do jornal A Redengdo e A Liberdade, Antonio Bento ¢ seu ‘grupo de caifazes encarregaram-se de estabelecer marcos para a histéria do abolicionismo em Sao Paulo — definindo duas etapas distintas, aos quais este grupo atribuiu significados e valores proprios, que atendiam as suas intengdes em 1888. Em parte informada por esta meméria, estabeleceu-se assim um consenso geral na historiografia sobre o tema: So Paulo teria sido na década de 1870 0 palco do surgimento de um movimento pela libertagdio de escravos estritamente legalista, de tom moderado, restrito aos debates legislativos imigrantistas ¢ a atuagdo forense de Luiz Gama; s6 apés 1882, com a morte deste, teria se iniciado um abolicionismo radical, de forte ades3o popular, simbolizado na figura de Antonio Bento e seus caifazes que, desestabilizando a propriedade escrava, € desrespeitando sua legalidade, se dirigia diretamente aos cativos. Alice Aguiar de Barros Fontes endossa essa periodizacio, ao afirmar categoricamente que “a fase revolucionéria da campanha abolicionista vai de 1882 a 1888." Na década anterior, a atuagio abolicionista teria se limitado, segundo esta autora, 20s pardmetros legais adotados por Luiz Gama — 0 qual, embora ja defendesse uma radicalizago, nao teria chegado a efetiv4-la.* Célia Azevedo, por sua vez, também reafirma tal periodizagio, Por mais que relativize a radicalidade revolucionéria que 2 Didrio Mercantil, 25 de maio de 1888. 0 jomnalista 2o fatar dos “wrinta dinheiros” fazia uma alusio diteta a uma famosa polémica iniciada por Luiz Gama quando ofereceu como peciilio de uma jovem escrava a infima quantia de 305000 réis, alegando que “se é verdade, como a histéria © atesta, que a liberdade de Nosso Senhor Jesus Cristo foi vendida, perante o juiz hebreu, por trinta dinheiros, no é estranhavel que a suplicante se avaliasse por trinta mil réis.” Cf. Elciene Azevedo, op.cit,, especialmente o capitulo 4. ® Alice Aguiar de Barros Fontes, op. cit.p. 8, * Idem, p.As. Barros Fontes atribuiu & ago destes aboticionistas da década de 1880 - mostrando como também tinham como objetivo exercer um controle social sobre os escravos — sua andlise parte da mesma premissa que norteia os outros trabalhos. Assim, esta autora defende que na década de 1870 houve um crescente pipocar de crimes e revoltas escravas, gerando debates legislatives em tomo do imigrantismo; j nos anos 80 0s abolicionistas, “deixando de lado os seus eventos propagandisticos de saldo e agbes estritamente legais”, teriam passado a atuar, com 0 apoio de mascates, cocheiros, ferrovidrios, estudantes, menores € libertos, diretamente contra a propriedade.”* A propria diviséo dos assuntos nos capftulos de seu livro reflete a logica da prépria periodizacao. E porém a obra de Maria Helena P, T. Machado que, ao tentar resgatar outros projetos dentro do abolicionismo que nada tinham de elitista, acaba por fazer a andlise mais interessante sobre o tema. Embora afirme que 0 movimento paulistano teve sua “origem mais marcante no legalismo de advogados abolicionistas”, defende que s6 nos anos de 1880 ele teria se beneficiado de uma “forte participago popular”, com “conflitos de rua” que marcavam a sua radicalizacdo.”* Em vista dessa suposigdo, conclui que “a morte de Luiz Gama na cidade de Séo Paulo em 1882, marcando o fim de uma fase, abriu ‘uma nova etapa ao movimento abolicionista paulistano, com a teatral entrada em cena de Antonio Bento.”* O falecimento de Luiz Gama teria assim permitido, para Machado, a emergéncia de novas formas de luta contra a escravidao, representadas em especial pelo movimento dos caifazes ~ que aparecem em sua andlise como os expoentes maiores tanto da popularizacao das idéias abolicionistas como da radicalizagao do movimento. & Célia M. M. Azevedo, Onda negra, medo branco, pp. 215 e 216. * Maria Helena P.TMachado, op. cit., p. 151. Na pagina seguinte escreve: “A morte de Luiz Gama, na cidade de Sdo Paulo em 1882, marcando o fim de uma fase, abriu uma nova etapa 20 ‘movimento abolicionista paulistano, com a teatral entrada em cena de Antonio Bento.” 10 Assim, postulando caracteristicas elitistas e moderadas para o movimento abolicionista anterior 8 morte de Luiz Gama, tal tipo de viséo separava 0 proceso abolicionista paulista em dois momentos claramente delimitados. O primeiro teria como marca principal o apego & legalidade — postura que, fosse pelos objetivos ou pelos sujeitos que incorporava, nao chegaria a confrontar a propria légica do sistema escravista. (© segundo teria assumido ares mais populares e radicais ~ através da aco algo her6ica de Antonio Bento que, apés jurar sobre 0 caixdo de Luiz Gama dar continuidade & sua uta, teria dado ao movimento uma nova dimenséo. Dessa forma, os estudos que buscaram com sucesso resgatar experiéncias abolicionistas que pouco tinham a ver com 0 parlamentarismo defendido por Joaquim Nabuco, acabaram, por outro lado, repondo a periodizagdo estabelecida por essa mesma meméria. Carregadas de significagdes, tal marcagéo temporal acaba porém por atribuir valores externos aos acontecimentos que caracterizariam estes dois momentos, como se 0 que viesse depois fosse mais importante, melhor, mais legitimamente popular ou espontaneamente revoluciondrio do que anterior. Em (ltima instancia, pode-se dizer que constroem uma oposigao que opera com 0 antagonismo entre despolitizagdo € politizago, definindo o que é ou no politico a partir de idéias que sio exteriores a0 periodo analisado, Ou seja: acabam avaliando um movimento social do século XIX usando como parimetros caracteristicas ou concepgées sobe organizagées sociais de perfodos posteriores, como os movimentos operérios ¢ revolucionérios do inicio do século XX. Tais pressupostos acabam excluindo a possibilidade de perceber como politicas as diversas formas de engajamento e envolvimento tanto de escravos como de * Maria Helena P. T. Machado, op. cit, p.153 AL advogados ¢ autoridades piiblicas na atuagdo em favor da liberdade nas décadas de 1860 © 1870. E claro que tal oposicao também carrega em si uma interpretagdo a respeito da Participagdo dos escravos. Na fase "legalista" os cativos estariam excluidos da acio abolicionista, j4 que incapazes de uma atuagdo na arena judicial. Liderados por Antonio Bento, num segundo momento, participariam mais ativamente das lutas em prol da liberdade. Alguns estudos, no entanto, tém apontado © quanto as Iutas jurfdicas pela liberdade contaram com a participac&o direta dos escravos. Sidney Chalhoub, por exemplo, mostrou em Vises da Liberdade como o volume de agdes de liberdade iniciadas ao longo da década de 1860 pelos escravos da Corte ¢ 0s debates juridicos que elas provocaram estiveram diretamente relacionados a aspectos importantes do texto final da lei de 28 de setembro de 1871.7" Para tentar fugir dos riscos inerentes a esta periodizaco e seus valores, sem no entanto desconsiderar a existéncia de mudangas ao longo do tempo na historia do movimento abolicionista ocorrido na provincia de S40 Paulo, toma-se necessério acompanhar com mais cuidado o processo que gerou tal transformagéo — com um olhar que busque nao apenas suas diferencas e rupturas, mas também suas continuidades e reelaboragdes. Abordando 0 movimento abolicionista em Sao Paulo a partir de outros questionamentos, independentes dos marcos previamente estabelecidos, pretende-se aqui interrogar a l6gica de consolidago das estratégias e acdes que foram posteriormente rotuladas de radicais ou legalistas. Tal tarefa pode ser alcangada através do esforgo para Sidney Chalhoub, Visdes da Liberdade, passim. Vide também o estudo de Joseli Mendonca, Entre a Mao e os Anéis. A Lei dos sexagendirios e os caminhos da aboligdo no Brasil. Campinas. Editora da Unicamp/ Centro de Pesquisa em Histéria Social da Cultura, 1999 - que desenvolve raciocinio semelhante em relacdo & Lei de 28 de setembro de 1885. R buscar respostas em outras fontes, pouco analisadas pela historiografia que trata da aboligéo. Para além do trabalho junto aos jornais de grande circulagéo ¢ as folhas abolicionistas, fontes como os processos judiciais e a comespondéncia de jutzes de direito com 0s presidentes da provincia, aqui utilizadas, permitem outras possibilidades analiticas que extrapolem a meméria ¢ a propaganda abolicionista expressa nos periédicos — oferecendo a possibilidade de observar mais atentamente a relagéo entre advogados, juizes escravos na arena legal ¢ de examinar de perto a atuagdo dos chamados "Iegalistas” nos anos 1870 e 1880.” Os conflitos em tomno da liberdade ¢ de outras reivindicagdes escravas, travados entre senhores ¢ cativos na arena juridica, somados ao engajamento de advogados ¢ juizes na causa da aboligio, si momentos privilegiados da andlise. Através destes caminhos procurou-se entender, ao longo de um processo de mudanga, as dimensdes que a arena legal teve dentro do movimento, e 0 que significava ser um legalista ou um radical em face dos diferentes contextos politicos do perfodo estudado. Mais que isso, esses debates juridicos, ¢ a publicidade dada a eles pelos envolvidos, concorreram para um proceso de politizacZo do espaco publico, a partir nao somente da atuagio dos advogados nos tribunais e da propaganda dos abolicionistas nos jomais e comicios, mas também da agao dos proprios escravos. ‘A abordagem que se empreende neste trabalho, embora seja em muito informada por questdes surgidas a partir do confronto das fontes com os parfimetros que norteavam a bibliografia especifiea sobre o tema, esté portant pautada também nas questées te6ricas formuladas por E. P. Thompson, que apontou o campo da lei ¢ do direito como °° Maria Helena P. T. Machado ja recorreu & documentacdo policial e processos criminais para se aproximar das priticas abolicionistas, porém, seu trabalho se concentra na década de 1880. Maria 1B espaco indeterminado de lutas e de conflitos de interesses diversos. Tomada assim como uma arena privilegiada de efetivago dos conflitos sociais, a justiga pode ser vista como. um espaco capaz de modificar as relagdes sociais estabelecidas, ao mesmo tempo em que suas decisSes so também influenciadas pelas pressdes exercidas pelos diferentes interesses.? Guiado por tal objetivo, o primeiro capitulo debruga-se principalmente sobre os crimes de escravos cometidos contra seus senhores, € a repercussio dessas ages no meio Juridico através da documentago produzida pelos juizes de direito em relatorios enviados 20 presidente da provincia sobre os casos. Esse capitulo procura mostrar como mesmo através de atitudes consideradas irracionais ou desesperadas, os escravos de forma muito consciente reivindicavam na justica o direito de escolherem seus destinos, transformando um mecanismo institucional ¢ legalista, como o Judicidrio, em um espaco legitimo de eivindicagao de “direitos” — que muitas vezes nao diziam respeito & liberdade, mas simplesmente aos parémetros que oS cativos consideravam justos na relagdo senhor/escravo. Através deste aspecio, procura-se entender o significado que estes Helena P. T. Machado, O Plano ¢ o panico. passim. ® EP. Thompson. Senhores ¢ cagadores. A origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz ¢ Terra, 1987. Ao tomer a arena juridica a pani de tal perspectiva esse autor influenciou todo um campo de estudos, diretamente voltados para a escravidao e a aboligio no Brasil, que apontaram a importincia dos conflitos judiciais, nascidos das reivindicagdes escravas, no comprometimento € faléncia de politica de dominio senhorial. Entre eles, veja-se especialmente Silvia Hunold Lara op.cit; Sidney Chalhoub, op.cit; Hebe M. Mattos de Castro. Das cores do siléncio: os significados da liberdade no sudeste escravista ~ Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Esses autores, por sua vez, abriram caminho para que, a partir de uma perspectiva da histéria social, fossem abordados temas e questdes relacionados & confecgio das leis e suas interpretagdes nos tribunais, Vide Joseli Maria Nunes Mendonca, op. cit. ¢ Cenas da aboligdo. Escravos e senhores no parlamento e na justica. Sao Paulo: Fundacao Perseu Abramo, 2001; Eduardo Spiller Pena. Pajens da casa imperial. Jurisconsulto, escravidéo e a lei de 1871. Campinas: Editora da Unicamp/ Cecult, 2001; Keila Grinberg. O fiador dos brasileiros. Cidadania, escraviddo e diretto civil no tempo de Antonio Pereira Reboucas. Rio de Janeiro: Civilizagdo Brasileira, 2002 ¢ Liberata. A lei da ambiguidade, As ages de liberdade da Corte de apelagdo do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumaré, 1994 4 escravos estavam dando a Justica e como suas agbes estavam sendo compreendidas contestadas pelas autoridades publicas, judiciarias ou policiais que, cada vez mais, eram forcadas a tomar posturas politicas frente as reivindicagdes escravas. Os escravos ndo estavam, porém, sozinhos em sua aproximagao com © mundo do direito. Pelo menos desde a década de 60 do século XIX, sua busca por liberdade era amparada, nos tribunais ou fora deles, por advogados que assumiam sua defesa, elaborando estratégias e argumentacdes juridicas que sustentassem tecnicamente sua causa. O segundo capitulo centra-se por isso nos bacharéis e rabulas que, em contato com as aspiragdes e experiéncias escravas, constitu‘ram um s6lido apoio para estas lutas pela liberdade — com especial atengo para Luiz Gama, em toro do qual se organizou uma roda de advogados, politicos, magons e estudantes que passaram a atuar em conjunto pela mesma causa. ‘Sem limitar a andlise &s suas estratégias juridicas, trata-se assim de mostrar como essa politizago institucional se consolidou em consonfincia com o processo de popularizagio do abolicionismo ~ ¢ foi forjada na dindmica da relagio entre as expectativas e experiéncias escravas com a justiga € a atuagdo de advogados que encampavam suas reivindicagdes. Focando a anilise nos significados que, de fins da década de 1860 até 1880, escravos ¢ advogados estavam atribuindo a primeira lei que proibiu o trafico atlantico de africanos, de 1831, a andlise busca desvendar a dinamica das relagdes entre estes sujeitos sociais, que est4 no bojo da propria formagio de um movimento abolicionista em Sao Paulo. No final da década de 1870 tal movimento ganharia contornos cada vez mais fortes, em sintonia com o préprio acirramento dos conflitos entre senhores ¢ escravos ~ dando os primeitos sinais da discusséo em tomo da legalidade e da legitimidade da propriedade escrava que tomaria corpo, no parlamento, por ocasido das discussdes da lei dos sexagensirios. JA 0 capitulo trés procura discutir e questionar mais a fundo a idéia da ruptura do movimento abolicionista paulista, a partir da experiéncia dos proprios envolvidos e das transformagdes observadas ao longo do tempo. Para tanto, toma como eixo a figura de Antonio Bento, lideranga maxima do abolicionismo tido como radical. Através da documentacao criminal ¢ civel de Atibaia, foi possfvel reconstituir sua postura como magistrado ¢ delegado de policia em infcio da década de 1870 ~ muito antes, portanto, de se tornar 0 grande “chefe dos caifazes”. Essa documentago, juntamente com as referentes aos relatGrios produzidos pelo juiz de direito da comarca e pelos chefes de policia da provincia, configuram parte das fontes utilizadas para entender sua visio de mundo, principalmente no que dizia respeito ao seu comportamento como autoridade Judiciéria (tanto em relagio as demandas escravas quanto em relago as formalidades regras inerentes ao cargo que exercia). A dinamica do movimento abolicionista é perseguida, assim, através da trajet6ria deste juiz, que mais tarde tomou-se advogado na capital, ¢ das redes de solidariedade e resisténcia ligadas & sua atuago, Por fim, volto a0 tema da meméria, analisando no epflogo, através de alguns artigos publicados na imprensa, 0 processo de construgo de uma certa interpretagio sobre 0 abolicionismo na provincia de Sao Paulo. Terminado o percurso, restava retomar aS questdes apontadas nesta introdugo para pensar como péde se constituir, a partir do final da década de 1880, a visio sobre o movimento abolicionismo paulista que definia para ele a idéia da ruptura e da descontinuidade — na tentativa de entender a légica que, 16 ainda hoje, € capaz de fazer da meméria projetada por intelectuais como Joaquim Nabuco 1a propria hist6ria do movimento abolicionista em Sao Paulo. 7 18 Capitulo 1 — Os escravos e 0 direito Agostinha e as deniincias contra os senhores Em 1857, uma correspondéncia impressa no Avassoyaba, jomnal publicado na cidade de Sao Paulo, chamava a atenco das autoridades para 0 cotidiano de uma fazenda de café do interior da provincia. Tratava-se das terras do alferes José de Barros Dias, situada no municipio de Campinas, uma das regides mais densamente povoadas de escravos na provincia de Sao Paulo. Segundo o que se lia no jornal, as cercas desta fazenda encerravam cenas de horriveis crueldades senhoriais, que haviam culminado no assassinato de Pedro, um de seus escravos. A triste histéria que se desenvolveu a partir desta correspondéncia no se destacou entre as pilhas de fontes separadas para as discuss6es deste capitulo por ser a mais representativa de um determinado argumento. Sua escolha foi determinada exatamente pelas circunstdncias excepcionais que a rodeiam, que explicitadas ¢ analisadas podem nos evar para dentro de um universo pouco exposto — 0 dos bastidores de um processo criminal onde esto em jogo, mais do que a relagdo entre as partes, a propria relagdo das partes com a justiga e da justica com a sociedade que representa, ou da justiga consigo mesma 19 A publicagio de fatos to graves fez com que o chefe de policia da capital enviasse ao delegado de Campinas um oficio ordenando que procedesse a averiguacdes. Ordem prontamente cumprida foram assim oficiados os fazendeiros vizinhos, Moraes Salles ¢ Bittencourt, para reservadamente informarem 0 que sabiam. Entretanto, ou Porque no quisessem se comprometer, ou porque ndo quisessem comprometer a familia Barros Dias, ambos foram evasivos, usando da estratégia de dizer simplesmente que nenhum fato haviam presenciado — embora Moraes Salles tenha chegado a mencionar um. outro episédio ocorrido na fazenda, comentado por um escravo seu. Tudo o que o delegado péde, entio, entregar a0 promotor piiblico para que fosse aberto 0 processo criminal foi, assim, esta thtima informaggo, mais um mimero do jomal citado, e uma relagdo, feita pelo alferes, contendo os nomes dos escravos que haviam falecido no sitio € suas enfermidades, Embora em Campinas a voz piblica, corroborando a publicagdo, j4 murmurasse que a fazenda de José de Barros Dias era um “cemitério de escravos assassinados, e um pandem@nio de castigos atrozes e sem conta”, 0 promotor Antonio Gongalves Gomide chegou a conclusdo de que pouco podia fazer. Apesar das “minuciosas indagagdes” a que recorreu, no se sentia habilitado a oferecer a dentincia. Alegava, como justificativa, que tal acusagdo, “nio sendo provada em juizo, pudesse unicamente produzir efeitos perniciosos, pela influéncia que se devia recear exercesse sobre o animo da escravatura.” Entendendo-se com o delegado, concordaram que apenas tinham a “presungao” do fato criminoso, e diante de questo to delicada nao seria prudente intentar um processo crime contra o fazendeiro.”° E nesse ponto ficou sustado todo 0 procedimento, o caso foi, para usar uma expressfo recorrente hoje em dia, devidamente engavetado. Na verdade, até agui este relato esti clivado por elementos que nio chegam a ser muito surpreendentes. Por ser homem de elevada posigéo social, nem a dentincia do jomal nem os esforgos das autoridades foram suficientes para contestar na Justiga as prerrogativas senhoriais de Barros Dias. Preservado pelos seus pares e pela autoridade piiblica, 0 fazendeiro se viu, a principio, livre dos constrangimentos de um processo criminal. A excepcionalidade do caso est no fato de serem, por estes tempos, bastante escassas as dentincias desse género.*! Isso apenas tomava ainda mais dificil o trabalho das autoridades, que se viam diante de um dilema. De um lado a apuragéo de um crime desta ordem dificilmente atravessava a porteira da fazenda, para além da qual a vontade senhorial reinava absoluta, De outro, impor limites a essa autoridade era um passo delicado, como revelavam os motivos apresentados pelo promotor Gomide para no impetrar a acusaco judicial. As possiveis influéncias e oscilagdes que essa questio pudesse gerar no “Animo da escravatura”, tZo numerosa como era em Campinas, eram sua principal preocupacio. Entre a manutencao da ordem piblica, ¢ a interferéncia nas relagdes de ordem privada, o promotor piblico e 0 delegado de policia preferiram a primeira; e Barros Dias teve, no maximo, a reputacio ¢ o prestigio senhorial abalados. 2 AESP — Juiz de Direito/Campinas. CO 4760, mago ~ 1861. 28 de janeiro de 1861. O promotor relatou com detalhes seus procedimentos 20 delegado de policia Tito Augusto Pereira de Mattos. Primeiro interrogou o redator do jornal Avassoyaba, sem sucesso; visitou ainda Moraes Salles em sua fazenda, mas este ndo acrescentou nada 20 jé relatado anteriormente e, por fim, entendeu-se com todas as pessoas que Ihe parecia pudessem saber dos fatos, mas nada péde obter. ”” Maria Helena P.T. Machado observa que casos desta natureza ficaram, na maioria das vezes, restritos as fronteiras das fazendas ~ prova disso € que, no longo periodo estudado pela autora foram encontrados apenas oito casos em Campinas. Observa ainda que raramente 0 senhor era denunciado como autor de maus tratos, cabendo essa pecha aos seus encarregados ~ feitores ¢ Quatro anos depois, no entanto, entrou em cena uma nova personagem, mudando © pensamento do promotor Gomide e a sorte de José de Barros Dias. Em setembro de 1860, Agostinha, escrava nascida e criada na fazenda do alferes, apresentou-se ao novo delegado de policia, fazendo a seguinte declaracao: “que havia fugido do sitio do senhor, resolvida firmemente suicidar-se antes do que para ld voltar; porque, segundo dizia, tinha a certeza de ter a mesma sorte dos parceiros Guilherme, Miguel, Rosane, Joana, André, Verdnica e outros, cujo nomes especificou, mortos em castigo, enterrados, os trés primeiros em matos do sitio, em pontos que ofereceu para ir mostrar, e dois outros nas paragens chamadas — Os Agregados — em pontos que ela ignorava.”*? O delegado Tito Augusto Pereira de Mattos, que havia assumido 0 cargo hé pouco mais de um ano e meio, € ja havia sido colocado a par das investigagdes, envio Agostinha diretamente ao promotor Gomide. Respaldada pelas informagoes da escrava, a Promotoria decidiu requerer, como ato preparatério da dentincia, exames dentro das terras de Barros Dias, nas localidades apontadas pot Agostinha. Disso resultou a exumagio de trés esqueletos inteiros 1d encontrados. Foi entio que Barros Dias apresentou & promotoria sua defesa. Como explicagdo das ossadas que foram achadas, 0 fazendeiro alegou ter sido autorizado pelo Vigério a af enterrar os cadaveres de escravos suicidas. No entanto, nos assentos de ébitos escritos pelo proprio Vigario, constatou-se que Mateus, também escravo de Barros Dias, havia se suicidado em data posterior, e tinha sido recomendado e enterrado pelo mesmo Vigario no cemitério da cidade. Junte-se a isso 0 relatério apresentado pelos peritos da exumagio dos corpos encontrados no sitio, que atestavam outros motivos como causa da morte administradores. Maria Helena P. T. Machado. Crime e Escravidao. Trabalho, luta e resisténcia nas lavouras paulistas (1830-1888), So Paulo: Brasiliense, 1987. pp.72-73. © AESP ~ Juiz de Direito/Campinas. CO 4760, maco— 1861. 28 de janeiro de 1861 2 desses escravos, que nada tinham a ver com suicidio ou envenenamento — como declarado pelo fazendeiro anteriormente a policia.* Além disso, as declaragées de Agostinha revelavam um cotidiano na fazenda pincelado por cenas de extrema crueldade senhorial. Muitos de seus companheiros haviam sido punidos violentamente até a morte pelo feitor, a mando de sua senhora, que comandava pessoalmente todos os castigos. A principal razdo desses excessos era a suspeita de haver feiticeiros entre os escravos da fazenda, ¢ 0 medo dos senhores de serem por cles envenenados. Mas esse nao era o tinico motivo. Pedro Rapas, por exemplo, o escravo Pedro a quem se referia a dentincia do Avassoyaba em 1857, fora morto a “pancadas, por ter vendido lenha abaixo do prego.” Histérias de suplicios que Agostinha acompanhara muito de perto, pois a ela cabia a tarefa de aplicar sal e vinagre nas feridas causadas pelos castigos em seus parceiros. Além disso, ela propria era regularmente surrada por nao dar conta da pesada carga de servigos que, segundo ela, Ihe era imposta, recebendo constantes ameacas de sua senhora de ser posta “de gatinhas se no agiientasse 0 trabalho”. Situagdo que se tomou tdo insuportével a ponto de Jevar ‘Agostinha a declarar: “foram estes castigos e ameagas que determinaram a ela informante a sair de casa ¢ vir comunicar a justiga os fatos recorridos.”** Assim, diante de tantas informagGes, foi feita a dentincia e instaurado 0 proceso de formacGo de culpa. Barros Dias, sua mulher Indcia Joaquina Duarte ¢ 0 feitor escravo Eleutério de Andrade foram acusados, em dois autos criminais, de terem por meio de castigos imoderados causado a morte, nao de trés, mas de doze escravos! Se em 1857 a dentincia na imprensa e a oscilante vontade politica das autoridades nao foram suficientes Ider. para processar Barros Dias, a decisio da escrava Agostinha em revelar para as autoridades 0s fatos ocorridos na fazenda em que vivia surgiu como um novo e fundamental elemento, que resultou na apresentagdo de seus senhores como réus perante © Tribunal do Jtiri de Campinas. Ao contrério do que possa parecer, contudo, as coisas nao correram de forma tio linear e simples. Para além dos tramites do processo e das leis do Cédigo Criminal, travava-se agora uma outra guerra, bem mais complexa do que @ evidente nos autos. Afinal, o principal ato propulsor da abertura do processo era o questionamento de uma escrava, junto a justiga, dos limites do dominio exercido por seu senhor. Fato que no passou desapercebido pelos sujeitos que viveram esta hist6ria, Em janeiro de 1861, 0 presidente da provincia Conselheiro Antonio José Henriques, expedia uma portaria ordenando ao juiz de direito da Comarca de Campinas Affonso Cordeiro de Negreiros Lobato, que explicasse detalhadamente as irregularidades que um “avulso anénimo", publicado na capital sob a epigrafe “Ao Piblico”, afirmava existir no processo instaurado contra Barros Dias e sua mulher. A mando do juiz de direito, o primeiro a prestar as informagdes foi o delegado de policia e juiz municipal Pereira de Mattos, que havia conduzido as investigagdes. Nao por acaso, sua aten¢Zo estava toda voltada para explicar em que medida a agdo da escrava havia interferido no procedimento da ago criminal contra 0 fazendeiro. Apés exaustivo relato dos avangos € recuos da investigagio, jd mencionados aqui, conclufa: “Assim, a escrava Agostinha ndo foi direta ou indiretamente a denunciante contra seus senhores: ela néo fez mais do que informar & promotoria, forneceu-lhe meios de constatar a existéncia de crimes € provas que a convencessem habilitassem a denunciar os culpados. Onde esta pois a violag3o do pardgrafo 2° do artigo 75 do Cédigo do Processo Criminal? * ESP - Processos Criminais de Campinas, n, 693, ano 1857 e n. 683, ano 1865. Apud, Maria Helena P. T. Machado, Crime e Escravidao, pp. 73 74, 4 Nao pretendo refutar uma a uma todas as proposigées ¢ trechos declamatérios ¢ até contraditérios do avulso acerca da intervengao da autoridade em fatos desta ordem: somente direi que nao posso compreender conveniéncias sociais que determinem a autoridade a relaxar a aplicagdo da Lei, deixando impunes crimes de tamanha gravidade, e consentindo ou animando com a tolerdincia esse viver de barbaros no seio de uma sociedade crista, sendo certo que neste sentido recebi oficios do sr. dr. chefe de policia e um aviso do ministro da justiga de 26 de novembro de 1860, acompanhado de uma portaria do governo da provincia de 6 de dezembro do mesmo ano, em que se me ordenava que acelerasse 0 proceso.” De fato, segundo o parégrafo citado do Cédigo do Proceso Criminal, era vedado a0 escravo 0 direito de “dar dentincia contra o senhor”. Bem como figurar nas ages da justica como testemunha, ¢ sim como um mero informante ~ 0 que implicava néo ser seu depoimento constitutivo de prova - restrigdes Idgicas se entendidas 2 luz da condicao juridica do escravo no direito brasileiro. Considerado um bem semovente, um objeto de ‘l.* © autor anénimo do propriedade, era-lhe negado qualquer direito politico ou ci artigo argumentava, assim, que o delegado havia aceitado, ao arrepio da lei, a dentincia de uma escrava contra seus senhores. Pereira de Mattos, por sua vez, esforcava-se em demonstrar que tudo tinha se dado no mais rfgido cumprimento da lei, diminuindo a responsabilidade de Agostinha e tentando provar que 0 processo 6 havia sido instaurado diante de outras evidéncias, muito mais importantes que as apresentadas pela escrava. Era a rigida “aplicacdo da lei” que lhe garantia também a defesa de uma segunda questio: a interferéncia da justia nas relagbes de ordem privada entre senhores e suas propriedades, os escravos. Como bem observou a historiadora Keila Grinberg, “as mesmas leis que permitiam a um homem a posse e propriedade sobre outro negavam aos 25 AESP ~ Juiz de Direito/ Campinas. CO 4760, Mago: 1861. 28 de janeiro de 1861 "Para entender a condicio legal do escravo no século XIX ver, Perdigdo Malheiro. 4 escravidao no Brasil: ensaio histérico, juridico, social. Pettépolis, Vozes, 1976. 25

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