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Anotagées sobre o Tristéo no Faun lois preluidios ao pés-tonal. Acécio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC) Resumo: A proposta deste artigo & comentar uma homologia estrutural que se dé nos primeiros ccompassos de duas obras fundamentals da historia da mUsica européia: o prelidio da épera Tristan und Isolde, de Richard Wagner, e 0 Prélude & Faprés-midi d'un foune, de Claude Debussy. Iniialmente, uma breve discussio sobre o chamado acorde “tristio” conduz a uma apresentagio da referida homologia, apés 0 que seguem comentérios e ciscussbes, O objetivo nao é apresentar uma nova interpreta¢3o do acorde “tristio", mas sim comentar, sob 0 ponto de vista de uma musicologia que absorve ou é absorvida pela andlise, 0 dislogo entre as obras elas mesmas e sua forma furtiva para a andlise, porém consttutiva na historia da misica Palavras-chave: Acorde Tristdo; Wagner; Debussy; Andlise Musical Abstract: This article comments a structural homology which appears in the beginnings of two masterpieces of European music history: Wagner's prelude to Tristan und Isolde, and Debussy’s Prélude 2 Faprés-midl d'un faune. After a brief discussion on the so-called “tristan” chord, the homology is presented and commented. Under the perspective of a musicology which absorbes or is absorbed by analysis, ths article aims not to present a new interpretation of the “tristan” chord, but to discuss the dialog between the musical pieces themselves and its furtive nature for analysis, but which is constitutive to music history. Keywords: Tristan chord; Wagner; Debussy; Musical Analysis. [exemplo 1 ~o acorde “tristdo"] Desde a primeira audicéo da épera Tristan und Isolde, de Richard Wagner, em 1865, muito j fol escrito sobre o chamado acorde “tristao” (ex. 1), incitando fartos debates entre tedricos e analistas. A sonoridade meio-diminuta, apresentada desta forma destacada, no coragdo de uma peca tdo importante, foi encarada inicialmente como resultante de seu aspecto funcional. Formado pelos intervalos de tritono, 38 maior e 42, 0 acorde, que antecede uma dominante, fol interpretado como variante da fungio sub-dominante*, ou como segundo grau alterado, ou dominante da dominante®, Para varios analistas, a nota Sol" foi interpretada como sendo uma apojatura daquela que seria a verdadeira nota de acorde, 0 Ld, e por isto 0 acorde “tristao” seria tributério de um acorde de segundo grau com sexta aumentada, a ‘LORENZ (1985), entre outos 2, para SCHOENBERG (2006, p. 100-101) > KURTH (1985), entre outs SIMPOSIO DE PESQUISA EM MUSICA 2007 - DEARTES/UFPR 1 chamada sexta “francesa” ‘. Veja-se o exemplo abaixo, onde as apojaturas aparecem como notas negras e a tonalidade é considerada Lé menor: oF = 22 en-ta ug Vrs [exemplo 2—o acorde “tristdo" como sexta francesa) Estas interpretagbes foram contestadas por varios comentadores, como BAILEY, que afirma que Wagner se esforcou para que 0 ouvinte percebesse 0 Sol" como nota de acorde (1985, p. 124). Assim, o Soli seria uma nota de acorde e o Lé uma nota de passagem. Em sua anélise do Tristan, MITCHELL (1985, p. 247-8) mostra, com varios argumentos, levando em conta outras aparigBes do acorde “tristo” na pega, que esta acepeio seria a mais correta®. Em direco a uma perspectiva mais flexivel, podemos partir de Schoenberg, que 0 considerou um acorde vagante® e que, assim, pode suceder qualquer outro acorde, sua fungdo tonal dependendo do contexto’. Nesta direcio, interessa entender 0 acorde “tristfo” como meio-diminuto, ou seja, enarmonicamente equivalente ao meio-diminuto. Aparentemente Wagner tinh este objetivo, a julgar pelas enarmonias empregadas na versio para piano e vocal elaborada por Hans von Billow, aprovada por Wagner’ a [exemple 3 ~ enarmonia do acorde “tristio” na versio de Bulow) © acorde “tristo”, enquanto meio-diminuto, pode ser entendido também como inversio de uma triade menor com sexta adicionada (no caso acima, La * Como SESSIONS (1985) ou SALZER (1962:176),entte outros, PISTON (1994, p, 363-4) apresenta 0 corde como meio-diminuto oriundo de I do modo menor, porém que pode ser reinterpretado como acorde de sexta francesa Ver mais sobre este debate em NATTIEZ (1984). Ver uma discussio sobre este acorde em MENEZES (2002:80), onde & tatado como inicio de uma cadéncia figia, "CE. SCHOENBERG (1999, p 367) Ver DUDEQUE (1997). * CE KURTH (1985, p. 194.5) SIMPOSIO DE PESQUISA EM MUSICA 2007 - DEARTES/UFPR 2 menor)’. A aparente despreocupaco de Wagner quanto aos nomes das notas e, portanto, sua fungio no acorde, leva a crer que ele estava mais interessado no acorde “tristo” como sonoridade. Importa ressaltar aqui este desvio de foco: do papel tonal do acorde, onde desempenharia uma funcao secundaria, rumo a experiéncia de sua sonoridade em primeiro plano, sua feigio sonora para além da funcionalidade. Ou seja, interessa descrevé-lo como uma espécie de entidade harménica’® que constitui a esséncia do que poderlamos chamar de “idioma melo-diminuto”, linguagem fartamente empregada das iltimas décadas do século XIX até as primeiras décadas do XX, pega fundamental dos movimentos chamados “impressionista” e “expressionista’. © uso do meio-diminuto, neste periodo, vai além de sua fungao bisica de II” do modo menor, servindo como conexio entre acordes gerada por passo ou nota comum, ou ainda, de forma mais livre, como dissonéncia “emancipada’ Entretanto, minha intengdo neste artigo nao é fundamentar este idioma ou apresentar uma nova interpretacdo do acorde “tristo”, mas comentar, sob o ponto de vista de uma musicologia que absorve ou é absorvida pela andlise™, uma homologia estrutural que se dé nos primeiros compassos de duas obras fundamentais: 0 prelidio da dpera Tristao e Isolda, de Richard Wagner (doravante Tristan} e 0 Prélude & I'aprés- midi d'un faune, de Claude Debussy (doravante Prélude). Com isto, pretendo chamar a atengdo sobre certas formas de didlogo entre as obras musicais elas mesmas, fenémeno que, muitas vezes de forma furtiva 8 anélise, norteia a construcao da histéria da misica. De inicio, farei comentérios sobre estas duas obras e aspectos contextuais, destacando a influéncia wagneriana em Debussy. Em seguida, através de exemplos musicais e diagramas, apresentarei a homologia estrutural, apés o que tecerei comentérios finais. Mas afinal, o que mais hd para se falar sobre Tristan e Prélude? De fato, estas duas obras, separadamente, so tratadas em uma vastissima literatura, ambas tendo sido ali extensamente analisadas e comentadas. A épera Tristan und Isolde estreou em 1865, em Munique, sob a regéncia de Hans von Bulow, amigo e admirador de Wagner, que jé havia estreado o prelidio, em Praga, em 1859. A repercussio foi grande, houve muito debate no meio musical alemo, acalorado pela idéia wagneriana de “musica do futuro” A linguagem de Tristdo e Isolda trazia mudancas importantes no vocabulério harménico do século Xix tais como, por exemplo, a mistura modal, a precedéncia do aspecto linear na conducdo harménica dada pelo cromatismo, a eroséo da funcéo dominante através da adigdo de resolucdes alternativas, 0 acorde V’ como consonéncia local temporéria, a exposicdo indireta de elementos teméticos e motivicos, entre outras"*. Cabe lembrar que Wagner inspirou-se em Liszt e, certamente, em Beethoven, como se deduz da andlise da sonata para piano Op. 31 Nr. ° Ver BAILEY (1985, p, 123. " Ver MENEZES (2006, p. 43) "Ver SIMMS (1996, p. 45-46), onde hé exemplosdestesusos do “sti” em Faurée Schoener. " COOK & EVERIST (2001, p. xvi) ® Sobce a repercussio de Tristio, ver BAILEY (1985, p. 12-35), Wagner escreveu o artigo Zutunismusit mn 1860. Vero estado analitco de BAILEY sobre os rascunhos e versGespreliminares de Tristo Islda (1985, p.1-146). SIMPOSIO DE PESQUISA EM MUSICA 2007 - DEARTES/UFPR 3 3 a partir do compasso 35, trecho que envolve o acorde “tristdo” avant la lettre em uma textura e posigées especificas, como repeticao oitavada, [exemplo 4: 0 acorde “trist3o" em Beethoven, Exemplo extraido de MENEZES, 2002, p.82] Veros no exemplo 3 este conhecido caso da literatura analitica, 0 trecho do c. 35 a 41 desta sonata, onde o acorde tristao se transforma em diminuto. Trata-se de um trecho modulante que vai de | (Mi® maior), tonalidade principal, para V (Si° maior, atingido no c.46), no qual Beethoven emprega o acorde “tristéo” como Vil sensivel de tonalidades intermedisrias por ele tonicizadas. Como fica claro, dado o contexto tonal da peca, que ha apojaturas aqui, na vor do contralto (Mi° — Ré no primeiro exemplo), pode-se dizer que Beethoven, apesar de usar 0 acorde de forma destacada e em tempo forte, ainda nao fez uso do potencial multiplo da sonoridade “tristdo”, 0 que, a meu ver, somente ocorrerd em Wagner. Mas uma homologia estrutural em relacdo 2 Tristan chama a atencao: como no trecho inicial desta tltima, a estrutura (aqui de 2 compassos, Ié de 3) transposta (aqui, um tom acima, ld, uma terga menor acima), sendo seguida de repeti¢ao oitava acima (Ii, na terceira repeti¢a0, cc. 10-13). Enfim, este pequeno trecho de Beethoven certamente iluminou a criatividade de Wagner e, de uma forma sutil, continua presente no Tristéo. Este é um dos varios exemplos possiveis de uso de acorde meio-diminuto antes de Wagner. A sonoridade "tristo” nasce, assim, da musicalidade germanica romantica e pés-romantica, do espirito do século XIX, irmanada a dissolucdo da funcionalidade harménica tonal, que com ela se acentua ‘A misica de Wagner, parte fundamental deste movimento, era muito apreciada em Paris pelos artistas e intelectuais. Apés o fracasso da montagem de Tannhduser nesta cidade, em 1861, Baudelaire escreveu uma inspirada carta a Wagner, dizendo-Ihe que, com sua misica, “on se sent tout de suite enlevé et subjugué”, e que “ces profondes harmonies me paraissaient ressembler & ces excitants qui accélerent le pouls de imagination” "*. Estas palavras do grande poeta revelam efeitos da misica wagneriana nos artistas parisienses dos anos 60, particularmente entre os poetas simbolistas. Em 1885, o poeta Mallarmé, que era amigo de Debussy, escreveu um ensaio intitulado Richard Wagner, réverie d’un poete francais na Revue Wagnérienne, mostrando 0 alcance da estética wagneriana na linguagem poética’®, Até a virada do século XX, 0s artistas parisienses desenvolveram importantes "5 Sente-se de imediato clevado e subjugado”; “estas harmonias profundas me parecem se assemelhar aos estimilantes que aceleram 0 pulso da imaginagio”. BAUDELAIRE (1977, p. 51-52). Ver NATTIBZ, (2005, p. 213-227) "AUSTIN (1970, p. 3). SIMPOSIO DE PESQUISA EM MUSICA 2007 - DEARTES/UFPR 4 movimentos, como a pintura impressionista e a poesia simbolista, que surgiram em reacdo as sélidas convencées realistas do inicio do século XIX, em prol de uma nova arte para um novo século. A misica francesa, entretanto, nao acompanhava este asso, mantendo-se “elevada e subjugada” pela musicalidade wagneriana, predominando tipos formais e uma estética germanica’’. A primeira apresentasao do preliidio de Tristdo e Isolda em Paris (versio concerto}, em 1860, teve boa repercusséo do publico, apesar de algumas criticas negativas, especialmente de Berlioz". A primeira apresentaco da épera completa ‘ocorreu apenas em 1899, regida pelo famoso maestro Charles Lamoureux, amante & divulgador da obra wagneriana. A critica musical da virada do século tomou esta apresentag3o como um marco da evolugao da arte musical”. Neste ambiente, a formagio da Société Nationale de Musique, em 1871, foi um esforgo de construir um “renascimento” musical baseado na heranga do passado musical francés, onde a extensio do cromatismo e a intensificacdo expressiva tipicamente germénicas dessem lugar a uma musicalidade de temperamento mais francés”, Debussy desponta neste momento e lidera este esforco jd em suas primeiras obras. Debussy ndo apenas apreciava a musica de Wagner: ele tocava a obra de Wagner, ao piano, em diversos locais parisienses”*. Nao escapou, portanto, da “febre wagneriana”, e mantinha consigo a partitura do Tristdo e Isolda””. Em 1889, fez duas peregrinagdes a Bayreuth, onde ouviu esta dpera. Era profundamente influenciado pela musica de Wagner, 0 que se pode notar especialmente no Pelléas, fato fartamente comentado por um critico musical da época, o norte-americano Lawrence Gilman”, Em cangBes da década de 90, como Cing Poemes de Baudelaire, também & clara a influéncia de Wagner. De fato, a misica wagneriana parece irmanada e perfeitamente adequada ao espirito do simbolismo poético, contrério ao naturalismo, por sua entrega 8 imaginacao interior e aos estados de alma, 20 sensual e a0 sombrio”*. Debussy tina para com Wagner, entretanto, sentimentos ambiguos, pois 20 mesmo tempo em admirava sua musica, procurou deliberadamente afastar-se desta influéncia, que julgava nociva para o desenvolvimento de sua prépria linguagem’™. Este desejo revela 2 profunda importéncia do pensamento musical wagneriano para Debussy, isto no apenas no sentido harménico, mas também no naturalismo " MORGAN (1991, p40) BAILEY (1985) p. 28.32. ® Cx GILMAN (1907), Sobre o wagnerisio na vida musical parisiente do século XIX, ver ainda GUINCHARD (1963). 2 MORGAN (1991, p. 40-41) ® LEROLLE (1992) ® BONNEUR (1992) ® GILMAN (1907). % Ver FURNESS (1995) ® Debussy afirmo a Emest Hébert, em 1887, que oprimeiro ato de Tristioe Isolda era definitvamente a coisa mais bonita que conhecia em termos de profundidade emocional (KELLY. 2003, p. 32). SIMPOSIO DE PESQUISA EM MUSICA 2007 - DEARTES/UFPR 5 relacionado & expressividade lingilstica e no fluxo dramatico das emogdes”*, Estou me referindo aqui especificamente ao wagnerismo no Debussy da “primeira fase”, antes daquilo que seu amigo, o critico Louis Laloy, chamou de sua nouvelle maniére, o que se deu a partir de La Mer, quando Debussy se voltou para as sonoridades orientais & ibéricas’”, Note-se, entretanto, que a admiracéo pela musica wagneriana deixou rastros importantes em toda a carreira de Debussy”*. Basta ver a quantidade de referéncias a Wagner, tanto de amor quanto de édio, presentes nos seus escritos” Debussy nao era somente um compositor “intuitive”, um improvisador, pintor de imagens musicais: era igualmente o construtor de estruturas que, sabia, eram inovadoras. Minucioso quanto as proporgdes, este compositor chegou a utilizar a seco aurea, séries matematicas e padres geométricos na construcdo da estrutura de diversas de suas obras”. Na prépria estrutura musical do Prélude pode estar ancorada, como uma resposta formal no nivel do timbre, a estrutura poética do poema L’Aprés- midi d’'um faune, de Mallarmé, Nesta dirego, entendo que, para além das parédias, evidentes™, faz parte da linguagem de Debussy a utilizacdo, de forma sutil, de referéncias e homologias em diversos niveis estruturais e seménticos. € neste sentido que a homologia que comentarei adiante pode ser pertinente. Apesar do fato que, antes do Prélude, 0 acorde “trist&o” jé havia sido largamente utilizado por Debussy na sua 6pera Pélleas et Mélisande™, a configuracao estrutural que mostrarei ndo havia aparecido antes em sua musica. Nestes primeiros compassos, dois preliidios se tocam, abrindo um novo tempo, aquele do pés-tonal. Retomarei este ponto no final deste artigo. ‘Ahomologia estrutural™ é a seguinte: nos primeiros compassos de Tristan, uma linha de violoncelo iniciada por salto ascendente de sexta menor que, descendo cromaticamente, conduz ao acorde “trist0", apresentado pelas madeiras, sendo este conduzido por cromatismo a um acorde de dominante, Mi com 72, seguido de pausa. % MORGAN (1991, p. 43) BROWN (2003) ® Para HOLLOWAY (1979), 0 wagnerismo de Debussy € muito mais profundo do que se imagina, encontrando sua mais forte expressio em Jew » Ver DEBUSSY (1989 [1921]. % HOWAT (1983) °' CE. CODE (2001), que argumenta que Debussy compés uma “Tuga litera Como na pega VI da Children's Cérner Suite, Gollwogs's cake walk, onde, a partir doc. 61, 0 primero motivo do Tristio e Isolda aparece varias vezes sob uma roupagem totalmente diferente. Notese {ue 0 acorde “ristio” nao éutlizado, em seu lugar aparecendo uma inversio de Ré bemol dominante com quartae nona, na primeira vez, ena segunda um Sol bemol maior com sexta adicionada, como nica. E hem clara aironia deste Tristo ¢ Tsolda em ragtime, que parece néo conseguir mais que uma simples eadéneia V-I, Ver BAUER (1992), ©» Ver SMITH (1989), que trata este acorde como meio-diminuto e afirma que a linguagem meio. diminuta debussyana é um meio de expressar 0 pthos de profunda tristeza (99-101), Para otras Lhomologias entre Prelude e Tristio, ver também ABBATE (1981). Entendo por homologia estratural una semelhanga nfo-superficial de estrtura entre obras musicas, abrangendo aspectos como padrao harménico, instrumentagao,textura, ritmo, segmentagao forma, et SIMPOSIO DE PESQUISA EM MUSICA 2007 - DEARTES/UFPR 6 mere Rickert Wagner Langa und schmarhtond ee ae ots Flaten 2 Hahoon Englisch Horn 2 Klavinetten i A atklarinete i A 3 Fagotte Lame 4 Horner ‘Sain E 3 Trompeten inF 9 Posaunen Rantnhe Pauken 4. Viotinen 2. Violinen Fratschen Violonoette Kontrabasse SIMPOSIO DE PESQUISA EM MUSICA 2007 - DEARTES/UFPR [exemplo 5- inicio do Preludio de Tristdo e Isolda}™ Esta idéia se repete trés vezes. Apés a longa pausa de sete tempos, a configuracio se repete com salto de sexta maior e acorde “tristao” nas madeiras transposto uma terca ‘menor acima, levando & dominante Sol com 72. Nova pausa de quatro tempos, e mais uma vez a configuragdo se apresenta: salto de sexta maior nos violoncelos, cromatismo, acorde “tristdo”, cromatismo, dominante (Si com 78). Aparecem entéo duas vezes as notas Mi" Fé", na terceira vez soando sobre o acorde de Mi com que resolve em um grande Fé maior. parttura de bolso,edigio Phillarmonia/Universal Ed, Viena SIMPOSIO DE PESQUISA EM MUSICA 2007 — DEARTES/UFPR 8 Jé 0 Prélude se abre com uma linha melédica em arabesco, um solo de flauta, que conduz a um acorde no c.3, nas madeiras, trompas e harpa, que tem as caracteristicas de acorde “tristdo” (um D6" menor com sexta adicionada, ou La" meio- diminuto na primeira inversao). Segue a este acorde um acorde de dominante (Si” com 73), apés 0 qual hé uma pausa. A sequiéncia harménica “tristo-dominante” ¢ repetida, seguindo-se uma repetic3o apenas do Si°, Tris modded (MM. J 44) redtes L Tete modéré vroonceutes 33 SIMPOSIO DE PESQUISA EM MUSICA 2007 — DEARTES/UFPR 9 ” Debussy exemple 6 inicio do Prélude @ oprés-midid’um faunel £ importante lembrar que a repeti¢go imediata de uma estrutura, ou duplicac3o, é um elemento extremamente importante no estilo de Debussy’”. H4 duas duplicagdes aqui: uma da prépria estrutura tristdo-dominante (c.4-5 e 7-8), e outra que duplica apenas a dominante (8-9). Note-se que nesta segunda duplicacio, a primeira trompa toca a nota mi, correspondente ao quarto grau elevado de Si” (ultima nota dos c.8e9). Assim, hd no Prélude a mesma estrutura (acorde “tristdo” - dominante com 48 aumentada resolvendo na 58) que se encontra no Tristan. A homologia completa, portanto, envolve todos estes aspectos. Veja-se 0 diagrama abaixo, com reduges para piano: acima, o Tristan, abaixo, o Prélude. > Parttura em AUSTIN (1970) ” Ver RUWET (1972), SIMPOSIO DE PESQUISA EM MUSICA 2007 — DEARTES/UFPR 10 tema melédico tema melédico = Ean i acordé "tristtio" Ves ve 17 acordé “tristao" V4 ‘pausa acordé "tristao" Vises duplicagio tema melodico acSede “wistto" V7 | pausa acorde "tristio" Vie Vie's [exemplo 7 ~ comparacéo dos primeiros compassos de Tristan e Prélude] Este diagrama mostra a homologia grosso modo, Um detalhe interessante é que a voz mais grave do acorde “tristéo” em Tristan resolve meio tom abaixo, na fundamental da dominante, enquanto as vores intermedirias descem e 0 soprano sobe, realizando 0 leitmotiv cromético. Na rela¢ao “tristo-dominante” hd, assim, uma distancia de semitom no baixo. J4 no Prélude, é 0 préprio acorde “trist3o” que se transforma em dominante: através da enarmonia, 0 baixo € 0 soprano se mantém, havendo a elevagio de um semitom nas vores internas Dé"-Ré e Mi-Fé. exemplo &~ transformacdes “tristdo-dominante”] Gostaria de mostrar ainda uma outra homologia estrutural que se pode observar: 0 uso especifico do acorde “tristo” nos 3 ultimos compassos do Prélude e no final de Tristdo e Isolda, na seco chamada de Liebestod, nos ultimos 5 compassos da épera, Neste final da dpera Tristo, com o mais elevado grau de expressividade, surge ‘© motivo cromatico ascendente da abertura, conhecido como 0 leitmotiv do amor ou desejo (5c. antes do fim). O oboé e o corne inglés dobram o motivo, as cordas, em trémolo, e os trombones, tocam o acorde “tristdo”: uma segunda inversao do quarto grau com sétima e fundamental aumentada de Si maior (Si, F4, Ré# e Sold, SIMPOSIO DE PESQUISA EM MUSICA 2007 — DEARTES/UFPR cry configurando a sonoridade de Fé meio-diminuto) levando 4 subdominante Mi menor, seguida de primeira inversio do segundo grau (outra configuragdo “tristéo”), e chegando a grande t6nica final, Si maior. W4 II't [exemple 9 final de Testo e Isolda] No final do Prélude, no c. 4 antes do fim, trompas e primeiros violinos apresentam o tema cromatico descendente e ascendente, inicio do arabesco de flauta que abre 2 obra. Note-se a interessante harmonizagao em blocos de triades maiores e menores. O que segue, no c. 3 antes do fim, € um acorde “trist8o” sobre o quarto grau aumentado de Mi maior (La", Mi, Sol” e D6", configurando a sonoridade de La* meio- SIMPOSIO DE PESQUISA EM MUSICA 2007 — DEARTES/UFPR R diminuto) levando a um Mi maior, estrutura que & duplicada no c. 2 antes do fim, terminando finalmente em Mi maior. Prelude to “The Afternoon of a Faun” 6 @ @ “rte ent ot tds retena Juequ's fin (eet ‘Topcon GET ste eng’ en wT wit [exempla 10 final do Prélude} ‘Ambos os movimentos finais destas obras, assim, passam por suas sonoridades iniciais, 0 cromatismo e 0 acorde “tristéo”, agora sobre 0 quarto grau aumentado, levando & ténica maior conclusiva. SIMPOSIO DE PESQUISA EM MUSICA 2007 — DEARTES/UFPR B [exemplo 11 — final de Tristio e isolda edo Préludel Ahomologia estrutural se manifesta nas duas pontas: o acorde “tristio”, principal protagonista, abre e fecha as obras que fecham o passado e abrem o futuro. © tempo é 0 que est em questi, jd que ambas as obras tém a ver com a longa duracao e apontam para o passado mitico. Tristan esta ancorado na mitologia celta”, no arcaico sabor expressionista da correlagio entre amor e morte. 0 Prélude, que nasce a partir de um quadro de Bucher que, visto pelo poeta Mallarmé, o inspira a escrever um poema sobre o fauno apaixonado, evocando o amor voluptuoso e 0 sofrimento na mitologia da Grécia cléssica, base da composicdo de Debussy”. A partir deste passado longinquo e originério, musicado com cromatismo e constantes modulacées no Tristan, e com arabescos e flutuagdes distantes da funcionalidade harménica no Prélude, somos levados a pensar que ambas as obras, calcadas em arquétipos do Ocidente, abrem-se para o futuro, preludiando o tempo do pés-tonal. Desta forma, as aberturas destas duas obras capitais apresentam uma homologia que leva a compreender a abertura do Prélude como uma espécie de sutil comentario ao Tristan, uma transformacao poética de uma poderosa idéia wagneriana, logo nos primeiros momentos de uma obra de Debussy que vai brilhar na historia como uma obra revolucionétia, liberta das amarras do século XIX, portal do moderno. Procurei mostrar esta homologia nas dimensées da harmonia e da textura, concordando com BERRY sobre a importancia da ultima na compreenséo analitica das. estruturas musicais (1987). O acorde “tristao” & mais que um simples acorde na épera: & ele mesmo um motivo, talver o leitmotiv mais importante em todo o drama, desde sua abertura até seu fechamento™. 0 Tristo no fauno ¢ igualmente fundamental e, para além do Prélude, é constitutivo do préprio estilo de Debussy. ® CE BAILEY (1985) » Ver AUSTIN, (1970), © Como argumenta KURTH (1985, p. 195-196), SIMPOSIO DE PESQUISA EM MUSICA 2007 - DEARTES/UFPR 4 0 “tristdo” & hoje ainda uma sonoridade originéria do espirito do final do século XIX e inicio do XX, brotando do processo de dissoluc3o da harmonia em rumo ao pés- tonal. Neste periodo, cuja vertente vienense podemos chamar de “noite transfigurada do tonalismo”, varias obras de Schoenberg e Berg empregam a “linguagem tristao”, repletas de dissonancias emancipadas”, acordes quartais ¢ de tons inteiros ainda com funcionalidade harménica (ALMADA, 2007). O acorde Tristdo, entendido de forma flexivel, como sonoridade, é igualmente um dos marcos estruturais deste periodo, parte da “nave harménica” que se desprendeu da gravitacdo tonal (CORREA, 2006:21), sendo amplamente utilizado por Debussy e outros compositores da virada do século e posteriormente, como p. ex., Berg, na Lyrische Suite (WHITALL, 1999:188-9). A sonoridade Tristo se propaga ao longo de diversos repertérios musicais do século XX, incluindo a misica brasileira”. Torna-se, assim, uma espécie de tdpica, figura de retérica musical convencional de uma época"", carregando consigo marcas do modernismo e da weltanschauung franco-germanica do final do século XIX, como metéfora da esséncia do desejo e da ansiedade™. 0 “tristdo no fauno”, ecoando por todo 0 século XX, ainda hoje nos desafia a perceber de que mito profundo se origina Referéncias Bibliograficas ABBATE, Carolyn, 2981 141. 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