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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.

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DA “TAREFA CICLÓPICA A MAIS SIMPLES”: SER MÃE. O DISCURSO


PUERICULTOR DE 1930

Ligiane de Meira
Graduanda do 4° ano de Licenciatura em História
Universidade Estadual de Ponta Grossa

A coluna do Dr. Mario Gomes “Ensaios de puericultura” na Revista Médica do


Paraná¹ em dezembro de 1932 em sua primeira edição trazia a seguinte afirmação:

“Tarefa ciclópica em que terão de se empenhar governantes e governados, chefes de


família, esculápios, educadores, oficiaes de terra e mar, diretores de fábricas,
administradores de fazendas, mestres de oficinas. Mas a tarefa maxima e ao mesmo
tempo mais simples e accessivel caberá às futuras e jovens mãis e as mãis de família
em geral. (pág. 18)

A ‘Tarefa ciclópica’ que o Dr. Gomes se refere era de construir o futuro da pátria:
“forte, belo e puro” (Revista Médica do Paraná, n. 1, dez. 1932, pág. 18). O discurso
proferido pelo Dr. coloca cada individuo em seu devido lugar na sociedade, cabendo a cada
um uma tarefa específica. A tarefa da mulher mãe era ‘máxima’, porém ‘simples’, para que
pudesse ser realizada. Tarefa que não poderia ser desempenhada de qualquer maneira,
portando para que não houvesse falhas o encaminhamento médico se fez necessário. Assim se
disseminou o saber da puericultura em que o discurso médico aliado ao Estado apresentaram
os moldes para a reformulação da nação brasileira.
O Brasil sofria com problemas de saúde pública desde o seu descobrimento, mesmo
com a Proclamação da República não apresentou significativas mudanças no modo de tratar
com a saúde da população, deixando os cuidados do bem-estar individual com cada província.
Esse quadro foi se modificando a partir da década de 1910 “que através do cuidado com a
saúde e a educação, o brasileiro poderia ser salvo do triste destino que aparentemente lhe
estava reservado devido miscigenação e o clima tropical do país” (BERTUCCI, 1999, p. 1)
afinal a educação como afirmava o Dr. Mario Gomes “é um dever de todos, especialmente
dos médicos, higienistas e professores – o de educar para melhorar” (Revista Paraná Médico,
n. 1, dez. 1932, p. 17).
Com o golpe de 1930, Getúlio Vargas assume o poder no Brasil e se torna presidente
do país. Uma das suas medidas é trazer para o Estado a questão da saúde pública, criando o
Ministério da Educação e Saúde em 14 de novembro de 1930, assumindo a clara ligação entre
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saúde e educação (BERTELOZZI; GRECO, 1996 p. 384), apresentando “a estreita relação


entre educação e sociedade, esta última estabelecendo o processo de educação, em razão de
seus interesses” (OLIVEIRA, 2008, p. 18) para normatizar a sociedade.
A frente da educação em prol da saúde estavam os médicos com o conhecimento
científico para melhorar a sociedade brasileira, a fim de conter o atraso da mistura racial no
Brasil, influenciados pelos ditames da eugenia (BERTUCCI, 1999, p. 1).
A aliança entre medicina e Estado se institui primeiramente na Alemanha (1880-1900)
e posteriormente para outros lugares da Europa, tornou-se “o que se pode chamar ciência do
Estado” (FOUCAULT, 1992, p. 47), possuindo como primeira intenção fortalecer os corpos
dos indivíduos que constituem a força estatal. Resultando numa “reciprocidade de interesses,
na qual o Estado reconheceu e incorporou o valor médico em suas ações políticas; enquanto a
medicina, por sua vez, adotou uma conduta política por se tratar das questões médicas.”
(MARQUES apud ALMEIRA, 2000, p. 9).
A preocupação de formar indivíduos sadios para a pátria fez com que as nações
européias fomentassem a ideia de superioridade, criando a noção de raça que foi “introduzida
na literatura mais especializada no início do século XIX por Georges Cuvier, inaugurando a
ideia da existência de heranças físicas permanentes entre os vários grupos humanos”
(SCHWARCZ, 1993, p. 47). Mais tarde o inglês Francis Galton publicou o livro Hereditary
Genius, em 1869, com a intenção do melhoramento da raça, sendo que os “indivíduos
acometidos por qualquer sinal de distúrbio mental ou físico deveriam abster-se da
reprodução” (MASIERO, 2005, p. 199).
Nos seus preceitos, a eugenia apresentava raças superiores (a branca) e inferiores
(todas as outras que não tinham matriz européia como a negra, indígena, oriental) e
condenava a miscigenação, pois a partir desta que “se previa a loucura, se entendia a
criminalidade” (SCHWARCZ, 1993, p. 190), a propensão ao alcoolismo.
No Brasil o discurso eugênico também participou do cotidiano brasileiro

“Na formação da nacionalidade brasileira – esse amalgama heterogenio a que


atingimos – concorreram vários fatores em todo o sentido: a fusão de uma parcela
ínfima de raça branca – o elemento superior, mas não puro nem selecionado – com a
raça indígena – considerada também mau elemento e a grande e lamentável
porcentagem de sangue africano, aqui trazido pelas multidões de escravos”. (Revista
Paraná Médico, n. 1, dez. 1932, pág. 17).

Porém como a população brasileira era essencialmente miscigenada a tentativa de um


‘branqueamento’ com a imigração européia não alcançou os resultados esperados pelo
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governo (STEPAN, 2005, p. 53), a educação se tornou a preocupação central do Estado, “é


um dever de todos, especialmente dos médicos, higienistas e professores – o de educar para
melhorar” (Revista Paraná Médico, n. 1, dez. 1932, pág 17).
A primeira educação recebida pela criança era a da família, tendo como principal
protagonista a mulher, sendo o alvo do discurso médico e por extensão da puericultura.
Entendendo por puericultura como um meio de “melhorar a saúde e as condições de
vida das crianças por meio do aconselhamento e educação das mães” (MARTINS, 2008, p.
136 – 137), o discurso puericultor apresentava nos seus preceitos qual era a melhor maneira
de educar seus filhos, ditando as regras do cuidado de toda a vida de uma criança. Por
exemplo na coluna de Ensaios de puericultura o Dr. Gomes deixa isso bem claro quando no
final de sua primeira palestra apresenta o caminho de seus escritos:

“Serão em numero de seis [estas insignificantes e bem intencionadas palestras] e não


somente sobre Puericultura, pois comprehenderaõ conselhos gerais sobre higiene
individual materna, infantil, estendendo-se até a juventude e completando assim o
ciclo de uma geração.
Obedecerão os seguintes títulos:
1º) Casamento – Gestação – Recem-Nascido
2º) Cuidado e preceitos durante a Lactancia
3º) Cuidados Especiais com prematuros, débeis, tarados e doentes
4º) Alimentação Mixta
5º) Desenvolvimento Normal da Criança
6º) Período Escolar – Adolescência – Juventude”

Se todos os ensinamentos contidos nas palestras do Dr. Mario Gomes fossem levados
com seriedade não haviam possibilidades de erros, colocando a criança como um indivíduo
futuramente sadio e pleno (BONILHA; RIVORÊDO, 2005, p. 7).
As primeiras manifestações de puericultura procuravam diminuir a alta taxa de
mortalidade infantil e educando as mães principalmente com a higiene e alimentação de seus
filhos. Na Inglaterra, por exemplo, no ano de 1862, se estabeleceu a Associação das Senhoras
para a Reforma Sanitária de Manchester e Salford, composta por senhoras das classes mais
abastadas, que através de visitas domiciliares tinham como propósito a redução da
mortalidade infantil, mostrando para as mães o correto modo de criar seus filhos
(MARQUES, 2000).
No Brasil o discurso da puericultura, mascarada de melhoramento racial através da
educação, auxiliou principalmente na higienização da família, delegando responsabilidades
para todas as instâncias sociais e colocando para a mulher mãe a missão de

“salvar as crianças, aperfeiçoá-las para que crescessem saudáveis e úteis para essa
grande família que é a nação, todo o sistema familiar deveria ser reformado, do
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casamento à organização da família: do sexo conjugal à criação dos filhos. É com


novo entendimento da necessidade de se controlar as famílias que a medicina
construiu a mãe higiênica, essa “amante dos filhos e aliada dos médicos” de acordo
com Freire, a quem era preciso também orientar, convencer, admoestar e, se
necessário, coagir para que bem desempenhasse o seu novo papel de boa e dedicada
mãe” (MARTINS, 2008, p. 144).

Se as futuras mães desempenhassem corretamente seu papel seguindo as orientações


médicas “as gerações vindouras, hão de se orgulhar de tais mãis, que souberam gerar, criar e
educar filhos fortes e sãos, os brasileiros de amanhã, o tipo nacional do futuro” (Revista
Paraná Médico, n.1 dez de 1932, p. 18).
A intervenção médica na criação dos filhos é dicotômica. A principio a maternidade
foi colocada como missão divina a ser desempenhada pela mulher: “tendência primordial [...]
em toda mulher normal o desejo de maternidade e que, uma vez satisfeito esse desejo, incita a
mulher a zelar pela proteção física e moral dos filhos” (BADINTER apud Larousse, 1985,
p.10). E em outro momento o discurso é reformulado afirmando que “não havia um modo
natural de criar filhos, ou seja, as mães, por mais amorosas e bem intencionadas, cometiam
muitos erros e deveriam ser guiadas pela racionalidade cientifica médica dos especialistas”
(MARTINS, 2008, p. 142).
Nessa linha pode-se compreender os argumentos dos médicos puericultores
apresentados para reformular o discurso acerca da maternidade em prol dos interesses
particulares, a fim da institucionalização de seu conhecimento científico visando, entre tantas
intenções a de normatização maternal e familiar, a manutenção feminina no ambiente privado,
a medicina como aliada do estado, a educação maternal como alternativa para melhoramento
racial.
O discurso médico por se caracterizar como científico, comprovavel e por possuir
como objeto de estudo o ser humano, ditando o que pode ser feito para o melhor da saúde
individual e coletiva se instituiu como um discurso parcialmente inquestionável.
Para se institucionalizarem os médicos apresentaram um discurso parcial, colocando o
saber popular como inferior e a razão como principal fonte de conhecimento e verdade como
o Dr. Mario Gomez afirma na Revista Médica do Paraná na edição de janeiro de 1933: “De
sórte que, ao lado da simpatia expontanea e reciproca, deverão os que se querem, completar
pela consulta à razão” (p. 41).
Para compreender os argumentos utilizados pelos médicos é preciso entender as
relações de poder contidas no discurso médico que para Foucault
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“O discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma


realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; gostaria
de mostrar, por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos,
vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas,
e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. (...) não mais
tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantes que remetem a
conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os
objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem
é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna
irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse "mais" que é preciso fazer aparecer e
que é preciso descrever. (Foucault, 1986, p. 56)

Os discursos para Foucault estão imersos em relações de poder, que se implicam


mutuamente, relacionados ás práticas sociais, que dialogam e se atualizam de acordo com o
interesse dos detentores do discurso vigente. Esse discurso apresenta regularidades
intrínsecas, podendo criar seus próprios conceitos que não residem na mentalidade nem na
consciência dos indivíduos; pelo contrário, elas estão no próprio discurso e se impõem a todos
aqueles que falam ou tentam falar dentro de um determinado campo discursivo (Foucault,
1986, p. 5).
Se analisarmos mais a fundo percebe-se que o discurso da puericultura é advindo do
discurso da eugenia, uma vez que o discurso é formado pela relação entre os enunciados
(FOUCAULT, 1971, p. 8-9) – por exemplo: os enunciados sobre os cuidados com as crianças
formam o discurso da puericultura, desde que sigam as regras para a formação desse discurso.
O discurso da eugenia surgiu para o melhoramento da raça, para perpetuar essa raça
melhorada é necessário que não haja óbitos, motivo esse para educar a mãe para assegurar
perfeitamente do futuro cidadão.
Quando o discurso é apresentado Foucault se apresenta da melhor maneira para se
trabalhar com gênero e instituições, pois seus escritos dão a possibilidade de “desnaturalizar
as categorias sobre as quais se fundavam as estruturas de poder , então, desestabilizá-las”
(SCOTT, 2002, p. 2)
E dentro desse discurso (discurso puericultor) buscar a normatização dos corpos numa
perspectiva de gênero uma vez que “os estudos de gênero procuram mostrar que as
referências culturais são sexualmente produzidas, por símbolos, jogos de significação,
cruzamentos de conceitos e relações de poder, conceitos normativos, relações de parentescos,
econômicas e políticas.” (SCOTT, 1999, p. 67).
Os discursos acerca da mulher “consideravam que a reprodução definia o papel social
das mesmas [mulheres], [...] sendo mais vulneráveis e socialmente dependentes dos homens, o
que fazia com que a administração de suas vidas reprodutivo-hereditárias parecesse mais
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urgente e mais factível” (STEPAN, 2005, p. 18), facilitando a institucionalização da


puericultura, respaldado pelo discurso médico e a aliança estabelecida entre Estado e
medicina
As discussões aqui apresentadas a cerca da puericultura no caso específico das
Palestras (assim como ele apresenta seus escritos na revista) proferidas pelo Dr. Mario Gomes
representam uma parte das discussões acerca da institucionalização do conhecimento
puericultor. Médicos, professores, padres, auxiliaram na construção de que a mulher não tinha
capacidade suficiente para cuidar sozinhas de seus filhos, sendo necessária sua educação.
Porém essa educação, no caso das palestras, era a um grupo restrito de mulheres que
tinha acesso a esse conhecimento por várias razões. Uma delas a de que a Revista Médica do
Paraná era produzida pelo corpo médico de Curitiba, tendo como principal alvo os médicos
paranaenses e outra que a grande maioria da população ser analfabeta e de baixo poder
aquisitivo, não podendo comprar e por instância ler os ditames puericultores.
Assim apresenta que o conhecimento da puericultura, culminando posteriormente na
institucionalização da pediatria, alcançava um público restrito de mulheres, indicando que o
conhecimento maternal ainda era repassado de mãe para filha baseado nos conhecimentos
populares.

NOTAS
¹ Fonte disponível na Biblioteca Federal do Paraná no setor de documentação paranaense. Mesmo tratando-se de
uma revista escrita e produzida pelo corpo médico do Paraná, a coluna Ensaios de Puericultura escrita pelo
Doutor Mario Gomes destinava-se às mães, indicando que seu foco não era apenas a classe médica, mas também
outras instâncias da sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Nova Fronteira, 1985.

BERTOLOZZI, Maria Rita; GRECO, R. M. As políticas de saúde no Brasil: reconstrução


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BERTUCCI, Liane Maria. A tese da construção do ‘povo brasileiro’ nos anos 1910. In:
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MASIERO, André Luís. A Psicologia racial no Brasil (1918-1929). Estudos de Psicologia,


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