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Laço de Esperança

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Pedro Salvador

Laço de Esperança

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Título: Laço de Esperança
Autor: Pedro Salvador
Portugal
www.bubok.pt

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Ao meu avô, Ângelo Beira, pela sua compreensão, ternura e dedicação e à
minha mãe, Ana Beira, por conseguir personificar o “amor de mãe”.

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“Na Vida todos temos um segredo inconfessável,
Um arrependimento irreversível,
Um sonho inalcançável
E um amor inesquecível.”
Diego Marchi

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Prólogo

Estou deitada sobre uma maca branca, mas sinto-me deitada sobre um
tapete de espinhos. Grito interiormente com quantas forças tenho, mas nada se
ouve. Apenas o meu interior estremece à passagem do meu grito desesperado.
À minha volta, só passam homens e mulheres de roupas e toucas verdes e
com máscaras que lhes cobrem a boca e o nariz. Olho de relance para a máquina
que mostra o meu batimento cardíaco e cujo nome desconheço. Pelo que
percebo, o meu coração bombeia o sangue ferozmente para o meu corpo
atemorizado e dolorido.
Seguidamente, olho para ela, que se encontra na maca ao meu lado.
Demoro um pouco a descobrir o seu pequeno corpo magro debaixo dos brancos
lençóis. Ela olha-me, sorrindo suavemente, como costuma fazer. Aquele belo
sorriso de criança que jaz naquela sua face pálida e cansada.
Ela olha-me nos olhos. Aqueles olhos de cor invulgar que começam a
absorver tudo em mim. Sou literalmente sugada pelo seu olhar penetrante e ao
mesmo tempo carinhoso.
Ao longe, um murmúrio ecoa. Sei que é a hora, sinto-o. O meu ritmo
cardíaco aumenta ainda mais, à medida que todos os médicos se dirigem a mim,
com um olhar sério.
Uma mulher, não muito alta, coloca-se perto de mim, trazendo consigo
uma máquina com uma espécie de “máscara respiratória”.
- Eu vou colocar isto e você contará de dez até um, percebeu? – informa a
mulher calmamente, preparando-se para colocar a “máscara respiratória” sobre
o meu nariz e boca.
- Sim… – respondo num sussurro.
A mulher coloca a máscara e um estranho fumo começa a ser inalado
pelo meu nariz.
- Dez…
Recordo quando elas entraram para o bloco operatório, confiantes,
decididas, lutadoras… E recordo que elas já não voltaram a sair. Eu esperei horas,
sentada, sozinha, na sala de espera, por um sinal de vida que não chegou a vir.
- Nove…
Ainda lembro a expressão na cara do médico cirurgião quando se dirigiu a
mim, com a triste notícia de que elas não haviam sobrevivido a um problema
durante a operação. Eu, com lágrimas a jorrar dos olhos, caí no chão da sala de
espera.
- Oito…
O fumo é absorvido por todas as minhas células. O meu corpo começa a
adormecer lentamente. Os meus olhos tornam-se cada vez mais pesados. Sei
que ela me observa. Sinto o seu olhar absorver tudo o que resta de mim naquele
momento. Tudo o que ainda não adormeceu.
Mas não consigo. Não posso.

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Desde pequena que os hospitais me angustiam, uma vez que receio
perder alguém que amo num hospital. E isto aconteceu, e está a acontecer
novamente. Não é só alguém que eu amo que está a morrer. Eu também estou.
Não posso mais. Não aguento esta pressão na minha cabeça e no meu
coração.
Abro os olhos bruscamente e começo a espernear e arrancar à força tudo
o que está ligado ao meu corpo. Tiro a “máscara respiratória” e tento levantar-
me o mais rápido que consigo. Mas parece-me tudo muito lento. Tanto os meus
movimentos como os movimentos dos médicos e enfermeiras parecem um filme
em câmara lenta. Tudo isto devido à sonolência em que o meu corpo se
encontra.
Salto da maca e começo a correr. Sou agarrada por uma enfermeira, mas
solto-me ferozmente. Corro o mais que consigo, atravessando, aos encontrões, a
porta do bloco operatório.
Fujo dali… Fujo para sempre…
Ela não se mexe. Sei apenas que o seu sorriso se desvanece e que o seu
olhar segue todos os meus movimentos, sendo a última coisa que eu vejo ao
sair do bloco operatório.
Não posso, agora, voltar atrás.
Deixei-a, sozinha, sem nada… Enquanto que eu perdi o que me restava, a
minha “Hope1”…

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Hope significa Esperança

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Primeira Parte

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Capítulo 1
Presente
Sexta-feira, 8 de Agosto

Evelyn
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Acordo bruscamente. Os meus olhos procuram desesperadamente um


sinal que me familiarize com o local onde me encontro. Não me mexo e quase
não respiro até poder ter uma vaga ideia de onde estou.
Inicialmente, a escuridão não me permite descobrir o que me rodeia.
Contudo, após algum tempo os meus olhos adaptam-se ao escuro e confirmo,
aliviada, que estou no meu quarto e que tudo não passou de um pesadelo.
Levanto-me e acendo a luz que ilumina todo o meu pequeno quarto.
Dirijo-me até à casa de banho e lavo a minha face. Enquanto me limpo a uma
toalha olho-me ao espelho.
Estou velha. O meu cabelo outrora louro e sedoso agora encontra-se
castanho e oleoso. Na minha cara, vêem-se rugas e umas grandes olheiras. Há
alguns dias que não durmo. Os pesadelos regressaram novamente, tudo porque
eu abri a maldita gaveta que há anos estava trancada e intocável, guardando
para si todos os fantasmas.
Sei que já não vou dormir. Não me irei entregar de novo àquele pesadelo
que tanto me atormentou e que agora regressou das sombras do passado.
Olho para o meu corpo. Sobre a camisa de dormir jaz um corpo magro,
antigamente elegante. Nos últimos dias, pouco tenho comido. Sinto um nó no
estômago que impede que a comida entre.
Vou até à cozinha e pego um copo que encho de leite. Seguidamente,
sento-me no sofá da sala e ligo a televisão. São quatro da manhã pelo que só
passam programas de televendas ou dão filmes desinteressantes. Paro de fazer
zapping, coloco o comando sobre a mesa enquanto a televisão transmite uma
imagem de um aspirador “com mil e uma funções”. Apesar de olhar para a
televisão, a minha mente navega por locais muito distantes. Estou acordada mas
continuo a sonhar. Sonho que me encontro num lugar escuro, onde estou
sozinha. Algum tempo depois aparece, irradiando uma luz, uma doce criança
com cerca de oito anos. Esta apenas veste uma túnica branca que lhe chega até
aos joelhos. É bela, de cabelos castanhos com madeixas louras, um suave sorriso
e uns olhos como eu jamais irei encontrar em toda a minha vida. São grandes,
tingidos de violeta, e olham-me com uma expressão carinhosa. Eu nada digo, até
que ela me estende a sua mão.
- Está na hora! – declara com a sua voz de criança.
- Não, não está! – respondo sem hesitar.
Ela olha-me novamente com um olhar carinhoso. Aqueles olhos
trespassam o meu corpo, a minha alma. Começam a inundar-me de um

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sentimento cujo nome desconheço e totalmente inexplicável, que me faz recuar
alguns passos atrás.
Solta uma leve gargalhada inocente e pergunta:
- Pelo que esperas?
- Não sei… Por algo que ainda não encontrei…
- Mas não precisas de esperar mais. Vem… – pede calmamente.
- Não posso – respondo começando a correr pela escuridão.
Corro o mais que posso. Olho para trás e vejo-a de braço estendido na
minha direcção, acompanhando os meus movimentos com os seus olhos
cintilantes.
Dou por mim com o copo sem leite tombado sobre a minha boca aberta.
Na televisão são transmitidos anúncios de filmes e produtos domésticos. Agarro
no comando e desligo a televisão.
Saio da sala e vou para o meu quarto, sabendo que não irei dormir mais
esta noite. Não adianta sequer tentar, uma vez que tentar voltar a dormir é o
equivalente a deixar-me ser invadida por todo aquele tormento. Vou ler um livro
na esperança de que uma outra história me faça esquecer, nem que seja por um
breve minuto. Pego num que ando a ler e que se encontra na minha mesa-de-
cabeceira. O título é “Por Mais Que Fujas” e conta a história de uma mulher que
tem corrido pelo Mundo em busca de algo. De certa forma assemelha-se a mim,
uma vez que eu também procuro algo, não sei bem o quê. Procuro algo que me
preencha este vazio, este buraco negro no meu ser que há anos se vai tornando
maior e cada vez mais negro, não deixando entrar qualquer sinal de vida e de luz.
Sento-me na cama e começo a ler, mas dou por mim a ler vezes sem conta
a mesma frase. Não percebo o seu significado. As letras fogem da minha visão
ou então começam a entrelaçar-se formando apenas riscos na folha de papel.
Não vale a pena. Não me consigo concentrar. Enquanto o meu olhar fita as
palavras do livro a minha mente vagueia pela gaveta do móvel em frente à
minha cama. Sem mais nem menos quebra a fechadura e começa a devorar
tudo o que lá se encontra trazendo até mim memórias antigas. Estas memórias
começam a deambular pelo ar como um perfume que se julga ter esquecido,
contudo, basta apenas uma pequena gotícula desse aroma para que ele se
desperte e faça recordar.
Olho agora para a gaveta trancada há tantos anos, guardando no seu
interior fantasmas que estão prestes a escapar. O meu corpo anseia e teme. Não
terei descanso até acabar com tudo de uma vez.
Deixo o livro sobre a cama e vou até à gaveta. Toco ao de leve no puxador
dourado. Deixo-me levar pelo vento que emana, viajando por lugares distantes.
Vou ter que abrir a gaveta, libertar o que encerra e destruir o que não foi
esquecido, apagando todos os rastos de um caminho que outrora percorri.
Pego na chave e rodo-a na fechadura da gaveta. O meu coração palpita no
meu peito. Uma rajada de vento escapa da gaveta levemente aberta e atordoa-
me.

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Respiro ofegantemente. Sinto o meu quente sangue percorrer todo o meu
corpo. Fazendo uso da pouca coragem que me resta, abro a gaveta de rompante.
Olho para o seu interior.
Dezenas de cartas que nunca chegaram ao destinatário jazem,
entorpecidas e amarrotadas na gaveta. O vento nunca as levou. Adormeceu
passível com elas, esperando por este momento. Esperando pelo momento em
que iria regressar com todos os meus fantasmas.
Esse momento chegou. Começo a tirar carta a carta da gaveta, sabendo
que esta noite não voltarei a adormecer.

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Capítulo 2
Presente
Sábado, 9 de Agosto

Luís
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“Never give up… The tide is high but I’m holding on… I’m gonna be a
number one…”
São oito e pouco da manhã quando acordo. Sei que não acordei ao acaso.
Fui desperto por um som proveniente de outra divisão da casa. Um som com
ritmo, talvez uma música. Sim, uma música. Mas não uma música banal e
invulgar, não. É uma música que me é familiar, que ouço praticamente desde
que me mudei para esta casa. A música desce do primeiro andar e vem até ao
meu quarto no andar inferior, invadindo-me.
Esfrego os olhos lentamente, enquanto escuto a sua voz a ecoar por toda
a casa, chegando até aos cantos mais recatados. Olho para o lado. Ana continua
a dormir. Dorme de forma tão angelical e harmoniosa. Mantém aquele seu
suave sorriso. Passo a minha mão pelos seus belos lábios e afasto alguns cabelos
loiros da sua face.
“It’s not the things you do to try hurt me so… But it’s the way you do the
things you do for me…”
Levanto-me da cama, visto o robe e subo as escadas. À medida que me
vou aproximando do primeiro andar, a música ecoa mais alto. Aquela música
característica dos sábados. Aquela música que mostra a energia que ela possui.
Apesar de me encontrar um pouco aborrecido por ser acordado constantemente
nos sábados de manhã após uma semana de trabalho árduo, sei que sem esta
música a casa não tem a mesma vida, fica cinzenta e sombria.
Ainda me lembro dos sábados em que acordei e não ouvi The Tide Is High
e do medo que tive de nunca mais ouvi-la. Relembro de como a casa ficou
silenciosa sem a música e de como este silêncio me arrebatou.
Estou à porta do seu quarto. A música soa cada vez mais alto,
transportando, com as notas musicais, a sua felicidade ao cantar a música. Não
se trata de uma música que me fascine, contudo, estou habituado a ouvi-la
todos os sábados já não importando.
“Number one… Number one…”
Ela está aos pulos pelo quarto, segurando um pente para encaracolar
cabelo, fingindo ser um microfone. Canta bem alto, para que a sua voz possa
sobressair à voz das cantoras e invada tudo em seu redor.
Sorrio ao ver a sua alegria. Tem uma linda voz e sabe pronunciar inglês
tão fluentemente como português. Ela não me vê. Está demasiado
compenetrada na música e na dança que executa ao som de The Tide Is High.

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Por fim, a música termina e ela faz um final em grande como se estivesse
num palco em frente a milhões de pessoas.
- Esperança! – chamo.
Ela olha para mim com um ar muito admirado, como se não soubesse que
todos os sábados a chamo à atenção por causa do volume da música logo de
manhã.
- Bom dia pai – diz sorrindo.
Como ela cresceu. Até parece que foi ontem que era tão pequena que eu
tinha quase a certeza de que caberia na palma da minha mão ou que pudesse
escorregar nos meus braços. Porém, hoje a minha filha tem quase dezoito anos.
Tornou-se numa linda mulher. Os seus cabelos castanhos, com partes loiras,
ondulados e despenteados caem-lhe sobre os ombros. É alta, magra e de pele
branca ligeiramente bronzeada. Ainda assim não é o facto de ser bela que a
distingue. Não. Podia ser uma rapariga não tão bela nem tão elegante, mas iria
ter sempre algo que a distinguisse de todos os outros.
Fito a sua característica invulgar. Aqueles seus olhos… Redondos, belos e
tingidos de violeta, a cor de olhos mais incomum no mundo. Esta característica
descende da sua avó materna, também ela com os olhos violetas. Nunca a
cheguei a conhecer, apenas vi fotografias suas. Contudo, os olhos de Esperança,
ao invés dos de sua avó, mostram um brilho, uma paixão de viver. No interior
desta jovem de dezoito anos vive uma criança energética e vívida.
- Bom dia filha – cumprimento-a sorrindo.
Ela vem até mim, abraçando-me, e dando-me um beijo de bom dia.
- Desculpa o barulho – diz sorrindo. – Mas a Ana também não acordou.
- Pois não – respondo eu rindo. – Ela tem um sono muito profundo.
Dorme como uma pedra.
Rimo-nos durante algum tempo e depois desço novamente as escadas.
Esperança vai para a casa de banho tomar um duche e a música começa
novamente a ecoar em toda a casa.
“I’m not the kinda girl who gives up just like that…”
Chego ao meu quarto e Ana continua a dormir com a sua pose angelical e
harmoniosa. Olho para a minha mulher. Desde a primeira vez que falei com ela
que pensei que seria ela a bóia que me iria salvar, uma vez que eu estava a
afundar-me cada vez mais em mim.

Tinha acabado de sair do hospital e passei por um jardim mesmo em


frente, fazendo um atalho até ao restaurante mais próximo quando a vi. Não era
a primeira vez que a via. Como já fazia aquele trajecto há algum tempo, tinha
reparado que, nas terças-feiras, ela se encontrava a ler um livro, sentada num
banco a meio do jardim, onde uma grande árvore fazia sombra.
De todas as vezes que passava pelo jardim sabia que nem que fosse por
uma fracção de segundos, ela desviava a atenção do livro e ficava a espiar-me.
De certa forma sentia-me incomodado, uma vez que, sentia que caminhava de
forma estranha.

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Inicialmente, aquela bela mulher, alta e loira, era-me indiferente, devido
ao facto de estar demasiado preocupado com a minha filha para pensar em mim
e porque me encontrava em situação de divórcio.
Passadas algumas terças-feiras, ela veio ter comigo enquanto eu
atravessava o jardim.
- Desculpe – disse ela com uma voz suave.
Eu parei de andar e comecei a olhar de perto alguém que me olhava ao
longe. Não devia ter mais do que vinte e oito anos, a sua pele era branca com
um leve bronze e os seus olhos eram castanhos esverdeados. Era bela,
realmente, muito bela.
- Sabe indicar-me onde fica um bom restaurante aqui na zona? –
perguntou ela olhando-me, tentando saber o que eu pensava, o que eu pensava
sobre ela.
Demorei um pouco a responder porque a pergunta chegou e forma lenta
ao meu cérebro.
- Depois do jardim, há um bom restaurante – balbuciei depois de algum
tempo.
- Obrigado – agradeceu ela sorrindo.
O seu sorriso era magnífico, suave, belo e sincero.
Ela começou a afastar-se lentamente pelo jardim.
- Desculpe – chamei, caminhando na sua direcção. – Vai para o
restaurante?
Ela assentiu suavemente.
- Eu também vou – disse. – Importa-se se eu a acompanhar?
Ela olhou para mim. Soube antes de me responder. Eu sabia que queria
que eu a acompanhasse. Os seus olhos mostravam-no e, afinal de contas, “os
olhos são o espelho da alma”.
- Não, não me importo – respondeu ela sorrindo e começando a caminhar.
Nesse momento soube que seria ela quem me iria resgatar do poço por
onde eu estava a cair. A cada segundo que passava caía um pouco mais. - A
propósito, o meu nome é Luís – apresentei-me.
- Ana – disse ela olhando-me nos olhos.
Caminhámos pelo jardim em direcção ao restaurante.

Beijo-lhe os lábios. Ana mexe-se um pouco.


- Bom dia – digo beijando-a novamente.
Ela estende os braços e agarra-me. Fico junto ao seu corpo. Ana abre os
olhos de cor acastanhada com partes esverdeadas e sorri-me, como costuma
fazer quando acorda.
- Bom dia – cumprimenta-me. – Dormi tão bem.
- Eu sei, dormes sempre bem. Nem que passasse um comboio acordavas.
Rimos e, seguidamente, ela beija-me, abraçando-me com força.
“I'm gonna make it happen somehow and you know I can take the
pressure… A moment's pain for a lifetime pleasure…”

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Capítulo 3
Passado

Luís
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Hoje caso-me pela segunda vez. Como já tinha casado pela igreja, agora
caso-me pelo registo civil. Estou um pouco ansioso. Espero a triunfal chegada da
minha futura mulher, Ana Semedo. Não está muita gente, desde familiares a
amigos, somos cerca de sessenta/setenta pessoas.
Quem inventou a moda das noivas se atrasarem não pensou no estado de
nervos a que os noivos estão sujeitos. E eu estou assim pela segunda vez…

Ana começou a surgir de uma forma contínua na vida de Esperança. No


início, ia visitá-la algumas vezes ao hospital, procurando conhecê-la. Esperança
não estranhou, de todo, as visitas regulares de Ana, pensando que se tratava de
alguma amiga da família.
Posteriormente, começou a ficar no quarto com Esperança dias inteiros.
Alguns dias, quando eu tinha alguma coisa para tratar, quer fosse relacionada
com o trabalho ou com o divórcio, Ana propunha-se para ficar com Esperança.
A minha filha começou a apreciar a presença de Ana. Afinal de contas,
Esperança tinha “perdido” a mãe. Ana sempre fora gentil e amável com
Esperança, contando-lhe histórias cómicas de quando era criança fazendo-a rir.
Algumas vezes, quando chegava ao corredor do hospital, ouvia as gargalhadas
do quarto de Esperança. Riam juntas horas a fio.
Esperança nunca me perguntou pela mãe. Nem uma única vez. Após o
acontecimento, fechou-se em si mesma, num mundo à parte. Passava os dias
apática, sem qualquer sorriso ou emoção aparente. Esperança sentia-se culpada
Eu chegava ao quarto e ela permanecia em silêncio. A nossa relação foi
fortemente abalada. Praticamente não falávamos um com o outro. Durante
cerca de dois meses estivemos assim, refugiados em nós mesmos. Contudo, e
para nossa sorte, Ana apareceu nas nossas vidas. Assemelhando-se a um anjo,
Ana mudou a nossa vida, tanto a minha como a de Esperança, libertando-nos do
nosso mundo, que nos mantinha cativos, para um mundo que começámos a
partilhar juntos.
Esperança começou a sorrir novamente, começou a partilhar histórias e
sentimentos. Eu também voltei a sorrir, por ver Esperança e por ter alguém
como Ana ao meu lado.
Quando Ana não estava, Esperança perguntava por ela. Tornaram-se
amigas, mas Ana não podia – nem queria – substituir a mãe de Esperança.
Agora que penso nisso, parece que a fase crítica da vida de Esperança
passou rapidamente, para que não fosse mais do que uma simples memória
conduzida ao esquecimento.

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Como é evidente, apaixonei-me por Ana. Não foi difícil, nada difícil mesmo.
Eu estava carente, abatido por tudo o que tinha acontecido e Ana era bela,
atenciosa, gentil, sincera e melhor que tudo isto, esteve presente quando eu
mais precisei.
Sempre receei que Esperança não aceitasse o meu recente
relacionamento, pelo que tentava ao máximo ocultar-lhe o que se passava entre
mim e Ana. Mas também sempre soube que Esperança era uma boa
observadora e bastante inteligente, pelo que, dias antes de ter alta do hospital
descobriu tudo.
Eu tinha chegado ao hospital já de noite. Tinha estado a tratar dos papéis
do divórcio. Mal cheguei ao escritório do meu advogado e melhor amigo, Dinis
Fernandes, recebi a feliz notícia de que esta divorciado. Estava livre. Ev tinha
assinado os papéis sem qualquer hesitação, como tal, o processo foi muito
rápido. Estava finalmente livre. Livre. Agora já podia estar com Ana, não sendo
considerada uma traição do ponto de vista jurídico.
Estava desejoso de contar a Ana, que havia ficado no hospital com
Esperança.
Quando cheguei ao quarto, ambas estavam a dormir. Sorri ao ver quão
angelical era a posse de Ana enquanto dormia. Dei um beijo na bochecha de
Esperança e depois beijei Ana, acordando-a.
- Desculpa, não te queria acordar – disse pegando-lhe na mão.
- Não faz mal – disse Ana enquanto olhava para Esperança. – Hoje tem
estado muito bem-disposta.
- É por tu cá estares – referi sendo totalmente verdade. Nessa manhã,
Esperança tinha acordado um pouco triste, mas quando eu lhe disse que Ana
viria para cá à tarde, sorriu de imediato.
- Estou livre – contei a Ana sorrindo.
Ela olhou-me inicialmente. Não tinha percebido o que eu queria dizer com
“estou livre”. Os seus olhos castanhos esverdeados, olhavam-me tentando ler os
meus pensamentos até que percebeu onde eu queria chegar.
- A sério? Como? – perguntou rindo. – Não demora sempre muito tempo?
- Ela assinou logo, por isso foi mais rápido – expliquei.
- Que bom – disse Ana beijando-me.
Adoro os beijos de Ana. Adoro que os seus lábios toquem nos meus.
Parece que o meu corpo se enche de uma outra energia.
- Vá, vai descansar um pouco que eu fico com a Esperança – disse-lhe.
- Tens a certeza?
- Sim.
- Está bem – concordou. – Até amanhã, amor.
- Até já – despedi-me dando-lhe um beijo.
Ana levantou-se, pegou na sua mala creme e no seu casaco e foi até à
cama de Esperança. Fez-lhe uma festinha e depois beijou-lhe o rosto
adormecido.

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Seguidamente, passou a mão pela minha face e saiu. Fiquei a olhá-la
enquanto caminhava pelo corredor, até que uma suave voz de criança me
despertou a atenção.
- Gostas dela, pai?
Olhei para Esperança que estava sentada na sua cama. Os seus olhos
tingidos de violeta seguiam os meus movimentos. Aproximei-me dela e sentei-
me a seu lado, na cama.
- Sim, minha querida, gosto – respondi.
- Ama-la? – perguntou mal eu acabei de responder.
- Sim – disse ao mesmo tempo que lhe pegava numa mão. – Em relação à
tua mãe…
Ela nada disse, apenas me olhou admirada. Nunca pensou que eu fosse
tocar neste assunto. Nem mesmo eu pensei que o fizesse.
- Ela partiu – principiei. – Foi para um lugar melhor.
Tentava dar a entender à minha filha que a mãe tinha morrido, o que era
mentira. A mãe tinha partido, se estaria num lugar melhor ou não, não sei, mas
não tinha morrido.
Ainda assim, era mais fácil para Esperança, uma criança com dez anos,
pensar que a mãe está morta, do que pensar que foi abandonada e viver para
sempre com um sentimento de culpa, apesar de não ter tido culpa da nada.
Esperança assentiu com a cabeça e aclarou a garganta:
- Tenho que chamar a Ana por mamã?
- Não filha, podes chamar-lhe simplesmente Ana – respondi-lhe.
- Sabes uma coisa pai?
Encolhi os ombros e Esperança continuou:
- Eu gosto da Ana e das histórias que ela conta.
- Ela também gosta de ti – disse-lhe sorrindo.
- E de ti – respondeu Esperança.
Rimos durante uns minutos e, seguidamente, Esperança contou-me as
histórias que Ana lhe havia relatado durante o dia.
Três dias depois, Esperança teve alta do hospital e eu e Ana preparámos
uma pequena festa surpresa e convidámos todos os amigos dela. Há muito
tempo que não via a minha filha tão feliz.
Não tardou muito até que Esperança me pedisse para Ana vir viver
connosco. O que realmente aconteceu. Formámos assim uma família. Poucas
vezes recordei Evelyn e quando o fiz jurei para não o fazer novamente. Não
preciso de me lembrar de tristezas quando estou feliz.
Passados dois anos, pedi Ana em casamento. Bem, Esperança planeou
tudo. Disse para eu preparar um jantar romântico e a pedir em casamento.
Assim fiz. Convidei Ana para jantar e no fim do jantar pedi-a em casamento. Ela
aceitou.

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O som musical típico da entrada da noiva distrai-me dos meus
pensamentos antigos. O meu coração bate ferozmente no meu peito. O
nervosismo cresce em todo o meu ser. Chegou a hora.
Olho e vejo Ana, vestida de branco brilhante, até aos pés, como sempre
sonhou. Está simplesmente linda. Tem o cabelo loiro apanhado com uma rosa
branca pelo que se pode ver todo o seu rosto.
A sua pele branca, um pouco bronzeada, parece de cristal, pois brilha. O
seu olhar encontra-se com o meu. O meu momento favorito no casamento, uma
vez que é quando o noivo olha para a noiva e ambos sorriem sem se dar conta
disso que se sabe que estão realmente apaixonados.
Ela sorri para mim e eu também sorrio.
Amo-a e ela ama-me.
Atrás dela vem a minha filha, também com um vestido branco. Tem doze
anos, mas quis ser a menina das alianças. Ela acena-me e eu sorrio ainda mais.
Chegou o momento. Ela chega até mim e todo o nervosismo e a ansiedade
desaparecem, com se fosse magia. Amo-a e vou casar com ela. Vou passar o
resto da minha vida a seu lado.
Acontece tudo a uma velocidade fugaz. Quando dou por mim estou a
dizer:
- Aceito.
- Aceito – diz Ana.
Pouco depois beijo-a e todos sorriem. A minha filha corre até mim e
abraça-me.
Caem pétalas de rosas e bagos de arroz enquanto eu, Luís Mendonça, e a
minha mulher Ana Semedo Mendonça, corremos pelo tapete vermelho por
entre as pessoas; damos a mão a Esperança e continuamos a correr em direcção
ao nosso futuro em conjunto.

19
Capítulo 4
Presente
Quarta-feira, 13 de Agosto

Evelyn
________________

Para fugir de mim mesma trabalho arduamente ou faço exercício


extenuante. Desde que voltei para Inglaterra arranjei dois trabalhos, um como
empregada numa loja de roupa e outro como pasteleira. Trabalho na loja todos
os dias à excepção de quarta-feira e de domingo. Nestes dias faço bolos para
quatro restaurantes. E ainda, todos os dias, sem excepção, faço meia hora
matinal de jogging. Tudo isto, não pelo dinheiro, mas sim para poder evitar-me,
para não me poder confrontar.
Hoje é quarta-feira, estou de folga da loja, mas tenho seis encomendas
para fazer. Três bolos de três chocolates, um semi-frio de morango e duas tartes
de limão.
Tenho que ir às compras, porque não contava que tivesse mais do que
três encomendas. Normalmente, tenho poucas encomendas porque na zona
onde me encontro não há muitos turistas e a população local, tal como eu, opta
por comer em casa ao invés de ir a um restaurante. Contudo, começou a época
alta e os restaurantes são o auge de alimentação para muitos dos turistas.
As ruas já se sentem um pouco mais apertadas com o enchente de
turistas. Não se pode dizer qual a nacionalidade que está em “alta” porque trata-
se de uma grande mistura de nacionalidades bem condimentada.
Já fiz a minha rotina matinal, pelo que a primeira parte está concluída
(jogging). Agora dirijo-me ao supermercado. Levo uma lista com todos os
ingredientes que me fazem falta (ovos, tabletes de chocolate, morangos, farinha,
entre muitos outros). Pego num cesto e começo a procurar nas prateleiras o que
me faz falta.
Então, avisto Nicole, que está com o filho mais novo, de três anos, às
compras. Tento esconder-me, mudando de secção. Hoje, não me apetece estar
com ninguém, só quero comprar o que me faz falta e fugir para o meu
apartamento, para não ter de responder a perguntas tais como “estás bem?” e
“nunca mais te tinha visto, onde tens andado?”.
Estas perguntas enervam-me, pois sinto-me controlada. Sinto que todos
querem saber mais da minha vida do que de mim.
Distraio-me com os morangos, não percebendo o que me rodeia. É então
que surge Nicole com o seu filho ao colo.
Nicole está diferente, cortou o seu cabelo negro e agora tem franja.
Continua magra e elegante, tal como na última vez que a vi, há dois ou três
meses. Traz um vestido azul simples e umas sapatilhas.

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- Olá Ev – cumprimenta Nicole com um grande sorriso. Até parece que
está contente por me ver.
- Olá – digo entre dentes.
- Como estás? – pergunta de imediato Nicole, como se lesse os meus
pensamentos em que eu imploro para que não me pergunte mais nada.
- Bem… – gaguejo. Mentira. Mentira. Mentira. Desde há algum tempo
que adquiri o estranho hábito de mentir. Primeiro mentiras leves para não ter de
encarar ninguém quando regressei a Inglaterra. Contudo, após as constantes
visitas da minha família, resolvi inventar uma grande mentira. Há cerca de sete
anos disse à minha família que me tinha mudado para a Austrália. Desde então,
esta mentira ganhou cada vez mais proporção, tal como uma bola de neve que
resvala pela encosta de uma montanha e fica cada vez maior. Muitas vezes os
meus avós maternos ou os meus tios dizem que me vão visitar e eu alego
sempre desculpas, ou tenho muito trabalho ou estou doente. Por um lado sinto
que eles já perceberam que os ando a evitar. Mas agora também já é tarde de
mais para contar a verdade, afinal de contas, qualquer dia a encosta irá acabar e
a bola de neve cairá no precipício.
Voltando ao presente, não ando bem e Nicole sabe disso tão bem quanto
eu. Há muito tempo que não ando bem. Há coisas que uma pessoa faz e que a
impedem de ficar bem, passe quanto tempo passar. Da última vez que vi Nicole,
disse-lhe que não andava bem, que andava a passar por uma fase má. Acho que
tinha sido quase cem por cento sincera dessa vez. – E tu?
- Também. Ando só um pouco atarefada para os preparativos da festa da
Alex – disse Nicole pousando o filho no chão. – Ia enviar-te um convite, mas
assim ficas já convidada. É na sexta-feira da próxima semana.
Sempre soube que a Nicole gosta de ter tudo organizado, mas preparar
uma festa de anos com mais de uma semana de antecedência é um exagero.
- Oh, não posso ir, vou fazer trabalho extra na loja, porque estão a chegar
peças novas – digo. Novamente mentira. Bem, só por um lado. Na sexta-feira da
próxima semana chegam novas peças, mas Amy, a outra empregada, é que fica a
arrumar tudo, porque vai tirar folga no sábado para ir visitar a sua avó a
Cambridge.
- Que pena – comenta Nicole. – Deixa lá. Adeus.
- Adeus – despeço-me e sorrio de alívio.
Tenho que me despachar para ver se não encontro mais ninguém aqui.
Quero voltar para o meu “abrigo” o mais depressa possível. Olho de soslaio para
a lista e vejo o que ainda me falta. Apresso-me a encontrar os ingredientes e
dirijo-me à caixa para pagar.
Ando o mais rápido que posso, com as compras nos braços, e destranco o
meu carro pressionando o botão da chave. Após um leve bip abro a caixa do
carro, coloco as compras e entro no carro ferozmente como se receasse que ele
me fuja. Conduzo até ao meu apartamento.
Finalmente em segurança. Entro e tranco a porta de mogno do meu
“cubículo”.

21
Tenho que começar a cozinhar antes me encontre e me confronte. Pego
nas compras e arrumo-as em cima da bancada da cozinha. Começo a tirar os
utensílios culinários necessários para a confecção dos bolos. Vou começar pelo
bolo de três chocolates, porque é o que tenho mais encomendas. Vou precisar
de preparar a massa, a cobertura e o recheio.
Cozinhei este bolo, pela primeira vez em Portugal, onde aprendi a receita.
Tinha vinte e nove a e estava a ser “avaliada” pela minha filha, de seis anos. Fiz
tudo o que dizia na receita que a Sr.ª Joana me tinha disponibilizado. No início,
foi o desastre total, porque eu não sabia como havia de preparar a cobertura e o
recheio. Ainda assim, à medida que ia mexendo o chocolate e adicionando
ingredientes comecei a tomar controlo da situação.
Não era, de todo, eu que estava a cozinhar. Era como se eu apenas
servisse de intermediário para algo que me circulava no sangue. Sentia algo
mover-se em mim, sem que eu tivesse qualquer opinião.
Por momentos, pensei que era o meu talento culinário, que se havia
mostrado quando, ainda em criança, aprendi a cozinhar com a minha mãe. Mas
depressa afastei essa ideia. Presumi que era apenas EU que estava a cozinhar e
que estava a acompanhar o modo de confeccionar o bolo.
Lembro-me que a minha filha ria por causa das manchas de farinha e
chocolate na minha cara e lembro que no fim, acabámos as duas cheias de
chocolate. Foi a primeira e última vez que cozinhei com a minha filha. Não deixei
de cozinhar, mas ela já não estava presente.
De certa forma, cozinhar passou a ser uma forma de me afastar e de
ganhar dinheiro em vez um divertimento como era antigamente.
Dou por mim a bater o chocolate com tanta força que acabo por ficar com
um pouco na cara. De repente começo a rir-me. Não sei de quê, não sei porquê,
apenas me apetece rir.
Porém, o riso cessa e dá lugar a lágrimas que começam a cair dos meus
olhos. A visão perde a nitidez. Mas as imagens continuam cá.

Certo dia estava a fazer um bolo contra a minha vontade. Tal como no
presente, estava a fazê-lo para fugir de mim e do que estava a acontecer à minha
volta.
Ela chegou junto de mim, vinha com um pijama cor-de-rosa com coelhos
e com umas pantufas também cor-de-rosa e perguntou-me se podia ajudar.
Eu, sem motivo, comecei a gritar com ela, dizendo que ela não podia
fazer esforços, que devia estar deitada para poder descansar em vez de estar a
“gastar-me” a paciência. Ela desatou a correr e a chorar em direcção ao quarto e
eu fiquei paralisada, com um nó na garganta, na cozinha. Durante toda a tarde
chorei. Não terminei o bolo, não fui capaz. Também se o terminasse não seria
capaz de o comer, porque sentiria que estava a voltar ao momento a cada trinca
que desse, lembrar-me-ia de estar a gritar com ela enquanto mastigava e vê-la-ia
chorar e correr em direcção ao quarto quando tivesse de engolir o bolo
alimentar que se havia formado na minha boca.

22
A minha filha tinha oito anos, estava doente, muito doente, e eu fui um
monstro. Nunca me perdoei pelo sucedido.

Estou de novo no presente, a chorar enquanto tento fazer um bolo de


três chocolates. Tenho que me concentrar. Tenho que apagar estes pensamentos
da minha mente. Tenho que ausentar-me de mim mesma e de tudo o que me
rodeia.
Porque, afinal, já é tarde de mais.

23
Capítulo 5
Presente
Sexta-feira, 15 de Agosto

Evelyn
________________

Hoje deveria ser um dia muito especial. Hoje “É” um dia muito especial.
Hoje a minha filha faria dezoito anos se fosse viva. Seria hoje que eu e o seu pai
lhe daríamos os parabéns de manhã, levando-lhe o pequeno-almoço à cama
como desde sempre fizemos no seu aniversário.
A minha filha seria uma “adulta”. Seria, como ela gostava de dizer “uma
mulher grande”. E, a minha filha, iria entrar para a Universidade. Iria construir o
seu futuro, a sua vida iria começar neste momento. Mas o seu caminho foi
cortado, impedindo-a de continuar a sua travessia pela vida.
Quando eu fiz dezoito anos os meus tios maternos ofereceram-me uma
viagem pela Europa, onde eu vi de tudo. Apreciei de perto tudo o que os países
tinham para dar, para mostrar e para fazer recordar. Foi nesse ano que eu, em
Portugal, conheci aquele que viria a tornar-se o homem da minha vida, o meu
futuro namorado, noivo e esposo.
Seria tudo mais fácil se tivéssemos continuado juntos. Mas não estamos
juntos. Nem nunca mais iremos estar porque eu sei que ele nunca me irá
perdoar pelo que eu fiz. Não o censuro, pois eu também nunca me perdoei.
As últimas notícias que eu recebi dele foram os papéis do divórcio que
assinei de imediato. Não o procurei todos estes anos. Ele também não o fez,
apesar de eu saber que tinha vontade de o fazer. Sei que ele gostava de me olhar
nos olhos e perguntar porquê e aí teria de lhe contar tudo, o que prometi nunca
fazer.
Tantos planos que tínhamos feito, tantas viagens pensadas, um Mundo
inteiro por descobrir, nós os três. Mas ela morreu. E tudo se desmoronou. E eu
acabei por morrer com ela.
Espreito pela janela. O Sol aparece húmido no céu cinzento. Vê-se algum
movimento no exterior. Levanto-me da cama e olho novamente para a gaveta.
Há uns dias abri-a após tantos anos. Vi o seu conteúdo com o intuito de o
queimar, mas não consegui. Em vez disso, fechei novamente a gaveta e esperei
que tudo desaparecesse magicamente, o que obviamente não aconteceu.
Vou até à gaveta, abro-a e vejo o seu “recheio”. Tantas cartas. Se não
estiver errada, são trezentas e sessenta e cinco cartas certas. Cartas estas que
foram escritas todos os dias desde que fugi de Portugal. Dia após dia, escrevia
uma, tentando falar com ela, com a minha filha. Mas nunca as enviei pelo
correio, não sei porque, talvez por vergonha.
Fito uma. Está selada e contém a morada do destinatário. Tiro-a. Sento-
me na cama e começo a abrir a carta com bastante cuidado, como se fosse uma

24
vida que estivesse nas minhas mãos e que o mais pequeno movimento poderia
por em causa toda a sua existência.
Depois de abrir a carta, tiro do seu interior uma folha que desdobro e
começo a ver:
2
“My Dear Hope ,
Escrevo-te neste dia para te desejar um bom dia de anos. Hoje fazes nove anos.
Tenho saudades tuas minha filha. Queria estar aí contigo. Vestir-te um vestido
novo, ver-te apagar as nove velas do teu bolo cor-de-rosa… Ver-te sorrir por
pensares que estás a ficar uma menina crescida e que, em breve, farás parte do mundo
dos “crescidos”… Abraçar-te com força por ter medo que um dia cresças e partas
para longe de mim…
Mas sei que tu estás bem, porque o teu pai estará sempre junto a ti.
Feliz aniversário. Um grande beijo da tua mãe,
Evelyn Warren
P.S. Adoro-te minha pequena Esperança”

Estou a chorar. As lágrimas correm pela minha cara e caem sobre o papel
nas minhas mãos. As minhas pernas cedem e eu caio. Fico de joelhos. Tenho
saudades do seu sorriso feliz e espontâneo. Tenho saudades de lhe contar uma
história ao adormecer e lhe afagar os cabelos. Tenho saudades de a abraçar, de a
beijar, de rir com ela, de a pôr nos meus braços, de a ouvir chamar-me
“mummy3” de ficar simplesmente a vê-la.
Daria tudo para mudar o que fiz.
Fui eu.
Fui eu que impedi que a minha filha continuasse a viver. Fui eu que a
matei, porque fui uma fraca.
Uma criança com oito anos foi mais forte do que eu.
Relembro quando fomos mostrar os exames à médica.

O dia tinha um aspecto abafante quando eu e Esperança fomos até ao


consultório da Dr.ª Teresa Cardoso.
Quando entrámos no consultório pedi para mim mesma que estivesse
tudo bem com a minha pequena filha. Pedi que fosse apenas uma infecção
passageira e que com um antibiótico passasse.
Sentámo-nos. A Dr.ª Teresa era mulher mais velha do que eu. Devia ter
cerca de trinta e sete anos. Era alta, magra, de olhos verdes e cabelos castanhos
ondulados que lhe caiam sobre os ombros cobertos por uma bata branca. Era

2
My Dear Hope significa Minha Querida Esperança
3
Mummy significa Mãezinha

25
simpática, sempre atenciosa com Esperança, preocupando-se com tudo. E é
claro que uma mulher assim não sabe mentir.
Quando olhou para os exames o meu coração parou de bater e o meu
sangue começou a gelar o meu corpo. O seu olhar era desesperante. Não queria
acreditar no que via, não por ser algo bom, pelo contrário.
O silêncio ocupava todo o gabinete, preenchendo o vazio entre nós.
Esperança estava muito bonita. Tinha um vestido azul, que ela adorava, e trazia
duas tranças que eu lhe havia feito nessa manhã depois do banho.
- Passa-se algo? – acabei por perguntar gaguejando.
A Dr.ª Teresa pousou os exames na sua secretária e esperou um pouco.
Não olhou para mim. Olhou antes para Esperança que brincava com os seus
dedos. Mostrou um sorriso forçado, falso e aclarou a garganta:
- Esperança podes ir brincar para a Sala de Espera?
Esperança olhou-a com os seus olhos violetas e depois assentiu com a
cabeça. A médica premiu um botão num aparelho que tinha em cima da mesa e
pouco depois uma enfermeira mulata bateu à porta e olhou para nós.
- Podes levar a Esperança até à Sala de Espera? – perguntou a Dr.ª Teresa.
Esperança olhou para mim, pedindo a minha autorização. Assenti e ela foi
com a enfermeira mulata, fechando a porta e deixando o consultório
mergulhado no silêncio. Sentia-me perdida. A médica não olhava para mim.
Apesar de ter uma vaga ideia do que ia dizer, não queria ouvir. Preferia continuar
na ignorância.
- Bem… – principiou a médica – …a sua filha tem que fazer mais exames.
- Porquê? – perguntei quase roucamente. Sabia que se ia fazer mais
exames era porque a minha filha estava realmente doente.
- Estes exames não foram muito conclusivos – disse a Dr.ª Teresa.
Estava a mentir. Sabia-o. Não me queria dizer a verdade. Queria utilizar
palavras bonitas para que eu pensasse que estava tudo bem.
- Por favor, peço-o, não me minta. Diga-me o que se passa com a minha
filha – implorei, enquanto um nó se apertava na minha garganta, fazendo com
que os meus olhos se enchessem de lágrimas.
- Não está nada confirmado – começou por dizer a médica, como se
preparasse o terreno para algo, não dando a entender que se passa algo de
grave. – Mas sua filha pode ter leucemia.
Não precisou dizer mais nada para que eu começasse a soluçar. Só ouvia
as suas palavras na minha cabeça, como um eco “leucemia… leucemia…”.
Quando se apercebeu que eu estava a chorar, a Dr.ª Teresa levantou-se da
sua cadeira e dirigiu-se a mim. Sentou-se na cadeira a meu lado, onde havia
estado Esperança, e pegou nas minhas mãos e começou a explicar-me que
Esperança tinha que fazer mais exames para ver que tipo de leucemia se tratava
e para começar a fazer o tratamento, porque havia probabilidade de que a
minha filha pudesse ser salva.

26
Mas eu já tinha abandonado o consultório médico, viajava agora em
pensamento por locais longínquos. Nada me interessava já. Ia perder a minha
filha, o que mais amava neste Mundo.
Estive no consultório durante vinte e cinco minutos. Quando finalmente
as lágrimas começaram a secar levantei-me e sai do consultório. Tinha os olhos
inchados e garganta arranhada.
Depois de marcar os novos exames fui até à Sala de Espera e lá estava
Esperança a brincar com puzzles tentando encontrar as peças certas. Sorria, ria.
Como podia uma criança como ela estar com leucemia? Não podia,
simplesmente. A minha filha nunca tinha feito nada de mal ao Mundo e como
poderia estar a acontecer-lhe uma coisa destas? Porque não a mim?
Fomos para casa e eu nada disse. Sentia muitas vezes que ela olhava para
mim. Quando chegámos a casa disse-lhe que teria que fazer mais exames.
Ela olhou para mim e assentiu. Seguidamente, perguntou:
- Tenho um cancro, não tenho mummy?
O meu coração parou de bater. Tenho a certeza, porque o sangue deixou
de ser bombeado para o meu corpo, começando a gelar-me nas veias. Parecia
que tinha sido atingida por um míssil e que estava desfragmentada. Cada pedaço
de mim flutuava no espaço em silêncio que me separava dela. Como poderia ela
saber? A minha filhinha estava a perguntar-me se tinha cancro. Ela sabia, só me
perguntou para ter a certeza. O que se pode responder a uma criança com oito
anos que pergunta se tem um cancro? Sempre soube que a minha filha era
muito inteligente, contudo nunca esperei que me perguntasse se tinha um
cancro. Não soube o que responder, pelo que não respondi. Apenas a olhei e os
meus olhos começaram a encher-se de lágrimas novamente. Fui até ela e
abracei-a.
- Não chores mummy – pediu a minha filha. – Desculpa, não queria fazer-
te chorar.
Nesse momento, as lágrimas começam a jorrar sem parar dos meus olhos.
Ficámos abraçadas durante muito tempo. Sentei-me no sofá e coloquei-a ao
meu colo. Esperança acabou por adormecer.
Fiquei a vê-la dormir, tentando guardar este momento, receando que
não pudesse repeti-lo outra vez.

De volta ao presente, ainda consigo ouvir a sua voz, tal como se tivesse na
minha antiga sala há dez anos atrás “tenho um cancro, não tenho mummy?”.
Tenho saudades tuas minha filha.

27
Capítulo 6
Passado

Evelyn
________________

- Tens a certeza? – pergunta Tyra, olhando-me seriamente.


Tyra é a mulher mais bela que conheci até hoje. É morena, cabelos
castanhos com madeixas loiras, alta e magra. Tem olhos negros, como os de uma
pintura a óleo, um nariz perfeito e tem lábios impecavelmente delineados. Tudo
em sim emana beleza. Ainda assim nunca teve uma relação com ninguém, pois
diz que não é mulher de se prender a quem quer que seja.
- Sim, tenho – respondo sem hesitar. Estou cem por cento segura dos
meus actos. Sei que tenho a certeza. Vou deixar para trás planos que havia
traçado para o meu futuro, mas tenho a certeza de que é isto que eu quero.
Tyra olha para mim como se eu ainda pudesse mudar de ideias. Contudo,
no seu íntimo, Tyra sabe que nada me fará voltar atrás porque já me conhece há
muitos anos e sabe quão persistente eu sou.
Desde que tínhamos três anos que eu e ela sempre estivemos juntas em
tudo. Conhecemo-nos no “jardim-de-infância” e desde então tornámo-nos as
melhores amigas. Nunca estivemos chateadas mais do que cinco horas. Porque,
tal como acontece no amor, quando os sentimentos são muito fortes, não há
nada que os separe. Tyra acompanho-me em tudo, como tal, acompanhou-me
na viagem que estava prestes a finalizar.
Eu tinha dezoito anos e os meus tios deixaram-me “descansar” um pouco
antes de ir para a Universidade tirar um curso de gestão, oferecendo-me uma
viagem pela Europa.
Tyra alinhou de imediato e partimos juntas quase há um ano. Após visitar
quase toda a Europa, dirigimo-nos de França para Espanha e desta para Portugal.
Teoricamente, iríamos ficar entre uma a duas semanas em Portugal e,
seguidamente, regressaríamos a Inglaterra. Eu iria para um curso de gestão e
Tyra iria licenciar-se em psicologia.
Porém, os nossos planos foram drasticamente alterados pois eu não sabia
o que me esperava em Portugal, ou quem me esperava.

Mal chegámos a Portugal, encontrei duas grandes diferenças entre este


país e Inglaterra. Primeiro, o clima era mais estável do que em Inglaterra
(porque lá durante um dia pode chover e/ou fazer Sol e/ou nevar), e segundo,
podia ver o céu totalmente desprovido de nuvens. Um céu azul onde apenas
jazia o Sol que emanava luz e calor.
Não gostei de Lisboa, tal como não gosto de grandes cidades. Aprecio
mais a calma e o sossego do campo. Eu e Tyra saímos de Lisboa num autocarro e
passeamos pelo país, mais especificamente, dirigimo-nos para Norte. O litoral

28
era tingido de verde e o terreno era íngreme. Visitámos belas cidades e
povoações cujo nome já não relembro.
Passada uma semana, fomos para o Sul. Então reparámos em certas
diferenças, como por exemplo, que o verde dava lugar ao amarelo e o terreno
íngreme convertia-se me planícies.
A nossa viagem literalmente acabou no Centro Sul do país, em Évora, no
Alentejo. Saímos do autocarro em Évora e tínhamos três horas até o próximo
chegar para nos levar até ao Algarve.
Assim que toque com o pé no chão tropecei e caí para a frente. Por sorte
ou destino ou mesmo por ter que ser assim, um homem que estava à minha
frente apanhou-me.
Não o olhei naquele momento, uma vez que só lamentava o meu
embaraço perante a situação. Tentei pedir-lhe desculpa mas ele não me
percebia – ou não queria perceber. Hoje sei que ele sabia falar inglês, mas
naquele dia não fazia ideia.
- I’m so sorry4 – disse eu.
- O quê? – replicou ele.
Foi nesse momento que o olhei. E foi nesse momento que me apaixonei
pela primeira vez. Era um homem/rapaz com cerca de vinte e cinco anos, pele
bronzeada, musculado, mas não demasiado, cabelos castanhos ondulados e
olhos cor de mel. Sorria para mim com uns dentes perfeitos, enquadrados na
sua boca perfeita.
O meu coração batia rapidamente. Sentia o sangue quente percorrer todo
o meu corpo. Sentia que borboletas batiam as suas asas contra os tecidos do
meu estômago, proporcionando-me uma estranha sensação que se alastrava no
meu interior. Dentro de mim crescia uma enorme ansiedade, pelo que tive de
afastar o meu olhar dele.
- Está bem? – perguntou ele, levantando-me.
Sem o perceber assenti com a cabeça. Seguidamente abanei a cabeça
como que dizendo não. E depois voltei a assentir com a cabeça. Ele riu-se de
mim ou da minha atrapalhação, não sei. Só sei que desejava cair-lhe novamente
sobre os seus braços.
- Estás bem? – perguntou Tyra, olhando-me.
Demorei algum tempo a percebê-la, apesar de ela falar inglês.
- Sim, estou – acabei por gaguejar.
- Sorry – pedi novamente ao homem que estava à minha frente.
Ele sorriu novamente, piscou-me o olho, e afastou-se.
Pensei que nunca mais o ia voltar a ver, mas enganei-me. Aquilo tinha sido
só o inicio.
Nem eu nem Tyra conhecíamos Évora, visto ser a primeira vez que nos
encontrávamos em tal local, pelo que demorámos muito tempo a encontrar um
restaurante onde pudéssemos almoçar.

4
I’m so sorry significa Desculpe

29
- O que se passou há bocado? – perguntou Tyra rindo, quando nos
sentámos num restaurante.
Eu ainda relembrava o rosto do homem desconhecido pelo que Tyra teve
de repetir a pergunta para que eu lhe desse atenção.
- O que se passou há bocado?
- Ah… Nada… Nada – disse eu rindo.
- Tens cá uma sorte – disse Tyra.
- Pois, mas foi uma coisa do momento – referi não querendo acreditar no
que dizia. Ainda sentia o calor dos seus braços enquanto me segurou.
De repente a sorriso de Tyra desvaneceu-se. Senti-me assustada, ansiosa,
com medo de me voltar e ver o que tinha causado o desaparecimento do sorriso
de Tyra.
Não precisei de me virar, pois ele perguntou:
- Posso?
Olhei. Era ele. Estava a perguntar se podia sentar-se na nossa mesa. Senti
novamente o meu sangue a percorrer o meu corpo a uma velocidade fugaz.
Como nem eu nem Tyra lhe respondemos ele sentou-se. Eu não olhava
para ele. Só olhava para Tyra que agora tentava esconder um sorriso malandro.
- Ah… – disse ele – Sou Luís.
Apenas percebi “Luís” que achei que deveria ser o seu nome. Como Tyra
viu que eu não ia dizer nada, apresou-se a apresentou-nos.
- Tyra… Evelyn – disse apontando para mim ao dizer o meu nome.
Almoçámos juntos e ele tentou falar connosco, fingindo não saber falar
inglês. Durante o almoço olhou cerca de quinze vezes para mim, mas eu também
não lhe fiquei atrás, uma vez que olhei para ele outras quinze vezes.
No fim do almoço, pagou a conta e nós agradecemos. Quando estávamos
de saída ele perguntou-me:
- Logo… queres… sair… comigo?
Enquanto falava fazia gestos com as mãos de modo a tentar explicar-me o
que queria dizer. Ao fim de três explicações consegui perceber - finalmente. Mas
expliquei-lhe que tínhamos o autocarro daqui a nada.
O seu rosto modificou-se, parecia que tinha ficado distorcido. Senti que
ficara decepcionado. Olhei para Tyra e ela disse-me que podíamos apanhar
outro autocarro amanhã.
- Ok – disse, sorrindo.
Novamente, o seu rosto modificou-se, voltou a sorrir.
Combinámos encontramo-nos em frente ao restaurante às oito horas da
noite. Ele afastou-se novamente.
Abracei Tyra e começámos aos saltos no meio da rua, como se fossemos
duas crianças novamente.
- You are a lucky girl5 – disse-me Tyra.
Apenas sorri. Pouco depois, fomos para uma pensão.

5
You are a lucky girl significa És uma rapariga com sorte

30
Tyra não quis sair comigo. Preferiu ficar no quarto a descansar um pouco.
Eu disse-lhe que não me demoraria, não crente nas minhas palavras.
Às oito horas estava em frente ao restaurante aplicando assim o critério
da pontualidade britânica. Poucos minutos depois apareceu Luís. Tudo em si me
deixava nervosa e me fazia ficar ainda mais apaixonada. Trazia vestida uma
camisa branca tipo t-shirt e umas calças de ganga acinzentadas.
Cumprimentou-me em inglês o que me deixou admirada. Contudo, o que
me surpreendeu mais foi o facto de, durante toda a noite, falar comigo em
inglês, de modo fluente. Se não soubesse que era português nunca o suspeitaria.
Fiquei um pouco confusa com esse facto, pois se sabia falar inglês, porque não o
fez logo desde o início? Assim sendo resolvi perguntar-lhe enquanto
caminhávamos pela rua.
- Porque fingiste não saber inglês?
- Não sei – respondeu. – Achava que se falasse inglês não estarias aqui
comigo.
Nunca tinha ouvido uma desculpa mais absurda. Limitei-me a olhá-lo de
alto a baixo. Não reagiu ao meu olhar. Porém, eu reagi quando ele se aproximou
de mim. Os seus olhos fitavam-me, tentando ler os meus pensamentos. Sentia
um enorme desejo de o beijar, de me sentir agarrada pelos seus braços
musculados pelo que segui o impulso do momento e deixei-me levar. Ele fez o
mesmo e como se lesse os meus pensamentos, beijou-me.
Quando me dei conta já não estávamos na rua, nem em nenhum
restaurante, nem num bar. Estávamos no seu quarto. Durante o caminho ele
referiu qualquer coisa sobre viver sozinho ou algo do género. Mas eu não prestei
muita atenção, estava demasiado compenetrada nos seus beijos.
Mal fechou a porta do quarto desabotoei-lhe a camisa e ele arrancou o
vestido azul que eu levava. Não valia a pena tentar sequer resistir-lhe. Era
impossível. Todo o meu corpo ansiava pelo seu toque. Beijou-me o pescoço e
voltou para os meus lábios. Entreguei-me totalmente a ele.
Como era de esperar, não fui dormir a casa nem Tyra pensou que eu fosse.
Quando acordei, na manhã seguinte, estava sozinha na cama. Recordei, por
rápidos segundos, aquela que tinha sido a melhor noite da minha vida. Olhei em
meu redor, não havia sinais de Luís e por breves instantes ocorreu-me que
aquela não fosse realmente a sua casa e que ele me tivesse ali deixado sozinha.
Todavia, essa ideia foi afastada pelo som de passos na direcção do quarto.
Era Luís que trazia consigo um tabuleiro com o pequeno-almoço. Sentei-
me na cama, ele pousou o tabuleiro e beijou-me.
- Bom dia – disse ele sorrindo.
- Não era preciso trazeres-me o pequeno-almoço – disse.
- Claro que era – contradisse Luís.
- Aposto que fazes isto a todas as raparigas – disse.
Conforme acabei a frase. Luís baixou o olhar para o chão. Senti-me mal.
Ele tinha feito aquilo para mim e eu tinha-lhe mandado uma indirecta. O que eu
queria mesmo era saber se ele tinha feito isto a mais alguém e não magoá-lo.

31
Além do silêncio no quarto, a única coisa que eu conseguia ouvir era o
bater do meu coração a abrandar lentamente.
- Desculpa – pedi.
Ele olhou para mim, aclarou a garganta e disse:
- Nunca fiz isto a mais ninguém, porque tu és a primeira rapariga com
quem estive.
Senti-me ainda pior. O sangue gelava no meu corpo. “Que parva” pensei
eu.
- Por favor, não vás… – pediu ele.
Nesse momento soube. Eu era tão importante para ele como ele era para
mim. Sempre pensei que paixões à primeira vista era coisa de filmes românticos,
mas agora sabia que não, que pode acontecer na vida real.
- Estou apaixonado por ti – concluiu.
Luís tinha uma característica que me fascinou. Olhando-o nos olhos,
conseguimos saber se mente ou se diz a verdade. Os seus olhos, cor de mel,
realmente mostravam que ele me queria.
- Me too6 – respondi.
Ele aproximou-se e voltou a beijar-me.
Deixei-me levar novamente, afinal de contas, estava apaixonada e era
correspondida.
Nessa tarde voltei à pensão e Tyra estava bastante preocupada pois já me
tinha ligado só que eu fiquei sem bateria no telemóvel.
- Então? – perguntou aflita.
- Desculpa fiquei sem bateria – desculpei-me
- Tenho estado uma pilha de nervos.
- Desculpa.
- Já perdemos o autocarro – referiu Tyra.
- Eu sei. Mas eu não vou para o Algarve, vou ficar cá – disse.
- Eu percebo – respondeu Tyra.
Ser compreensiva era uma das tantas qualidades que eu adorava em Tyra.
Rimos durante algum tempo e depois eu contei-lhe o que tinha
acontecido na noite anterior, como fazem as melhores amigas.
Durante a semana que fiquei em Évora tive mais a certeza que amava o
Luís e que ele me amava, pelo que quando chegou a hora de partir disse a Tyra
que iria ficar em Portugal.
Disse-lhe que daqui a algum tempo iria buscar as minhas coisas a
Inglaterra, mas que naquele momento iria ficar em Portugal. Tive pena de a
deixar ir sozinha para Inglaterra e ela teve pena de eu não a acompanhar.
Antes de ir perguntou-me seriamente:
- Tens a certeza?
- Sim tenho – respondo sem hesitar.
Tyra abraça-me e parte rumo a Inglaterra. Aceno-lhe e grito:

6
Me too significa Eu também

32
- Até já.
Tyra sorri e eu também.
Luís abraça-me e voltamos para sua casa. Tenho a certeza de que é com
ele que eu quero ficar.

33
Capítulo 7
Presente
Sexta-feira, 15 de Agosto

Luís
________________

Tenho uma surpresa para a minha filha. Mais do que uma surpresa é uma
prenda de aniversário. Como fez dezoito anos, vou oferecer-lhe uma viagem que
há muito tenho agendada. Dentro de alguns dias, eu, Ana e Esperança, vamos,
durante um mês, para Inglaterra.
Desde pequena que a minha filha me pede para a levar a Inglaterra.
Agora, finalmente posso realizar o seu pedido. Vou levá-la um mês e vamos
percorrer Inglaterra de uma ponta a outra.
Ela ainda não sabe. Pensa que a prenda de aniversário que eu e a Ana lhe
demos foi o facto de lhe termos dado dinheiro para tirar a carta de condução.
Só esta noite irá saber da viagem, durante o jantar. Ana concordou de
imediato referindo que este seria o melhor presente que Esperança poderia
receber. Espero que esta viagem lhe abra outros horizontes para o seu futuro
profissional. Esperança que ser médica, pediatra mais precisamente. Mas não
quer exercer em Portugal. Quer ir para o estrangeiro, mas também não quer
ficar num só país, quer viajar e trabalhar por muitos países para que possa
aprender o máximo possível com diferentes médicos.
Sei que ela quer viajar pelo Mundo porque uma vez li algo que ela
escreveu e nunca mais esqueci as suas palavras.

Quando era pequena, Esperança encontrou um pequeno pardal


encharcado.
Tinha seis anos quando apareceu em casa toda suja de lama e toda
molhada.
- O que se passou? – perguntei quando a vi.
- Encontrei um pássaro – respondeu Esperança rindo.
Nesse momento reparei que Esperança trazia algo enrolado num pano
azul também molhado e sujo de lama. Ela chegou-se junto de mim e entregou-
me o pano.
Peguei-lhe e desdobrei uma parte do pano. Então vi um pequeno pardal
com os olhos negros quase fechados a olhar para mim.
- O que lhe aconteceu? – perguntei fitando o pássaro.
- Lá no jardim… a mummy estava a falar com uma senhora… e eu fui à
fonte… e o passarinho estava lá… dentro de água… – gaguejou Esperança.
Era bastante divertido ver a minha filha tentar explicar um acontecimento.
Primeiro ficava com a cara muito rosada, depois unia as mãos e começava a
apoiar-se num pé e no outro, como se dançasse.

34
- E depois?
- Pedi a um senhor que o tirasse da água – continuou Esperança. – Está
muito molhado e não voa.
- Então e como vieste para cá? Onde está a mãe? – interroguei.
- Ah…
A sua expressão mostrava admiração. Era como se Esperança agora se
lembrasse de algo muito importante, neste caso, da sua mãe.
Olhou para mim durante alguns segundos sem saber o que dizer, até que
aclarou a garganta e acabou por dizer:
- A mummy ficou no jardim…
- Vou-lhe ligar. Deve andar louca à tua procura.
Esperança pareceu arrependida e um pouco assustada. Contudo, alguns
segundos depois, concentrou a sua atenção no pequeno pardal enrolado no
pano azul.
- Pai, podemos ficar com ele? – perguntou quando eu havia terminado a
chamada com a sua mãe que já tinha corrido o jardim à sua procura.
- Não – respondi.
Ela olhou para mim como se perguntasse “porque não?”. Apressei-me a
explicar.
- Os pardais são pássaros que gostam muito de andar ao ar livre e não em
gaiolas.
Esperança pareceu perceber.
- Mas ele não voa.
- Pois não, porque está molhado – expliquei. – Quando as suas penas
estiverem secas ele vai voar.
- Para onde?
- Oh… Para muitos sítios… - respondi sorrindo.
- Pelo Mundo?
- Sim, talvez vá conhecer o Mundo.
Esperança estava bastante séria.
- Ele vai voltar?
- Um dia talvez volte para te contar as suas viagens pelo Mundo – disse.
Esperança sorriu. Gostava da ideia de que o passarinho voltasse um dia
com muitas histórias para lhe contar.
Ainda nessa tarde, pouco depois de a sua mãe chegar, secámos o pequeno
pardal e levámo-lo até ao jardim para que ele pudesse voltar para a sua casa.
No jardim, coloquei o pardal na palma das minhas mãos. Esperança fez-
lhe uma festinha e seguidamente, libertei o pardal. Este começou a voar pelo
jardim.
Esperança olhou muito atenta para o voo do pardal e disse:
- Voa passarinho, voa. Mas volta um dia.
Eu sorri ao ver a alegria no rosto de Esperança, enquanto olhava para o
céu azul. Aqueles seus olhos violeta que transmitem todas as suas emoções
procuravam um rasto do pardal.

35
Três anos mais tarde encontrei um pequeno papel amarrotado num livro
de desenhos de Esperança. O papel havia sido escrito dois anos após a história
do pardal, quando Esperança tinha oito anos.
Esperança tinha escrito:
“Hoje o passarinho voltou. Era ele. O passarinho da fonte. Voltou e disse
um segredo. Disse que viajou pelo Mundo e que viu coisas bonitas e gostou muito.
Eu disse ao pardal que também gostava de ser um passarinho e ver o
Mundo. Eu quero ver todas as coisas bonitas que a televisão e as revistas da
mummy mostram.
Prometi ao passarinho que quando for crescida vou ver o Mundo e depois
conto ao passarinho tudo o que vi.
Vou ser um passarinho viajador.”
Chegou a hora de libertar o passarinho. Chegou a hora de o deixar voar
pelo Mundo, de o deixar ver as “coisas bonitas”. Um dia, o passarinho irá voltar e
contar tudo o que viu.
Vou deixar que a minha filha seja um passarinho livre. Após esta viagem a
Inglaterra abrirei as mãos e deixarei que ela voe. Afinal de contas, Esperança fez
dezoito anos. E apesar de tudo o que passou em pequena e a deixou mais
protegida da minha parte, sei que o certo a fazer é deixar que ela seja livre e
independente.
Estarei à sua espera um dia, mais tarde para conhecer as viagens do
pequeno “passarinho viajador”.

36
Capítulo 8

Esperança
________________

A mummy apercebeu-se primeiro do que eu. No início nem reparei. Pensei


que fosse apenas de estar a crescer, afinal de contas, tinha quase oito anos. Se
estava a crescer, começava também a mudar por dentro e por fora, daí pensar
que era normal o que me estava a acontecer.
Só algum tempo depois é que constatei que algo em mim não estava certo.
Podia estar a crescer, a mudar um pouco, mas de toda a minha turma de escola,
eu era a única que apresentava tais alterações. Comecei então a pensar que o
que se passava não era normal.
Não era normal, eu, uma criança irrequieta, não ter forças para correr de
um lado para o outro, para saltar, para rir… Não era normal não ter vontade de
brincar com as minhas bonecas… Não era normal sangrar do nariz com tamanha
frequência, nem mesmo era normal ter perdido o apetite, já que para mim
sempre foi um prazer comer, saborear os alimentos… Não era normal o
aparecimento de hematomas no meu corpo já que eu mal me levantava…
Tão habituada à minha agitação natural, a mummy percebeu de imediato
que eu não estava bem e entrou quase em pânico. Cada vez que eu me recusava
a comer ou não tinha forças para me levantar da cama para ir à escola a mamã
ficava agitada e depois lá do meu quarto, ouvia o choro que ela tentava abafar.
Passado algum tempo resolveu levar-me ao médico. Fomos a um médico
um pouco velho e com bigode. Depois fomos a outro mais novo, loiro e
musculado. Em seguida fomos a outro, e a outro, e a outro… Tantos que não me
lembro de nenhuma característica que os distinguisse uns dos outros. Para mim
já eram só homens ou mulheres com um bata branca vestida cujos rostos já nem
via.
Todos os médicos diziam o mesmo: “A sua filha deverá ter que fazer
exames porque o que se passa não é nada de bom”. Era apenas o que eu ouvia
até a mummy me deixar na Sala de Espera com uma enfermeira enquanto ela
voltava para o consultório médico.
Por fim fomos até uma médica que disse “A sua filha TEM QUE FAZER
exames”. Era uma médica muito bonita, de cabelos castanhos ondulados e olhos
verdes. Chamava-se Teresa, Dr.ª Teresa Cardoso. Era muito simpática para mim e
para a minha mamã. Explicou-nos que eu iria fazer um “hemograma” e depois
logo se via como seria o rumo das coisas.
Fiz o exame e depois fiz outro cujo nome não recordo. Sei que nenhum
deles apresentou boas notícias porque nem a Dr.ª Teresa nem a mummy sorriam,
muito pelo contrário.

37
Um dia vi num papel no consultório da Dr.ª Teresa que dizia “Provável
neoplasia maligna – LEUCEMIA” e foi assim que descobri qual era o meu
problema.
Estava cansada, sem forças, dolorida, doente, porque eu, uma criança de
oito anos, estava a morrer por dentro.

38
Segunda Parte

39
Capítulo 9
Presente
Terça-feira, 19 de Agosto

Evelyn
________________

Hoje tenho um jantar/encontro/fuga da minha extenuante rotina com o


Mark Griss, o meu antigo psicólogo e recente parasita. De quando em vez,
lembra-se que eu existo, e passa o seu tempo – e o meu – a dar comigo em
doida.

Quando voltei para Inglaterra, cheguei perturbada tanto a nível físico


como psicológico. Pensei que seria bom ter alguém desconhecido com que falar,
pois achava que me iria fazer bem libertar da culpa que me consumia.
Aconselharam-me o Dr. Mark visto ser um óptimo psicólogo e foi o que eu fiz.
Marquei uma consulta e no dia previsto cheguei uma hora adiantada.
A clínica ficava numa rua um pouco escondida que dificilmente encontrei.
Era uma clínica pequena e pintada de branco. Entrei um pouco a medo e a
secretária, já um pouco velha e gorda, pediu-me que esperasse pela minha vez
na sala de espera, o que fiz de forma obediente. A sala de espera tinha três
cadeiras e uma mesa com revistas já de meses anteriores que nem toquei.
Por quatro vezes levantei-me e disse à secretária que ia à casa de banho,
quando na verdade, tencionava fugir. Contudo, quando chegava à porta da
clínica, algo me dizia para não fugir novamente, para não criar ainda mais
problemas e que a minha vida não se ia resolver por eu fugir constantemente.
Então, voltava para trás e esperava durante mais algum tempo sentada numa
cadeira desconfortável.
Enquanto estava sozinha na sala de espera, ensaiava, mentalmente, um
discurso que havia elaborado dois dias antes, sobre a história da minha vida.
Deste modo, só tinha de chegar em frente do médico e “despejar” tudo, todos
os meus problemas e preocupações, esperando apenas que ele me ouvisse e
não me condenasse pelos erros que cometi – o que, obviamente não aconteceu.
Quando a secretária disse que eu podia entrar, fiquei petrificada. Era
agora ou nunca. Ou entrava e pedia ajuda ou fugia e tentava esquecer o que se
passou.
Como fraca que sou, optei pela solução mais fácil, fugir e tentar esquecer,
para que não reconhecesse que havia errado.
Levantei-me e dirigi-me à porta. Ia mesmo a sair quando uma voz forte me
impediu.
- Desculpe, é Evelyn Warren?
Voltei-me e vi um homem alto, magro, com pele branca, cabelos negros e
olhos cor de mogno. Não era belo, mas tinha um certo charme.

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- É a Evelyn? – voltou ele a perguntar.
- Sim… – gaguejei.
- Então vamos para o consultório – pediu ele. – Queira acompanhar-me,
por favor.
“Apanhada” pensei para mim mesma, enquanto me dirigia para o
consultório, seguindo o médico. Ao entrarmos no pequeno consultório, pintado
de amarelo alaranjado o médico fechou a porta e pediu-me que me deitasse
num sofá negro que se encontrava perto de uma cadeira castanha. Obedeci e
deitei-me no sofá, enquanto o médico remexia nuns papéis que se encontravam
sobre a secretária de madeira.
- Antes de mais, o meu nome é Mark Griss e sou o seu psicólogo –
apresentou-se o médico, dirigindo-se a mim.
- Evelyn como já sabe – referi por entre dentes.
- Então Evelyn tencionava ir-se embora?
“Apanhada” pensei novamente antes de responder.
- Bem… Sim… Não… – murmurei.
- Afinal? – perguntou o Dr. Mark sorrindo.
- Na verdade, ia-me embora – respondi sinceramente.
- E posso saber porquê?
- Nem mesmo eu sei, senti vontade de me ir embora – disse. Na verdade,
estar tanto tempo à espera tinha-me deixado ainda mais nervosa, pelo que não
me encontrava em posição de falar com quem quer que fosse.
- Fugir não resolve nada – disse o Dr. Mark. – Há que enfrentar os
problemas de frente para que eles parem de nos atormentar.
Assenti com a cabeça.
- Fale-me de si – pediu.
- Chamo-me Evelyn Warren e tenho trinta e três anos. Sou britânica, mas
vivi quinze anos em Portugal e donde regressei há poucos dias… – contei. Até
agora o discurso previamente elaborado estava a dar resultado.
- E porque voltou? – perguntou o médico.
Foi nesse momento que o meu discurso foi destruído. Eu tinha elaborado
uma ordem lógica dos acontecimentos da minha vida, ou seja, infância,
adolescência, vida de adulta em Portugal e o regresso a Inglaterra. Todavia, o
médico havia alterado a minha ordem perguntando porque tinha eu voltado a
Inglaterra.
Deixei para trás o discurso e comecei a falar por mim mesma, sem cábulas
ou artimanhas que me tentassem encobrir.
Aclarei a garganta e respondi:
- Porque fugi de Portugal, onde deixei a minha filha a morrer.
Foi, religiosamente, no momento em que disse a palavra “morrer”, que o
médico parou de tirar notas do meu diálogo. Vi a sua expressão. Não mostrou
pânico, nem mesmo admiração. Soube que não me ia julgar nem mesmo
prostrar a sua opinião sobre o assunto. Ia ouvir-me, como já tinha feito a
centenas de pessoas antes de mim.

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Vi no seu olhar, que o que eu acabara de pronunciar não lhe era invulgar.
Então percebi que o seu cérebro já tinha retido muitas coisas que outras pessoas
lhe contaram e que a ele já nada o surpreenderia.
- Queira explicar-me, por favor – pediu voltando a rabiscar com a caneca
no papel.
Senti-me perfeitamente à vontade para falar, pois sabia que ele não me ia
julgar, nem revelar os meus segredos (sigilo profissional). Então, comecei a falar
de mim e da minha vida, do que me levou a ficar em Portugal e do que me levou
a fugir de lá.
Contei-lhe que tinha abandonado a minha filha de dez anos na sala de
operações do hospital e que ela, provavelmente, morrera. Contei-lhe os efeitos
que isso tinha sobre mim.
Ainda assim, não fui capaz de lhe contar os motivos que me levaram a
deixar a minha filha numa maca. Simplesmente não fui capaz. Tal como nunca
contei a ninguém – nem mesmo ao Luís – não contei ao Dr. Mark.
Ele ouviu plena e pacientemente tudo o que eu tinha a dizer, não me
interrompendo e de quando em vez, perguntando algo, para que eu “deitasse”
tudo cá para fora.
De certa forma senti-me mais leve, por ter falado com alguém que me
ouviu e não julgou.
No final da consulta, ele pediu-me que marcasse outra para a próxima
semana que foi o que eu fiz. Durante a semana ia acumulando pensamentos e
ideias que no dia da consulta despejava, sentindo-me mais leve, novamente.
Estava tudo a correr bem, até que eu fui à consulta pela décima vez. Nesse
dia tinha decidido explicar o porquê. O motivo irracional que me tinha feito
“matar” a minha filha. Estava decidida a contar-lhe, contudo, quando cheguei ao
consultório reparei na sua expressão, um tanto ou quanto, perturbada.
Deitei-me, como de costume, no sofá preto mas ele não se mexeu na
cadeira em frente da secretária de madeira.
- Desculpe Evelyn, mas eu vou deixar de ser seu médico – disse ele
sussurrando, pelo que tive que levantar um pouco a cabeça do sofá para tentar
ouvir melhor.
Nesse momento pensei que não aguentava mais ouvir as minhas
confissões, os meus “crimes”. Senti que, afinal de contas, havia sido julgada,
declarada culpada e condenada à solidão.
Ia levantar-me do sofá, quando a sua voz, não só afastou estes
pensamentos, como me inibiu de me levantar.
- Não posso ser seu médico, porque estou apaixonado por si! – declarou
ele, não me olhando.
Afinal, não tinha sido julgada e condenada. O “juiz” tinha pena de mim e,
agora, estava apaixonado por mim.
Por um lado senti-me aliviada, por me ter enganado no porquê de ele
querer deixar de ser meu médico. Por outro lado sentia-me incomodada por

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saber que alguém se tinha apaixonado por mim mesmo sabendo todos os erros
que cometi na minha vida.
Não lhe cheguei a contar o “motivo” pois senti que o que tinha acontecido
era um “sinal Divino” para eu guardar isto só para mim.
Desde então, não procurei mais nenhum psicólogo. Preferi viver a minha
vida e guardar para mim o que se passou.
O Dr. Mark – agora apenas Mark – passados dois meses convidou-me para
sair e a partir daí, de quando em vez, dá sinal de vida e não me deixa em paz.

Estou a passar pela fase em que o Mark se recordou da minha, quase


insignificante, existência. Ontem, na segunda-feira, quando cheguei a casa do
trabalho tinha quatro mensagens de Mark no atendedor de chamadas. A
primeira apenas dizia: “Olá… Tudo bem? Há muito tempo que não falamos… Fica
bem”. Sendo verdade quando ele diz que não falamos há muito tempo, já que,
sensivelmente, há praticamente um ano que perdemos o contacto. “Porque
razão se terá lembrado de mim agora?” pensei quando carreguei no botão para
ouvir a segunda mensagem. “Não estás em casa? Temos de combinar algo. O
que achas?” reproduziu o gravador de mensagens.
Ia carregar no botão novamente, quando ouvi “Olá… Outra vez… Queres ir
jantar? Amanhã? Às sete? Passo por aí. Beijo”. Quando levantei o auscultador
para lhe mentir e dizer que não podia já ele tinha desligado, sem me dar
qualquer hipótese de o aldrabar. Também já não valia a pena ligar-lhe, pois ele
viria de qualquer forma.

São quase sete horas e ando de um lado para o outro no meu


apartamento à procura do meu par de sapatos rasteiros. Por fim encontro-os
debaixo do sofá. Ainda tenho que dar um toque de base e pôr um pouco de
batom leve nos meus lábios pouco rosados.
De certa forma, este “encontro” mexe comigo. Faz-me sentir ansiosa,
como se esperasse que algo de muito importante fosse acontecer hoje. Não é
como os jantares ou idas ao cinema que já tive com o Mark. Nesses momentos
não me arranjei de forma adequada para uma saída, nem sequer utilizei
maquilhagem.
Mas hoje é diferente, não sei bem porquê. Hoje quero “dar nas vistas”.
Hoje quero estar arranjada e maquilhada para que o Mark não tenha a sensação
que anda a sair com uma “maltrapilha”, como aconteceu das outras vezes.
Um dos conselhos que ele me deu enquanto psicólogo foi que eu me
arranjasse e pintasse para que, ao olhar-me ao espelho, não visse as minhas
imperfeições, mas sim quão perfeita eu posso tentar ser.
Nunca segui esse seu conselho, por nenhuma razão em especial, apenas
não achei que isso fosse mudar alguma coisa. Porém, agora que me vejo em
frente ao espelho tenho uma opinião totalmente diferente.
A minha pele não parece pálida, as rugas quase que se dissolveram por
entre a maquilhagem e as olheiras não se notam praticamente nada. O meu

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cabelo, arranjado e pintado, parece novamente louro e resplandecente como há
tempos foi.
O vestido com decote e brilhantes, realça as curvas do meu corpo que eu
pensei terem desaparecido quando emagreci drasticamente.
Por breves instantes imagino que tenho outra vez vinte anos e que posso
ser considerada uma rapariga com um pouco de beleza. Todavia, relembro que a
maquilhagem apenas esconde uma mulher velha sem qualquer beleza ou
decência. Ainda assim, fico feliz ao ver a máscara de beleza que, por pouco
tempo me cobrirá.
Ouço num leve “knock, knock” na porta do meu apartamento que me
devolve ao Mundo real que me rodeia. Dou uma última olhadela de soslaio ao
espelho e vou abrir a porta. A ansiedade cresce no meu corpo. Parece que me
vou casar pela segunda vez.
Abro a porta e Mark olha para mim com uma expressão de admiração.
Mark vem vestido com uma camisa azul, umas calças de ganga escuras e um
casaco azul-escuro. Fez a barba, o seu cabelo negro está mais curto e o seu
corpo parece mais musculado. A sua pele está um pouco mais bronzeada,
devido, possivelmente, a umas férias num país quente. Penso que ficou
surpreendido por me ver bem arranjada e maquilhada, mas, talvez, seja apenas
impressão minha.
- Uau! – exclama Mark.
Afinal eu tinha razão, ele ficou surpreendido.
- Estás linda! – elogia Mark sorrindo.
- Obrigado, mas não é para tanto – digo eu modestamente. – Vamos?
Mark olha para mim mais uma vez antes de responder. Fita todos os meus
pormenores, como se pudesse absorvê-los para guardar o momento.
- Sim… sim… – gagueja.
Pego no meu casaco, fecho a porta do meu apartamento e sigo Mark.
Apanhamos um táxi e vamos até um restaurante um pouco longe do meu
apartamento. Enquanto vamos no táxi, Mark pergunta como têm corrido as
coisas, se ando melhor, entre muitas outras perguntas banais para meter a
conversa em dia.
Chegamos a um restaurante onde eu nunca fui. Da porta vêem-se alguns
casais sentados. Não tem muita gente e dá aspecto de ser muito caro. Antes de
entrarmos, um senhor um pouco velho, com um smoking vestido, pergunta se
temos uma mesa reservada ao que Mark responde que está uma mesa
reservada para as sete em nome de Mark Griss. O senhor assente e pede-nos,
delicadamente, os casacos.
Entramos para o restaurante e sentamo-nos numa mesa perto da janela.
Enquanto esperamos que a empregada traga os menus, reparo em Mark a olhar
e a sorrir para mim. “Será que ele ainda me ama?” pergunto-me em silêncio
olhando para os três garfos ao meu lado esquerdo.
- Há tanto tempo que não te via – diz Mark.
- Temos andado ocupados – respondo.

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- Talvez seja isso – concorda Mark.
Olho-o nos olhos e sei que ele não pensa da mesma forma como fala. Se
apenas dependesse dele, estávamos sempre juntos.
A empregada traz os menus e afasta-se.
- O que vais comer? – pergunta Mark.
- Não sei – respondo. – Estou indecisa entre o peixe ou salada.
- Talvez peixe, não?
- Pode ser – digo sorrindo.
A empregada regressa e aponta os nossos pedidos. Traz uma garrafa de
vinho tinto e coloca uma pequena porção no meu copo e no copo de Mark que
o prova de imediato, acabando por assentir.
Cada vez que olho para Mark sinto-me ansiosa. Não sei qual a razão, mas
sinto-me inquieta, nervosa, amedrontada.
Durante todo o jantar, falamos de coisas banais tais como: empregos,
tempos livres, festas… Nunca, nem mesmo por uma única vez, Mark menciona a
sua paixão por mim, o que, de certa forma, me deixa ligeiramente decepcionada.
Acabamos o jantar e Mark paga a conta que deve ter sido bastante
avultada. Saímos e vamos a um bar próximo do restaurante. Após duas ou três
bebidas peço ao Mark que chame um táxi porque eu quero ir para casa.
Ele anui e chama um táxi para nos levar.
Apesar de eu recusar, educadamente, ele insiste em levar-me à porta do
apartamento, pelo que subimos juntos pelo elevador. Quando as portas deste se
fecham algo acontece. Parece que o ambiente se torna diferente. Sinto-me um
pouco abafada. Olho para Mark e por rápidos segundos tenho vontade de o
beijar. Sinto desejo, algo que não me acontece há cerca de oito anos. Ele olha
para mim e sei que sente o mesmo.
Não sei como, mas quando dou por mim estou a beijar Mark enquanto
saímos do elevador no andar do meu apartamento. Ele agarra-me e beija-me o
pescoço e eu passo a minha mão pelo seu cabelo negro e suave. Com alguma
dificuldade encontro a chave na minha mala e entramos para o meu
apartamento.
Não ligamos a luz e vamos directamente para o meu quarto. Parecemos
duas sombras silenciosas que se movem na escuridão. Ele despe-me o casaco e
desabotoa-me o vestido ao passo que eu desaperto os botões da sua camisa e
das calças. Ele, em tronco nu, deita-me e beija o meu corpo apenas com soutien
e cuecas de renda pretas. Beija-me as pernas, passando para as ancas e
seguidamente para a parte abdominal. O meu corpo emana desejo – excitação.
Desaperta-me o soutien e continua a beijar-me, agora os seios. Eu toco no
seu tronco musculado e em seguida nas suas costas. Pouco depois, já ambos nus,
fazemos sexo, algo que eu não fazia há oito anos, desde que fugi de Portugal.
O Luís foi o homem a quem me entreguei pela primeira vez e com quem
apenas fiz amor. O que estou a fazer agora com o Mark é diferente. Para além de
estar divorciada, estou apenas a fazer sexo, porque sinto desejo e não paixão.

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Ele continua a beijar-me durante o acto. Sinto-o. Agarro-o e arranho-lhe as
costas enquanto solto leves gemidos. Fazer sexo com o Mark é melhor do que eu
alguma vez tenha imaginado que seria.
Na manhã seguinte, ao acordar, encontro Mark a dormir ao meu lado.
Levanto-me e por pouco não piso o preservativo utilizado que jaz no chão.
Tenho que ir tomar um pequeno duche para ir ao shopping comprar qualquer
coisa para oferecer ao Alex, filho da Nicole. Durante o jantar decidi que iria à
festa do filho de Nicole. Verdade seja dita, quando digo que não fui bem eu que
decidi, já que eu praticamente não tomo decisões sobre a minha própria vida.
Foi Mark que disse que me iria fazer bem conviver e fugir da minha fatigante
rotina. Após uma difícil e lenta deliberação acedi a ir à festa de aniversário do
Alex, até porque a festa mudou para o sábado, em vez de ser na sexta-feira, pelo
que já não tinha mais desculpas.
Acho que todo o desejo que eu tinha foi consumido na noite anterior.
Olho novamente para Mark, que acorda espontaneamente. Olha-me em pé, nua.
Sorri e estende-me a mão. Retribuo e coloco a minha mão na sua. Ele agarra-me
e puxa-me de novo para a cama, onde começa a beijar-me novamente. Quero
senti-lo novamente, como na noite anterior. Quero voltar a ter prazer – palavra
cujo significado pensava ter esquecido.
Pouco depois, estamos a fazer sexo novamente, uma vez que, afinal, o
desejo não foi todo consumido como eu pensava.

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Capítulo 10
Presente
Quarta-feira, 20 de Agosto

Luís
________________

Ainda estamos a dois quilómetros de distância e já o som das aterragens


e descolagens ecoa com bastante intensidade. Enquanto vamos no carro,
grandes aviões partem em direcção ao céu, tapando, por breves instantes, o
radioso Sol. Levam consigo centenas de passageiros que, nesta altura do ano
(Verão), optam por ir em busca de algum descanso em países estrangeiros.
Esperança está bastante ansiosa. Para além de ir para Inglaterra (o seu
grande país de eleição), é a primeira vez que a minha filha vai andar de avião – o
meio de deslocação mais seguro, cientificamente comprovado. Ainda assim, há
pouco tempo houve uma avaria e um avião acabou por despenhar-se, matando
todos os passageiros.
Quando, na sexta-feira, Esperança soube que iria a Inglaterra durante um
mês, ficou radiante e durante meia hora disse, pelo menos e sem exagerar,
quarenta vezes “obrigado”. Contudo, passado algum tempo, começou a pensar
que teria que andar de avião. E como tinha surgido aquela notícia ficou
totalmente em pânico.
Algumas horas depois, estamos a entrar para o avião que nos levará a
atravessar o Norte de Portugal e de Espanha e o Canal da Mancha até Londres.
Sentamo-nos. Eu fico na cadeira perto da pequena janela e Esperança fica
na cadeira ao meu lado, enquanto que Ana se encontra atrás ao lado de uma
senhora já velha, com cerca de setenta anos e toda ela vestida de lilás.
- Toma uma pastilha – ofereço a Esperança.
- Não, obrigado – recusa olhando para as pastilhas com sabor a morango
que tenho nas mãos.
Esperança está agitada e, como enjoa, não quer pastilhas, para não criar
mais saliva e enjoar mais facilmente.
- Toma – insisto. – Senão vão doer-te os ouvidos por causa da pressão do
ar.
Sei que isto acontece devido à minha própria experiência com aviões.
Esperança volta a olhar para as pastilhas e acaba por ceder e mete uma na
boca que começa a mastigar apressadamente. Dou também uma pastilha a Ana
que agradece e se encosta na cadeira.
As hospedeiras dão indicações sobre a segurança durante o voo e sobre
como devem os passageiros proceder. Apertamos os cintos e o avião começa a
mover-se, ganhando velocidade ao longo da pista.

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Esperança mastiga ferozmente a pastilha, coloca a sua mão sobre a minha
e recosta-se na cadeira, como que se tentasse afundar-se nesta. O avião inclina-
se e as rodas deixam de tocar na pista alcatroada – estamos a voar.
Espreito pela janela e vejo tudo a diminuir. As pessoas tornam-se formigas
e seguidamente desaparecem; os grandes edifícios convertem-se pequenos
pontos e os diferentes terrenos criam um padrão multicolorido.
Esperança já está mais calma, pelo que mastiga a pastilha mais
suavemente. Olho-a e sorrio.
Relembro a primeira vez que andei de avião, há vinte e três anos, quando
eu tinha vinte e cinco anos.

Apesar de ser Agosto, nesse dia, o céu estava coberto de nuvens quase
negras e o vento, um tanto ou quanto forte, remexia tudo à sua passagem. O
voo estava marcado para as dez horas, pelo que eu e Evelyn estávamos no
aeroporto às sete horas e quarenta e cinco minutos.
Estava muita gente a chegar e a abalar. Parecia um grande centro
comercial, na véspera de Natal, cheio de pessoas que andavam de loja em loja à
procura da última prenda para oferecerem a um familiar ou conhecido.
Apesar de para mim ser a primeira vez a andar de avião, Evelyn já se tinha
deslocado neste meio, pelo menos, três vezes, pelo que estava bastante
experiente.
Fizemos o check-in e aguardámos a hora prevista. Eu comprei um jornal e
sentei-me numa cadeira, enquanto Evelyn foi ver as lojas. Cerca das nove e meia
começou a chover torrencialmente – algo que contribuiu para o agravamento do
meu estado de nervos. Como se não bastasse, o nosso voo estava atrasado uns
quarenta minutos devido ao mau tempo.
Li e reli o jornal pelo menos três vezes, pelo que já tinha fixado alguns
cabeçalhos de notícias.
Passados os quarenta minutos chegou o avião. Dirigimo-nos à “porta” e
entrámos no avião. Estava quase cheio. Eu e Evelyn ficámos no meio do avião,
sensivelmente, perto das asas. Eu fiquei perto da janela e Ev ficou na cadeira ao
meu lado.
Após as explicações das hospedeiras de bordo, o avião levantou voo. Ev
ofereceu-me uma pastilha que eu recuso. Mais tarde, e devido à pressão, os
meus tímpanos quase rebentam, provocando-me dores bastante fortes.
Devido ao mau tempo, o avião passa por “bolsas de ar” estremecendo e
deixando passageiros, como eu, em pânico. Evelyn ri de mim e do meu
nervosismo.
Foi, sem dúvida, a altura da minha vida em que tive mais medo de me
deslocar de avião. Nas viagens seguintes já correu tudo bem, mesmo quando
apanhávamos mau tempo.
Existe a sensação de que quando nós mais queremos não estar nervosos,
mais estamos e tudo parece afectar-nos de forma significativa. É como quando
não queremos fazer barulho com algo. No silêncio qualquer ruído parece

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adquirir grandes proporções, mas se não tivermos com a ideia de não fazer
barulho, tudo surge de forma natural e nem damos conta do barulho que
fazemos ao remexer nas coisas.

De volta ao presente fito Esperança já muito mais calma, enquanto ouve


musica no seu iPod com oito gigabytes. Viro-me para trás e vejo que Ana dorme.
Onde quer que esteja, possui sempre uma posse angelical e harmoniosa que me
faz sorrir.
Olho pela janela e vejo, por entre fragmentos de nuvens brancas, uma
grande porção de água azulada. Já não estamos na Península Ibérica, mas sim a
atravessar o Canal da Mancha. Daqui a algum tempo estaremos a avistar
novamente terra – Inglaterra.
Não venho a Inglaterra há mais de dezoito anos, ou seja, desde que
Esperança nasceu. “O que terá mudado entretanto?” penso para mim mesmo.
“Será que não me irei recordar das coisas antigas e não perceber as alterações
que sucederam a minha vinda a Inglaterra?”.
Por breves instantes penso em Evelyn. O que lhe terá acontecido? Para
onde terá ido? Desde os papéis do divórcio que não tenho notícias suas. Nem
quero ter. “Será que está em Londres?” pergunto-me vezes sem conta, enquanto
olho para a janela.
Duvido que esteja. Deve ter fugido para um país distante, para nunca mais
ter que encarar nenhum dos antigos amigos ou familiares.
“Se a encontrasse o que faria?” reflicto. Acho que gritava com ela, se a
avistasse e lhe atirava tudo à cara, pois apesar de terem passado oito anos,
tenho a sensação que foi ontem que ela abandonou a nossa filha à mercê da
morte.
“Não a vou encontrar” mentalizo-me repetindo, sem parar, em silêncio.
“Não a vou encontrar, não vou, não vou”.
Avisto terra. Não tarda muito tempo, o avião irá aterrar. Concentro-me
apenas na viagem que estou a fazer com a minha mulher e a minha filha e afasto
Evelyn dos meus pensamentos, pois eu sei que “não a vou encontrar”.

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Capítulo 11
Presente
Quinta-feira, 21 de Agosto

Evelyn
________________

Ontem, por causa do Mark, não fiz o meu exercício matinal – jogging.
Nem fui comprar o presente para o filho de Nicole. Depois da “segunda ronda”,
eu e Mark fomos tomar banho e, por incrível que pareça, houve uma “terceira
ronda”.
Após o banho, e depois de os “ânimos” estarem mais calmos e mais
estáveis, almoçámos em minha casa. Comemos uns ovos mexidos com bacon e
salsichas.
Quando terminámos a refeição mandei, literalmente, o Mark embora,
dizendo que precisava de descansar, o que não era de todo mentira. Mark, após
um longo período de insistência da sua parte para ficar, acabou por aceitar e foi-
se embora.
Durante o resto da tarde não fiz nada. Deite-me no sofá e vi um filme que
estava a dar na televisão. Pela primeira vez, em muitos anos, aproveitei o meu
dia de folga para repousar. Talvez, no meu íntimo, tivesse a prever o que iria
acontecer no dia seguinte – hoje.
Hoje de manhã, já depois de ter tomado banho e o pequeno-almoço,
quando estava prestes a sair de casa, recebi uma chamada. Não teria dado
qualquer importância à chamada, não fosse o facto de reconhecer de imediato a
voz do outro lado da linha telefónica:
- Bom dia minha querida. Era só para dizer que estamos em Londres.
O meu coração caiu-me aos pés. Parei instantaneamente. Fechei a porta
da rua e voltei para o meu apartamento.
Apressei-me a ligar à minha patroa, dizendo estar com anginas e que, por
conseguinte, não poderia ir trabalhar hoje. Claro que Cléo, a minha patroa, não
se importou, já que há alguns meses que trabalho arduamente na loja,
aproveitando apenas a folga.
Sentei-me no sofá e esperei. Sabia que tinha sido descoberta. “Como fui
tão burra?” pensava para mim mesma enquanto a voz do gravador ainda soava
na minha cabeça “Bom dia minha querida. Era só para dizer que estamos em
Londres”.
Algum tempo depois, no meu andar, começa a ecoar um som um tanto ou
quanto distorcido. Assemelha-se a um som que inicialmente ressoava alto, mas
que alguém tenta abafar. Este foi ficando cada vez mais alto, podendo
depreender-se, pelo menos, cinco vozes diferentes. Como peças de um puzzle,
as vozes chegaram ao meu cérebro que, convertendo o som em sinais eléctricos,

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transmitiu a informação que eu mais receava. Percebi repentinamente do que se
tratava.
As vozes cessaram e um leve “knock, knock” soa por todo o meu
apartamento, como se tentassem arrombar a porta.
O meu coração bombeia o sangue a uma velocidade fugaz, e sinto que as
minhas veias podem romper-se a qualquer instante, devido à velocidade a que o
sangue atravessa o meu corpo.
Novamente um leve “knock, knock”. Penso que o melhor é fingir que não
estava em casa e dar credibilidade à mentira engendrada há tanto tempo.
Todavia, apercebo-me que não vale a pena continuar a mentir, uma vez que eles
já haviam percebido. Afinal de contas, a encosta tinha acabado e a enorme bola
de neve caiu pelo precipício.
Levanto-me lentamente, tentando ocultar qualquer sinal de vida no
interior do meu apartamento e vou até à porta que parece estar toda amolgada
dos suaves batimentos no exterior.
Respiro profundamente e elevo a mão até à fechadura que rodo, abrindo
a porta. Está encostada e nada se ouve no meu andar. Penso que pode ter sido
imaginação minha, por estar a ficar velha, afinal, já tenho quarenta e um anos.
Puxo a porta vagarosamente que emite uns suaves estalidos. É então que
comprovo que ainda não estou senil nem nada que se pareça. À minha porta
estão cinco pessoas que reconheço de imediato. O meu avô materno, Arthur
Dixon, de noventa anos, com um rosto já bastante ornamentado por rugas e
uma cabeça quase desprovida de cabelos; a minha avó materna, Ruth Dixon,
com oitenta e cinco anos, com, igualmente, muitas rugas, magra, pequena, um
pouco pálida e de cabelos acinzentados; o meu tio (por afinidade), Simon Taylor,
já com sessenta e nove anos, calvo, pele bronzeada e bigode castanho; a minha
tia materna, Karen Dixon, com sessenta anos, magra, elegante para a idade,
cabelos castanhos e olhos azuis; a minha prima, Elaine Taylor, com trinta e dois
anos, jovem, bela, morena, olhos cor de âmbar e cabelos negros.
Os meus tios viviam perto dos meus avós maternos e, quando o meu pai
fugiu, deram muito apoio uns aos outros fazendo assim, entre si, uma pequena
família. Ainda para mais, quando a minha mãe e irmã morreram, uniram-se
como se tentassem amparar-se uns aos outros. Daí estarem juntos à minha
porta.
Para minha surpresa, nenhum deles me olha com raiva ou ódio por lhes
ter mentido durante todos estes anos, muito pelo contrário. Todos me sorriem,
inclusive a minha prima um pouco antipática. Parecem até felizes por me ver.
- Evelyn – saúda a minha avó, abraçando-me.
Retribuo o abraço. Fecho os olhos e absorvo o cheiro da minha avó.
Podem passar muitos anos, mas a minha avó nunca perderá o seu cheiro
característico a hortelã-pimenta, do qual eu já tinha muitas saudades.
O meu avô, um pouco entorpecido, também me abraça. Seguindo-se o
meu tio Simon e a minha tia Karen. Por fim, Elaine também me abraça,
surpreendendo-me.

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- Entrem – peço delicadamente.
Eles entram no meu apartamento que nada mudou desde há oito anos, a
última vez que lá estiveram, antes de eu criar a mentira – bola de neve.
Após fechar a porta, todos nos sentamos nos sofás e ficamos em silêncio.
Não sei bem como, nem porquê, mas eu fui a primeira a falar. Aclaro a garganta
e pergunto:
- O que fazem em Londres?
Os meus avós e tios moram numa vila a cerca de cem quilómetros de
Londres, pelo que estranhei o facto de cá estarem.
- Viemos visitar-te – responde o meu tio Simon.
Mesmo sem que eu queira, as lágrimas começam a cair pela minha face,
esborratando-me a maquilhagem que havia aplicado depois do banho.
- O que foi minha querida? – pergunta a minha avó, com a sua voz doce.
Eu não respondo, continuo a chorar. Sinto que todos me olham. Sinto os
seus olhares cortarem o meu corpo em busca de uma resposta, há muito
enterrada em mim.
- Desculpem… – gaguejo entre soluços.
- Minha querida, não tens que pedir desculpa – diz a minha avó,
abraçando-me.
- Desculpem ter-vos mentido – digo sem olhar para nenhum deles. – Eu,
simplesmente queria estar sozinha.
- Nós compreendemos Ev – diz a tia Karen roucamente.
- Depois do que se passou, era normal que quisesses estar sozinha – refere
o tio Simon.
- Não é fácil perder uma filha – menciona Elaine, que foi mãe há três
meses. O seu marido, rico, deve ter ficado com o bebé. Relembro que fui
convidada para o seu casamento mas menti, dizendo que estava com
pneumonia.
“Eu não a perdi, eu matei-a” grito em silêncio. Tanto os meus avós, como
os meus tios sempre pensaram que a Esperança morreu devido à leucemia e
que foi por esse motivo que eu fugi de Portugal.
- A Esperança… – principio.
- Ela agora está em paz, minha querida – profere a avó. – Tu não tiveste
culpa.
Tive sim. A culpa foi toda minha. Se eu não tivesse fugido, Esperança
estava viva, eu não teria fugido de Portugal e estava feliz com o meu marido e a
minha filha.
- Tive – conto.
- Oh. Não podes culpar-te por isso! – exclama o tio Simon. – A pequena
morreu porque estava muito doente e agora está num sítio melhor.
Abano a cabeça. Olho para eles. Têm pena de mim. Têm pena que eu me
sinta culpada por uma coisa que, tecnicamente, não tive culpa. Chega de
mentiras. Chega de histórias inventadas. Chega de sentirem pena de mim por
estarem a ser aldrabados.

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- A Esperança morreu porque eu fugi da Sala de Operações sem lhe doar a
medula óssea – revelo num só fôlego. – Eu matei a minha filha.
Tudo na sala pára. Tenho quase a certeza que o ponteiro dos minutos do
relógio da sala parou por dois ou três segundos. Todos olham para mim com ar
chocado. Todos ficaram admirados com tamanha revelação. Até eu fiquei
admirada por ter conseguido contar a verdade, assim, de repente. Tal como há
pouco, todos me olham, procurando a verdade. Procurando saber se esta é a
verdade e não mais do que uma das minhas mentiras.
Não é preciso muito tempo para se aperceberem que estou a dizer a
verdade que, desta vez, em muitos anos, fui sincera e disse o que se passou,
assumindo as culpas pelo que fiz. Tenho a certeza de que nas suas mentes, a
minha imagem se começa a distorcer e a assemelhar a um monstro, sem
piedade ou compaixão.
De certa forma, a sua expressão faz-me lembrar algo que se passou
quando eu tinha catorze anos e a Elaine tinha cinco. A sala e eles começavam a
afastar-se e regresso à casa dos meus avós, onde não vou há muitos anos.

Nessa tarde tinha ficado sozinha em casa dos meus avós com a Elaine,
porque os meus tios e avós tinham ido tratar de assuntos que já não me recordo.
A avó tinha feito um bolo de chocolate, tal como eu gostava, mas tinha-
me dito que não me podia aproximar dele, pois era para uma senhora levar para
uma festa de anos. Como tal, a avó Ruth pôs o bolo em cima de um armário.
Eu estava na sala com a Elaine a ver televisão e estava a dar um programa
que eu na altura gostava imenso. Durante uma hora decorreu o programa e eu
quase que estava colada em frente à televisão, não percebendo o que se
passava em meu redor.
Quando o programa terminou é que dei conta que a Elaine não estava no
sofá. Então fui procurá-la pela casa. Encontrei-a na cozinha, a subir pelo armário
para chegar ao bolo de chocolate.
- Elaine – gritei.
Ela olhou para mim desequilibrando-se e puxando o armário que começou
a tombar. Agarrei em Elaine antes que o armário caísse. Contudo, para Blinx, a
gata da minha avó, foi tarde de mais. O armário tombou em cima de Blinx que
soltou um último miado. O bolo também caiu ao chão, desenformando-se
completamente.
Alguns pratos que a minha avó tinha no armário quebraram-se, saltando
pedaços de louça por todo o lado, acabando por fazer-me um golpe na mão.
Não mais do que dois minutos após o sucedido chegam os meus tios e
avós.
- O que se passou? – gritou a minha avó Ruth ao entrar na cozinha e ao
ver a confusão.
- Foi a Ev – mentiu Elaine antes de eu ter tempo de responder.
Eu só conseguia olhar para os estragos e para a cara dos meus tios e avós.

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Segundos depois, a minha avó viu a cauda branca da Blinx sob o armário e
começou aos berros:
- O QUE FIZESTE EV?
- Nada… Não fui eu… Foi a Elaine que subiu ao armário… – gaguejei.
A minha tia olhou para a Elaine que disse novamente que tinha sido eu.
- Oh… Pobre Blinx – lamentou-se a minha avó ajoelhando-se perto do
armário tombado. A minha avó tinha muita afeição à gata que há muitos anos
lhe fazia companhia.
A avó olhou para mim e depois para a minha mão, onde tinha o golpe,
causado pelos destroços da louça.
- Tu querias o bolo – acusou a Elaine.
- Foste buscar o bolo, o armário tombou e tu cortaste-te não foi? –
incriminou a minha avó Ruth.
- Não, não fui eu – contradisse. – Foi a Elaine.
- Olha para isto! Uma menina já quase mulher a meter as culpas numa
criança! – acusou o meu Tio Simon.
Todos me olhavam como se eu fosse um monstro. Pensavam que eu quase
tinha matado a minha prima e que Blinx tinha acabado por ser vítima da minha
gula.
- Para o quarto de castigo! – gritou a avó. – Acabou-se a televisão e tudo o
resto.
Eu desatei a chorar e fui para o meu quarto. Durante dois meses todos me
olhavam de lado e quando eu olhava para Elaine, esta começava a chorar como
se eu lhe tivesse batido.
Esta foi uma das razões pelas quais eu e a Elaine nunca fomos muito
amigas.

Apesar de estar envolta nos meus pensamentos, sei que todos, à excepção
da Elaine que não se lembra, estão a pensar do que sucedeu com o bolo e o gato.
Sei que pensam que aquilo tinha sido apenas o começo para o que se aproximou.
- Porquê? – pergunta a minha tia Karen.
Por mais que queira ou que eles me perguntem, não vou justificar o
porquê. Eles não iam compreender o que me tinha levado a fazer isto, uma vez
que a minha justificação é bastante antiga e afectou-nos a todos, mas só eu é
que passei pelo pior, só eu é que sei o que mudou. Só eu me tornei numa
“assassina”.
- Por várias razões – conto. – Mas principalmente, porque eu sou uma
fraca. Sempre o fui.
É verdade. Sempre fui fraca. Já na escola, era a menina que estava sempre
de parte, a menina com quem ninguém queria brincar e a menina que era
gozada e não se defendia. Até mesmo os professores faziam troça de mim, por
eu não ser social e ninguém querer ficar comigo nos trabalhos. “Já fizeram os
grupos? Quem sobrou? Ah, a Evelyn, como sempre…” costumavam eles dizer e
seguidamente, toda a turma ria a bandeiras despregadas.

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Sempre foi assim ao longo dos anos.
Mesmo já adulta era uma fraca e nunca me consegui defender, pelo que
acabei por deixar morrer a minha filha.
Ouço um choro agudo ao meu lado. É a minha avó que chora e me abraça.
Eu também choro, enquanto sou envolta nos seus braços, já velhos e cansados.
O seu cheiro a hortelã-pimenta começa a inundar-me e faz-me viajar ao longo
do tempo, até à altura em que a minha mãe e irmã eram vivas e a nossa vida era,
aquilo a que muitos podem chamar, uma boa e feliz vida.

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Capítulo 12
Presente
Sexta-feira, 22 de Agosto

Evelyn
________________

Uma brisa, um pouco forte, alastra-se por todo o espaço que me envolve.
Empurra nuvens negras que começam a cobrir os céus, impedindo que a luz,
pouco quente, do Sol chegue à superfície terrestre. Esta aragem faz também
com que as pequenas ervas no solo e as folhas das árvores se movam, numa
dança silenciosa e ritmada ao sabor do vento.
Tenho frio ou sinto frio? Qual destas será a maneira correcta de expressar
a sensação de quando a temperatura em nosso redor é inferior à nossa? Não sei
como se expressa correctamente. Apenas sei que esta brisa não arrastou só as
nuvens negras pelos céus, também traz consigo um estranho frio característico
do final da tarde que agora se apoderou do meu corpo. Contudo, não é este frio
que me dissuade, nem mesmo me faz recuar.
Dou uns passos em frente, na direcção das duas lápides. Fito-as como se
esperasse que me dirigissem alguma palavra. Mas, como seria de esperar, nada
dizem. Leio o que está gravado na pedra acinzentada, ignorando, em ambas, a
data de nascimento, que sei de cor, e a fatídica data em que as perdi, para todo
o sempre.

“Lydia Warren.
Trinta e seis anos de amor e ternura para com todos.
Que a sua alma descanse em paz”.

“Phoebe Warren.
Eterno descanso a esta jovem alma.”

Há quanto tempo não ouvia ou lia os seus nomes? Não sei bem. Mas
tenho a certeza de que foi há bastante tempo. Quando, por vezes, dizemos uma
palavra muitas vezes, de forma continuada, parece que essa palavra perde o seu
significado, o seu sentido. O mesmo não acontece quando relembramos uma
palavra que há muito não nos era dita. Parece que desperta em nós algo
diferente, algo que nos faz olhar novamente para aquele som há muito
conhecido e por algum tempo esquecido.
Agora os seus nomes ecoam na minha cabeça “Lydia” e “Phoebe”, como
se se tratasse de uma forma de compensar todos os anos em que simplesmente
ignorei estes nomes, com medo de ser envolta em recordações, com receio de
ficar presa no passado, como já tinha acontecido.

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Lembro-me de, certa vez, ter tido umas encomendas para um restaurante.
A dona do restaurante chama-se Phoebe Crabble, pelo que eu apenas a tratava
por “Sr.ª Crabble”, tentando evitar ao máximo lembrar-me que o seu primeiro
nome era Phoebe. Todavia, a Sr.ª Crabble insistia para que eu a tratasse por
Phoebe, levando assim a que três meses depois tenha deixado de ir entregar
bolos ao restaurante, com a desculpa de que já não tinha tempo.
A temperatura está a baixar. Sinto-o. O ar envolvente torna-se gélido e o
meu corpo retraísse à passagem do vento. Olho para o céu, completamente
coberto de nuvens negras. Tenho a estranha sensação de que vai chover.
Nesse mesmo instante uma gota cai sobre o meu nariz. Sorrio, não
sabendo ao certo a razão. De repente, gotas de água começam a jorrar do céu,
caindo em todo o cemitério. Fico molhada mas não me importo. Não me mexo,
ficando a olhar o céu. Ouço o som das gotas a caírem sobre o chão e sobre as
folhas das árvores. Lembro-me de uma canção que certa vez ouvi e não me
esqueci da letra, “When the rain falls”.
Tal como a música diz, sempre pensei que quando chove é porque o céu
chora.
“When the rain falls
It’s like heaven’s crying…7”
Será que elas estão a chorar? Será que estão no céu a olhar para mim?
Sempre acreditei que sim, que lá do céu olham por mim e para mim.
Espontaneamente tenho um ataque de saudades que me arrebata. Para além
das gotas da chuva que caem no meu rosto, também lágrimas começam a sair
dos meus olhos. Não aguento e as minhas pernas acabam por ceder e fico de
joelhos no chão ligeiramente lamacento.
“There’s no difference between the teardrops and the rain.8”
Fito novamente as lápides, na esperança que estas se convertam nelas, de
carne e osso. A dor no meu coração começa a alastrar-se por todo o meu corpo
húmido e frio.
A última vez que vi os seus sorrisos foi no fatídico dia em que perderam a
vida, em que me deixaram, sozinha, neste mundo. A dor de perder um filho é
forte, ultrajante e avassaladora, mas perder uma mãe e uma irmã também não é
fácil. Saber que não voltaria a sentir aquele calor de mãe, aquele seu amor
inexplicável que une mãe e filha. Jamais voltaria a vê-la sorrir pela manhã,
jamais sentiria a sua mão afagar-me os cabelos, jamais me olharia nos olhos,
procurando no fundo da minha alma algum problema que eu tivesse…
Perdi a minha mãe e, sabendo todo o sofrimento que causava e a dor que
senti no lugar onde está o coração, deixei que a minha filha passasse pelo
mesmo. Mas eu não lhe fui tirada como a minha mãe. Eu fugi, eu abandonei-a
sem explicação lógica e racional. Deixei-a sofrer por algo que não valia a pena,

7
Quando a chuva cai é como se o céu estivesse a chorar…
8
Não há diferença entre as lágrimas e a chuva.

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acabando por matá-la. Que raio de mãe sou eu? Talvez seja apenas alguém, não
uma mãe, porque uma mãe não abandona a filha à mercê da morte.
Há oito anos que vivo com a culpa de ter morto a minha filha e há muito
tempo que em mim reside a culpa delas terem morrido. Se fosse eu a estar ali
com a minha mãe e não a minha irmã talvez nada tivesse acontecido, talvez
tivesse corrido tudo bem, talvez hoje ainda habitassem neste mundo e não
fizessem parte do mundo dos espíritos e talvez eu não tivesse abandonado a
minha filha. Talvez…
- Perdoem-me… – peço às lápides como se falasse com elas. – Perdoem-
me não ser forte como vocês…
Choro alto, não me importando de ser ou não ouvida, tendo a sensação
de que ninguém mais está no cemitério para além de mim.
- Se a Esperança estiver com vocês, tomem conta dela, por favor – peço
novamente, agora olhando para o céu negro.
Continua a chover, sobre mim e sobre todo o cemitério. Estou
oficialmente encharcada. A terra não absorve a água à velocidade com que esta
cai das nuvens, pelo que, em redor dos meus joelhos está uma poça de água
acastanhada.
Fecho os olhos e dobro-me sobre mim mesma. Deixo-me viajar ao som da
chuva, ao cheiro da terra húmida e até locais distantes.
Nesse dia também chovia. Tinha doze anos e fiquei na Sala de Espera,
olhando para a janela onde via as gotas de água a baterem e a fazerem um leve
ruído. Elas tinham entrado há algum tempo, sorridentes, confiantes, como se
nada pudesse opor-se a elas, Senhoras do Destino. Sorriram-me e disseram que
dentro em breve estaria acabado. Apertaram-me num abraço tão aconchegado
que nunca mais o esqueci. Era como se tentassem passar todo o seu amor
naquele abraço, naquele instante.
Mais tarde, quando voltei a pensar naquele abraço, tive a estranha
sensação que a minha mãe sabia de algo, que tentou agarrar-se a mim, com
medo de não o poder voltar a fazer.
Algum tempo depois de esperar, senti uma agitação no hospital. Ainda
assim, eu, com a ingenuidade característica de uma criança de doze anos não
reparei sequer que podia ser algo relacionado com elas.
Estava sozinha quando o médico, velho e barbudo, chegou junto de mim.
Tanto os meus avós como a minha tia não estavam em Londres. Quando ele
chegou junto de mim a ingenuidade infantil desapareceu e percebi de imediato
o que mostrava aquela sua expressão.
Como poderia um médico dizer a uma criança de doze anos que a sua
mãe e a sua irmã mais velha haviam morrido numa Sala de Operações, por algo
que tinha corrido mal?
O médico não disse nada. Chegou perto de mim, pôs uma mão no meu
ombro e abanou a cabeça. Caí ao chão, mas senti que não parava de cair, como
se estivesse constantemente a descer por um poço sem fundo.

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Comecei a chorar sem me dar conta disso. Os meus avós foram avisados,
voltando repentinamente para Londres. Nesse dia chorei até não poder mais,
até ter consciência que tinha secado os meus canais lacrimais. Contudo, após o
dia do funeral nunca mais chorei. Tentei, sentia um nó na garganta, os olhos
inchados, cheios de lágrimas prontas a fluírem, que não chegaram a cair.
Agora, no cemitério frio e chuvoso, choro novamente como há muito não
chorava. Largo, pelas minhas lágrimas, todos os sentimentos que residem dentro
de mim. Todos os vestígios de uma ferida que nunca sarou, que nunca deixou de
doer, lembrando que ainda existia, mesmo que tentasse esquecê-la.
- Perdoem-me! – grito para quem quiser ouvir. – Mamã… minha querida
Phoebe… minha doce filha, Esperança… Por favor, perdoem-me…
Estranha coincidência, ou não, a chuva parou. Deixei de ouvir as gotas
baterem nas folhas e de as sentir no meu corpo. Olhei levemente para o céu. As
nuvens começavam a afastar-se deixando que a leve luz do Sol voltasse a tocar
no solo, mais especificamente, nas lápides da minha mãe e da minha irmã, que,
por estarem molhadas, brilhavam, como se fossem de cristal.
Deixo-me estar uns momentos em silêncio, ainda de joelhos e
seguidamente levanto-me. Tento escorrer alguma água da minha roupa, em vão.
Fito uma última vez as lápides e sorrio. Viro-me e caminho em direcção à saída
do cemitério.

Quando estou quase a sair, deparo-me com uma pessoa coberta por um
guarda-chuva vermelho, tapando-lhe a cara e as costas. Apenas consigo ver que
se trata de alguém magro – uma mulher quase de certeza – pelo estilo das calças
negras. Penso, por breves segundos, se esta mulher ouviu ou viu algo
relacionado comigo, mas essa ideia passa-me repentinamente.
Não reparando de quem era a campa onde a mulher se encontra começo
a afastar-me. Todavia, poucos passos depois, uma voz familiar e há muito
esquecida faz com que pare subitamente.
- Evelyn? – pergunta a mulher.
Nesse preciso momento percebo de quem se trata, contudo, tento não
acreditar, permanecendo em silêncio. Como não respondo, a mulher volta a
perguntar:
- Evelyn? És tu?
Tenho a certeza de que se trata dela, pelo que dou meia-volta e olho-a de
frente. O guarda-chuva vermelho ainda tapa o seu rosto, mas ela levanto-o
levemente, deixando o seu rosto descoberto.
Está mais magra. Os cabelos castanhos com madeixas loiras caiem-lhe
sobre os ombros. O seu rosto ligeiramente envelhecido mantém a mesma
tonalidade bronzeada que eu recordo. Como era de esperar, o seu nariz e os
seus lábios, belamente delineados continuam perfeitos. Os seus olhos
permanecem tal como eu me lembro deles, negros, como os de uma pintura a
óleo, capazes de nos absorver da realidade. Continua bela, como sempre fora.

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Não respondo, esboço apenas um leve sorriso que Tyra iguala. Foi então
que reparo na lápide a seu lado, “William Collin”, o seu marido. Segundo soube
tinha falecido há cerca de um mês, com um ataque cardíaco, deixando assim,
Tyra com um filho para criar.
Tyra dirige-se a um banco de pedra perto de nós e faz sinal para que eu
me sente a seu lado. Fecha o guarda-chuva no momento em que eu me sento e
fica a olhar. Percebo que tem muito para dizer. Tanta coisa acumulada ao longo
dos anos.
- Há quanto tempo? – pergunta-me, mas não sorri.
- Há muito… – respondo, não sabendo ao certo há quanto tempo
perdemos o contacto.
Quando fiquei em Portugal, mantivemos o contacto. Falávamos
regularmente e quando vinha a Inglaterra encontrava-me sempre com Tyra para
pormos a conversa em dia. Como não podia deixar de ser, no dia do meu
casamento Tyra foi a minha dama de honor, e eu fui convidada para, quatro anos
mais tarde, ser a sua dama de honor. Soube que se ia casar com o William Collin,
um antigo colega da nossa turma, que mais tarde optou pelo mundo das drogas
e da toxicodependência.
Tentei dissuadir Tyra de casar com ele, pois não acreditava que “ele tivesse
mudado”, nem que “merecia uma segunda oportunidade”. A imagem que me
aparecia sempre que me lembrava de William Collin era um jovem, com cerca
de dezassete anos a ameaçar um professor com um revolver, na escola, por
causa deste lhe ter dito que ia contar aos seus pais o que se passava em relação
às drogas.
Tyra não havia tido conhecimento desse episódio porque, nessa semana,
estava doente e todos tentaram não falar disso na escola, por causa dos alunos
mais novos, fazendo com que o assunto fosse esquecido, sem que Tyra tivesse
conhecimento dele.
Quando ela me ligou a dizer que ia casar com ele e que tinha encontrado
o homem da sua vida – o Tal – contei-lhe desse episódio. Ela não acreditou e
quando o confrontou ele negou, fazendo de mim mentirosa e “estraga
casamentos”. Ainda que Tyra estivesse desconfiada, argumentava sempre que
ele tinha largado essa vida de vez e que agora era uma pessoa diferente e que
merecia uma segunda oportunidade, que eu recusava a dar, com medo que a
minha melhor amiga sofresse se se casasse com ele e ele se mostrasse agressivo
ou ainda mais dependente da droga.
Com tudo isto, acabei por recusar o convite para dama de honor e não fui
ao casamento da minha melhor amiga. Desde então nunca mais falámos. Ainda
assim, anos depois, soube que ele voltou a fazer uma desintoxicação e que havia
ficado com problemas de coração. Apesar disso, nunca tive conhecimento que
ele a tratasse mal ou que transformasse a vida dela num “inferno”.
Por um lado eu tinha razão, ele continuava dependente, por outro, tinha
exagerado, ele não era agressivo com ela e tentou, sempre, dar-lhe a melhor
vida que podia, apesar do seu “problema”.

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Alguns anos depois, segundo me contaram, soube que um dos seus
grandes desejos era ter um filho, fazendo com que Tyra acabasse por engravidar
e dar a luz um menino, agora com cerca de oito ou nove anos. E neste momento,
via-se sem marido e sem pai para o filho. A sua família, tal como eu, não tinha
concordado com o casamento, de tal modo que agora Tyra estava sozinha.
- Os meus sentimentos – digo olhando para a lápide de William.
Tyra baixa o olhar para as mãos e percebo que está nervosa. Aclara a
garganta e pergunta:
- O que nos aconteceu?
- Não sei… Sinceramente não sei… – respondo, esfregando os olhos
inchados do anterior choro, e sentindo que uma nova vaga de lágrimas vem a
caminho.
Sei que Tyra, sem saber, vai tocar na ferida.
- Como está a tua filha? – pergunta, acertando em cheio.
Apesar de nos chatearmos um ano antes de Esperança nascer, ela soube
da sua existência. Mas não soube o que aconteceu entretanto.
- Bem… É uma longa história… - gaguejo.
- Não tenho nada para fazer, se quiseres falar, estou aqui… – diz Tyra
baixando a voz ao longo da frase.
Como se se tratasse de uma frase mágica, a conversa de Tyra faz com que
as correias que prendem o meu passado se soltem. Sinto que falo novamente
com a minha melhor amiga, dos tempos de adolescência, quando não
escondíamos nada uma da outra, quando nos ouvíamos e quando nos
compreendíamos.
Conto-lhe a história de Esperança e de ter fugido e a minha vida desde há
oito anos. Ela ouve sem interromper. Olha para mim, com aqueles seus belos
olhos que me olham com compreensão. Despejo tudo. Era como se tudo fluísse
em mim de um modo muito natural. Parecia que nunca nos tínhamos chateado.
Que ontem tínhamos estado a falar da nossa infância e dos momentos que
passamos juntas.
Quando acabo de contar a história da “minha vida”, ambas choramos. Tyra
puxa-me para os seus braços e abraça-me, tal como quando éramos pequenas e
tínhamos medo da tempestade. Sinto as minhas roupas molhadas, enquanto as
suas, quentes e secas, me aquecem.
Ficamos assim, juntas, em silêncio. Aquele abraço deixa-me mais segura,
mais protegida. Estar novamente abraçada à minha melhor amiga é
reconfortante e harmonioso.
- Sabes uma coisa? – pergunto a fungar.
- O quê?
- Sempre foste a minha melhor amiga e ainda és, apesar de tudo… –
respondo, sorrindo.
- O sentimento é recíproco! – diz Tyra sorrindo.
- Queres ir a algum sítio?
- Não – responde abanando a cabeça. – Estou bem onde estou.

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Sorrio e ficamos abraçadas, sentadas no banco de pedra, como duas
crianças pequenas e indefesas que precisam do conforto uma da outra.

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Capítulo 13
Passado

Evelyn
________________

Hoje é o dia em que a minha vida acaba. É o dia em que morri por dentro
e é o dia em que matei a minha filha de dez anos.
Ainda um pouco atordoada devido à anestesia caminho em ziguezague.
Corri o mais que pude para me distanciar do maldito hospital onde ela ficou a
olhar para mim, onde a vi pela última vez.
Vou até ao Hotel, em Lisboa, caminhando a pé, descalça. Na rua todos me
olham de soslaio, ignorando a sombra branca que se move lentamente por entre
a multidão que se arrasta nas ruas.
O céu, outrora limpo e azul, mostra-se cinzento e coberto de nuvens,
camuflando a luz de Sol que teima em escapar por detrás destas, chegando até
mim como se fossem banhos de Sol.
Chegando ao Hotel, passo apressada pela entrada, dirigindo-me à
recepção para pedir a chave do quarto. Apesar de hesitar, o recepcionista, já me
conhecendo, acaba por ceder e dá-me uma chave do quarto. Agradeço e vou no
elevador até ao quarto. Estou só vestida com uma espécie de túnica branca do
hospital, pelo que, todos os hóspedes se questionam se eu serei, ou não, uma
mendiga. Ouço-os murmurar. Ainda que distantes, as suas vozes ecoam sobre as
paredes do terceiro andar, onde estou hospedada. Com os olhos semi-cerrados,
caminho pelo corredor, acabando por chegar à porta do quarto que abro e
tranco posteriormente.
Dirijo-me à casa de banho, para lavar a cara, de modo a tentar despertar
da anestesia que envolve parte do meu corpo. Não me contemplo ao espelho
com vergonha de me olhar, de ver que fui EU que abandonei a minha filha e não
outro alguém, que porventura tivesse tomado conta do meu frágil corpo.
Apresso-me a mudar de roupa, aquela que consigo apanhar em primeiro lugar
do armário. Agarro na minha mala que jaz na cama, onde a deixei antes de sair
para o hospital. Não levo nada mais comigo quando deixo o Hotel e me sigo para
o aeroporto.
O meu telemóvel começa a emitir o seu irritante toque, que me relembra
que a esta altura, já Luís sabe que eu fugi e abandonei a nossa filha, mas nada
importa. Ignoro o telemóvel e, por breves instantes, sinto vontade de o desfazer
com as minhas próprias mãos.
Por sorte consigo um bilhete para Inglaterra, uma vez que alguém desistiu
à última da hora. A minha bagagem resume-se à mala castanha que levo no
ombro. No seu interior, residem certa de meia dúzia de coisas, o que é estranho,
uma vez que a mala de uma mulher costuma estar cheia de tudo e mais alguma

63
coisa, que por motivos femininos, consideramos importantes para alguma
ocasião.
Contudo, a minha mala apenas abarca trezentos euros, duzentas libras,
que há muito se encontravam na minha carteira, o passaporte, cartões pessoais,
uns óculos de sol, um pequeno estojo de maquilhagem, duas peças de roupa
mal dobradas e três molduras que agarro à pressa.
Embarco no avião cheio de pessoas em direcção a Inglaterra, onde me vou
refugiar, onde me vou esconder, onde vou esquecer o que fui e o que me tornei,
onde este vazio no meu peito não vai fazer qualquer sentido, onde os meus
gritos de desespero não passarão de leves sussurros ao vento.
Entre tanta gente que se encontra no avião, refugio-me em mim própria e
durante toda a viagem em nada penso. Por vezes, tentamos ter a nossa cabeça
livre – limpa – de todo o tipo de pensamentos, ainda assim, isso não é fácil, pois,
por mais que nós queiramos, a nossa mente insiste em navegar por certo
assunto, enchendo-nos dele.
Todavia, na viagem, a minha mente esteve desligada, não sei se foi efeito
da anestesia ou não, apenas sei que a minha mente se encontrou livre de
quaisquer pensamento, permitindo que o vazio se prolongasse pelo meu corpo.
Somente quando o avião iniciou a sua aterragem é que os pensamentos
vieram de encontro a mim, como se eles se encontrassem a flutuar e, no
processo de descida, eu os coleccionasse, como num videojogo em que,
supostamente, eu seria a heroína. Porém, o videojogo não é real e só me resta a
minha vida, a minha pobre e miserável vida, porque eu assim quis. Todos os
pensamentos que a minha mente começa a englobar, iniciam o processo de
corrosão do meu corpo. Primeiro por dentro, onde não se vê, apenas se sente, e
posteriormente, a longo prazo, irão degradar o físico, para que nada de mim
reste, afinal de contas, do “pó viemos e em pó nos tornaremos”.
“A minha filha…”
A primeira ronda de pensamentos principia com a minha filha, a minha
pequena filha de dez anos, indefesa, doente, às “portas da morte”. E eu, a
pessoa que tinha a rara capacidade de poder tentar salvá-la, fugi, deixando-a
sozinha sem qualquer hipótese de vencer “o ser maligno” que começou a
consumi-la, a tirar-lhe a vontade e alegria de viver que acabou, com a minha
ajuda, por lhe tirar a vida.
Como pude eu? Depois de tudo o que passei na minha
infância/adolescência… Como pude ser tão cruel ao ponto de romper aquele
laço de amor que une uma mãe a um filho? Deixá-la deste modo, foi proceder
da mesma forma que uma mãe rejeitar a cria que no seu ventre se concebe,
cujo coração bate, lutando para sobreviver. Como fui capaz?
Ainda lembro como tudo começou. Como um aglomerado de sintomas
nos levou ao médico, e ficámos a saber que Esperança era portadora de uma
neoplasia maligna (cancro) no sangue, designada leucemia do tipo linfática
aguda, a mais comum em crianças, e que se não fosse rapidamente tratada não
haveria volta a dar à situação. Descobrimos também que no corpo infantil de

64
Esperança circulava um tipo de sangue raro, que, por acaso dos acasos, também
circulava no meu corpo. Depois de consultar vários médicos, a Dr.ª Teresa
Cardoso marcou a diferença, tanto pelo seu carácter profissional como pela sua
personalidade.
Após tudo o que Esperança havia passado, havia que ser tomada uma
decisão. Tínhamos que decidir se Esperança era ou não submetida ao
transplante de medula, à posterior dos tratamentos de quimioterapia. O
transplante tinha que ser efectuado por alguém, cujo tipo sanguíneo não
diferenciasse do de Esperança, por outras palavras, eu ia fazer o transplante de
medula. Mas, por razões irracionais, ou talvez não, não fui capaz de concluir o
processo de transplante, acabando por deixar a minha filha à mercê da morte.
“Perdi o Luís…”
A segunda vaga de pensamentos prende-se com o facto de ter perdido o
homem da minha vida, o que muitas mulheres designam como o “Tal”, aquele
que todas procuram, mas poucas são as que realmente o encontram. Eu
encontrei-o e deixei-o fugir, como areia que tomba da minha mão, apesar de eu
a tentar manter fechada. Sei que jamais irei encontrar alguém como ele e sei
que jamais o esquecerei, porque o que é perfeito, dura para sempre, quaisquer
que sejam as circunstâncias envolventes…
“A minha vida desmoronou-se…”
Este era o último pensamento que soava na minha mente. Tudo o que eu
tinha conseguido ao longo dos anos tinha acabado por se perder num só
segundo. Bastou esse segundo para que eu me visse em Inglaterra, sozinha,
longe do meu marido e da minha filha doente, sem ninguém a quem recorrer.
Não posso ir ter com os meus avós ou com os meus tipos maternos, pois teria
de lhes explicar tudo o que aconteceu, o que me levou a fugir de Portugal e isso
eu não quero.
Desde que fugi que ainda não derramei uma única lágrima. Talvez a
anestesia tenha feito com que os meus canais lacrimais tenham secado, ou
talvez seja mesmo eu que não consiga chorar, embora tenha um nó na garganta
que vai apertando lentamente, até que irá chegar a um ponto em que eu não
aguentarei mais e cederei.
Após sair do avião, sigo até à casa de banho, onde me tranco num
compartimento. É nesse momento que as lágrimas começam a brotar dos meus
olhos, caindo velozmente pela minha pálida cara, como se fosse uma cascata.
A minha vida acabou, mesmo quando deveria ter começado. Acabou não
agora, mas sim há muito tempo atrás, quando, de um momento para o outro me
vi perdida e sozinha num mundo cheio de pessoas. Acabou no dia em que a
minha mãe e a minha irmã morreram.
Desde então, não passei de uma leve sombra deambulando de um lado
para o outro, julgando que um dia poderia ser feliz, que um dia não ia lamentar
a minha existência, mas sim agradecer por existir. Esse dia nunca chegou e
receio que, daqui para a frente, teime em não chegar.

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O som das pessoas a entrar e a sair na casa de banho é constante. Falam,
riem, ou entram sem dizer nada, sendo o único som detector da sua presença os
seus passos e o barulho da água dos lavatórios a correr. Passam apressadas nos
seus mundos, ausentes de si mesmas.
No fundo, são como um quadro numa exposição, belo (por vezes), sem
mostrar realmente o que se encontra no seu interior, como se possuísse uma
carapaça que só mostra uma bela imagem e não que se fez para se construir
essa imagem…
O som na casa de banho não pára nas horas que se seguem. Entre o
silêncio e o ruído das pessoas, apenas o meu fungar se faz ouvir.
Agora, só me resta tentar “recomeçar” a minha vida…

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Capítulo 14
Presente
Sexta-feira, 22 de Agosto
Luís
________________

Estou em pânico. O meu corpo emana receio e medo de tal modo que
Ana já se apercebeu que algo de errado se passa comigo. Não sei se é de estar
mais próximo da minha filha nestes dois dias, mas começo a ter a sensação de
que algo se passa.
Devido aos estudos de Esperança e ao meu emprego não era muito o
tempo em que nos cruzávamos e nos poderíamos aperceber se algo de estranho,
levemente disfarçado de “normal”, estava a acontecer. Obviamente que
reparávamos que algo de mau ou bom acontecesse, mas não estávamos atentos
a certos sinais premonitórios de algo que pode estar para vir. Contudo, como
tenho passado praticamente todos os minutos destes dois dias com Esperança e
com Ana, na descoberta de Inglaterra que há muito visitei e superficialmente
conheci, tenho reparado nesses pequenos sinais que mal se notam, que tentam
passar despercebidos e que, mais tarde ou mais cedo, irão despoletar com uma
força exorbitante.
Não sei se Esperança já notou algo de estranho ou se simplesmente não
passa da minha imaginação. Desde que ela nasceu que fui um pai, um tanto ou
quanto, protector, por vezes até demais. Todavia, a sua doença e o medo de a
poder perder, sem mais nem menos, no desabrochar da sua inocente infância,
tornaram-me vigilante – compulsivamente vigilante – atento a tudo o que se
passava em nosso redor. Ao longo dos anos essa compulsiva vigilância e controlo
foi acalmando, mas tal como o medo que jamais desapareceu, a preocupação
pelo seu bem-estar também não.
Tenho constatado em Esperança uma certa relutância em comer, de certa
forma não a censuro, pois a comida britânica, para mim, é simplesmente
intragável, por outro lado, tenho receio que seja um sinal de que a minha filha
anda mais em baixo. Também reparei que, por exemplo, no espaço de três horas,
Esperança sangrou duas vezes do nariz e que em ambas dificilmente se
conseguiu estancar a hemorragia nasal; que está mais magra e um pouco mais
pálida. Pode ser apenas impressão minha mas, na verdade, não posso deixar de
ficar preocupado.
Relembro tudo o que se passou há dez anos, como se pequenos
fragmentos de memória que eu desejei esquecer, se unissem e formassem um
filme que começa a ser visualizado na minha mente…

Tudo aconteceu tão de repente que nem me apercebi. De um dia para o


outro a minha pequena filha começou a ficar gravemente doente. Evelyn levou-a
a uns poucos de médicos e eles diziam que a situação de Esperança não era boa,

67
mas não conseguiam fazer mais do que isso. Após alguns oito médicos,
Esperança foi consultada pela Dr.ª Teresa Cardoso e isso foi, com certeza a “luz
ao fundo no túnel”. A Dr.ª Teresa, ainda no dia da consulta, ordenou que
Esperança fizesse exames, começando com uma simples análise ao sangue. Após
os resultados das análises, Esperança foi submetida a mais alguns exames,
incluindo uma biopsia, quando já a Dr.ª Teresa desconfiava que a causa dos
problemas pudesse ser uma leucemia.
Infelizmente, a biopsia veio confirmar que Esperança sofria de leucemia,
mais especificamente, leucemia linfática aguda, que geralmente afecta crianças,
e com menos frequência, adolescentes e adultos. Segundo a Dr.ª Teresa, este
tipo de leucemia faz com que as células que normalmente se transformam em
linfócitos se tornem cancerosas e rapidamente substituam as células normais
que se encontram na medula óssea.
Foi então, ao descobrir que o corpo da minha pequena filha, de oito anos,
estava a ser consumido por uma “praga” maliciosa que a minha vida deu uma
volta de trezentos e sessenta graus. Evelyn começou a isolar-se e a manifestar
comportamento depressivo, que no início pensei ser normal mas, com o passar
do tempo comecei a pensar que algo mais a estava a deitar a baixo. A pequena
Esperança apercebeu-se de tudo o que se passava, chegando a perguntar à sua
mãe se tinha realmente cancro.
Mas não podia deixar que os sentimentos tomassem conta de mim. Era
preciso agir, lutar contra o tempo… Lutar contra algo que rapidamente ganhava
território no inocente corpo da minha filha.
A Dr.ª Teresa informou-nos que, antes de existir tratamento, a maioria dos
doentes que tinha leucemia aguda morria nos quatro meses que se seguiam ao
diagnóstico mas que agora muitos se curam. Soube que, em cerca de noventa
por cento dos que sofrem leucemia linfática aguda (habitualmente crianças), o
primeiro turno – ciclo – de quimioterapia controla a doença (remissão). Então,
na opinião da Dr.ª Teresa, Esperança devia começar com a quimioterapia para
tentar controlar a doença, o que aconteceu.
A meta do tratamento com quimioterapia era conseguir a remissão
completa mediante a destruição de células leucémicas, a fim que as células
normais voltem a crescer na medula óssea. Esperança ficou hospitalizada
algumas semanas, não me recordo quantas, aquando do tratamento de
leucemia.
Pelo que descobri, antes que o funcionamento da medula óssea volte à
normalidade, pode ser (e foi) necessário realizar transfusões de glóbulos
vermelhos para tratar a anemia, transfusões de plaquetas para travar a
hemorragia e administrar antibióticos (cujo nome não relembro) para tratar
infecções. E foi neste processo que eu fiquei de parte e Evelyn foi essencial.
Esperança partilhava do mesmo tipo sanguíneo que Evelyn, logo, teve que
ser a minha ex-mulher a realizar as transfusões necessárias para que o
organismo de Esperança pudesse sobrepor-se às complicações que detinha.

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Ao fim de meses depois do tratamento inicial intensivo dirigido à
destruição de células leucémicas, administrou-se a Esperança um tratamento
adicional (quimioterapia de consolidação) com a finalidade de destruir qualquer
célula leucémica residual.
O tratamento ficou “concluído” ao passo de dois anos, quando Esperança
tinha dez anos de idade. Todavia, e muito contente que a Dr.ª Teresa estivesse
com o facto de tudo ter corrido bem, a Dr.ª Teresa receava, tal como eu e Evelyn
que se desse uma recidiva, ou seja, que ao cabo de algum tempo as células
leucémicas pudessem reaparecer.
Então, a Dr.ª Teresa falou-nos no transplante de medula óssea, que
oferece aos pacientes uma melhor oportunidade de recuperação, não
impedindo, a cem por cento, a possibilidade de o cancro recidivar. Não
considerámos, inicialmente, o transplante de medula, uma vez que agora
Esperança encontrava-se bem.
Porém, e alheia à nossa felicidade, a doença regressou passados uns
meses, e foi quando consideramos a possibilidade de se realizar o transplante de
medula óssea. Contudo, novamente fiquei de fora deste procedimento, uma vez
que, quem doar tem que possuir um tecido compatível, Evelyn. Dirigimo-nos
então, de Évora para Lisboa, onde iria decorrer o transplante de medula óssea.
O processo era simples. Um médico iria extrair a medula óssea do osso
ilíaco com uma seringa e preparava-a para ser transplantada. Em seguida,
injectava a medula na veia de Esperança. Se tudo corresse bem, a medula óssea
de Esperança era completamente substituída.
Mas Evelyn abandonou a própria filha à beira da morte. Deixou-a e fugiu,
há oito anos.
Esperança acabou por ter que realizar o tratamento com quimioterapia, à
semelhança do primeiro. E desde então, milagrosamente, Esperança nunca mais
se mostrou afectada pelo cancro…

O barulho exterior desperta-me dos meus pensamentos e constato que,


apenas durante um minuto os meus pensamentos me possuíram, apesar de ter
a estranha sensação que voltei a viver todos os dias, todos os segundos de
tamanho sofrimento.
Vamos num autocarro, observando alguns espaços londrinos. Ela olha em
redor e sorri. Seguidamente olha para mim, e como se adivinhasse os meus
pensamentos, sorri e diz:
- Pai, já te disse que estou bem…
Eu assinto gestualmente, enquanto penso mentalmente que não a posso
perder, e que se algo estiver novamente mal irei fazer tudo o que estiver ao meu
alcance para que Esperança fique bem. Não vou perder a minha filha!

69
Capítulo 15
Presente
Sábado, 23 de Agosto

Evelyn
________________

O barulho… a confusão… os gritos… os encontrões… as PESSOAS… Estes


são alguns dos muitos motivos que poderia enumerar para demonstrar o quanto
detesto centros comerciais. Ainda assim, tive que vir ao shopping comprar uma
prenda para o filho de Nicole, pois acordei em ir à sua festa de aniversário.
Não sei o que hei-de comprar, pois não me recordo qual é a sua idade.
Vou ter que improvisar, ou seja, comprar algo que se adeqúe a idades
compreendidas entre as oito e os doze anos, uma vez que julgo que o Alex não
terá mais do que doze anos. Ou terá? Bem, não sei.
Entro no centro comercial e sinto-me invadida de tudo. Da respiração das
pessoas; das suas conversas; dos seus risos; das suas birras; da sua vaidade e até
mesmo da sua pobreza.
Tento passar despercebida por entre a multidão, o que é relativamente
fácil, não pensasse eu que estou a ser constantemente observada por alguém
que provavelmente nem se apercebe da minha quase insignificante existência.
Hoje transporto uma leve sensação de ânsia no meu interior. Desde que
acordei que me senti estranha, ansiosa, como que esperando por algo, sem
saber explicar o quê.
Quando saí de casa, reparei que a luz do Sol parecia deambular pelo céu,
escondendo-se, por vezes, atrás de grandes nuvens cinzentas e voltando a
reaparecer passados breves minutos. Talvez a chuva esteja a chegar e
possivelmente seja esse o motivo da minha ansiedade.
Ignoro tais sentimentos e continuou a passar pelas montras tentando
encontrar algo que se adeqúe no patamar compreendido entre os oito e os doze
anos. Provavelmente um DVD ou um videojogo seja o mais ajustado, mas dentro
desses ainda tenho que encontrar um que não seja demasiado infantil ou
demasiado violento.
Entro em duas lojas, mas não me consigo decidir entre um jogo de
aventura ou um de futebol, pelo que continuou a caminhar por entre as pessoas.
Cheira-me a fast food, misturado com perfumes baratos que me causa um
ligeiro enjoo. Caminho por corredores infindáveis de lojas: de roupa, tanto para
homem como para mulher ou para criança; perfumarias; de artigos biológicos;
de doçarias; de jogos; de electrodomésticos; etc…
Um mar infindável de produtos à espera de serem adquiridos por alguém
que possa, ou não, precisar deles. Não importa quem os compra ou
simplesmente porque os compra, o importante é serem comprados e, se
possível, antes de quaisquer saldos.

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Passam por mim pessoas carregadas de sacos com cores variadas e de
diferentes materiais. Umas passam sozinhas, outras acompanhadas por alguém
e até mesmo famílias de cinco ou seis membros, em que o pequeno “benjamim”
carrega o seu próprio saco, talvez com um brinquedo no interior, enquanto
acompanha o caminhar dos seus pais ligeiramente apressados.
Olho de soslaio para as montras que exibem belas roupas, delicadamente
costuradas e de sublimes cores que adornam os manequins sem vida que
parecem movimentar-se na montra. Tenho a sensação que me chamam, como
se entoassem uma leve música hipnotizadora que começa a ser interiorizada
pela minha mente e me impulsiona para a entrada da loja. Ainda assim, quase a
entrar na loja, regresso a mim e relembro o motivo porque me dirigi a um
shopping: comprar uma prenda para o filho de Nicole.
Caminho pelo corredor de lojas, enquanto constato que estou mais magra.
As calças de ganga acinzentadas que há um mês me assentavam na perfeição,
agora tendem a cair se não usar um cinto. Não percebo porque estou mais
magra, já que me tenho alimentado de igual forma.
Será que estou mais deprimida? Não posso dizer que sim ou não, já que
teria que ser um psicólogo a fazer tal avaliação. Mas penso que a minha vida deu
uma volta neste últimos dias e não posso dizer que tenha sido para pior. Contei a
verdade à minha família, que neste momento sabe quase tanto da minha vida
quanto eu; fiz sexo com o meu antigo psicólogo, o que se tornou uma novidade
na minha vida, uma vez que há oito anos que não fazia sexo; reencontrei a
minha melhor amiga e fizemos as pazes…
Ainda envolta nos meus pensamentos, entro numa loja de DVD's e
videojogos e acabo por comprar um DVD que acho que se adequa
perfeitamente ao Alex. Combina aventura com acção, um pouco de fantasia e
sem esquecer, obviamente, uma pitada de romance. Pode ser que goste. E se
não gostar, sempre pode vir trocar por algo que goste mais, mas julgo que
consegui, após oito anos, comprar um presente de aniversário.
Estou a sair da loja e olho de soslaio para a minha volta, contente por ter
saído de casa, ter ido a um shopping e ter comprado uma prenda que mais tarde
vou dar, quando chegar à festa de Alex, onde irei conviver com outras pessoas. É
então que algo desperta a minha atenção, pelo que em vez que caminhar, rodo
sobre um pé e fito algo a uns quinze metros de mim.
Podia parecer um quadro normal de uma família: marido, mulher e filha.
Mas não é algo normal…
O meu corpo reage. O choque abate-se, percorrendo todo o meu corpo a
uma velocidade fugaz. Não consigo desviar o olhar, nem mesmo mexer-me.
Contudo, mal dou por isso e as minhas pernas cedem, acabando por me fazer
cair de joelhos no chão sujo do shopping.
Começo a chorar sem sequer sentir as lágrimas inundarem os meus olhos
e começarem a escorrer pela minha cara. Largo o saco do DVD e a minha mala
castanha.

71
Permaneço a olhar para ele, ignorando as duas figuras femininas que se
encontram à sua frente. Continua igual, a mesma pele bronzeada que recordo, o
mesmo corpo musculado, o mesmo olhar tingido de cor de mel, apenas mais
velho e com os cabelos encaracolados não tão castanhos mas sim mais
esbranquiçados. O meu corpo impulsiona dor. Dor que parece escapar pela
minha pele e espalhar-se por todo o corredor, como se me estivesse a esvair em
dor.
Tento levantar-me, mas em vão. O meu corpo não cede. Petrificou, assim
ficou e talvez ficará. Quero fugir. Sair deste sítio e ignorar o que quer que tenha
acontecido, ou que tenha visto.
É então que o inevitável acontece. Ele olha na minha direcção. Tal como
eu o reconheci, ele de imediato recorda-se de mim, e sei que o choque o possui
tal como acontece comigo. O seu sorriso desvanece-se e o seu olhar, outrora
carinhoso, agora corta-me como uma lâmina, dissecando cada pedaço de mim,
para que nada reste no fim, para que não passe de uma recordação que deveria,
há muito ter sido esquecida.
Não consigo desviar o olhar, pelo que nos encontramos e tudo o resto
desaparece convertendo-se em escuridão que nos rodeia. A sua face bronzeada
perdeu a cor, tal como a minha deve ter ficado quando o vi. Porquê? Pergunto-
me sem obter resposta. Porquê é que ele está aqui, num shopping, em Londres?
Inspecciono cada pormenor seu. Desde o corte do cabelo, à graxa dos
sapatos negros. E é então que descubro, no seu anelar esquerdo, um anel, não o
nosso, outro anel que simboliza união, com outra mulher, outra para além de
mim. Então, encaro com tristeza e decepção que ele continuou com a sua vida.
Que ele não ficou preso a um passado que nos uniu, enquanto que eu não
consegui desembaraçar tais memorias, talvez, pelo facto de eu ter morto a
nossa filha e me sentir culpada.
É então que, da escuridão que nos rodeia, surgem as duas figuras
femininas que o acompanham. Apesar de o olhar fixamente, sei que elas
perguntam o que ele tem, o que se passa e para onde olha. A derradeira
pergunta, porque, como ele não responde, elas irão ter que virar-se e
confrontar-se com a minha presença. Ainda que saiba que uma mulher mais
velha, também de costas, é provavelmente a sua “nova” mulher, continuo a
ignorá-la, mesmo quando se vira e se apercebe de quem eu sou, até porque
tenho a certeza de que Luís lhe falou de mim e de tudo o que se passou entre
nós.
Concentro a minha atenção na outra figura feminina, mais jovem e é
então que o meu cérebro inventa uma hipótese que, com a pouca racionalidade
que detenho, descarto, sem pensar duas vezes. Porém, ela vira-se, e esse
segundo em que se vira, para mim parece uma eternidade. A hipótese
anteriormente descartada começa a ecoar novamente na minha mente. Quando
pára e dirige o seu olhar na minha direcção, tenho a certeza de que o meu
coração pára. Tenho a certeza porque me sinto arrefecer, como se o sangue já

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não circulasse. As lágrimas brotam ainda com mais facilidade, quando pensei
que havia secado os canais lacrimais momentos antes.
O tempo pára. Não ouço nada, nem a minha própria respiração.
Concentro a minha atenção na característica que me dirá a verdade e assim
descubro a fatalidade. Como se ainda pudesse sentir uma dor mais forte, no
lugar onde, supostamente encontraria o coração, começa a formar-se um buraco
que me engole lentamente. Dói! Dói muito!
Os seus olhos começam a encher-se de lágrimas, pelo que a sua
tonalidade violeta se desfaz em milhares de brilhos. Reconhece-me, tal como o
seu pai me reconheceu. Estou frente a frente com um fantasma? Talvez esteja.
Provavelmente morri com um ataque cardíaco ao sair da loja de videojogos e, tal
como nos meus sonhos, ela chegou para me vir buscar, para a acompanhar, para
partir deste Mundo.
Mas como posso estar morta se a dor que sinto é tão forte que parece
atacar por dentro e por fora, como socos que enchem o meu corpo de
ferimentos? Ao mesmo tempo sinto-me a afogar… A afogar na minha própria dor,
que me impede de chegar à superfície e respirar… Respirar de um alívio que
teimará em não chegar…
Todavia, a “consciência” diz-me que não estou morta e que não estou a
sonhar, que tudo é real, incluindo ela. Ela… a minha filha… A MINHA FILHA...
NÃO MORREU!
Ela olha para mim sem compreender o como e o porquê. Não sei o que
Luís lhe disse acerca de mim. Não sei se lhe disse que eu tinha morrido, ou que
simplesmente tinha fugido dela, deixando-a a morrer.
A minha filha, a minha pequena Hope cresceu. Não é mais aquela menina
pequena e indefesa que eu abandonei. Os seus olhos, agora lacrimantes,
conservam a cor que tão bem recordo. Os seus cabelos são castanhos com
madeixas loiras que, possivelmente, havia esquecido, pois, quando a abandonei
os seus cabelos não eram muitos. A sua pele branca, encontra-se mais
bronzeada, mas não tanto como a de Luís.
“A minha filha está viva… Ela não morreu…” ecoa sem parar na minha
mente. Quero ir abraça-la, tocar-lhe, sentir que é real. Contudo, há algo que me
impede, a espaço de mágoa, sofrimento e recordações que nos separa, e que
talvez nos irão separar para todo o sempre.
Ninguém reage. Luís continua com a mesma expressão e tenho dúvidas se
já pestanejou desde que me viu; a sua mulher olha-me espantada, mas não
compartilha, como óbvio, do sentimento que me une a Luís e a Esperança. Esta
última, dá dois passos em frente, na minha direcção e, por breves instantes,
sinto a terra a tremer, como se estivesse a dar-se um sismo, mas daqueles que
raramente se dá e quando isso acontece, arrasa tudo por onde se propaga.
Ainda assim, Esperança pára, não avançando mais na minha direcção. Em
vez disso abana a cabeça como sinal de negação, ao mesmo tempo que fecha os
olhos. Recua para perto de seu pai, mete-lhe a mão no ombro, em sinal de se
irem embora.

73
Luís demora algum tempo a mover-se e quando o faz, fá-lo lentamente,
como se eu estivesse a ver em câmara lenta tudo o que se passa. Olha uma
última vez para mim antes de se virar e abraçar Esperança que soluça. Afastam-
se vagarosamente, os três, acabando por desaparecer na esquina do corredor.
Eu vejo tudo o que se passa sem conseguir mover-me do local onde me
encontro. Eles abalaram e apenas o rasto da sua presença ficou. Tal como o rasto
de um aroma que descreve um caminho que podemos seguir. Inalo esse aroma,
e com as poucas forças que tenho levanto-me, caminhando em ziguezague na
direcção contrária da trilha da sua presença.
Enquanto caminho choro e cada lágrima que escorre pela minha face
lembra-me que, tal como eu estou viva, também Esperança se encontra entre o
Mundo dos vivos.
- A MINHA FILHA ESTÁ VIVA! – grito aos céus ao sair do shopping.

74
Capítulo 16
Passado

Evelyn
________________

A luz do Sol, quente, por volta do meio-dia, entra como uma cascata pela
janela da cozinha, iluminando toda a divisão. Dou os últimos retoques no
almoço, enquanto espero que Luís chegue para vir almoçar.
Passados pouco minutos, o meu marido entra, sorrindo. Beija-me
carinhosamente como faz sempre que se encontra comigo e, seguidamente,
desce a sua mão direita pelo meu corpo e pára na minha barriga. Nesse
momento a sua face ganha um esplendor como nunca vi. Os seus olhos brilham
e é impossível conter o contentamento que o seu riso demonstra. Pouco depois
sinto algo em mim a mexer, dando uma impulsão na barriga. Luís inclina-se e
coloca o seu ouvido na minha barriga, como que tentando escutar o doce
milagre da vida.
- Sentiste? – pergunta Luís, ainda colado à minha barriga. Sorrio e penso
que, por vezes, Luís faz perguntas sem nexo. Se ele sentiu, como não senti eu
que carrego o novo ser no ventre? Mas nada digo, apenas assinto com a cabeça
e observo Luís.
Estou grávida de oito meses e meio, a minha barriga, delicadamente
arredondada pelo ser que se concebe em mim, cresceu abruptamente. Ainda
assim, engordei nada mais, nada menos do que dez quilos durante todo o
período de gestação, ao contrário da minha mãe que, tanto de mim como da
minha irmã, engordou cerca de vinte quilos.
- Vamos almoçar? – pergunto a Luís, percebendo que ele perdeu a noção
do tempo e que se não almoçar não chegará a horas ao trabalho.
- Sim… Sim… – gagueja Luís levantando-se e indo para a mesa, preparada
para o receber. – O que é o almoço?
- Sopa de tomate – digo, encontrando-me de costas para Luís, porque
preparo o almoço para ser servido. Ainda que não o vendo, sei que ele ri, uma
vez que sopa de tomate é o seu prato predilecto.
Sirvo a sopa cor de tomate, em ambos os pratos e Luís começa de
imediato a comer, enquanto que eu levo a panela de volta para o fogão. Ao
regressar à mesa, não como de seguida, fico antes a ver o meu marido e o futuro
papá babado pelo seu filho, ou melhor, filha. O cheiro da sopa é inalado por mim
e prontamente relembro o dia em que descobri no meu interior se gerava uma
vida. Por vezes, um cheiro, uma música, um sabor, faz com que viajemos de
volta a algo que se relaciona com o que acabámos, por exemplo, de saborear ou
ouvir.
Neste caso, o cheiro da sopa faz com que regresse a um tempo não muito
distante, cerca de sete meses antes.

75
Era um dia chuvoso de Janeiro em que os dias se encontravam cinzentos e
frios, tal como eu gosto. O vento uivava lá fora, remexendo tudo à sua passagem.
O Sol, que quase não pareceu durante o dia, escondia-se no horizonte coberto
de nuvens que ganhavam cada vez mais, uma tonalidade escurecida.
Na sala, quase silenciosa, apenas se ouvia o leve crepitar proveniente da
lareira onde, os pedaços de lenha escura ardiam, sendo consumidos pelo fogo
alaranjado, belo. Esse som misturado com o tilintar da chuva e com o assobio do
vento lá fora proporcionavam uma calma, uma harmonia, como nada, tirando
Luís, conseguia igualar.
Acho que cheguei mesmo a adormecer enquanto contemplava o fogo que
iluminava a sala, praticamente escura. Não sonhei durante esse tempo, ou
sonhei e não me recordo. Contudo, recordo-me que fui desperta por um beijo
na face que reconheci instantaneamente como sendo de Luís.
- Amor vamos jantar? – perguntou Luís ao passar com a sua mão pela
minha face. A luz oriunda da lareira reluzia na face de Luís, tornando-o ainda
mais belo. Os seus cabelos encaracolados pareciam fazer farte da própria luz e
os seus olhos cor de mel brilhavam como estrelas candentes que cruzam os céus.
- Sim amor – respondi levantando-me.
Nessa noite, tinha sido Luís a cozinhar, já que durante toda a semana
andava a pedir para fazer sopa de tomate, algo que não fiz, levando-o a
confeccionar o jantar.
Ao chegar à cozinha deparei-me com um cenário que não tinha imaginado.
A mesa, iluminada pela luz de duas velas, estava posta para dois. Tirando a
refeição – sopa de tomate – tudo era romântico e perfeito. Luís beijou-me e eu
coloquei os meus braços à volta do seu pescoço, puxando-o para mais perto de
mim. Após umas leves carícias, Luís pediu-me que me sentasse. Serviu a sopa e
esperou que eu comesse.
O cheiro da sopa cor de tomate parecia que inundava não só a cozinha,
como também o meu estômago. Senti o meu estômago dar uma volta e depois
qualquer coisa a subir pelo esófago. Levantei-me repentinamente da mesa com
a mão na boca e dirigi-me à casa de banho onde, como era esperado, acabei por
vomitar. Luís foi ter à casa de banho e perguntou se estava tudo bem, e quando
eu respondi que sim, voltou para a cozinha.
Quando já me encontrava bem fui até à cozinha, aclarei a garganta e disse:
- Deve ter sido por me ter deitado e não ter feito a digestão.
Luís concordou e esperou que eu me sentasse à mesa. Todavia, ao
aproximar-me da cozinha, o cheiro da sopa voltou a inundar-me, expulsando-me
da cozinha para a casa de banho, novamente.
O jantar romântico com sopa de tomate ficou, deste modo, estragado. No
dia seguinte, fui trabalhar, tal como Luís. Antes de sair de casa, Luís perguntou-
me se já estava bem e eu respondi que já tinha passado e que devia ter sido
uma indigestão.

76
Porém, antes de chegar ao escritório, passei pela farmácia. Não fui
comprar nenhuns medicamentos para a má disposição, mas sim algo que me
poderia indicar se estava tudo de bem. A menstruação estava duas semanas
atrasada, o que não era, de todo, normal, uma vez que era praticamente regular,
por vezes com um dia ou dois de atraso.
Comprei o teste de gravidez e fui para o escritório de contabilidade.
Quando cheguei disse à Lúcia, a minha chefe, que ia à casa de banho e que não
me demorava. Entrei na casa de banho e tranquei a porta. Sentei-me no tampo
da sanita e li o folheto informativo do teste de gravidez. Segundo parecia, este
teste poderia ser usado em qualquer altura do dia, ainda que na primeira urina
da manhã fosse mais exacto.
Era simples. Tinham que ser colocadas umas gotas de urina numa parte do
equipamento durante dez segundos e depois só tinha que esperar entre um a
três minutos. Seguidamente, se aparecesse um risco no mostrador do teste não
estava grávida, mas se em vez de um, fossem dois riscos, o teste tinha dado
positivo para gravidez.
Comecei então o teste, urinando para um copo de análises que também
comprei na farmácia. Coloquei o teste no copo com urina e esperei os dez
segundos. Retirei o teste e esperei que no mostrador surgisse o meu futuro –
grávida ou não.
Apareceu um risco, e ao mesmo momento que me senti ligeiramente
aliviada, senti-me desiludida, não sabendo bem o porquê. Ia pousar o teste em
cima do lavatório quando reparei que, no espaço de dez segundos, apareceu
um segundo risco no mostrador.
Fiquei paralisada a olhar para o teste que jazia nas minhas mãos, que
tremiam. Dessa vez, e ao contrário de anteriormente, uma onda de
contentamento imenso percorreu o meu corpo. Não senti qualquer
preocupação, porque nem sequer pensei nisso. Estava demasiado concentrada
no facto de que, no meu corpo uma nova vida se começava a gerar. Estava
grávida. Ia ter um filho ou filha, fruto do meu amor com o homem da minha vida
– Luís.
Coloquei a mão na barriga, como se esperasse sentir algo, o que não
aconteceu, pois, devia estar grávida apenas de um mês e pouco. Vi-me ao
espelho a fazer um sorriso parvo. O meu contentamento parecia que não era
capaz de se conter no meu corpo.
Saí da casa de banho e fui ter com Lúcia, a minha chefe e a minha grande
amiga portuguesa. Lúcia estava sentada na sua secretaria compenetrada no seu
trabalho, como sempre. Tinha pintado o cabelo novamente de castanho claro e
tinha-o escadeado; trazia também uma blusa preta de gola alta, com umas
calças tingidas de branco pérola e calçava umas botas que sempre gostei de
cano alto, pretas e com um salto não muito alto. Lúcia tinha quase quarenta
anos, mas aparentava ter quase vinte e nove anos. Não tinha praticamente rugas
e a sua pela era suave e morena. Os seus olhos castanhos, por detrás de óculos,

77
elevaram-se dos papéis que, com afinco liam, fitaram-me enquanto me dirigia a
Lúcia.
- Lúcia posso ir fazer um telefonema?
- Claro querida – respondeu Lúcia sorrindo.
- Não demoro – disse sorrindo.
Ela assentiu e baixou novamente os olhos para os papéis que tinha na
secretária.
Saí sem saber se deveria ligar a Luís e contar-lhe por telefone ou aguardar
e contar-lhe mais tarde, quando estivéssemos em casa. Como não me decidia,
resolvi ligar a Tyra, a minha melhor amiga que vivia em Londres.
- Hello9?
- Hi, Tyra! – cumprimentei.
- Como estás?
- Bem e tu?
- Tudo normal por cá e por aí? Novidades?
- Bem, liguei-te porque tenho uma novidade para te contar – principiei.
- Diz… – pediu Tyra. – Não foste presa pois não?
- Não! – respondi sorrindo, ao mesmo tempo que ouvi Tyra rir-se. – Na
verdade… Bem…
- Ev! – gritou Tyra, impaciente.
- Estou grávida! – contei rapidamente.
Tyra não disse nada. Ficou tanto tempo calada que pensei que a chamada
tivesse ido a baixo.
- Tyra, estás ai? – acabei por perguntar.
- Sim… - gaguejou. – Não estava à espera… Muitos Parabéns Ev!
- Obrigado – agradeci.
- Quando soubeste? – perguntou Tyra rindo.
- Agora mesmo.
- E já contaste ao Luís?
- Não, mas já sei como o vou fazer – disse rindo-me.
- Deve vir daí boa, deve – referiu Tyra gargalhando.
Rimos durante algum tempo e depois desliguei, prometendo que ia
mandar noticias assim que soubesse algo sobre o bebé.
Voltei para dentro e Lúcia estava à espera que lhe contasse o que se
passava, pois já sabia que pessoa mais curiosa do que a Lúcia era difícil de
encontrar.
- Então? – perguntou Lúcia, mal me sentei em frente à minha secretária.
- Bem… Pode dizer-se que, daqui a alguns meses vou deixar de trabalhar –
disse eu rindo.
- Arranjaste outro emprego? É por cauda do dinheiro? Eu pago-te mais.
Queres mais férias? O que é que…
Interrompi Lúcia que parecia que ia explodir, dizendo:

9
Hello e Hi significam Olá

78
- Não Lúcia, não arranjei outro emprego, mas depois podemos falar disse
do aumento outra vez…
Ri-me durante algum tempo, enquanto Lúcia esperava que eu lhe
explicasse o que se passava, olhando-me com uma expressão de pura admiração.
- Daqui a alguns meses vou deixar de trabalhar, porque descobri que estou
grávida, mas quando acabar a licença de maternidade espero voltar – expliquei a
Lúcia.
Lúcia levantou-se rapidamente da sua cadeira e dirigiu-se a mim sorrindo.
- Muitos parabéns minha querida… Pregaste-me cá um susto!
- Não era essa a minha intenção – esclareci enquanto sorria para Lúcia.
Passámos grande parte da manhã a falar sobre o facto de eu ir ser mãe.
Pedi concelhos a Lúcia, pois ela já tinha dois filhos. Fomos almoçar juntas e
depois continuámos a falar, sempre que possível, da minha gravidez. Disse como
estava a pensar contar a Luís e ela achou imensa piada, agora era esperar para
ver a reacção de Luís.
Esperei, em casa, que Luís chegasse do trabalho para lhe contar. Não lhe
falando de absolutamente nada nas nossas conversas diárias, enquanto que
Lúcia ria na sua secretária por eu não lhe contar.
Quando Luís chegou, eu estava na cozinha, sentada à mesa e tinha um
pequeno embrulho azul com um laço cor-de-rosa em cima da mesa. Luís chegou
à cozinha e beijou-me dizendo que vinha cansadíssimo do trabalho.
- O que é aquilo? – perguntou Luís apontando para o embrulho.
- É para ti, abre – pedi sorrindo.
Luís pegou no embrulho e disse:
- Mas eu não faço anos e, se não me engano, não é nenhuma data
especial…
Não respondi, ansiosa por ver a reacção de Luís quando desembrulhasse o
embrulho. Tirou-lhe a fita cor-de-rosa e seguidamente, com muito cuidado, tirou
o papel azul, descobrindo que o embrulho não se tratava de nada mais, nada
menos do que uma chupeta branca.
Olhou para mim sem compreender, confuso com a situação. Olhei-o nos
olhos e fiz um gesto com a cabeça e, então vi que uma luz de esclarecimento
apareceu nos seus olhos. Luís percebeu onde eu queria chegar mas precisou de
uma nova confirmação gestual da minha parte.
De repente, sorriu e agarrou-se a mim, beijando-me.
- VAMO SER PAIS! – gritou.
- Sim, my love10 – disse eu, abraçando-o e colocando a sua mão direita
sobre o meu ventre. – Está aqui um bebé nosso, um bebé do nosso amor.
Luís voltou a beijar-me. Não cabia em si de contente. Sempre soube que
um dos seus sonhos era ser pai e agora estava a concretizar-se esse sonho.

10
My love significa Meu amor

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Uma dor, um tanto ou quanto forte, desperta-me dos meus pensamentos,
fazendo-me regressar para a mesa da minha cozinha, onde Luís acabava de
comer a sopa de tomate, enquanto que no meu prato, a sopa arrefecia, intacta.
Sinto-me um pouco tonta, mas passado algum tempo a dor apazigua.
Levanto-me e vou à casa de banho, quando regresso e me sento, uma nova dor
faz o meu corpo tremer.
- O que foi amor? Estás a ficar pálida – pergunta Luís.
- Estou a ficar com dores… Grrr… – guincho.
- O melhor é irmos para o hospital – sugere Luís, preocupado.
- Não deve ser… Ahh – sou interrompida por um grito de dor.
- Vamos amor! – declara Luís, ajudando-me a levantar.
Levantámo-nos de preparámo-nos para sair.
- A mala do bebé? – interroga Luís.
- Está no quarto, dentro do roupeiro – respondo.
Luís apressa-se a ir buscar a mala e dirigimo-nos para o Hospital do
Espírito Santo, em Évora, cidade onde eu e Luís moramos. Luís conduz rápido o
Fiat Punto cinzento que comprou há três anos. Enquanto conduz, olha para mim
tentando avaliar o meu estado.
As contracções, cada vez menos intervaladas, fazem com que comece a
transpirar e gemer. Pouco tempo depois estamos a entrar no hospital. Uma
enfermeira acompanha-nos a um quarto, onde inspecciona o meu estado de
dilatação. Estou com seis centímetros, mais quatro e terei que ser encaminhada
para o bloco operatório. Passadas as três horas de maior dor da minha vida, com
contracções insuportáveis e, ao atingir dez centímetros de dilatação, vou para o
bloco, ficando Luís à espera.
Esperança nasceu dia 15 de Agosto, às 17h13, pesando 3,100 kg e
medindo 49 centímetros. É tão pequena, tão frágil, tão perfeita, quase não abre
os olhos e os poucos cabelos que tem são acastanhados; e é minha e de Luís, a
nossa pequena filha.
Quando Luís vem ter ao quarto, onde apenas eu me encontro com
Esperança, que dorme no meu colo. Os olhos de Luís estão cintilantes, cheios de
lágrimas que teimam em não derramar. Luís aproxima-se e fica apenas a
contemplar-nos, em silêncio. Faz-me uma carícia e repete-a na pequena
Esperança.
- O médico disse que está tudo bem com ela – informa, sorrindo.
Folgo em saber que a minha filha se encontra bem. Aclaro a garganta e
conto, feliz:
- Nasceu a chorar!
- É tão bela… – comenta ele enquanto a admira e sorri. – Amo-te Evelyn.
- Eu também – digo colocando a minha mão sobre a sua.
Esperança dorme, aquecida pelo calor do meu corpo. Observo a sua doce
e bela inocência.
- Esta é a nossa Esperança, o pequeno raio de luz que surgiu na nossa vida
– informo Luís.

80
Luís não diz nada. Permanece em silêncio enquanto olha para nós, a sua
mulher e a sua filha. Amo-o e amo a minha filha, a minha pequena filha. Agora
tenho tudo o que uma pessoa pode querer na vida, um marido excelente, uma
bela filha, um óptimo emprego, alguns amigos…
Não vou permitir que algo estrague isso…
Não vou permitir que o laço de amor que nos une seja quebrado…

81
Capítulo 17
Presente
Quinta-feira, 28 de Agosto

Luís
________________

- Nem penses! – declaro, elevando a voz.


- Mas pai… – insiste ela levantando-se do sofá.
- Não há mas nem meio mas… – quase grito.
Volto-me e encaro-a. Olha fixamente para mim, com aqueles seus olhos
tingidos de violeta.
A raiva e o ódio, por mais maldosos que sejam tais sentimentos, inundam
o meu corpo, não deixando que uma só parte fique imune. O meu corpo balança,
mesmo sem me mover do mesmo sítio. Como pode ela pedir-me tal coisa?
Como pode a minha filha fazer-me tal afronta?
Foi há quase uma semana que a vi, mas entretanto, a sua imagem não me
saí da cabeça. Dou por mim constantemente a vê-la no chão, a chorar, enquanto
nos olha. Aquele seu olhar faz o meu corpo transbordar de raiva e, ao mesmo
tempo, de pânico… Um pânico incontrolável que parece não se extinguir e capaz
de me absorver do mundo que me rodeia, levando-me, de novo, para um
passado doloroso e triste que eu, a todo o custo, tento esquecer.
Como pôde, o Fatídico Destino, colocá-la de novo nas nossas vidas? Como
pôde, após oito anos, fazer-nos encontrar a figura maligna que destruiu a nossa
família? E como pôde ela deixar que, simplesmente, déssemos conta da sua
existência? A culpa é dela. Sempre foi. Ela é que abandonou a nossa filha, ela é
que fugiu sem qualquer explicação e ela é que, de repente, reapareceu.
Não posso deixar que Esperança o faça. Não o posso permitir. Como pode
Esperança deixar que ela volte a interferir na nossa vida? Fito-a novamente.
Chora, como nunca chorou pela partida da mãe. Nunca perguntou pela mãe
quando esta partiu e nunca chorou, pela menos à minha frente, a partida da sua
mãe. Então, porque chora agora?
Não compreendo, nem o tento fazer. Dentro de mim cresce a revolta que
há muito se escondeu, parecendo nunca existir, enquanto se preparava para um
dia mais tarde surgir, o que aconteceu no sábado passado. Senti a terra tremer,
como se um vulcão entrasse em erupção, e, ao invés da expulsão de piroclastos,
brotou uma fusão de sentimentos deploráveis, os mais deploráveis que um ser
humano pode sentir – raiva e ódio, puro e negro.
- Pai, não estás a ser justo… – diz Esperança com a voz quase rouca.
- Justo? Falas de justiça? Para com aquela mulher? – exalto-me, levando as
mãos à cabeça, enquanto ando de um lado para o outro na sala de estar da suite
do Hotel.

82
Como pode ela falar de justiça? Especialmente da mulher que
simplesmente a abandonou à mercê da morte…
- Ela é minha mãe! – declara Esperança por entre soluços.
- Mãe? – questiono elevando ainda mais a voz. – Mãe é quem cuida;
quem está lá; quem dá carinho; quem demonstra o afecto; quem fica com o
coração envolto de espinhos quando a sua filha está em apuros; é quem nunca
abandona... Ser mãe não é só conceber, Esperança. Pensei que já sabias isso.
A revolta cresce, e cresce, e continua a crescer como se se alimentasse de
todo o meu ser para que se possa propagar.
Ana assiste à discussão em silêncio. Houve ambas as partes mas não se
coloca do lado de nenhuma, uma vez que esta situação começou antes de
conhecer Ana, pelo que ela prefere não se manifestar. Ainda assim, sei que ela
concorda com Esperança. Sei que, por ser um ser tão humano, Ana acha que
Esperança tem o direito de falar com a sua mãe, pois nunca se irá poder negar o
facto de que Evelyn seja mãe de Esperança, independentemente de tudo o que
entretanto tenha acontecido.
- Pai, ela é minha mãe, e eu tenho o direito de a ir ver! – afirma Esperança,
olhando-me nos olhos.
- Direito? Não tens direito nenhum, já que ela não cumpriu os seus
deveres – contraponho, sem hesitar.
- Pai ouve-me… – pede, quase suplicando.
- Não há nada para ouvir! Eu sou teu pai, eu é que mando! – assevero.
- Eu não sou mais uma criança indefesa com dez anos. Eu tenho dezoito
anos, já sou uma mulher! Tenho o direito a fazer as minhas escolhas, por muito
que te desagradem…
- Esperança… – interrompo.
- Pai, agora vais ouvir até ao fim! Agradeço muito o facto de sempre teres
sido um pai presente e de teres estado sempre que eu precisei, especialmente
quando eu estive doente. Lamento que a minha mãe tenha saído do bloco
operatório sem qualquer explicação, deixando-me só.
«Senti-me só. Mais do que alguma vez possa ter sentido em dezoito anos
de existência. Pouco a pouco ultrapassei isso, sem nunca esquecer o quão
importante foi a minha mãe para mim… Ela abandonou-me, sim, tens razão. Mas
é a minha mãe.
«Sei que estás muito magoado, tal como eu fiquei ao saber que ela tinha
fugido e ainda mais no sábado, em que soube que ela estava viva e que nunca
me procurou após a sua fuga. Consiste-me agora o direito de lhe perguntar o
porquê… O porquê de me ter deixado há oito anos numa sala de operações; o
porquê de estar viva e não me procurar; o porquê de qualquer outra coisa que
eu não entenda…
«Eu cresci pai. O que me aconteceu obrigou-me a crescer rapidamente e,
se sou adulta para umas situações, tento ser também adulta para outras
situações que tenha que vir a enfrentar. A situação que agora se colocou na
minha vida tem um nome, Evelyn Warren, a minha mãe, e está na hora de agir

83
como adulta que sou e ir enfrentá-la! Consegues compreender pai? Eu não te
estou a afrontar, nem a desobedecer-te, mas tanto como tu, eu estou magoada
e quero resolver isto… Percebes?
Esperança acaba de falar e eu sinto-me enfraquecido. Talvez porque todo
o ser maligno e cruel que se desenvolvia em mim, alimentando-se do meu ódio,
tenha ficado sem alimento e se tenha degenerado, ficando apenas o meu corpo,
oco.
A minha filha falou e conseguiu dizer o que eu me recusava a ouvir. Ela
cresceu. Não é mais aquela menina indefesa que jamais esquecerei. Cresceu e
tornou-se numa grande mulher, sábia e decidida. Ela, talvez mais do que eu,
sofreu com a partida de sua mãe, porque eu não sei o que se sente quando se
perde o pai ou a mãe.
Consigo perceber agora, livre de quase todo o ódio, que ela tem que ir
falar com Evelyn e se eu não a deixar irei ser tão cruel como Ev foi, tirando-lhe a
possibilidade de estar frente a frente com a sua mãe.
Sinto-me orgulhoso de a minha filha me ter “aberto os olhos”, contudo,
ainda sinto medo; medo de que Esperança sofra ainda mais com a conversa que
tiver com a sua mãe, ou mesmo que esta se recuse a escutá-la, como eu fiz.
- Sim… Percebo… – acabo por dizer, murmurando.
Ela eleva os olhos do sofá e olha para mim, com admiração. Não esperava
que eu a compreendesse e que a raiva obscura desaparece de súbito.
- A sério pai? – pergunta Esperança novamente para ter a certeza do que
eu disse foi verdade.
- Sim minha filha, eu compreendo e se tu achas que deves falar com a tua
mãe, eu não te vou impedir, apesar de a ideia não me agradar – explico, agora
de forma mais audível.
- Obrigado pai, isso chega – diz Esperança enquanto chega junto a mim,
abraçando-me.
Ana sorri, olhando-nos. Acha que eu tomei a decisão certa. Sei-o, sem que
mo diga, pois ao olhar para mim, consigo “ler” os seus olhos e saber a sua
opinião. Ana levanta-se e também nos abraça, uma vez que não fazia qualquer
sentido ficar de fora, pois, de qualquer das maneiras, ela agora é a minha
mulher e faz parte da nossa vida.
O abraço dura algum tempo, enquanto que lá fora a chuva teima em cair,
fazendo leves tilintares ao embater contra o vidro da janela da sala de estar.
Agora só temos que descobrir onde Evelyn mora para que Esperança
possa ir falar com ela. Mas onde será? De certo que não é na mesma casa
porque tenho a sensação de que quando foi viver para Portugal vendeu o
apartamento.
Não sei bem por onde deveremos começar a procurar. Tenho a certeza de
que ela não deve sair muito, refugiando-se em casa, pelo que se torna mais
complicado que alguém saiba alguma informação acerca dela. Quase de certeza
que ela tem um trabalho, caso contrário, como poderia sobreviver sem
dinheiro?

84
Instantaneamente surge imagem de Tyra, a melhor amiga da minha ex-
mulher. Possivelmente, Tyra sabe alguma coisa a respeito de Evelyn. Será que
ainda tenho o contacto de Tyra? Julgo que sim…
Mas agora os meus pensamentos vacilam noutra direcção – Esperança.
Tenho tanto medo deste encontro. O que será que Ev lhe dirá? Como irá reagir
estando frente a frente com a sua filha? E como será que Esperança irá reagir à
“possível” explicação de sua mãe?
Tenho medo, muito medo, de que a minha filha volte a ficar novamente
fechada em si, no seu mundo à parte, como outrora aconteceu. Espero que não
e que Evelyn não desperdice a oportunidade que a sua filha lhe confia para
conversarem.
Tenho a certeza de que Esperança irá decidida e que irá encontrar a
melhor forma de abordar Evelyn, todavia, receio as inesperadas consequências
deste temível encontro…

85
Capítulo 18
Presente
Sexta-feira, 29 de Agosto

Evelyn
________________

A luz do Sol deambula por todo o meu apartamento, inundando o meu


quarto, literalmente, desorganizado. Livros fora das estantes; roupa suja, ou não,
colocada em todos os pontos possíveis e imaginários, parecendo uma pequena
fortaleza de tecido multicolorido; pratos sujos de comida que, provavelmente, o
meu estômago nunca chegou a digerir, por ter sido expelida algum tempo
depois de ter entrado na sua descida pelo esófago.
Tirei uma “semana de férias” da loja, para poder pôr as ideias em ordem
ou, pelo menos, tentar fazê-lo. A minha vida voltou a dar uma volta. Após tanto
tempo tinha que voltar tudo ao mesmo. Especialmente agora que tudo estava a
correr bem, dentro dos possíveis.
A imagem da minha filha não me sai da mente. Revejo constantemente na
minha mente o momento em que Hope se voltou e olhou para mim. Parece que
levou uma eternidade a girar sobre o pé, de modo a ficar de frente para mim.
Cada pequeno e lento movimento que ela fazia, despoletava em mim uma
facada que atingia a ferida que nunca chegou a sarar.
Como pode estar a minha filha viva após tanto tempo? Como pode estar
aqui, em Londres?
Por vezes e por mais estranho que pareça, tenho a sensação de que o
Destino tem uma certa vontade de colocar sobre nós, meros seres mortais, a sua
mão e fazer com que a nossa vida siga uma direcção que Ele escolhe, de modo a
concretizar-se o nosso “destino”.
Empurrada ou não pela mão do Destino, a minha filha voltou, de novo, a
entrar na minha vida e agora não sei o que fazer. Não sei como reagir nem
mesmo se devo reagir ou se devo continuar a fingir que ela não existe, como
faço já há oito anos.
Estou deitada na cama, tapada apenas por um lençol azul-marinho. Olho
para o tecto na esperança de que, por magia, surja uma resposta, uma visão, um
sinal, qualquer coisa que me ajude, que me guie nesta estrada de emoções que
é a Vida.
Como pude estar tão errada quanto ao destino da minha filha? Como
pude sequer pensar que ela tinha morrido? Devia ter equacionado a hipótese de
que ela voltou a fazer quimioterapia e que, tal como da primeira vez, conseguiu
eliminar o ser maligno que nela se desenvolvia. Contudo, talvez não tenha tido
uma “recaída” porque senão teria que estar constantemente a ser submetida a
tratamentos de quimioterapia ou teria que arranjar um dador de medula óssea

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compatível para tentar impedir que a doença voltasse a recidivar, o que nunca é
certo, tal como, em tempos, me foi explicado por uma médica muito sábia.
O que terá Luís sentido? Mágoa? Revolta? Desilusão? Gostaria de saber.
Relembro o seu olhar, frio, cortante, despedaçando cada ponto de mim.
Será que Esperança já voltou para Portugal? É o mais certo, uma vez que
Luís jamais a deixaria ficar num local perto de mim. O que terá sentido a minha
filha ao ver-me? Será que nutre por mim os mesmos sentimentos que o seu pai?
O que lhe terá dito Luís a meu respeito? Talvez que morri ou que fugi, deitando-
me pelo “pó da terra”.
Tantas perguntas que se formulam sem qualquer nexo na minha mente.
Tantas perguntas cujas respostas, possivelmente, nunca irão surgir. O que é feito
de ti, Esperança, minha filha?
A luz do Sol, ao embater contra o vidro dos candeeiros do meu quarto,
parece dissipar-se em todas as direcções, iluminando até os cantos mais
recatados.
O máximo que dormi desde sábado foi pouco mais do que sete horas. O
meu corpo ressente-se, fraco, sem alimento e sem qualquer descanso nocturno
para que possa recuperar para o próximo dia. Devo ter umas grandes olheiras na
minha face pálida e rugosa. Tenho que ir tomar um banho para ver se me limpo
de toda e qualquer sujidade que ainda haja no meu corpo. Provavelmente, um
banho de água quente também irá ajudar a “tirar” rastos de emoções destes
últimos dias.
Tento levantar-me da cama, mas não tenho forças. Faço novamente um
esforço para que o meu corpo se despegue da cama. Lentamente e, utilizando as
poucas forças dos meus músculos quase adormecidos, levanto-me e, aos
solavancos, vou até à casa de banho. Ao entrar na casa de banho, ignoro o
espelho, para não ficar ainda mais decepcionada. Apenas vejo o reflexo de uma
sombra branca, quase cal, coberta por uma camisa de dormir avermelhada
passar diante do espelho para ir para a banheira.
Inicialmente penso em tomar um banho de imersão, porém, e pensando
na minha situação de fraqueza, receio que a banheira fique demasiado cheia de
água e que eu depois não consiga emergir da banheira, podendo afogar-me.
Assim sendo, decido que um “duche” será o ideal, pois permite que retire a
sujidade da minha pele e cabelo e ainda ajuda a relaxar.
Ligo a água quente e espero durante meio minuto que aqueça. Quando
começo a sentir a água quente nos meus dedos envelhecidos rodo a torneira de
modo a misturar a água quente com a água fria, criando assim, uma água morna,
mas mais quente do que fria.
Após sentir que a água está no ponto ideal, dispo a camisa de dormir e
entro para a banheira. O primeiro contacto da água quente, que jorra do
chuveiro preso a uma altura superior à minha, com o meu corpo é avassalador.
Sinto a água correr pelo meu corpo, aquecendo a minha pele quase gelada.
Fecho os olhos e inspiro lentamente, deixando-me usufruir do simples contacto
entre mim e a água quente.

87
Durante algum tempo fico parada, com os braços cruzados sobre o peito,
enquanto que a água continua a correr pelo meu corpo. Sinto-me leve, mais leve
do que alguma vez senti. Não me lembro de alguma vez ter tido um momento
tão harmonioso com algo tão simples como a água quente. Apesar de ainda não
ter lavado o meu corpo para tirar a sujidade, já me sinto limpa, mas limpa de
emoções e sentimentos, como se estes fossem pecados e a água que flui sobre
mim fosse água benta no momento do baptismo, “lavando” a minha alma de
todos os pecados e de toda a maldade.
Ao passo de uns minutos, começo a lavar-me como deve ser. Meto
champô “para cabelos claros” no meu couro cabeludo e esfrego até começar a
surgir espuma, enxaguando posteriormente. Repito este processo três vezes, de
modo a garantir que os meus cabelos ficam bem lavados. Intercalando com o
procedimento de lavagem dos cabelos, lavo o meu corpo com uma esponja azul
e um gel de banho de aloé vera, que para além de tirar a impureza, deixa-me a
pele mais macia, o que não é tarefa fácil.
No final, e depois de já ter lavado o meu corpo o melhor que podia, deixo-
me ficar novamente sobre a corrente de água quente, antes de sair e ter que
voltar a encarar com o mundo exterior.
A água quente é tão boa, tão harmoniosa que me deixa leve, ao mesmo
tempo que me preenche. Mas tenho que sair, senão a conta de água será
estrondosa.
Dou por terminado o banho, saio da banheira e cobro o meu corpo com
uma toalha branca, colocando outra no cabelo e dirijo-me ao quarto. Agora que
“despertei” a desarrumação parece em maior escala, como se não houvesse um
único ponto arrumado ou limpo.
Reviro os olhos e começo a secar-me. Seguidamente, e após meter
desodorizante, visto algo rápido e confortável como um fato de treino preto com
riscas brancas que costumo usar quando faço jogging. Ainda com os cabelos
molhados, começo a arrumar o quarto, não sabendo muito bem qual a razão.
Desconfio, por breves instantes, que a água do banho deveria conter
qualquer substância que, ao penetrar na minha pele, consegue, não sei por
quanto tempo, dar-me força para fazer o que quer que seja.
Decorrida uma longa hora, o quarto parecia voltar à normalidade,
encontrando-se, de novo, limpo, organizado e sem qualquer vestígio de
alimentos. A roupa suja foi para a máquina de lavar, enquanto que a loiça
aguarda por mim para ser lavada e colocada nas prateleiras, onde, há alguns dias,
se encontrava. Ao passar pela sala, reparo que o atendedor de chamadas exibe,
a vermelho, o número três. Enquanto levo a loiça para a cozinha, carrego no
botão do atendedor para citar as mensagens que gravou.
“You have three new messages…11”

11
You have three new messages significa Você tem três novas mensagens

88
Ouço o atendedor ao mesmo tempo que coloco pratos, copos e talheres
no lava-loiça, para poder começar a lavá-los. A primeira mensagem ecoa desde a
sala até à cozinha:
“Ev, sou eu a Amy. Está tudo bem? A Cléo disse que não vinhas esta
semana trabalhar. Se precisares de algo é só dizeres. Beijo.”
Amy, a minha colega da loja onde trabalho, parece preocupada. Não
precisava de se identificar, uma vez que reconheci de imediato a sua forma doce
de falar. Amy é uma rapariga com vinte e um anos amorosa, inteligente, sociável
e bastante bela. Quase todos os dias me pergunta como estou, mas não da
forma banal a que estamos habituados. Não, Amy pergunta-me de forma
preocupada. Ela é assim com todos os que se encontram à sua volta, atenta,
preocupada, sensível e muito boa ouvinte. É talvez a pessoa mais bondosa que
conheço. Não lhe conheço um único defeito e as suas qualidades saltam à vista
de qualquer pessoa que a conheça.
- Não me posso esquecer de lhe ligar – digo para comigo mesma.
A segunda mensagem começa:
“Olá Evelyn! Tudo bem? Temos que falar… Quando puderes diz algo sim?
Beijo, Mark.”
Mark, o meu ex-psicólogo, lembrou-se novamente de mim… Sorrio de
forma envergonhada ao recordar a nossa maratona de sexo. Agora lembro que
desde esse dia que Mark não dizia nada.
A mensagem parece fria, nada a ver com a forma de ser do Mark, já que
ele é carinhoso, meigo e uma autêntica “bomba na cama”. Volto a sorrir, agora
de forma mais expressiva, enquanto mergulho um prato na água com espuma.
O que terá ele para falar comigo? Se calhar quer encontrar-se novamente
comigo para fazermos sexo? Mas desde quando é que a nossa relação de tornou
estritamente sexual? Deve ser outro o motivo de Mark para querer falar comigo.
Se ele ligar novamente não me posso esquecer de atender a chamada.
“Olá Ev. Como estás minha querida? Olha tenho uma coisa muito
importante para te dizer. Quando ouvires esta mensagem liga, por favor, não te
esqueças, é importante. Um beijo, Tyra…”
Tyra, mais do que Amy, parecia preocupada, apressada até. Desde o nosso
encontro no cemitério que Tyra e eu não falávamos. Para ela me ter deixado
uma mensagem assim deve ser mesmo importante. As suas palavras pareciam
surgir rapidamente como se não houvesse tempo a perder. O que se teria
passado? Será que aconteceu alguma coisa ao seu filho? Depois de tantos males
este seria, de todo, o pior.
Sinto-me ligeiramente aflita e ansiosa. As suas palavras continuam a ecoar
na minha mente “…liga, por favor, não te esqueças, é importante…”, apressando-
me na lavagem da loiça para poder ligar-lhe.
Quando termino de lavar o último copo, seco-o com um pano verde e
retiro a tampa do lava-loiça para que a água seja sugada pelo cano. Enxaguo as
mãos, retirando a espuma e limpo-as ao pano verde.

89
Depois de verificar que está tudo em ordem na cozinha e que não ficou
nada por lavar, vou em direcção à sala para ir ligar a Tyra. Será que a mensagem
é de há muito tempo? Não faço a mínima ideia, pois desde sábado que não ligo
a pormenores como o facto de o atendedor de chamadas ter coleccionado três
mensagens.
Pego no telefone e digito o número de Tyra. Ainda assim, antes de ouvir o
primeiro “bip” como sinal que a chamada está a ser transferida para o telefone
de Tyra, a campainha toca, levando-me a pousar o auscultador.
Sigo em direcção à porta, um pouco apressada, uma vez que estou a ficar
deveras preocupada com Tyra. Quem será? Pergunto-me enquanto pego o
puxador da porta ao passo que rodo a chave na fechadura. Abro a porta
rapidamente e é então que, novamente, o meu coração começa a doer.
Sinto o tempo parar e o meu corpo ficar rígido como uma pedra que o
tempo conservou. Não me mexo, nem mesmo um milímetro. Não pestanejo e
tenho sérias dúvidas se respiro. Estou em choque. Observo-a tentando analisar
todos os seus pormenores. Os seus cabelos castanhos com madeixas louras
caem sobre os ombros. A sua pele continua bronzeada, tal como me lembro
desde o sábado. Veste umas calças de ganga escuras e justas e uma blusa preta e
branca e, sobre esta, tem um casaco também preto. Fito-a nos olhos. Naqueles
olhos que carregam uma cor tão especial e tão diferente e que agora me olham
como que dizendo “Quem és tu?”.
Parece uma eternidade o tempo que nos fitamos, contudo, sei, no meu
íntimo, que não passou de pouco mais de um minuto. Ela nada diz durante todo
esse tempo. Tenho a estranha sensação que perdeu a coragem e que não tarda
irá dar um passo atrás, virar as costas e sair pelo corredor, tal como aconteceu
no shopping, há quase uma semana.
Ainda assim e como se tivesse lido os meus pensamentos, ela aclara a
garganta e pergunta:
- Posso entrar?
A sua voz mudou. Parece uma nova melodia que os meus ouvidos não se
cansariam de ouvir. Começa a ecoar por todo o apartamento a sua pergunta, ou
talvez ecoe apenas na minha cabeça, não sei ao certo.
Não lhe respondo, por estar em choque ou por há muito não falar
português e não perceber o sentido na sua pergunta, pelo que ela repete, agora
em inglês:
- May I come in?12
Agora não tenho qualquer desculpa para não responder pelo que,
passados uns eternos segundos, respondo, gaguejando:
- Yes… Quer dizer… Sim… Claro…
A minha própria voz soa-me mal, distorcida, como se falasse para um
aparelho que mudasse as vozes e agora o resultado era uma voz, um tanto ou
quanto, metálica.

12
May I come in? significa Posso entrar?

90
Afasto-me da porta de modo a que ela possa entrar, o que ela faz quase
sem hesitar. Fecho a porta um pouco depois, ainda sem acreditar que a minha
filha está em minha casa.
Fica em pé, perto do sofá, aguardando, com educação, que eu a mande
sentar, o que faço, com um gesto de mãos. Também me sento, no outro sofá,
ainda sem perceber muito bem o que está a acontecer.
Dou graças por ter arrumado a casa, senão ia ter a casa toda suja e
desarrumada, até parece que foi propositadamente. Olho-a novamente, tão bela,
agora com dezoito anos, a minha filha, que eu julgava morta. Sinto-me, não tão
completa de emoções como no sábado, mas igualmente estranha, como se eu
fosse uma forasteira. Tenho a sensação que agora o meu corpo canaliza as
emoções de uma forma diferente, não me deixando cheia delas. Sinto-me em
choque, como é óbvio, mas sinto-me também calma e serena, como se não
receasse quase nada.
Ela nada diz. Apenas olha para mim e para o meu redor, tentando obter
alguma informação da minha casa. É então que o seu olhar para no móvel perto
da televisão, onde se encontram três molduras. A maior de todas, rectangular,
possui no seu interior uma fotografia de três pessoas que sorriem avidamente.
Eu, Luís e Esperança, com seis anos, num jardim infantil, pousamos sorridentes
para uma fotografia tirada por algum turista a quem pedimos na altura.
A outra moldura, ligeiramente mais pequena que a anterior e mais
quadrada, mostra a fotografia de Esperança com quatro anos. Sorri para nós e
encontra-se de costas para um rio. Tem um vestido branco e o cabelo preso por
uma trança. O Sol toca-lhe na face, dando-lhe um brilho especial, que faz
parecer que Esperança tinha a pele coberta de ouro. Essa fotografia tinha sido
tirada num dia que fomos até Lisboa onde, junto ao rio Tejo, aproveitámos para
tirar algumas fotografias.
A moldura mais pequena, também rectangular, mostra a fotografia de
Esperança com um ano. Tinha uma chupeta cor-de-rosa a tapar-lhe a boca, mas
olhava para a câmara com um brilho nos olhos característico de si mesma.
Naquele dia estava a chover e era Domingo. Tínhamos ficado em casa a ver um
filme, junto à lareira, e Luís teve a ideia de tirarmos algumas fotografias a
Esperança que brincava de um lado para o outro.
Olho-a. Parece que sorri sem sequer sorrir. Acho que pensou que eu não
teria nenhuma fotografia sua, como se eu tivesse apagado todas as memórias de
nós enquanto família. Não posso dizer que não tentei apagar as memórias, mas
como era evidente, não consegui. As fotografias nem sequer tentei. Apesar de
ter saído à pressa de Portugal, tive tempo de tirar algumas coisas, como
fotografias que andavam sempre comigo, de um lado para o outro. Tínhamos ido
para Lisboa por causa do transplante de medula óssea, pelo que eu tinha levado
algumas fotografias nossas.
- Queres tomar alguma coisa? – pergunto, ainda olhando-a.
Novamente a minha voz soa metálica, quase arrastada, tudo pelo simples
facto de não falar português há cerca de oito anos. Ainda assim, sinto que me

91
lembro de muita coisa da língua portuguesa e que se trata apenas de não estar
habituada.
Ela dirige o seu olhar na minha direcção e responde, com voz doce:
- Não quero incomodar…
- Não incomodas nada! – declaro sorrindo enquanto me levanto. – Chá ou
café?
- Chá, pode ser, se faz favor – responde um pouco envergonhada, fazendo-
me lembrar quando era pequena.
- Tília ou Maçã-Canela?
- Tília…
Vou para a cozinha e preparo Chá de Tília para as duas. Num tabuleiro
coloco duas chávenas, um bule que ferve com Chá de Tília no interior, um
pequeno bule com leite, um açucareiro e um pequeno prato com biscuits. Levo
o tabuleiro para a sala onde se encontra Esperança ainda a fitar as fotografias.
Coloco o tabuleiro em cima de uma pequena mesa que se encontra entre
os dois sofás e espero que ela se sirva, o que não acontece de imediato. Após
alguns minutos e depois de olhar para mim, Esperança pega no bule e vaza um
pouco de chá para a sua chávena, à qual adiciona três pequenas colheres de
açúcar, mexendo em seguida.
Espero um pouco e repito o procedimento de Esperança, com diferença
de colocar um pouco de leite no chá e de lhe acrescentar apenas uma colher de
açúcar. As minhas mãos aquecem levemente devido ao toque entre estas e a
chávena que contém o chá bastante quente, que liberta pequenos fumos em
redor do meu rosto.
Beberrico um pouco de chá que, ao fazer a sua viagem até ao estômago,
aquece-me por dentro. Sinto-o descer pelo esófago, espalhando todo o seu calor
pelo meu corpo que, aparentemente, parece gelado.
Vejo que Esperança também bebe um pouco de chá, assoprando em
seguida o topo da chávena. Se calhar deixei o chá ferver de mais, mas, em
Londres, o chá serve-se bem quente, pelo que, possivelmente, ficou demasiado
quente para Esperança.
- Está muito quente? – pergunto, elevando novamente o chá aos lábios.
- Só um pouco – responde Esperança. – Mas está bom na mesma, pois é
como eu gosto dos chás, bem quentes.
Sei que esta última parte foi só para me tranquilizar, não sei bem é porquê.
Talvez seja porque Esperança quer deixar-me à vontade para conversarmos e
tenta apaziguar o espaço que nos separa.
Temos cerca de dois metros de distância entre as duas, mas sinto que no
espaço entre nós, conseguia caber uma manada de elefantes bem grandes e
gordos. Tenho a sensação que, apesar de estarmos aqui, tão próximas, temos
anos de mágoa e sofrimento a separar-nos que, dificilmente, conseguirão ser
contornados.
- Não queres uma bolacha? – pergunto apontando para o prato com
biscuits.

92
- Não, obrigado – responde ela sorrindo amavelmente.
Esperança demonstra uma calma tão natural que, de certa forma, me
perturba. Como consegue ela estar tão calma, tão harmoniosa? Talvez seja só
uma carapaça que, na verdade, encobre um misto de emoções e sentimentos
que tentam, a todo o momento, escapar de modo a conseguir atingir o potencial
alvo desses sentimentos – eu.
- A que devo a visita? – pergunto quase num sussurro.
Esperança bebe um pequeno gole de chá, afasta a chávena da boca e
responde:
- Acho que precisávamos de falar, não achas?
“Não tenho a certeza se vamos conseguir falar” respondo mentalmente,
enquanto que aclaro a garganta e pergunto:
- Queres falar sobre o quê, Esperança?
Sinto uma vontade arrebatadora de lhe chamar “filha” ou “Hope”, todavia,
tenho medo da sua possível reacção. A pergunta desperta uma leve admiração
em Esperança que baixa os olhos para a chávena que tem ao colo.
- O que achas que temos que falar? – acaba por perguntar, ainda com os
olhos baixos.
Reconheço que se tratou de uma pergunta realmente despropositada. Se,
após oito anos e um encontro de soslaio, a minha filha veio até minha casa para
falar comigo, com certeza que não quer falar, por exemplo, sobre a chuva em
Londres.
Esperança não esperava que eu respondesse à pergunta, pelo que não
respondo. Bebo um gole de chá, já mais frio, enquanto mergulhamos no silêncio
do meu apartamento.
A minha filha olha para a janela, onde a luz do Sol não aparece devido às
nuvens que teimam em tapá-la, e pergunta:
- O que se passou?
Não percebo bem a pergunta. Não sei bem a que se refere, mas julgo que
seja ao facto de ter fugido de Portugal. Ainda em dúvida, vou perguntar-lhe a
que se refere, quando, como se pela segunda vez me lesse os pensamentos,
Esperança reformula a pergunta:
- Porque fugiste de Portugal?
A sua voz, apesar de mais carregada, continua firme e doce, ecoando pela
minha mente. Aí está uma boa pergunta para a qual nunca encontrei resposta.
Ainda que a pergunta me embale um pouco, tenho quase a certeza que me
mantenho calma e serena. Acho que o banho de água quente foi realmente
milagroso.
- Bem… Não sei… Ao certo… – respondo a gaguejar.
- Não sabes? – pergunta, um pouco ironicamente.
- Na verdade, sei, mas não é uma explicação muito lógica – tento
responder ainda com dificuldade em encontrar as palavras certas em português.
- Tenta, por favor – pede-me quase num suplico e tenho a certeza que
tenta conter as lágrimas que começam a brotar nos seus olhos.

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Ainda invadida pela calma do banho quente, reúno as minhas memórias e
tento explicar o motivo irracional que me levou a abandonar a minha filha.
Olho-a e principio:
- O motivo vem de há muito tempo atrás, muito antes de teres nascido…
Quando eu ainda era uma criança…
«Quando eu tinha doze anos, a minha mãe ainda estava viva, tal como a
minha irmã, Phoebe. Apesar de o nosso pai nos ter abandonado ainda eu era
bebé, a minha mãe – tua avó Lydia – cuidou de nós o melhor que soube, dando-
nos o essencial para que fossemos felizes. E nós éramos felizes, muito felizes.
«Tenho a certeza que, antes de tu nasceres, todos os momentos que
passei com a minha mãe e irmã foram os melhores momentos de todos. Éramos
uma família no sentido literal da palavra. Chorávamos juntas; riamos juntas;
bebíamos chocolate quente na sala escura, apenas iluminada pela lareira; a tua
avó contava-nos histórias antes de adormecermos e depois, todas as noites ia
ver se estávamos bem. Não havia nada que a minha mãe não fizesse pelas suas
filhas e nós estávamos-lhe muito agradecidas. Mas, como se diz, a felicidade
nunca dura para sempre.
Faço uma pausa. Esperança continua a olhar para a janela e eu bebo mais
um pouco de chá de modo a tentar dissipar o nó de mágoa que se começa a
formar na minha garganta. As lágrimas não vêm, ainda, por isso, continuo:
- Como eu disse, quando eu tinha doze anos as coisas mudaram
completamente. Primeiro começámos a ficar sem dinheiro, uma vez que a
minha mãe tinha sido despedida de uma fábrica que faliu onde ela trabalhou
durante anos a fio. A seguir, a minha mãe começou a adoecer. Após vários
exames disseram-lhe que tinha uma grande infecção no rim direito e que tinha
que ser removido o mais rapidamente possível.
«Como sabes, uma pessoa pode viver só com um rim, mas, devido aos
problemas financeiros daquela altura, a tua avó teve que esperar mais algum
tempo até que conseguisse arranjar dinheiro para ser operada. Contudo, como
estava doente, não conseguia arranjar emprego e, por não arranjar emprego,
não conseguia ter o dinheiro necessário para ser operada. Então, passado algum
tempo, teve mesmo que pedir dinheiro à minha avó, Ruth. Esta emprestou o
dinheiro de imediato e até se sentiu ligeiramente ofendida por a minha mãe não
ter pedido o dinheiro mais cedo.
«A minha mãe foi novamente ao médico, e, quando parecia que ia ficar
tudo bem, uma nova má notícia vem abalar o meu mundo. Como deixou passar
tanto tempo, a infecção que conseguiu “estragar” o rim direito, começou a
alastrar-se para o rim esquerdo e, por esse motivo, tinham que tirar os dois rins
à minha mãe. Porém, como sabes, ninguém consegue viver sem rins, por isso
tínhamos que arranjar um dador de rim compatível.
«Tal como acontece comigo e depois aconteceu contigo, a minha mãe
tinha um tipo de sangue raro, fazendo de mim, deste modo, a dadora compatível.
A minha irmã, com dezasseis anos na altura, era também compatível, mas não a

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cem por cento, podendo originar uma recusa por parte do organismo da minha
mãe.
«Fizeram-me análises para ver se estava tudo bem comigo e se poderia
ser eu a doar o rim. Os resultados das análises deram positivos, pelo que
podíamos avançar para a operação. Mas é importante que saibas que a minha
mãe nunca me obrigou a doar-lhe um rim, perguntou-me várias vezes se eu
queria mesmo fazê-lo. De todas as vezes senti que era minha obrigação
enquanto filha ajudar a minha mãe nesta situação. Contudo, ao mesmo tempo,
o medo que eu sentia por hospitais aumentava a uma velocidade estrondosa,
pelo que, uma semana antes da operação, eu, uma criança com doze anos, disse
à minha mãe que tinha medo. Ela olhou para mim, abraçou-me e disse que eu
não tinha que fazer a operação, porque a Phoebe doaria o rim.
«Sei que nenhuma delas ficou chateada comigo por me ter recusado à
última hora. Então passou-se uma semana, a minha irmã fez os mesmos exames
do que eu e o médico disse que ela estava pronta para a operação, por que a
minha mãe não aguentava muito mais do que quatro ou cinco dias.
«Como em tempos te disse, a minha mãe, tal como tu, possuía os olhos
de cor violeta e, antes de entrar para o bloco operatório abraçou-me com todas
as forças que tinha, disse que me adorava e que ia correr tudo bem. Lembro-me
constantemente do seu último olhar. Aqueles seus olhos que jamais esqueceria
independentemente do tempo que passasse.
Faço uma nova pausa, agora mais curta. Desta vez não bebo chá, apenas
engulo a seco e, em seguida, retomo a minha explicação:
- Também sabes que durante a operação ocorreu um imprevisto e ambas
acabaram por morrer. Ainda que não tivesse razão, senti-me culpada. Pensava
constantemente que se tivesse sido eu talvez a operação tivesse corrido bem,
que elas não estariam mortas e que ainda éramos uma família. Então, comecei a
viver entre a culpa de ter morto a minha mãe e a Phoebe.
«Chegamos agora a ti… Depois de ter feito uma viagem pela Europa com
Tyra, acabei por ficar em Portugal e casar com o teu pai, Luís. Foi com uma
alegria estupenda que descobri que estava grávida de ti. Quase que a alegria não
cabia no meu corpo. Senti-me bem, pois a culpa começava a deixar de ter lugar
na minha vida, uma vez que, por estar feliz e sabendo que gerava uma vida no
meu ventre, todo o mundo pareceu sorrir para mim.
«No dia em que nasceste, as dores do parto não tiveram qualquer
importância pois, no momento em que olhei para ti, tive a certeza de que era a
mulher mais feliz do mundo e que nada poderia meter-se entre mim e a minha
família. Tu, a minha Esperança, eras uma coisinha tão pequena, mas tão perfeita
que o meu coração batia só para ti, a minha filha.
«Muito raramente abrias os olhos, pelo que só mais tarde descobri que
tinhas os olhos da mesma cor dos da minha mãe – violeta. Então, nesse
momento, a culpa regressou e, inconscientemente, pensei que eras a prova viva
de que nunca mais me poderia esquecer do que aconteceu à minha mãe e à
minha irmã, pelo que voltei a viver lado a lado com a culpa.

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«Quando, oito anos mais tarde adoeceste e descobri que eu era
totalmente compatível contigo, tive a certeza de que tudo se estava a repetir,
pelo que durante todo o processo me lembrava constantemente da minha mãe
e dava por mim a chorar, simplesmente de ouvir o nome “Lydia”. Dois anos após
termos descoberto que a doença tinha recidivado e que eu iria doar a minha
medula óssea para te poder curar senti-me mais em baixo do que nunca. Andava
mal a todos os níveis: físico, psicológico e social.
«Sentia que estava constantemente a descer num poço negro, que me
engolia e afogava lentamente e cuja luz nunca chegou a entrar. Então, no dia em
que entrámos para a sala de operações, senti que tinha batido mesmo no fundo
e as recordações de tudo o que aconteceu voltaram sem dó nem piedade.
Comecei a pensar que te ia matar, tal como matei a minha mãe e a minha irmã,
sem considerar a hipótese de que fugir era a tua morte certa. Devia ter lá ficado,
devia ter completado o transplante e ter-te salvo naquele mesmo instante. Mas,
levada pelos meus pensamentos irracionais, acabei por fugir deixando-te na sala
de operações, sozinha…
Acabo de falar e espero que Esperança comece a atacar-me com insultos e
insinuações, o que, surpreendentemente, não acontece. Olho para a minha filha
que continua a olhar para a janela. Contudo, a luz do Sol agora entra pela minha
janela batendo da cara de Esperança, fazendo-a brilhar intensamente por causa
do reflexo do Sol nas lágrimas que correm pelo seu rosto.
Também eu, com um nó apertado na garganta, choro intensamente. Assim
ficamos durante algum tempo até que eu digo:
- Desculpa-me por ser um monstro…
A palavra “monstro” faz-se ouvir pelo apartamento como se fosse um eco.
Sinto-me ainda mais aliviada porque consegui contar tudo o que me levou a
abandoná-la. Especialmente, consegui contar tudo isto à minha filha.
- Não és um monstro! – diz Esperança olhando-me pela primeira vez
desde que eu comecei a contar tudo o que se tinha passado.
- Sou sim porque, sabendo o que é perder uma mãe, abandonei-te – digo,
recriminando-me.
- Eu percebi o que sentiste, mãe…
“Mãe”! A minha filha chamou-me “mãe”, palavra esta que não me era
dirigida há mais de oito anos. Começo a chorar ainda mais, com maior emoção
em cada lágrima que corre pelo meu rosto. Sinto-me como se soubesse que
estava grávida novamente. Aquela emoção impossível de explicar, que
simplesmente se pode sentir e nos consegue preencher de algo que não tem
nome.
- Desculpa, Hope, minha filha! – peço inclinando-me na sua direcção.
Ela olha para mim intensamente. E, sem eu esperar, levanta-se do sofá e
dirige-se a mim, abraçando-me. Vejo toda a cena em câmara lenta, tal como
aconteceu no shopping. Quando ela me abraça, tenho a certeza de que o
enorme espaço que outrora nos separava, agora não passa de simples espaços
vazios entre os nossos corpos abraçados. Sinto todo o seu corpo. Toda a parte de

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mim que falta está agora abraçada a mim. A minha filha, que por oito anos
julguei morta, está agora abraçada a mim.
Não imaginei tal momento. Choramos durante horas, abraçadas. E
falamos. De tudo e mais alguma coisa. Tudo o que eu queria aconteceu,
simplesmente. A minha filha está viva e perdoou-me. PERDOOU-ME!
Almoçamos juntas e passamos toda a tarde a conversar. Conta-me que foi
Tyra quem lhe disse onde eu morava. E, de repente, percebo a aflição de Tyra.
Quando descobriu que Luís estava cá, em Londres, e que estava à minha procura
deve ter entrado em pânico, pois soube da minha história com Luís e Esperança.
Tenho a minha filha novamente a meu lado. Junto a mim. A minha
Esperança voltou. Há oito anos perdi-a e agora tenho novamente a Esperança
junto a meu lado.
“Desculpa minha filha, por tudo o que a mãe te fez! Prometo jamais te
abandonar, afinal de contas, não vou desperdiçar esta segunda oportunidade de
ser mãe” digo mentalmente enquanto olho para a minha filha, agora com
dezoito anos, e com os mesmos olhos violeta que sempre hei-de recordar.

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Capítulo 19
Presente
Sábado, 30 de Agosto

Evelyn
________________

Naquele dia, a chuva despoletou o meu acordar. Quase não tinha


dormido durante toda a noite e, quando, perto da madrugada, o sono começou
a chegar, o som tilintante da chuva começou a soar no meu quarto pelo que não
voltei a adormecer. Fiquei deitada na cama, com os olhos inchados de tanto
chorar, a olhar para o tecto, que muito lentamente se enchia de luz.
Tive a estranha sensação de que nunca chegou a amanhecer e que a noite
predominou, não permitindo que a luz surgisse da escuridão. Talvez não fosse
mesmo da luz do Sol que não veio… Talvez fosse por a minha tristeza rodear
todo o meu ser e não deixar que um pequeno pedaço de esperança – a luz –
entrasse.
Estava tão cansada. Não só fisicamente, mas especialmente cansada tendo
em conta a parte psicológica. A minha cabeça andava à roda sem parar. Todos os
meus pensamentos misturavam-se na rotação da minha mente. Não sabia como
deveria estar ou mesmo se queria estar. Perguntava-me constantemente porquê
elas e não eu. Porque é que eu continuava viva se elas já não habitavam neste
Mundo que juntas partilhámos?
Comecei a chorar novamente, enquanto olhava para o texto. Sentia as
lágrimas correrem pela minha face, molhando a minha almofada. Sentia uma
dor tão forte, tão avassaladora, sobre o peito esquerdo. Sentia que, num
segundo, o meu coração tinha sido arrancado e que no seu lugar apenas havia
ficado um espaço vazio, onde as emoções eram acumuladas e começavam a
corroer-me por dentro, lentamente.
Fiquei assim, a chorar em silêncio, por longas horas. Tive a sensação de
que as lágrimas poderiam nunca acabar e eu também não tentava parar o choro
de tristeza e dor que os meus olhos, doridos e inchados, deixavam sair.
Quando, no tecto, começou a ver-se uma réstia de luz, a minha tia Karen
entrou no quarto. Não fingi que dormia, mas também não dei provas que estava
acordada, permanecendo imóvel, a olhar para o tecto. Ela foi ao roupeiro e
começou a mexer nas roupas. Lembrei-me de que não estava em minha casa,
pelo que as minhas roupas também não ali estavam. Naquela noite tinha ido
para a casa dos meus tios, acabando por passar lá a noite. Durante algum tempo
a tia Karen vasculhou o roupeiro, acabando por tirar algumas peças de roupa.
Era a roupa que ela e o meu tio Simon iam usar no f…… Não conseguia dizer a
palavra, pois se a dissesse significava que elas estavam mesmo mortas e que não
voltariam jamais a este Mundo. Não voltariam jamais para perto de mim. Nunca
mais as poderia voltar a ver ou abraçar; nunca mais ouviria a voz doce da minha

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mãe a dizer para irmos para cama ou a dar-nos os bons dias logo que
acordávamos, sorrindo com um sorriso tão especial que jamais poderia ser
igualado; nunca mais sentiria o seu beijo de boa noite quando já estava meio a
dormir; jamais voltaria a sentir o seu cheiro característico; nunca mais poderia
brincar com a minha irmã e ver a sua cara de chateada quando vestia as suas
roupas ou quando usava a sua maquilhagem; jamais as teria a meu lado, para
me ajudarem no que fosse preciso, pois elas abandonaram este Mundo e
deixaram-me sozinha.
Ainda envolta nos meus sentimentos, chorava sem parar. Funguei
levemente e senti a minha tia dar conta da minha presença, virando-se para a
cama. Aproximou-se da cama e via que eu estava acordada e a chorar. Não
disfarcei nem fingi que o que ela viu não era real. Olhei para ela e vi que parecia
muito mais velha do que realmente ela. Os seus trinta e um anos pareciam
convertidos em quarenta. A sua face estava pálida e sob os olhos encontravam-
se marcas negras de não dormir, tal como eu. Os seus olhos pareciam ter
perdido a sua tonalidade azul e os seus cabelos castanhos estavam bastante
despenteados.
Passou a sua mão pelo meu rosto e limpou algumas das lágrimas que
continuavam a fluir dos meus olhos. Em seguida, saiu a chorar, empunhando
três cabides com calças, blusas e casacos pretos. Eu não me movi, continuando a
olhar para o tecto, já bastante conhecido da minha parte.
Decorrida uma hora, a minha avó Ruth veio para vestir-me. Levantei-me
da cama com apesar e limpei as lágrimas dos meus olhos doridos. Reparei que,
tal como a minha tia Karen, a avó Ruth parecia mais velha. Os cinquenta e seis
anos da avó estavam muito mais pesados. Parecia que tinha mais rugas a
ornamentarem-lhe a face e que estava mais pequena e mais magra do que era
costume. Os cabelos também pareciam mais esbatidos, como se se tratassem de
uma nuvem branca sobre a sua cabeça. Pensei que, possivelmente, eu também
pareceria mais velha e que os meus doze anos já não eram mais doze anos, mas
sim dezasseis ou mais.
A minha avó vestiu-me um vestido, com alguns folhos, tingido de negro
como a noite sem lua e sem estrelas. Parecia antiquado, mas não me importei,
afinal de contas, nem estava propriamente em mim para perceber se o vestido
era bom ou não. Para a ocasião, servia. A avó Ruth também se apresentava com
roupa negra: uma saia preta sobre os joelhos; um casaco também preto e, tal
como previa, ia usar luvas e um pequeno chapéu igualmente tingidos de negro.
Senti que a avó Ruth era uma pequena sombra que se movia rapidamente de
um lado para o outro, sem que pudesse perceber-se com clareza de quem se
tratava. Tão rapidamente que entrou e saiu do quarto que nem tive tempo de
sentir o seu cheiro a hortelã-pimenta, talvez porque eu tinha o nariz entupido e
a sua presença foi tão rápida, que não deu tempo de os meus sensores nasais
detectarem o seu aroma. A avó Ruth entrou em silêncio e em silêncio saiu do
quarto.

99
Enquanto esperava que todos estivessem prontos, permaneci no quarto.
Dirigi-me à janela e olhei para o mundo exterior onde as nuvens quase negras
tapavam a luz do Sol. A chuva continuava a cair dos céus, como se o próprio céu
se chorasse a morte da minha mãe e da minha irmã.
Algum tempo depois, a tia Karen chamou-me e eu fui até à sala onde
todos me esperavam. Todos mostravam a característica semelhante – o luto. O
negrume característico da tristeza sentida por quem parte. Tanto o tio Simon,
calvo e com um pequeno bigode castanho, como o avô Arthur, quase careca e
com muitas rugas, se mostravam vestidos de negro, como o seu sofrimento. Até
a pequena Elaine de três anos estava vestida com um pequeno vestido negro,
um casaco também preto e uma fita negra nos seus cabelos castanhos-escuros.
Todos mostravam grandes olheiras e, em especial a tia Karen e a avó Ruth,
tinham os olhos bastante inchados e vermelhos das lágrimas derramadas pela
noite a dentro.
Quando entrei, olharam para mim como quem olha para um fantasma.
Devia estar branca como a cal e com grandes partes negras sobre as maçãs do
rosto. O silêncio era o luto da casa dos meus tios. Aquele silêncio que se
incorpora e que nos incomoda. Aquele vazio de palavras e sons que demonstra o
sofrimento e a dor de todos os que não falam. Não tardou muito até que esse
silêncio se tornasse insuportável.
Carregados de dor, silenciosamente saímos de casa dos meus tios em
direcção ao local do f…… Preferi continuar a não dizer a palavra apesar de
pensar nela constantemente. Eu, a tia Karen, o Tio Simon e a Elaine entrámos no
carro do tio Simon, enquanto que o avô Arthur e a avó Ruth foram com uns
amigos da minha falecida mãe.
A viagem até ao cemitério pareceu uma procissão penosa e desgastante,
apesar de nem sequer nos termos movido. O céu continuava cinzento, quase
negro, como as nossas almas. Quase não abri os olhos, só para não derramar
mais lágrimas. Também me pareceu que o sono começou novamente a atacar o
meu corpo de doze anos, levando-me a sentir como se estivesse a flutuar.
Quanto mais nos aproximámos do local onde tudo iria acontecer, mais cansada e
triste ficava, pois sabia que, uma vez enterradas, a sua morte seria declarada
como definitiva, tal como passaria a ser a minha solidão.
Quase no cemitério, e pouco antes de o carro parar, passou-me pela
cabeça que se eu morresse poderia encontrar-me com elas, e assim ficaríamos
todas juntas. Já não nos poderiam separar, pois aí iríamos ficar eternamente
ligadas. Pensava a uma velocidade fugaz que me poderia matar para ficar junto
da minha família, quando, por coincidência ou não, um relâmpago surgiu por
entre as nuvens negras, seguido de um estrondo aterrador.
Lembrei-me de imediato que, segundo o Padre, Deus pode perdoar todos
os nossos pecados, mas, se nós acabarmos com a nossa vida, seremos
condenados ao “Inferno”, uma vez que, se Deus nos deu a Vida, também só a
Ele cabe o direito de a tirar.

100
Como eu sou crente na palavra de Deus, pensei que se eu me suicidasse,
seria condenada ao “Inferno”, enquanto que a minha mãe e a minha irmã
estariam no “Céu” logo, não estaríamos juntas. Um novo obstáculo à minha ideia
para estar com elas. Comecei então a pensar que Deus as tirara da minha vida
por alguma razão e que se não estávamos juntas, algum propósito teria. Todavia,
não conseguia conformar-me com a sua partida, nem deixar de culpar-me por
esse simples facto. Se eu não tivesse sido uma fraca e não estivesse
amedrontada, teria sido eu a entrar na sala de operações e seria eu a doar o rim
à minha mãe, impedindo que, pelo menos, a Phoebe tivesse morrido. Ou, talvez,
ninguém tivesse morrido. Possivelmente, se tivesse sido eu a entrar com a
minha mãe, hoje estaria, não a caminho do cemitério, mas em casa com elas a
vermos um filme, juntas, tapadas com a manta vermelha com listas pretas que a
mãe sempre gostou.
Após sair do carro e caminhar em direcção à entrada do cemitério, senti-
me observada. Como se alguém que há muito me seguisse, viesse em meu
encontro, para assistir à cerimónia da minha mãe e da Phoebe. Olhei
lentamente para trás mas não vi ninguém, particularmente, fora do vulgar.
Apenas constatei que chegavam pessoas de preto, simples sombras, movendo-
se lentamente por entre mim. Passavam, olhavam para mim e falavam com os
meus tios e avós, dizendo quase sempre o mesmo “Os meus sentimentos” ou
“Tenho muita pena”. Palavras estas que o vento levava enquanto passava por
nós.
Decorridos uns minutos, estávamos no cemitério, rodeados de lápides
cinzentas. Em redor dos dois buracos cavados na terra encontravam-se muitas
pessoas. Umas consegui distinguir como sendo amigos da minha mãe; o seu
antigo patrão da fábrica; o médico que realizou a operação e ainda uns amigos
da minha irmã, especialmente raparigas, jovens e tristes.
O padre aproximou-se, leu uma oração que mal escutei, pois concentrava
toda a minha atenção nos dois caixões de madeira clara, com tamanho
semelhante. Lá dentro jaziam o corpo da minha mãe e da minha irmã, ainda
com uma vida tão longa pela frente, mas agora sem qualquer segunda hipótese.
Começou a chover novamente, pelo que todos elevaram grandes guarda-
chuvas pretos contra o céu, impedindo que a água nos tocasse. Ouvi o Padre
declarar “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo…” e todos responderem
“Ámen!” pelo que voltei a minha atenção para toda acção que decorria em meu
redor. Muitos dos presentes choravam ao verem os caixões serem puxados para
os buracos cavados na terra, outros, viravam a cara, não mostrando que as
lágrimas também corriam pelos seus rostos e outros, simplesmente, assistiam à
cena sem qualquer emoção aparente.
No momento em que os caixões bateram no fundo no buraco, algo em
mim pareceu perder-se. Senti que eu também entrava no buraco que ia ser
coberto com terra. Quando dois homens se preparavam para começar a cobrir
os caixões, dei alguns passos em frente e coloquei, em cima de cada caixão, uma
flor branca que simboliza a pureza. Em seguida, sobre o caixão onde jazia a

101
minha mãe pousei um pequeno medalhão prateado em forma de coração. No
seu interior, encontravam-se duas fotografias: uma da minha mãe e outra onde
me encontrava com a Phoebe, sorridentes.
Assim que o som do medalhão a embater no caixão chegou aos meus
ouvidos, virei o meu corpo, ficando de costas para os caixões e comecei a
afastar-me por entre as pessoas que iam depositar alguma flor ou dizer o
“último adeus”.
Sentei-me num banco de pedra, vendo as pessoas afastarem-se, em
silêncio. No momento em que os caixões estavam completamente cobertos, os
meus avós e tios eram as únicas pessoas que ainda se encontravam perto das
campas. Levantei-me e fui até lá para poder ficar algum tempo perto do local
onde a minha mãe e a minha irmã jaziam. Ao chegar perto deles, a minha tia
disse, com voz rouca e sem olhar para mim:
- Vamos para o carro, não te demores Evelyn.
Assenti com a cabeça e coloquei-me de joelhos entre as duas sepulturas.
Senti-os irem embora, embutidos em silêncio e tristeza. Olhei para as lápides
que li demoradamente, devido à falta de nitidez causada pelas lágrimas que
brotavam dos meus olhos.
“Lydia Warren.
Trinta e seis anos de amor e ternura para com todos.
Que a sua alma descanse em paz”.

“Phoebe Warren.
Eterno descanso a esta jovem alma.”
Senti que naquele momento era, definitivamente, o fim da minha família.
Já nada as traria de volta Só restavam memórias do que fomos e já não
voltaríamos a ser. Senti que, no espaço entre as campas, uma jovem alma de
doze anos tinha sido também enterrada – a minha alma.
Preparei-me para levantar quando constato que não estou sozinha. Um
pouco atrás de mim encontrava-se alguém e, de novo, a sensação de que estava
a ser observada invadiu o meu corpo. Levantei-me e voltei-me na esperança de
estar errada, o que, definitivamente, não aconteceu. Atrás de mim estava
mesmo alguém, mais especificamente uma rapariga. Esta era jovem, não tendo
mais do que dez anos, de cabelos acastanhados e pele um pouco branca. Apenas
tem vestida uma túnica branca que termina um pouco abaixo dos joelhos.
A sua cara era de eterna inocência, como jamais vi. O seu olhar ia na
direcção das lápides e, por um momento, pensei que estivesse ali por causa da
minha mãe ou da Phoebe, podendo ser uma colega desta. Porém, e ao invés do
meu pensamento, o seu olhar cruzou-se comigo e, nesse momento, soube que
ela estava ali por minha causa. Aqueles olhos grandes, belos e tingidos de violeta,
tal como os da minha falecida mãe, olhavam para mim, como se conseguissem
obter tudo a meu respeito só mesmo, pelo simples facto de para mim olharem.
Então, para meu espanto, a rapariga sorriu e tudo à nossa volta alterou-se.
O cemitério; a relva; o céu; as árvores; as nuvens; a luz; tudo desapareceu,

102
dando lugar apenas à escuridão. Continuamos à mesma distância, mas tive a
certeza de que tudo desapareceu, como se estivéssemos num filme e
mudássemos de cenário.
Ainda assim, como se tudo não fosse suficientemente estranho, a rapariga
começou a brilhar, a emanar uma luz estranha, que me tocou e preencheu de
um sentimento cujo nome não recordo. Senti-me calma e harmoniosa, mas, ao
mesmo tempo, senti-me desconfortável com o que estava a acontecer.
- Está na hora! – informou ela, numa voz de criança inegável, ao mesmo
tempo que estende o braço direito na minha direcção, abrindo a mão.
- NÃO! – gritei como se a escuridão pudesse engolir o som.
- Porque esperas? – perguntou ela, ainda com o braço estendido.
- Não sei… – gaguejo. – Mas…
- A tua mãe e a Phoebe esperam por ti – disse, sorrindo calorosamente.
- Mas, e a minha avó? E os meus tios? – perguntei, olhando-a, sendo ela o
único brilho na escuridão.
- Eles ficarão bem – respondeu calmamente. – Mas elas esperam-te…
Fechei os olhos e respirei profundamente. Inspirei a sua luz e expirei a
escuridão que nos rodeava. Abri os olhos e avancei na sua direcção. Ela
continuava a sorrir como se nada importasse, como se tudo fosse ficar bem,
pelo que, ao vê-la, sentia-me tranquila. Continuei a avançar até que cheguei
mesmo perto de si. Continuava com o braço direito estendido e com a mão
aberta, à espera que eu colocasse a minha mão para que partíssemos juntas.
Inspirei novamente e comecei a elevar o braço até que coloquei a minha mão
sobre a sua e tudo começou a ficar mais brilhante, como se estivéssemos a
caminho do Sol.

Acordo repentinamente, transpirada. Pisco os olhos várias vezes de modo


a ter a certeza de que tudo não passou de um sonho. Olho em meu redor, estou
no meu quarto, escuro. A minha cabeça lateja de dor e o meu corpo liberta suor
como se me encontrasse numa sauna.
“Que sonho estranho” penso ao levantar-me da cama, afastando os
lençóis molhados de suor. Normalmente ou sonho com o funeral da minha mãe
e da Phoebe ou com a menina de olhos violeta. Contudo, pela primeira vez, os
sonhos misturaram-se e, também pela primeira vez, eu anuí em ir com a menina
para onde quer que ela me levasse.
Acendo a luz do candeeiro da minha mesa-de-cabeceira e o meu quarto
fica iluminado por uma luz branca, quase fluorescente. Vou até à casa de banho,
onde lavo a cara com água fria para ter a certeza de que estou viva e que tudo
não passou mesmo de um sonho. Limpo-me a uma toalha e olho-me ao espelho.
Parece que, de um dia para o outro, rejuvenesci. Ainda que seja só impressão
minha, sinto-me mais jovem, como se os quarenta e um anos que possuo não
significassem absolutamente nada.
Começo a sentir sede pelo que saio da casa de banho e vou até à cozinha,
para beber um pouco de água. Ao passar pela sala, a ligação entre o meu quarto

103
e a casa de banho com a cozinha, encontro algo que não está certo. Alguém
dorme no meu sofá, alguém tapado com uma manta azul-bebé, já rota. Então,
como peças de um puzzle que se encaixam na minha mente, relembro que esse
alguém é Esperança que acabou por ficar em minha casa esta noite.
Sorrio, sem me aperceber, e vou até ao sofá. Olho-a e volto a sorrir, desta
vez mais avidamente. Puxo a manta para cima de modo a cobrir todo o seu
corpo. Dorme tão serenamente, como um anjo. Relembra-me os seus tempos
de criança, em que eu ia ao ser quarto para ter a certeza de que estava tapada e
ficava a olhar para ela enquanto dormia. Passo suavemente a minha mão sobre
a sua face para ter a certeza de que não está fria e, voltar a ter a certeza de que
está viva. Agacho-me e beijo-lhe a testa. Ela sente e, inconscientemente, sorri,
como fazia quando, depois de eu lhe contar uma história para adormecer, a
beijava, saindo em seguida do seu quarto. Tenho tantas saudades suas, apesar
de estar aqui, comigo. Sinto que é impossível recuperar o tempo que foi perdido
e que jamais nenhuma de nós esquecerá o que aconteceu. Ainda assim, tenho
esperança de que possamos voltar a ser “mãe e filha”. Tenho fé de que um dia
possamos voltar a estabelecer uma relação de cumplicidade e harmonia há
muito perdida. Pode ser que o laço de amor que outrora nos uniu seja
estabelecido. Foi tão bom ela poder perdoar-me. Se não fosse tão doce, tão
bondosa, não sei se me perdoaria, mas, graças a Deus, a minha filha cresceu e
nunca perdeu essas qualidades que a tornam numa pessoa melhor.
Volto para o meu quarto sem beber água pois já não tenho sede. Bebi de
algo muito melhor que água, bebi de amor, ternura e esperança que a minha
pequena Hope me ofereceu.
Deito-me na cama e cubro-me com o lençol molhado, mas não importo. A
única coisa que agora importa é que eu estou com a minha filha. A parte de mim
que perdi há oito anos está a voltar. Sorrio e agradeço a Deus por estares perto
de mim, minha filha.

104
Capítulo 20

Esperança
________________

Peço a mamã para ser só hoje. Só hoje.


- Por favor mummy – peço como ela gosta.
Ela olha para mim com ar de quem não se deixa levar por falinhas mansas,
mas eu sei que ela vai aceitar o meu pedido. Ela acaba sempre por aceitar.
- Mummy é só hoje e podes contá-la toda. Por favor – suplico, fazendo um
olhar meigo e beicinho.
- Ok Hope, ganhaste. Mas é só hoje, já estás a ficar muito crescida para
isto – reclama a mamã.
Apesar do meu nome ser Esperança, a mamã trata-me quase sempre por
Hope, que como ela diz, “é Esperança na sua língua”.
- Vamos, vamos – digo à mamã puxando-a por uma mão.
- Primeiro, um beijo de boa noite ao papá – lembra o papá sorrindo.
Dou um beijo de boa noite ao papá e vou com a mamã para o meu quarto.
Ela deita-me, tapa-me e dá-me um beijo na testa, vai começar.
Vai contar-me uma história antes de eu ir dormir. E vai contar a minha
favorita.
A mamã conta a história sempre da mesma forma, sem acrescentar
qualquer palavra ou frase. Sei isto, porque desde que eu era pequena que a ouvi
contar-me esta história.
Esta história contou a minha avó à minha mamã, e antes dela, a minha
bisavó à minha avó. Agora, a minha mamã conta-ma a mim, para que eu, um
dia mais tarde a possa contar aos meus filhos.
A mamã vai começar, sei porque ela se coloca ao meu lado na cama,
mexendo com a sua mão nos seus cabelos. Adoro quando a mamã me mexe nos
cabelos, faz-me sentir segura.
- Vou começar Hope – avisa a mamã sorrindo suavemente. – Once upon a
time13…
Franzo o nariz e a testa e a mamã olha para mim e começa a rir, sei que
está a brincar, como faz sempre. A mamã e eu rimos durante algum tempo e
depois aclara a garganta e começa:
“Era uma vez, há muito, muito tempo, uma pequena princesa chamada
Sibila, que vivia num Reino distante. Nesse Reino todas as pessoas ao adormecer
sonhavam. Sibila, porém, não sonhava e por isso não gostava de dormir, porque
era uma menina irrequieta e brincalhona, achando que dormir era tempo em
que podia brincar e correr por todo o palácio.

13
Once upon a time significa Era uma vez

105
Por causa disso, todas as noites, uma ama da princesa Sibila lhe contava
uma história ou cantava até Sibila adormecer. Mas, quando a ama acabava de
contar a história Sibila acordava, sem qualquer vontade de dormir. As amas do
palácio ficavam exaustas após uma noite a tentar adormecer Sibila, por isso,
para o Rei e Rainha era cada vez mais difícil arranjar alguém que conseguisse
adormecer Sibila.
Assim, o Rei colocou um anúncio a pedir alguém para conseguir
adormecer a princesa Sibila…”
Adoro ouvir a mamã a contar uma história. Gosto da forma como a sua
voz me embala e me adormece lentamente. A sua pronúncia britânica faz entoar
as palavras de forma lenta, que me afagam e acariciam.
A mamã continua a sua história:
“Muitas pessoas apareceram no palácio, dizendo ser capazes de
adormecer Sibila. Muitos tentaram histórias, outros tentaram canções, e ainda
alguns tentaram embalar a princesa e nada resultou. Sibila continuava irrequieta
sem adormecer, pondo todos no palácio exaustos.
Certo dia, chega ao palácio uma jovem mulher, muito bonita, os seus
olhos faziam lembrar duas estrelas a luzir e o seu sorriso era de meia-lua
brilhante.
- Bom dia – disse o Rei à jovem.
- Boa noite – corrigiu a jovem, vendo que o Sol tinha acabado de
desaparecer no horizonte.
- Para mim é bom dia, porque a minha filha não me deixa dormir –
explicou o Rei.
- É por esse motivo que me apresento Majestade – disse a jovem.
- Por favor, tente que a pequena Sibila durma – pediu o Rei.
A jovem sorriu e foi ter com Sibila que esperava, impaciente, no seu
quarto, sentada na sua cama.
- Boa noite – disse a jovem sorrindo a Sibila.
- Boa noite – disse Sibila. – Como te chamas?
- Sonhos – respondeu a jovem.
- Que nome estranho – disse Sibila rindo.
- Eu sei – concordou Sonhos. – Vou contar-te uma história.”
- De certa forma, acho a princesa Sibila parecida contigo! – diz a mamã
rindo. Eu também rio e a mamã continua.
“Sonhos ajudou Sibila a deitar-se e, sem que Sibila visse, Sonhos pôs uns
pós brilhantes na almofada da pequena princesa. Depois, Sonhos tapou Sibila e
começou a contar-lhe uma história…
Contou-lhe sobre uma menina, numa terra distante e, tal como Sibila, a
menina não conseguia adormecer, até que apareceu uma Fada. A Fada não era
uma fada vulgar, era a Fada das Histórias para Adormecer. A menina pensou que
a Fada lhe fosse contar uma história, tal como a sua mamã fazia, mas a Fada
tirou do bolso do seu vestido uns pós brilhantes que pôs na almofada da
menina.”

106
A mamã faz uma pausa. Olha para mim e eu olho para ela. Sorrio. Ela
continua a contar e eu deixo-me embalar na sua voz:
“A menina perguntou-lhe o que eram aqueles pós e a Fada disse que eram
histórias para adormecer que iam ficar na almofada e que ela iria ouvir durante
toda a noite, enquanto dormisse. Depois a menina perguntou se podia dar um
nome a essas histórias para adormecer e a Fada disse que sim. Então, a menina
disse que as histórias se podiam chamar Sonhos. A Fada sorriu, deu um beijo na
testa da menina e desejou-lhe bons sonhos, vendo a menina adormecer.
Sonhos olhou para Sibila adormecida e sorriu. Deu-lhe um beijo na testa,
viu que Sibila sorria e disse:
- Bons Sonhos.
Sonhos desapareceu depois numa luz amarela brilhante.
Desde então, Sibila aprendeu a sonhar, ouvindo as histórias para
adormecer que estavam na sua almofada – os Sonhos.”
Estou meio adormecida, meio acordada. Tenho os olhos fechados mas
ainda sinto a mamã afagar-me os cabelos, a olhar para mim. As suas palavras
ainda me embalam, ainda ecoam em meu redor, transportando-me do meu
quarto para o Reino da princesa Sibila.
- Boa noite Hope, minha filha – diz a mamã dando-me um beijo na
bochecha, enquanto eu sorrio quase inconscientemente.
A mamã levanta-se, sai, encosta a porta e eu começo a sonhar.

107
Terceira Parte

108
Capítulo 21
Presente
Segunda-feira, 1 de Setembro

Evelyn
________________

Caminho, sorridente, pelas ruas de Londres que se encontram cheias de


pessoas. Estas caminham apressadas, atravessando as ruas de Londres como se
nada as impedisse de chegar ao destino.
Não me importo com as pessoas. Não têm qualquer importância na minha
vida, ou pelo menos, neste momento da minha vida não passam de pequenas
formigas. Sabemos que existem, mas se não as incomodarmos, também não nos
incomodarão. A minha “semana de férias” acabou, razão pela qual me dirijo
para a loja onde Amy me espera. Não lhe cheguei a telefonar, uma vez que
aproveitei todos os segundos da tarde de sábado e da manhã de domingo para
estar com Esperança, para falarmos, como mãe e filha que fomos e, espero eu,
voltarmos a ser.
Depois do almoço, Esperança informou-me que o seu pai se encontrava à
sua espera pelo que se despediu de mim e se foi embora. Luís não foi até ao
meu apartamento e, nem eu, esperei que ele fosse. Permaneceu no carro
cinzento, alugado, sem que eu o pudesse ver pela janela do meu apartamento.
Esperança ficou com o meu número de telefone para combinarmos algo
antes de se ir embora, pois soube que se encontrava em Londres por um mês,
como presente pelo seu décimo oitavo aniversário. Voltará para Portugal no dia
vinte de Setembro. Quero aproveitar para estar com Esperança, nos momentos
em que Luís achar conveniente, obviamente.
A luz do Sol deambula pelo céu, povoado de brancas nuvens. Olho para o
céu, acabando por me encandear pela luz do Sol, e volto a sorrir. Não podia
estar mais feliz. Mal posso esperar por chegar à loja e contar a Amy.
Demoro, não muito mais, do que trinta minutos a caminhar desde a
minha casa até à loja. Constato que há alguns dias que não faço jogging, algo
que fazia religiosamente. Não me importo, pois sei que o fazia, não pelo bem-
estar físico, mas sim pelo facto de, enquanto corria, podia estar abstraída do
mundo que me rodeava.
Chego à loja e Amy sorri avidamente. Olha para mim e cumprimenta:
- Bom dia Ev… Tudo bem?
- Bom dia Amy. Tudo e contigo?
- Bem vejo que estás muito bem hoje! – declara Amy dando-me dois
beijos.
- O que se pode dizer? A vida corre-me bem! – conto, desapertando o
casaco preto que comprei há alguns anos e hoje, pela primeira vez, visto.

109
- Estava tão preocupada? Não ouviste a minha mensagem?
- Ouvi, mas estava um pouco ocupada. Mas eu já te conto tudo – refiro
com um tom misterioso.
- O que se passou? – pergunta Amy com os olhos a brilhar.
Olho para Amy e sorrio. Reparo nos seus olhos castanhos-claros,
brilhantes. Tenho a estranha sensação de que Amy, desde que veio trabalhar
para a loja, há dois anos, ainda não envelheceu, nem mesmo um pouco. Amy é
alta e elegante. A sua pele é branca e não se mostra diferente do que era há
algum tempo atrás. Os seus cabelos, castanhos-escuros, continuam ondulados,
belos. O seu sorriso é belíssimo, mostrando toda a bondade do seu ser.
- Ev? – chama, impaciente.
Sorrio, aclaro a garganta e digo:
- Encontrei a minha filha!
Amy mostra-se chocada. Olha para mim com os olhos muito abertos, na
esperança de procurar em mim se o que eu digo é verdade ou não. Ficamos em
silêncio por algum tempo. Na loja não entra nenhum cliente.
Amy está admirada com tal acontecimento. Não sabe, tal como muitos,
que eu abandonei a minha filha. Sabia só que a minha filha tinha leucemia e que
tinha morrido em Portugal, razão pela qual, provavelmente, eu tinha regressado
para Londres.
- Como assim? – pergunta, finalmente, Amy.
- No sábado, fui ao shopping porque ia comprar uma prenda para o filho
da Nicole e, coincidência das coincidências, ela estava lá, com o meu ex-marido
e com a sua madrasta.
Amy fica novamente admirada, acabando por gaguejar:
- Mas ela não tinha morrido?
- Não… Pelo que me contou fez novamente um tratamento com
quimioterapia – explico.
- Mas eu sempre pensei que tinhas voltado para Londres porque a
Esperança tinha morrido…
- Não, não foi bem assim…
Conto a Amy toda a verdade, não me importando com julgamentos e
acusações que possam surgir. Nada mais importa. Não tenho medo que pensem
que sou um ser monstruoso ou que não sou uma mãe, pois não mereço tal
designação. O que me importa é que a minha filha me perdoou, não me
chamando monstro ou negando que sou sua mãe.
Amy, doce e bondosa, abraça-me quando acabo de lhe contar. Não chora,
apenas sorri. Sente-se feliz por eu ter desabafado com ela e por ter
reencontrado a minha filha e tudo ter corrido da melhor forma.
- Tiveste que ser mesmo muito forte – comenta Amy enquanto se dirige
até aos provadores onde se encontram algumas peças de vestuário para serem
arrumadas nos devidos locais.
- Tudo porque fui muito fraca – contradigo.

110
- Ev, todos cometemos erros na nossa vida. Somos humanos. Tu erraste e
pagaste esse erro da pior forma, com a culpa. Agora foste perdoada – diz Amy
sabiamente. – Tu foste muito forte, pois tenho a certeza de que muitas pessoas
não aguentariam a culpa a que tu estiveste sujeita. Estou muito contente por ti.
As palavras de Amy inundam-me de alegria e confiança. Sempre soube
que Amy possui o dom de poder falar com uma pessoa e de consegui que essa
pessoa se sinta melhor. Nunca tinha acontecido comigo, uma vez que eu
raramente falava da minha vida no trabalho, ou onde quer que seja. Porém, e
apesar de hoje me sentir bastante bem, Amy faz com que eu ainda me sinta
melhor, pois não há dúvida de que Amy é constituída pela bondade.
Há quem diga que todos temos que ter um “grilo falante 14 ” como
consciência, que devemos escutar e não ignorar. Contudo, quem precisa de um
grilo quando tem uma pessoa como Amy?
Amy tem sempre a palavra certa a dizer e sempre na ocasião certa. Faz-me
lembrar, ainda que superficialmente, a minha irmã Phoebe, pois ela sabia
sempre como lidar com os seus problemas, como enfrentar as situações que se
lhe opunham.
- Logo eu e a Tyra vamos até ao café – conto a Amy. – Queres vir?
Ela sorri, parecendo encher a loja toda de alegria ao sorrir.
- Sim, claro – responde dirigindo-se a uma cliente, rica e habitual, que
entra na loja.

Cinco minutos antes de fecharmos a loja, Tyra aparece, deslumbrante,


como sempre. Ainda assim, traja preto – o luto pela morte do marido. Ao
contrário do que eu pensava, Tyra não vem sozinha. Traz consigo um pequeno
rapaz de oito anos. Sem dúvida que é filho de Tyra. Possui a pele morena; os
olhos negros, belos como os de sua mãe; os cabelos são acastanhados e ainda
uma boca tão perfeita que parece ser obra de cirurgia plástica.
- Olá – cumprimenta Tyra ao chegar.
Reparo que o seu filho vem envergonhado. Todavia, perto de Amy
ninguém é tímido.
- Olá – diz Amy, olhando para o pequeno rapaz. – Como te chamas?
O rapaz olha para Amy e esboça um suave sorriso porque Amy faz umas
caretas ao mover as sobrancelhas para cima e para baixo rapidamente,
acabando por ceder e responder:
- Kevin…
- Uhhm… Kevin… Onde é que eu já ouvi esse nome? – pergunta Amy,
pensativamente.
Kevin olha para Amy esperando que ela lhe diga onde ouviu o seu nome.
O seu olhar acompanha os movimentos lentos de Amy.

14
“As Aventuras de Pinóquio” criada por Carlo Lorenzini, em que o “grilo falante” era a
consciência, não escutada, do pequeno rapaz marioneta, o Pinóquio.

111
- Já sei! – diz Amy num tom elevado, fazendo com que Kevin dê um
pequeno pulo. – Kevin é o nome do meu irmão, e se fores como ele és muito
traquina, né?
Kevin ri enquanto Amy lhe faz cócegas. Tyra sorri e começa a caminhar na
minha direcção. Dá-me dois beijos e pergunta:
- Como estás?
- Melhor do que alguma vez estive – respondo sorrindo.
Ontem à tarde liguei a Tyra e contei-lhe tudo. Ela, tal como Amy, ficou
muito admirada ao saber que Esperança estava viva e que estava em Londres.
Ainda assim, Tyra ficou radiante ao saber que tinha tudo corrido bem, que eu e
Esperança tínhamos conversado e que a minha filha me tinha perdoado. Não
podia estar mais feliz do que o que estou. A minha vida, agora sim, corre-me da
melhor forma.
Após oito anos de intenso sofrimento e culpa destrutiva, Esperança
conseguiu que isso terminasse. “A minha filha está viva” repito mentalmente,
ainda com alguma relutância em acreditar.
Pouco depois estamos a sair da loja em direcção ao café mais próximo,
onde eu costumo comprar sandes para almoçar quando tenho pressa. Não está
muita gente na rua, nem no café. Converso com Tyra ouvindo os risos de Kevin
misturados com a voz doce de Amy.
Entramos e dirigimo-nos para uma das seis mesas, de quatro lugares,
disponíveis. O chão é de madeira e está envernizado. Algumas janelas e uns
quadros de cores vivas decoram as paredes, também de madiera, do pequeno
café. Um suave cheiro a madeira passeia lentamente por todo o café, misturado
com pigmentos de café e comida.
Sento-me ao lado de Tyra, enquanto que Amy se senta ao lado de Kevin.
Distraidamente, ouço que falam de filmes de acção, os preferidos de Kevin e os
menos apreciados por Amy. Ele diz-lhe o que os filmes de acção têm de bom e
Amy contra-argumenta, entre risos.
A empregada, loira, do café vem até à nossa mesa, sorridente.
- O que vão tomar? – pergunta sacando de um pequeno bloco de folhas
brancas e uma caneta e pondo-se a postos para escrever os nossos pedidos.
- Quero um chá de cidreira – peço, olhando para Tyra.
- Pode ser um para mim também – refere Tyra.
- Eu quero um sumo de laranja natural – pede Amy que não gosta de chá.
A empregada olha para Kevin aguardando o pedido deste.
- Bem… Eu quero… Uma pizza… – pede Kevin, olhando para Tyra, com
receio de que esta não autorize.
- É tudo? – interroga a empregada loira, guardando a caneta no bolso do
avental.
Olho para elas e respondo:
- Por agora sim…
A empregada sorri, vira-se e vai tratar dos nossos pedidos.

112
Volto a minha atenção para a mesa. Parece que sou uma espectadora a
ver uma cena como há muito não via. Estou com duas grandes amigas, uma que
conheço há muitos anos e outra que parece que me acompanhou desde sempre.
Falamos, rimos. Um momento como não tinha há tanto tempo. Tenho a certeza
de que me esqueci do que era conviver com pessoas. Sinto-me tão bem. Acho
que vou guardar este momento, como o momento de viragem da minha vida.
Sorrio quase inconscientemente.
Ouço um leve zumbido que desaparece em seguida. Ignoro e bebo um
pouco de chá de cidreira. Novamente um leve zumbido. Faço um esforço para
perceber de onde provém tal zumbido. Então, percebo que é o meu telemóvel
que vibra no interior da minha mala. Provavelmente carreguei numa tecla e
mudei o perfil do telemóvel para silencioso.
Abro a mala e procuro o telemóvel que se move no interior desta. Pego-
lhe e reparo no número. Não o conheço. Instantaneamente penso que poderá
ser Esperança para combinarmos algo. Carrego na tecla para atender a chamada
e coloco o telemóvel perto da orelha.
- Estou? – pergunto em português.
- Olá. É a Evelyn?
Tenho uma certa dificuldade em ouvir. A voz do outro lado da linha parece
um murmúrio pelo que me levanto e saio do café.
- Estou? – pergunto novamente já fora do café.
- Evelyn?
Não reconheço a voz de mulher que chama por mim.
- Sim, sou eu.
- Desculpe incomodá-la, mas tenho que falar consigo.
Mas quem será está mulher e o que quererá? Ouço uma leve respiração
do outro lado da linha, como se a mulher se tentasse acalmar antes de falar
comigo.
- Eu sou a Ana, a mulher do Luís – explica a mulher.
Quando refere “mulher do Luís” quase que o faz num sussurro,
desencadeando em mim ainda mais dúvidas sobre o que me quererá. Não
respondo, permitindo que Ana continue a falar:
- O Luís não sabe que eu lhe estou a ligar e agradecia que não lhe contasse.
- Não lhe contarei… – respondo um pouco rispidamente.
- A Esperança deu-me o seu número e pediu-me para lhe ligar…
A Esperança? Porque terá Esperança dado o meu número à sua madrasta?
O que se passará? Começo a ficar preocupada.
- O que se passa?
- A Esperança…
- O que tem a Esperança? – pergunto equacionando todas as hipóteses
possíveis na minha mente a uma velocidade fugaz.
- A Esperança deu entrada hoje de manhã no hospital…
- Mas o que se passou? – pergunto sem hesitar.

113
- Bem… A Esperança começou a sangrar do nariz esta manhã, mas não
conseguimos estancar a hemorragia, pelo que nos dirigimos ao hospital. Com o
historial médico de Esperança, o médico mandou fazer análises e…
“Por favor não… Meu Deus, por favor não…”
- As análises indicaram que o cancro voltou. Esperança foi imediatamente
internada.
O que eu receava acabou por acontecer. Como pôde o cancro, ao fim de
oito anos, regressar? Como pôde regressar depois de, finalmente, nos termos
encontrado? Porquê agora?
Nada digo, permaneço em silêncio com o telemóvel perto da orelha. “O
cancro voltou” soa na minha cabeça como se estivesse a ser repetido vezes sem
conta para que eu não me esqueça de que o que Ana me contou é verdade. Não
posso acreditar. Recuso-me, simplesmente, a acreditar que voltámos ao mesmo.
A minha pobre filha, novamente infestada por aquela peste que teima em não
desaparecer. Pela terceira vez, pergunto a Deus porquê Esperança. Não obtenho
resposta, tal como não obtive das outras duas vezes.
- Evelyn, está aí? – pergunta Ana.
- Sim… - murmuro entre dentes. – Obrigado por me ligar, irei para aí o
mais rápido possível.
- Não se enerve – pede Ana. – Não se esqueça que o Luís não sabe que eu
lhe liguei, mas Esperança pediu-me e eu não tive como recusar.
- Não lhe contarei, prometo. Ate já.
Desligo a chamada. Vou buscar a mala ao café e parto em direcção ao
hospital onde se encontra a minha filha, novamente doente, novamente entre a
vida e a morte.

114
Capítulo 22
Presente
Terça-feira, 2 de Setembro

Evelyn
________________

O som, quase regular, do movimento exterior do quarto de Esperança


inunda-me, impedindo-me de, nem mesmo por breves segundos, adormecer. A
suave luz do Sol começa a entrar pelas faixas do estore da janela do quarto,
indicando-me que a manhã surge do horizonte e que um novo dia começa.
Olho para ela, que dorme serenamente. Ontem à tarde, após ter feito
análises e alguns exames, Esperança começou a gritar que não queria voltar ao
mesmo e que preferia morrer do que fazer um novo tratamento, pelo que os
médicos tiveram que lhe administrar um sedativo.
Reparo no monitor que mostra os seus batimentos cardíacos. O seu
coração bombeia o sangue de forma normal e constante pelo seu corpo. Não
tarda muito que o efeito do sedativo se dissipe e que Esperança acorde.
Estou sozinha com Esperança. Ana, a nova mulher de Luís que ontem me
ligou, foi para casa descansar um pouco e, dentro de algumas horas, voltará. Luís,
por sua vez, foi “obrigado” a sair do quarto. Quando, ontem, cheguei para ver
Esperança, ela já dormia sob efeito do calmante. Sentei-me numa cadeira e
fiquei a seu lado, com Ana. Luís, que tinha ido tomar banho e comer qualquer
coisa, ao chegar, encarou com a minha presença. Olhou para mim, com um olhar
não tão gélido como da outra vez, mas, ainda assim, penetrante e afastou-se
para não ter que se confrontar comigo.
Desde então não reapareceu. Porém, sei que aguarda que eu saia para
estar com Esperança, pois, de quando em vez, uma enfermeira vem ao quarto
espreitar se eu ainda aqui estou para poder avisar Luís de quando tem “o
caminho livre”.
Por mais estranho e constrangedor que pudesse ser, eu não me ia
importar de estar no quarto de Esperança com Luís, uma vez que estou aqui por
causa da minha filha e não dele. Ainda que os sentimentos que possam existir
em nós não nos permitam agir normalmente na presença um do outro, quando
se trata de Esperança as coisas mudam, porque, afinal, Esperança é a pessoa
que mais sofre, mesmo que seja a pessoa que menos tem culpa em todo este
enredo.
Há horas que não como e que não me levanto da cadeira que encostei à
cama de Esperança. Todavia, nada disso importa, uma vez que, agora tenho a
certeza de que não posso deixar a minha filha sozinha, doente. Posso afirmar,
aos quarenta e um anos, que finalmente descobri o verdadeiro valor de ser mãe.
Tenho a certeza que desta vez não a abandonarei, pois já venci os meus

115
fantasmas, os meus medos e angústias. Foi-me dada uma segunda oportunidade
que não procuro desperdiçar.
Bocejo lentamente, enquanto esfrego os olhos. Mesmo que não tenha
ingerido alimentos ou feito qualquer outra coisa, o meu corpo lateja devido ao
facto de não ter dormido. Em tempos li, numa revista de cariz científico, que
estava provado que, ainda que a nossa vida dependesse de não adormecermos,
não conseguiríamos evitar o sono.
Passei a noite em claro, não conseguindo adormecer. Contudo, agora o
sono começa a apoderar-se do meu corpo, adormecendo, lentamente, cada
célula minha. As minhas pestanas tornam-se pesadas, tendendo a descer,
cobrindo os meus olhos. Os sons exteriores começam a tornar-se leves
murmúrios que mais tarde se extinguem deixando-me em plena e silenciosa
escuridão.
Sem que me aperceba, adormeço, ainda que acordada. Penetro numa
escuridão sonolenta e silenciosa. Passados breves segundos, a escuridão começa
a dissipar-se, dando lugar a uma luz, um tanto ou quanto, acolhedora. Esta
envolve três figuras, todas elas do sexo feminino. Estão todas vestidas de um
branco tão puro que parece brilhar. Caminho lentamente na sua direcção,
deixando-me envolver pela luz branca.
O som dos seus risos chega-me aos ouvidos, sendo instantaneamente
processado pelo meu cérebro. Enquanto que a distância que me separa delas
diminui, a nitidez das suas formas aumenta, permitindo-me identificar de quem
se tratam.
A mais alta, de aspecto mais velho, apresenta-se como uma bela mulher,
com cerca de trinta e alguns anos. A sua pele é clara, tal como o seu cabelo loiro,
ondulado. Na sua face perdura um suave sorriso, enquanto que os seus olhos
tingidos de violeta seguem o meu movimento.
Olho para outra jovem que ri, gargalhando. Esta tem cerca de dezasseis
anos. A sua pele também possui uma tonalidade clara, ainda que mais escura do
que a mulher mais velha. Os seus cabelos castanho-claros, pelos ombros,
parecem esvoaçar ao passo que a jovem se ri.
Por fim, entre as outras duas, encontra-se outra jovem, provavelmente
com dez anos, que também sorri. Ao contrário das outras duas, esta apresenta
uma pele mais bronzeada e os seus cabelos castanhos com madeixas loiras
emolduram a sua bela face. Os seus olhos, coloridos de um violeta invulgar,
mostram uma inocência característica das crianças.
Ao aproximar-me delas a minha presença é denunciada, uma vez que elas
cessam as gargalhadas e começam a olhar para mim. Não me olham com
desaprovação, nem mesmo com indiferença. Sorriem para mim de forma
bastante natural.
Durante algum tempo permanecemos em silêncio, até que a mulher mais
velha aclara a garganta e diz:
- Evelyn, minha filha…

116
A minha mãe, há tanto perdida, encontra-se agora à minha frente,
chamando por mim. É impossível conter as lágrimas que teimam em cair dos
meus olhos.
A mulher mais velha – a minha mãe – afasta os braços, como se se
preparasse para dar um abraço ao vazio. Acena-me lentamente com a cabeça
para que eu me aproxime, de modo a poder abraçar-me.
Calmamente, dirijo-me até ela, enquanto que as outras duas jovens
sorriem para mim. Ao chegar perto da minha mãe, ela abraça-me e eu sinto-a
junto a mim.
As lágrimas continuam a brotar dos meus olhos e a escorrer pelo meu
rosto. Não acredito que esteja com a minha mãe outra vez. Olho para o lado e a
minha irmã, de dezasseis anos, também me abraça. Finalmente, a jovem de dez
anos – a minha filha – também se junta ao abraço. Ficamos abraçadas durante
um longo período em que apenas a nossa respiração e o meu fungar se ouvem.
- Mãe… Phoebe… Senti tantas saudades vossas… – conto.
- Mas agora nós estamos aqui! – responde a minha mãe.
- Como posso estar aqui com vocês? – pergunto, limpando as lágrimas à
manga da blusa.
- Gostas de estar connosco? – pergunta a minha mãe, não respondendo à
minha pergunta.
- Claro que gosto. Mas como pode, isto tudo, ser possível? – indago,
confusa.
- Se quiseres ficar connosco, só tens que deixar-te ir – diz Phoebe.
- Deixar-me ir, como?
- Pega na minha mão e ficarás para sempre connosco, aqui, na paz – pede
a minha pequena filha.
Não sei o que responder. A brancura, a calma e a paz entranham-se pelos
meus poros, inundando o meu corpo de uma sensação de harmonia inexplicável.
Olho para a minha mãe que sorri e acena para que eu coloque a minha mão
sobre a mão da minha filha. Também Phoebe sorri, encorajando-me a tal acção.
- E o resto? – pergunto.
- O que interessa? Pelo que esperas? Nós estamos aqui e tu podes ficar
connosco. Não é o que desejas? – interroga a minha mãe.
- O que eu mais desejo é estar de novo com vocês, porque apesar de
terem passado tantos anos, ainda sinto tanto a vossa faltam, como se fosse
neste preciso segundo, o momento em que me deixaram.
- Então, pelo que esperas Ev?
Deixo-me levar pela sensação de harmonia que abunda o meu corpo e
começo a colocar a minha mão sobre a mão da minha filha. Quase a dois
centímetros de tocar na mão de Esperança, paro e digo:
- Mas se eu ficar com vocês, quem fica com a Esperança?
- Mas eu estou aqui mummy – afirma Esperança.
- Não, estás numa cama de hospital. Tiveste uma recaída – corrijo.
- Não mummy. Eu estou aqui. Sempre estive aqui.

117
- Não! – nego, quase gritando.
Começo a afastar a minha mão da mão da pequena Esperança quando
esta a agarra.
- Larga-me! – peço.
- Não mummy, não me podes deixar! – diz Esperança, apertando a minha
mão. Tento libertar-me mas não consigo. A minha mãe e a Phoebe olham,
sorridentes, não interferindo na situação. Olho-as com um olhar de auxílio, mas
elas continuam a assistir, passivamente.
- Larga-me Esperança! – ordeno.
Abruptamente abro os olhos, quase saltando da cadeira. Olho em volta,
zonza. O ruído do movimento do hospital começa a ser, de novo, interceptado
pelos meus ouvidos, permitindo-me localizar-me.
Fecho e abro os olhos várias vezes, demoradamente. “Foi um sonho” digo
a mim mesma enquanto, aos poucos, o meu corpo começa a despertar de um
sono provavelmente curto.
Porém, a minha mão continua a sentir algo, como se alguém continuasse a
agarrá-la com força. Penso que se trata da posição da mão, porém, ao olhar para
a minha mão direita, reparo que esta se encontra agarrada pela mão de
Esperança.
- Mãe?
Ainda que um pouco adormecido, o meu cérebro rapidamente raciocina,
permitindo-me saber que a pressão que sinto na minha mão se trata do facto de
Esperança ter começado a despertar.
- Mãe?
- Sim minha filha… – respondo, levantando-me da cama e acariciando a
face de Esperança.
- Onde estou?
- Estas no hospital amor, tiveste uma recaída. Não te lembras? – pergunto,
olhando-a nos olhos.
Esperança espera um pouco antes de responder, inspira profundamente e
em seguida diz:
- Sim, lembro-me. Estava a sangrar e como a hemorragia não parava vim
ao hospital, mas o médico depois quis fazer análises e disse que o cancro voltou.
- Sim, foi isso minha filha… – confirmo, estremecendo ao ouvir que “o
cancro voltou”. – Vais ficar bem, my angel.
Ela permanece em silêncio, olhando para mim com aqueles seus olhos de
uma cor invulgar. Tenta dizer o quanto sofre, mas através do olhar. Não me quer
preocupar, por isso não fala do que a faz sofrer, do que a preocupa no seu íntimo,
mas eu sei que ela não está bem, até porque, se ela foi sedada é porque se
encontrava sob um elevado estado de nervosismo.
- Mãe?
- Sim meu amor?
- Não me vais deixar, pois não? – pergunta, olhando-me nos olhos.

118
Não desvio o olhar, nem estremeço. Sinto uma segurança estranhamente
invulgar percorrer o meu corpo como há muito não acontecia. Sorrio e digo:
- Jamais minha filha. Só te irei deixar quando tiver a certeza de que nada
de mal te pode acontecer.
Ela olha para mim e os seus olhos emitem estranhos brilhos de cristal. As
lágrimas que se formam começam a cair dos olhos, descrevendo linhas
brilhantes, quando iluminadas pela luz do Sol. Abraço-a, num abraço tão
apertado, tentando não a deixar fugir de mim, tentando não a perder
novamente.
Ela já conseguiu vencer aquele ser maligno e agora irá conseguir outra vez.
Não a deixarei. Não posso, não quero. É minha filha, precisa de mim e eu preciso
dela, tanto. Não conseguiria suportar aquela dor novamente no meu peito.
Aquela dor de perda, de solidão e de culpa.
Ficamos abraçadas durante algum tempo, até que a porta do quarto se
abre e eu tenho a sensação de que alguém entra. Afastamo-nos lentamente.
Pode ser uma enfermeira ou um médico, mas interiormente sei que não.
Reconheço a sua presença, passe o que passar. O seu cheiro inunda o quarto,
como uma fragrância contida num recipiente que, ao ser aberto, se espalha.
Antes de virar a cabeça na sua direcção, fecho os olhos e deixo-me viajar no seu
aroma. As memórias rodam e aparecem rapidamente por a minha mente,
desaparecendo ainda mais rapidamente, como se fossem estrelas cadentes,
belas e brilhantes. Memórias outrora vívidas e agora esquecidas, ou não.
Abro os olhos e fito-o. Pode ter envelhecido com o passar dos anos, mas
para mim está exactamente igual ao que lembro, antes de entrar para o bloco
operatório.
A sua pele morena, os seus olhos cor de mel, os seus cabelos ondulados e
castanhos, os seus músculos, tal como recordo. No entanto, com um piscar de
olhos, o seu aspecto envelhece, não muito, mas torna-o diferente. O seu corpo,
ainda que musculado torna-se mais gordo, ligeiramente. Os seus cabelos, mais
curtos, apresentam uma tonalidade menos acastanha e mais esbranquiçada. O
seu rosto apresenta-se ornamentado de pequenas rugas e de olheiras escuras
em torno dos olhos, estas últimas, apareceram recentemente.
Ele não diz nada durante algum tempo, deixando que o som do
movimentado hospital se faça ouvir. Quando penso que ele não irá dizer nada e
que apenas veio ver Esperança, preparo-me para lhe virar as costas e olhar para
a nossa filha, mas ouço o som dele a aclarar a garganta e a dizer em seguida:
- Temos que falar…
As suas palavras, ainda que murmuradas, parecem espadas com gumes
pontiagudos que partem na minha direcção, e quando se aproximam, prontos
para me trespassar, digo:
- Ok!
Olho para Esperança que demonstra um olhar preocupado. Tranquilizo-a
afagando-lhe os cabelos e dizendo:
- Já volto Hope.

119
Levanto-me e saio do quarto hospitalar, seguida por Luís. Após a porta se
fechar, dirigimo-nos ao longo do corredor movimentado, em silêncio. Paramos
ao chegarmos perto de uma máquina de café, onde Luís coloca algumas libras e
carrega num botão vermelho, fazendo com que a máquina comece a trabalhar.
Passados poucos segundos, Luís bebe um pouco de café. Olho-o
disfarçadamente. Como pode, ainda que passados tantos anos, continuar a
mexer comigo? Quando tento encontrar uma resposta, possivelmente óbvia, a
voz de Luís é escutada pelos meus ouvidos:
- Liguei para a Dr.ª Teresa Cardoso e contei-lhe do sucedido com
Esperança. Ela ligou para cá e falou com um especialista em oncologia, o Dr.
David Hunt, que nos irá receber no seu gabinete daqui a nada.
Assinto com a cabeça, enquanto que Luís termina o café, deitando o copo
para um balde do lixo atrás de nós. Pouco depois, surge uma enfermeira mulata
que pede para nos dirigirmos até ao consultório do Dr. Hunt, onde somos
esperados.
Caminhamos em silêncio até ao consultório do médico, onde sei que as
notícias que iremos receber não são, de todo, boas notícias.

120
Capítulo 23
Passado

Evelyn
________________

A manhã chega esplendorosa. A luz do Sol entra pela janela do meu


quarto de forma lenta e demorada. Aproximo-me da janela e olho para o céu,
ainda tingido de índigo, mas com nuances cor-de-rosa e amarelas. Pouco a
pouco o índigo desaparece e dá lugar a um céu coberto de azul vivo, quase sem
nuvens e com um Sol resplandecente.
Sorrio. É hoje. O dia por que tanto esperei o Verão inteiro chegou. Hoje eu,
a minha mãe e a Phoebe vamos acampar. De sorriso enfeitado no rosto vou aos
saltos até ao quarto da Phoebe, onde ela ainda dorme. Abro a porta lentamente,
que chia um pouco. O quarto está escuro, porque a minha mana dorme sempre
às escuras, para não ser desperta pela luz do Sol. Eu, por outro lado, adoro ver a
luz do Sol entrar pelo meu quarto, enchendo-o de cor e brilho. Também gosto
de ver as gotas de chuvas embaterem no vidro da janela, enquanto que a
Phoebe se delicia por adormecer embalada no som das gotas a caírem.
Caminho em direcção à janela escondida sob os cortinados verdes. Puxo-
os com força, de modo a que se desloquem com apenas um puxão. Pouco
depois, após verificar que Phoebe ainda dorme, abro a janela e deixo que os
raios amarelos entrem no seu quarto, acompanhados de uma brisa suave, fresca.
Phoebe pestaneja e contorce-se na cama, como se lhe estivessem a espetar
agulhas.
- Fecha a janela… – balbucia ainda com os olhos fechados.
- Sabes que dia é hoje? – pergunto, aproximando-me da cama, onde
Phoebe tapa a cara com a almofada.
- É sábado, por isso posso dormir mais um pouco… Vai ver televisão Ev! –
reclama Phoebe.
- Hoje não é um sábado qualquer… – sussurro perto da sua orelha
descoberta.
Phoebe não responde, pelo que tenho a impressão de que ela voltou a
adormecer. Contudo, vejo a sua mão ir em direcção à almofada, tirando-a do
rosto. Ela assopra olhando para o tecto. O seu corpo, de quinze anos, encontra-
se complemente esticado na cama, os seus cabelos castanho-claros estão
completamente desalinhados e os seus olhos cinzentos estão agora
completamente abertos. Eu também gostava de ter os olhos cinzentos, como
um dia de chuva, porém, a minha mãe “passou-me” a tonalidade azulada, muito
comum entre a família da minha mãe, ainda que a minha mãe tenha os olhos
tingidos de violeta.
- Já acordaste a mãe? – pergunta Phoebe sentando-se na cama.
- Não, vim acordar-te primeiro para irmos juntas acordar a mãe.

121
Phoebe levanta-se da cama, bocejando. Ergue os braços no ar e,
seguidamente, prende o cabelo com um elástico. Olha para mim e aclara a
garganta:
- Vamos?
Sorrio e saímos juntas do seu quarto, indo em direcção ao quarto da mãe.
A casa encontra-se em silêncio, apenas se ouvindo o som dos nossos pés a
baterem no chão. Quando chegamos ao quarto da mãe abrimos a porta e
entramos sorrateiramente. Contudo, o quarto iluminado pela luz da manhã está
vazio. A cama de casal já está arrumada, como se a mãe ainda não tivesse
dormido. Vamos até à cama onde se encontra um pequeno pedaço de papel
escrito. A Phoebe pega nele e lê:
“Queridas filhas, a mãe foi comprar algumas coisas para a viagem.
Vistam-se e tomem o pequeno-almoço. Daqui a nada já aí estarei, com
uma surpresa.
Beijinhos apertados da Mãe”
Olho para Phoebe ainda a ouvir as palavras escritas pela mãe. “Surpresa”?
Que surpresa? Coisas típicas à mãe, só pode ser. Vejo Phoebe dobrar o papel
cuidadosamente e dirigir-se para a porta do quarto. Ao ver que eu não a sigo,
olha para traz e diz:
- Vamos arranjar-nos, para que quando a mãe chegar já estejamos prontas.
Assinto com a cabeça e seguidamente vou para o meu quarto vestir-me.
Há duas semanas que tenho a roupa escolhida para este dia. Uma blusa azul
clara, umas calças de ganga, já rotas e os meus ténis brancos com listas azuis. A
roupa ideal para um acampamento. Visto-me, sorrindo ao mesmo tempo que
penso no que iremos fazer durante este fim-de-semana. Talvez ficar a olhar o
céu estrelado, enquanto a fogueira ilumina a escuridão; ouvir os sons do campo;
fazer canoagem; explorar uma encosta esperando encontrar algo, ou talvez não.
Todas as hipóteses são boas desde que eu esteja com a minha mana e com a
minha mãe.
Quando acabo de me vestir, apanho o meu cabelo loiro com um elástico,
faço a cama e revejo se coloquei tudo o que irá fazer falta na mala de viagem.
Após alguns segundos, tenho quase a certeza de que não me esqueci de nada,
por isso vou ver se a Phoebe já está despachada.
Ao chegar ao quarto da Phoebe vejo que ela também já está vestida.
- Vamos comer? – pergunta Phoebe ao ver-me entrar no quarto.
- Sim! – declaro sorrindo. Estou cheia de fome. Acho que é da ansiedade.
Vamos para a cozinha onde Phoebe prepara uns flocos para ambas. Estes
têm um sabor açucarado, tal como eu gosto.
Pouco depois de termos acabado de comer ouço a porta a abrir. “A mãe
chegou!” digo mentalmente enquanto me dirijo para a porta. A mãe entra,
deixando a porta aberta. Olho para ela. O seu cabelo loiro e ondulado esvoaça,
cobrindo a sua face clara. Ainda assim, o brilho dos seus olhos violeta sobressai
na minha direcção.
- Mãe! – digo sorrindo. – Queres ajuda?

122
- Bom dia minha querida! – cumprimenta a mãe, olhando depois para os
cinco sacos que traz. – Sim, podes levar este.
Pego no saco e vamos para a cozinha. Quando pousamos os sacos a mãe
beija-me a testa e faz o mesmo com a Phoebe.
- Deixaste a porta aberta mãe, vou fechá-la – informo, saindo da cozinha.
- Não é precis… – grita a mãe, mas eu já estou à porta.
Prestes a fechar a porta vejo que três vultos se dirigem para a nossa casa,
ficando em pânico. O meu primeiro impulso é fechar a porta, ainda assim,
reconheço as vozes dos vultos, que conversam animadamente. Fico à porta
como que petrificada.
Passados uns breves segundos, os vultos deixam de ser sombras e
confirmo que são as pessoas cujas vozes reconheci. O homem mais velho, com
quase quarenta anos, aproxima-se de mim sorrindo. A sua pele é morena, os
seus cabelos são castanhos quase pretos e os seus olhos são negros. É alto e
musculado, com os dentes mais belos que alguma vez vi.
- Bom dia Evelyn – cumprimenta Andrew Cooper.
- Oh… Bom dia… – gaguejo.
- Posso entrar? – pergunta, sorrindo.
- Sim. A mãe está na cozinha.
Drew passa por mim mexendo-me nos cabelos, como faz sempre. De
certeza que estou despenteada. Olho para os outros dois que ficaram à porta. O
mais alto, com dezassete anos é o rapaz mais cobiçado na escola da Phoebe. Sei
disso por li no diário dela. Como não podia deixar de ser, ela tem um fraquinho
por ele. Não a recrimino. Sean Cooper é um jovem lindo. Ao contrário do seu pai,
Sean possui uma pele clara, com um ligeiro tom bronzeado. Os seus olhos são
cor de mel e os seus cabelos castanho-claros com nuances loiras são lisos e um
pouco compridos. Em termos de corpo, bem, posso ser apenas uma menina com
onze anos mas sei que daria um óptimo modelo.
Reparo agora no outro jovem, já muito conhecido por mim. Aaron Cooper,
o rapaz de treze anos que mais me irrita desde que o conheço. Por oposição ao
seu irmão, Aaron é baixo e um pouco gordo. Os seus olhos são castanho-claros e
o seu cabelo é tingido por um castanho não muito escuro. Olha para mim já com
aquele ar de gozo que eu não suporto. Reviro os olhos e peço-lhes que entrem.
Sean ao passar por mim sorri enquanto que Aaron ri de mim. Inspiro
profundamente e digo para se sentarem na sala, o que eles fazem sem nada
dizerem. Ouço a minha mãe falar com o Drew mas não ligo. Vou rapidamente
para o quarto da Phoebe.
- Phoebe, o Sean está na sala! – conto, rindo.
A expressão na cara de Phoebe é quase de desespero. Levanta-se
repentinamente e olha-se ao espelho que se encontra na porta do roupeiro.
Começa a mexer nos cabelos e inspecciona a cara para ver se encontra alguma
imperfeição. Como pode uma rapariga entrar em pânico por causa de um rapaz?
Penso enquanto rio. Phoebe já não me presta atenção, saindo rapidamente do
quarto e indo para a sala.

123
Abano a cabeça e, de repente, uma ideia muito atroz surge. “Uma
surpresa”, “a tua mãe está?”… Sem mais nem menos percebo porque se riu
Aaron à entrada. Como pôde a minha mãe fazer uma coisa destas? Pergunto-me
ao sair do quarto da Phoebe. Não pode ser, não pode.
Quando chego à cozinha percebo que as minhas temíveis suspeitas se
confirmam, uma vez que ouço o Drew dizer à minha mãe:
- Passamos por este lago e aqui é um óptimo local para acamparmos.
Não posso crer que a minha mãe foi estragar o nosso acampamento.
Como? Porquê? Será que nós não chegamos para ela? Terá sempre que andar
com o Drew para todo o lado? No início não me importei uma vez que fazia bem
à minha mãe andar distraída e ter alguém com quem conversar, mas
ultimamente tem sido demais.
Sei que a mulher do Drew morreu há sete anos vítima de um acidente de
viação. Sei que foi muito difícil para ele e para os filhos mas desde o ombro
amigo da minha mãe há sete anos até agora vai muita coisa.
A minha mãe olha para mim e sorri. Eu não. Olho-a quase incriminando-a.
Saio da cozinha a correr e vou para o meu quarto. Pouco depois ouço a porta a
abrir e sinto a presença da minha mãe. Senta-se na cama a meu lado e pergunta:
- O que se passa minha querida?
- NADA!
- Se choras é porque se passa algo – diz a mãe, passando a sua mão pelos
meus cabelos.
- Porquê? – acabo por perguntar, ainda com a cabeça enterrada na
almofada.
- Porquê o quê? – indaga a mãe, sem perceber.
- Porque é que o Drew também vai acampar? Nós não chegamos para ti? –
disparo sem hesitar.
A minha mãe fica em silêncio. Sinto o seu olhar sobre mim, ainda que não
olhe para ela.
- Minha querida, tu e a Phoebe são a coisa mais importante da minha vida.
- Então porque andas sempre com o Drew? – pergunto receando a
resposta.
- O Drew é apenas um amigo. Eu falei-lhe de irmos acampar e ele
perguntou se eu não achava arriscado ir acampar sozinha com duas crianças.
Então pedi-lhe para vir comigo e trazer os seus filhos com ele – explica a minha
mãe.
Nada digo. Sei que tudo isto é verdade. Ainda assim sinto-me revoltada,
chateada, traída.
- Se quiseres eu digo ao Drew para não ir connosco – sugere a minha mãe.
Levanto a cabeça da almofada, fungando. Não iria permitir que a minha
mãe passasse por tal humilhação de desmarcar as coisas por causa de uma
“birra” minha.
- Não, não é isso que quero – digo, olhando-a. – Queria apenas que me
tivesses dito primeiro.

124
- Mas eu queria fazer-vos uma surpresa. Pensei que te davas bem com o
Aaron.
- Pois mãe, mas o Aaron e eu somos ligeiramente incompatíveis – explico a
minha mãe. – Desculpa mãe!
- Não faz mal minha filha – diz a mãe abraçando-me com força. – Agora
vamos fazer deste o melhor acampamento de sempre, sim?
- Sim – digo à mãe, sorrindo.
Decorrida uma hora, encontramo-nos a caminho. Phoebe não pára de
olhar para a janela para ver o Sean. Segundo o Drew, dentro de duas ou três
horas estaremos no local perfeito para acampar.
Durante o caminho a minha mãe fala de coisas que podíamos fazer e
canta algumas canções. Phoebe não pode estar mais feliz e, ainda por cima,
recebe mensagens a cada dez segundos das suas amigas, depois de lhes contar
que ia estar um fim-de-semana inteiro com o Sean.
Paramos cerca de três vezes durante o percurso para comer qualquer
coisa ou fazer certas “necessidades”. Não importa em que lugar estejamos, o
Aaron tem que vir direito a mim e começar a gozar por irmos passar um fim-de-
semana, juntos.
Por oposição à felicidade da Phoebe, eu não posso estar mais infeliz.
Todavia penso na felicidade da minha mãe. Parece uma criança de novo.
Concentrando-me apenas nisso, juro que este acampamento há-de ser o melhor
de todos.
Não tarda muito que eu não adormeça sob efeito de um comprimido
contra o enjoo devido ao movimento. Acordo bruscamente com os guinchos da
minha mãe. Olho pela janela e vejo um lindo lago azul que parece cristal quando
a luz do Sol se reflecte nas águas calmas. É mesmo lindo. As árvores verdes
embelezam todo o ambiente que rodeia o lago. Abro a janela e deixo que toda a
Natureza entre para o carro. O cheiro da terra húmida, da água, da resina; o som
do vento nas folhas das árvores e da água nas margens do lago e a mistura de
cores da Natureza são inspiradas por mim, enquanto fecho os olhos.
Após alguns minutos os carros param numa zona cheia de árvores verdes,
cheias de vida. Saio do carro e olho em meu redor. Não leva muito tempo até a
minha plena felicidade ser estragada por uma importunada pessoa – Aaron.
- Achas que te aguentas duas dias no campo, menina? – goza Aaron mal
chega perto de mim.
- Vais ver quem é a menina, Aaron! Caso não saibas, eu já acampei antes –
informo, orgulhosa da minha experiência em campo.
- Sim, no quintal! – refere Aaron rindo às gargalhadas.
Não respondo, voltando-lhe as costas e indo para perto de Phoebe que
fala com Sean.
- Alguma vez acampaste? – pergunta Sean.
- Bem, não… – responde Phoebe ao mesmo tempo que as suas maçãs do
rosto ganham uma tonalidade rosada. – E tu?

125
- Eu acampei duas vezes com os meus amigos, mas nada de especial –
conta Sean, enquanto ajeita o cabelo com um movimento de cabeça.
Pelo que li no diário, Phoebe fica com os joelhos a tremer cada vez que
Sean faz aquele gesto de cabeça. “Oh My God15, no que me vim meter!” penso
ao olhar para a expressão de parva que a Phoebe faz a falar com o Sean. Na
verdade, é a mesma expressão que a minha mãe faz sempre que fala com o
Drew. “Tal mãe, tal filha”.
Após algum tempo para esticarmos as pernas, começamos a montar as
tendas. Uma para as “meninas” e outra para os “meninos”. Como é de esperar,
ainda mal começámos a montar a nossa tenda, já os Cooper acabaram. Por isso,
o Drew e o Sean vêm ajudar-nos a montar a nossa tenda. O Aaron, por outro
lado, fica a arrumar as coisas na tenda já montada.
Na verdade, começo a sentir-me a mais. Não posso deixar de reparar nos
olhares entre a Phoebe e o Sean e entre a mãe e o Drew. Não me interessa. A
mãe está feliz e é o que mais importa.
Quando acabamos de montar a tenda, Drew aclara a garganta e sugere:
- Vamos dar um mergulho?
- Não, está frio! – diz a mãe.
- Vá, é só um mergulho rápido, e não está assim tanto frio – o Drew tenta
convencer a mãe.
- Uhhm… Pode ser, mas é um mergulho rápido – concorda a mãe.
Entramos para a tenda para vestirmos os biquínis. O meu é cor-de-rosa e
branco, mas os meus seios mal enchem o soutien. O da Phoebe é castanho e
verde. O da mãe é azul-escuro, mostrando o seu corpo ainda em forma. Ao
sairmos da tenda, já somos esperadas pelos Cooper, equipados com calções de
banho. Dirigimo-nos para lago que não fica a mais de cinco minutos do local
onde temos as tendas. Quando chegamos ao lago coloco um pé na água para
avaliar a sua temperatura.
- Está fria! – declaro, retirando o pé da água.
- Para as meninas é capaz de estar fria, mas para os homens está óptima –
refere Aaron, ainda com a t-shirt vestida.
- Ai é? – pergunto aproximando-me dele.
- Sim, “menina”.
Sem pensar duas vezes, faço um movimento com a perna, como se
estivesse a dar um pontapé na água, fazendo com que esta molhe o Aaron dos
pés à cabeça. Ele inspira profundamente, como se se preparasse para mergulhar.
- Nem sabes com quem te meteste – ameaça Aaron olhando para a t-shirt
toda molhada.
- Isso é que sei, “menina” – respondo, rindo-me.
Aaron tenta fazer o mesmo que eu, mas bate com o pé numa pedra,
acabando por desequilibrar-se e ficar sentado dentro de água. Começo a rir-me,

15
Oh My God significa Oh Meu Deus

126
gargalhando. Aaron levanta-se e começa a correr atrás de mim pelo margem do
lago. Ouço a mãe e o Drew rirem-se.
Algum tempo depois o Aaron já está cansado, sem ter conseguido
apanhar-me.
- Bem acho que é a nossa vez! – diz Drew à mãe.
- O quê? – pergunta ela, mas em vez de obter uma resposta, Drew, já de
tronco nu, mostrando o músculos definidos e alguns pêlos no peito e na barriga,
agarra a mãe, pondo-a ao seu colo.
- Nem penses! – grita a mãe, rindo.
- Ok, não penso – balbucia Drew enquanto corre em direcção ao lago,
entrando nele com a mãe ao colo.
O Drew larga a mãe que cai na água, molhando-se toda.
- Isto não fica assim! – resmunga a mãe quando emerge e começa a atirar
água ao Drew.
- Vamos? – pergunta Sean à Phoebe, estendendo-lhe a mão.
- Sim! – responde Phoebe, colocando a sua mão sobre a de Sean.
Sean, antes de entrar na água, despe a t-shirt mostrando o seu tronco. Ao
contrário do seu pai, Sean não tem pêlos no peito nem na barriga. Porém, exibe
uns peitorais definidos, bem como músculos abdominais. Phoebe fica a olhar
fixamente para o tronco de Sean. Acho que Phoebe nunca o tinha visto em
tronco nu. “Valeu a pena esperar, não?” pergunto-me, sorrindo.
- Assim fico envergonhado – refere Sean por Phoebe olhar fixamente para
o seu corpo.
- Ah… Desculpa… É que… bem… – gagueja Phoebe, com a cara vermelha.
- Deixa lá! – diz Sean, entrando no lago e mergulhando em seguida.
Enquanto Sean está debaixo de água, Phoebe respira profundamente e
abana ligeiramente a cabeça. Rio.
Ainda assim, depressa paro de rir, uma vez que sinto alguém por detrás de
mim. Quando me estou a voltar, alguém me agarra as pernas e me puxa para o
seu colo. O sentimento de pânico rapidamente se converte em fúria quando
constato que se trata de Aaron e que me leva para o lago, tal como o seu pai
levou a minha mãe.
- LARGA-ME! – grito, tentando bater-lhe.
- Eu disse-te que te ias a ver comigo, menina – diz Aaron rindo, quando
entra na água. As gotas de água começam a bater-me nas costas, fazendo-me
tremer. – Toma lá.
Aaron larga-me e eu entro completamente no lago. Ainda que sentida
pela frieza da água, puxo uma perna de Aaron debaixo de água, fazendo-o cair e
molhar-se.
Durante algum tempo permanecemos no lago mas, quando o frio começa
a ser maior, saímos e dirigimo-nos para as tendas, para irmos fazer uma fogueira.
Ao chegarmos ao local de acampamento, Sean e Aaron são incutidos de ir
buscar pedaços de madeira para acendermos a fogueira. Eu, a Phoebe, a mãe e
o Drew arrumamos as coisas, uma vez que não tarda muito que seja de noite.

127
Os rapazes chegam com alguns pedaços de madeira e Drew começa a
preparar a fogueira. Instantes depois, já há fogo.
Graças à mãe que se lembrou de trazer cadeiras de praia a contar com
todos, sentamo-nos à volta da fogueira depois de jantarmos umas sandes.
- Bem, já que estamos aqui, tenho uma surpresa para vocês – revela Drew.
Todos olham para ele quando vai buscar algo ao carro, reaparecendo com
cinco varetas pontiagudas e um saco de marshmallows.
- Uhhm, marshmallows, veio mesmo a calhar! – diz Aaron, passando a
língua pelos lábios.
- Depois admiras-te – digo.
- Queres alguma coisa menina?
- Esquece – peço, pegando numa vareta e colocando um marshmallow na
ponta, para que aqueça perto da fogueira.
Comemos marshmallows enquanto Drew conta piadas e histórias cómicas
sobre acampamentos. Rimos sob o céu estrelado, com a Lua quase cheia.
Passado algum tempo, começo a adormecer lentamente, pelo que vamos todos
dormir, embalado pelo som do campo.

Acordo ao ouvir qualquer coisa. Será um lobo? Não, julgo que não. Pelo
que o Drew contou por estas bandas não há lobos. Será que é um urso? Inspiro e
em seguida sento-me. Olho à minha volta. Phoebe dorme serenamente. Sorri,
deve estar a sonhar com o Sean. Olho para o outro saco cama, vazio. A mãe não
está na tenda.
Levanto-me lentamente e saio da tenda sem fazer barulho, não quero
acordar a Phoebe.
O que terá sucedido à mãe? Será que foi raptada? Milhões de hipóteses
passam-me pela mente, mas nenhuma é aquela que agora confirmo. Ao sair da
tenda, vejo a mãe e o Drew à porta do seu carro. Não estão a falar. O que
estarão a fazer? Não consigo ver nitidamente, por causa da escuridão que os
rodeia. Todavia, passados alguns minutos, a luz da Lua quase cheia embate neles,
iluminando-os.
Inicialmente o choque, depois a compreensão seguida da aceitação.
A minha mãe e o Drew estavam a beijar-se. Pensei que me ia sentir mal
quando soubesse que a mãe tinha um namorado, mas não me importo, afinal de
contas, o pai deixou-nos há muitos anos e a mãe tem direito a continuar com a
sua vida. Se ela vai escolher alguém, que seja o Drew, já que ele a faz sorrir.
Em vez de gritar, chorar ou fugir, sorrio. Olho uma última vez para eles,
iluminados pela luz da Lua, antes de entrarem para o carro.
Entro para a tenda e deito-me no saco cama. Fecho os olhos e sorrio. Não
podia estar mais feliz, uma vez que adoro a forma imprevisível do amor actuar.
Agora sim, sei que este acampamento foi o melhor.

128
Capítulo 24
Presente
Quinta-feira, 4 de Setembro

Evelyn
________________

- Mais café?
Olho de relance para a emprega asiática, sorridente. Assinto gestualmente,
fazendo com que ela deposite um pouco de café na minha chávena vazia. Olha
para Luís que nega outra dose de café. A empregada afasta-se.
- O que vamos fazer? – pergunto, dirigindo-me a ele directamente pela
primeira vez em oito anos.
Ele olha para mim. Aqueles seus olhos cor de mel inundam o meu ser. Não
sei o porquê, mas ele já não me olha com ódio e rancor. Não sei se é por estar
preocupado com Esperança ou simplesmente por estar mais calmo e habituado
à minha presença.
- Não sei. Não faço a mínima ideia! – revela, enterrando a cabeça nas
palmas mãos.
As palavras do Dr. Hunt ainda vagueiam na minha mente. Bebo um pouco
de café antes de voltar a reviver a consulta pela enésima vez.

Após entrarmos no consultório do Dr. David Hunt, este pediu-nos que nos
sentássemos nas duas cadeiras pretas em frente à sua secretária cor de mogno.
O Dr. Hunt era um homem já velho, com cerca de sessenta anos. Os seus poucos
cabelos eram grisalhos, tal como os pêlos do bigode; o seu rosto estava coberto
de rugas e os seus olhos cinzentos olhavam na nossa direcção, apreensivos.
- Antes de mais, bom dia! – cumprimentou.
- Bom dia! – dissemos em uníssono eu e Luís.
- Acabei há pouco de falar com a Dr.ª Teresa Cardoso que acompanhou
todo o processo da Esperança em Portugal – referiu o médico calmamente. –
Segundo a Dr.ª Teresa isto já era de esperar, mas ela pensava que não ia
demorar tanto tempo até que se desse a recidiva.
Eu e Luís apenas assentíamos, na esperança de que ele nos desse uma boa
notícia.
- As análises mostram alterações nos componentes do sangue da
Esperança. Realizámos outros testes que nos confirmaram que estamos na
presença de uma Leucemia Linfática Aguda – contou o Dr. Hunt. – Porém, ao
contrário da outra vez, a Esperança já é adulta e a taxa de doentes “curados” em
criança é superior à taxa de doente “curados” em adolescentes ou em adultos.
As lágrimas começaram a aflorar aos meus olhos. Porquê? Depois deste
tempo todo? Porquê, depois de tudo o que aconteceu? Porquê, depois de nos

129
encontrarmos? Tantas perguntas que se formavam na minha mente, mas tão
poucas respostas.
- Ainda assim, a Esperança agora encontra-se numa melhor situação…
- Melhor como Dr.? Não estou a perceber – perguntou Luís.
- Apesar de a taxa de pessoas “curadas” ser maior em criança, a Esperança
tem grandes hipóteses de sobreviver uma vez que, segundo as análises que a
Dr.ª Teresa enviou por fax, a Esperança com oito anos apresentava uma maior
alteração nos constituintes do sangue. Agora, todavia, as alterações não são tão
significativas, pelo que ela não apresenta todos os sintomas da primeira vez –
explicou o Dr. Hunt.
- Quer dizer que ela vai ficar bem? – perguntou Luís sem hesitar.
- Temos que ter calma e analisar todas as hipóteses cautelosamente, mas,
se tudo correr como se pensa, é muito provável que a Esperança recupere –
respondeu o Dr. Hunt. – Acho que foi uma sorte a hemorragia não ter estancado,
uma vez que foi tempo precioso que se poupou.
Ficámos em silêncio. Eu não me atrevia a falar, com medo que o médico
se lembrasse de algo que poderia pôr em causa a recuperação da minha filha. As
lágrimas já corriam pela minha face.
- E agora? – indagou Luís.
- Bem… Agora iremos fazer mais um exame. Esperança terá que ser
submetida a uma transfusão de sangue e, posteriormente, começaremos as
sessões de quimioterapia – contou o médico.
- E não há mais nada que se possa fazer? Em Portugal a Dr.ª Teresa falou…
– Luís calou-se e olhou para mim. Estava a falar do transplante de medula óssea
que eu nunca cheguei a realizar. Segundo a Dr.ª Teresa isto poderia ter sido um
bom avanço mas não iria impedir que a doença recidivasse.
- Agora iremos destruir todas as células da medula óssea, uma vez que
estas se estão a tornar cancerosas. Porém, ao destruirmos algumas, destroem-se
outras que se encontram saudáveis. Um dos aspectos a considerar, tal como o
Luís estava a dizer, é um transplante de medula óssea – informou o médico.
Todavia, tanto eu como Luís já tínhamos ouvido aquela história. Sabíamos
como actuava a doença e quais eram as formas de a travar.
Novamente Luís olhou para mim. Teria que ser eu a realizar o transplante,
caso fosse necessário. Mas ele não confiava em mim, tal como eu ainda não
confiava em mim mesma. Ainda assim, o sentimento que carregava no peito era
tão intenso, tão forte, tão inexplicável que não sei se poderia duvidar dele.
- Ainda esta semana, Esperança terá a primeira sessão de quimioterapia –
comunicou o médico oncologista.
- Obrigado Dr., mais alguma coisa? – perguntou Luís antes de se levantar
da cadeira preta.
- Por agora é tudo. Força! – desejou o Dr. David Hunt.
- Obrigado – proferi ao levantar-me e sair do consultório atrás de Luís. No
meu estômago formava-se um nó tão apertado. As lágrimas continuavam a
brotar dos meus olhos. Dentro de mim um sentimento de medo e pânico crescia

130
sem qualquer dó nem piedade. “Não a irei perder, não outra vez!” gritava para
mim mesma.

- Tenho tanto medo – confessa Luís, olhando para a sua chávena que
arrefece de vazia.
Tal confissão desperta-me dos meus pensamentos. Porque me diz isto?
Não posso deixar de partilhar do mesmo sentimento. Tenho medo de a perder,
novamente, definitivamente. Mas desta vez eu estou pronta, preparada para o
que aí vem.
- Também eu! – é o que consigo responder a Luís.
- Porquê Ev?
“Ev”… “Ev”… “Ev”… O meu nome ressoa na minha cabeça como um eco.
Ele chamou-me Ev. A barreira, de quilómetros, que nos afasta começa a dissipar-
se. De repente, parece que vejo o homem por quem me apaixonei em Portugal,
o homem que nunca esqueci, o homem da minha vida e agora está à minha
frente, tão próximo.
- Desta vez vai correr tudo bem! – digo com vontade de colocar a minha
mão sobre a sua, de lhe tocar. Mas, com medo da repulsa, luto interiormente
contra esses sentimentos.
- Ela não merece isto… A minh… A nossa filha não merece isto! – declara
com os olhos brilhantes.
- Não, não merece. Mas irá acabar por dar a volta por cima e NÓS estamos
aqui para garantir isso – tranquilizo-o ainda não acreditando no que acabei de
dizer.
Ele olha para mim admirado com as minhas palavras. Sinto os seus olhos
transmitirem um estranho brilho. Por momentos, penso que são lágrimas, mas
depois tenho a certeza que é outra coisa que ele tenta esconder.
- Temos que tomar uma decisão – afirma, apagando o brilho do olhar.
- Sim, pois temos – concordo, bebendo mais um pouco de café, já esfriado.
– O que vamos fazer?
- Tens que ser tu a decidir! – declara, passando-me a “batata quente” sem
mais nem menos.
- Eu? – pergunto admirada. Como quererá que seja eu a decidir o futuro
da nossa filha se da outra vez quase a matei?
- Sim, tu. Já te esqueceste que eu não sou compatível com ela? – pergunta,
retoricamente.
- Pois. É verdade – suspiro. – Por mim avançamos com o transplante.
Ele fica surpreendido com a minha rapidez em responder. De certeza que
se recorda que em Portugal demorei quase duas semanas para decidir se fazia o
transplante ou não, chegando a perguntar-lhe, no dia da operação, se achava
que esta era a solução. Era nova, insegura e fraca. Agora estou consciente das
minhas funções como mãe. A minha filha precisa de mim e eu tenho que estar
ao seu lado para o que der e vier.
- Tens a certeza? – pergunta Luís abrindo os olhos.

131
Olho-o nos olhos. Naqueles olhos que ainda fazem o meu corpo crepitar
de desejo. Aclaro a garganta e respondo:
- Sim, tenho a certeza. A nossa filha precisa de nós, bem, neste momento,
precisa de mim. E eu vou ajudá-la! Vou estar a seu lado. Já cometi erros que
chegassem. Agora é hora de provar o quanto eu a amo, por isso não a vou
perder.
Luís sorri sem se aperceber. Eu também sorrio, orgulhosa de mim, do que
me tornei, de quem eu sou. Tudo isto graças à pequena Esperança da minha
Vida. Devo-lhe tudo.
Bebo o resto do café, enquanto digo para mim mesma: “Tu consegues Ev.
Desta vez vais conseguir salvá-la!”.

132
Capítulo 25
Presente
Segunda-feira, 22 de Dezembro

Evelyn
________________

É amanhã! O grande dia é amanhã. Desde o dia sete de Setembro que a


minha filha tem recebido tratamento de quimioterapia semanalmente, o que
perfaz cerca de quinze sessões de quimioterapia. A sua pele amareleceu, como
se fosse cera; os seus olhos mal se abrem; os cabelos quase não existem, pelo
que ela cortou o cabelo, não o rapando; o seu corpo encontra-se magro,
praticamente “pele e osso”.
Tenho-a visitado todos os dias, religiosamente. Tenho falado com Luís, não
como antigamente, como é óbvio, mas tem dado para pôr a conversa em dia.
Ana abalou há alguns meses para Portugal por causa do trabalho e amanhã volta
para estar com Luís e Esperança após a “Operação”.
Não sei o porquê de tamanha ansiedade que cresce no meu corpo. Não é
o medo que senti há oito anos. É diferente. Uma ansiedade boa, que me prova
que existo e que faço falta, pelo menos a alguém, como à minha Hope.
Despedi-me da loja e deixei de fazer bolos para poder estar sempre
presente quando Esperança precisasse. O jogging também perdeu lugar na
minha rotina que agora se limita a casa/hospital e vice-versa.
Amy ficou bastante triste por me ter despedido, tal como a gerente da loja,
uma vez que elogiava regularmente o meu trabalho e a minha dedicação.
Tranquilizei Amy dizendo que continuaria a visitá-la e que iríamos combinando
qualquer coisa. Coincidência ou não, a pessoa que ocupou o meu lugar na loja
chama-se Tyra e é a minha melhor amiga. Fiquei muito contente por ela ter
ficado com o lugar, pois sei que ela e Amy se irão dar muito bem, uma vez que
são as duas pessoas muito especiais, capazes de transmitirem bondade a quem
as rodeia.
Hoje já fui ver a minha filha. Estava bem, ligeiramente ansiosa pela
operação amanhã, como é normal. Sei que apesar de me ter perdoado, ainda
sente que eu a posso deixar outra vez na sala de operações, como já aconteceu.
Mas desta vez será diferente. Eu sei que será. Sinto-o, tão vulgarmente como o
bater do coração ou como a respiração involuntária a que não se dá valor.
Agora ando pelas ruas de Londres, deambulando por entre a multidão que
já não me assusta. Hoje vou fazer algo importante, algo que não faço desde que
a minha mãe e a Phoebe partiram. Vou patinar, no gelo, como costumava fazer
em criança.
Encontram-se algumas pessoas no ringue de patinagem que tentam
patinar ao som da música Hung Up da Madonna. Peço uns patins número trinta
e sete e entro para o ringue. Inspiro profundamente enquanto dou os primeiros

133
passos no gelo, ainda não muito riscado. Pensei que já me havia esquecido de
tudo o que aprendi enquanto pertenci ao Clube de Patinagem Artística, mas
estava enganada.
Começo a deslizar, passando por entre as pessoas que se tentam
equilibrar após uma queda. De movimentos lentos passo para movimentos mais
rápidos e mais complexos. Ao som da música, deixo que o meu corpo se
conduza a ele próprio. Começo a executar alguns saltos, tendo em atenção os
outros patinadores, que começam a olhar para mim.
Há quase trinta anos que não patinava, mas não perdi o jeito. Continuo a
saltar, a rodar, a deslizar, a executar tudo o que me lembro e me vem à mente,
tentando acompanhar o som da música. Não penso em nada. Por momentos
fecho os olhos, enquanto rodo rapidamente. Deixo apenas o meu corpo mandar
enquanto o cérebro adormece.
Quando a música seguinte acaba, ainda eu patino como se nada mais
importasse. Foi uma das coisas que mais me custou deixar quando elas
morreram, mas não conseguia continuar a patinar sabendo que elas já não
estariam nas bancadas a gritar pelo meu nome e a torcer por mim. Anulei a
inscrição e deixei a patinagem para sempre. Até hoje. Estava a precisar de me
esforçar, de divagar, de suar.
Estou cansada, muito cansada e os meus pés doem, latejam. Patinar exige
uma grande concentração e muito trabalho uma vez que é um desporto gracioso
e preciso, tal como o ballet. Pouco depois de parar de patinar e de sair da pista
ainda transpiro. Liberto-me ao patinar. Agora partes de mim ainda são libertas
pelos meus poros. Partes que se misturam com água e com toxinas que o meu
corpo rejeita.
Lembro-me que Esperança também tinha um desporto que praticava por
paixão, a natação. Sei que quando lhe foi diagnosticada leucemia abandonou a
natação, abandonou o tempo em que ela mandava nela mesma, em que cada
braçada que dava simbolizava a sua existência, que estava viva e que podia
chegar mais longe. Chorou durante um dia inteiro por ter que desistir daquilo
que lhe fazia esquecer os seus problemas e a ajudava a relaxar. Não sei se depois
de ficar melhor regressou à natação ou se continuou afastada.
Era uma das melhores nadadoras da sua turma. Com seis anos já sabia
nadar, pelo que começou a frequentar as aulas de natação duas vezes por
semana durante dois anos. Rapidamente ganhou agilidade e velocidade na água,
movendo-se como uma sereia.
Quando tinha sete anos participou numa competição entre as turmas de
natação da escola. Ficou em primeiro lugar do seu escalão. Lembro-me de estar
nas bancadas com Luís a vê-la nadar. Foi um dos momentos em que mais me
orgulhei dela, uma vez que ela lutava por um objectivo, com apenas sete anos.
Chego a casa, cansada, mas feliz. Deixo a mala no sofá e vou tomar um
duche rápido para eliminar as marcas de suor do meu corpo. Deixo a água
quente jorrar sobre mim durante algum tempo antes de começar a ensaboar-me.
Quando estou quase a acabar de me secar alguém toca à campainha.

134
Inicialmente penso que pode ser Mark mas, rapidamente relembro que ele
agora tem uma namorada nova e que, provavelmente irão casar em breve.
Agarro no roupão branco preso à minha porta da casa de banho e visto-o
enquanto me dirijo à porta. Abro-a. Ligeiramente envergonhada por estar nestes
preparos, peço a Luís que entre e que esteja à vontade.
- Desculpa se vim em má altura – diz Luís ao sentar-se no sofá.
- Não, eu já tinha acabado de tomar banho! – digo, sorrindo. – Queres
beber alguma coisa?
- Não, obrigado – responde Luís, pouco à vontade.
- O que te traz ao meu humilde apartamento? – pergunto, rindo.
- Bem… Eu…
- Vieste ver se eu não fugi? – pergunto em tom de brincadeira, rindo-me.
- Mais ou menos. É que… Desculpa! – desculpou-se Luís, envergonhado.
- Não peças. Estás no teu direito – asseguro, olhando-o nos olhos.
A minha mala cai do sofá e eu e Luís vamos ao mesmo tempo apanhá-la.
Ficamos frente a frente durante algum tempo. Apenas a uns centímetros de
distância, deixando que eu sinta o calor que o seu corpo emana. Olho os seus
olhos cor de mel e depois olho para os seus lábios, húmidos. Sinto o meu corpo
pulsar desejo. Luto interiormente para me conseguir manter calma. Ele olha-me.
Vejo nos seus olhos o mesmo desejo que aflora o meu corpo e me consome.
Quero-o.
Não resisto ao impulso e beijo-o. Deixo os nossos lábios tocarem-se,
fundirem-se. Sinto qualquer coisa percorrer o meu corpo intensamente. Quero-
o tanto. Quero voltar a sentir o que senti durante anos a fio. Ele afasta-se
ligeiramente, de modo a que os nossos lábios deixem de se tocar.
- Desculpa, eu… – tento dizer, mas ele coloca um dedo sobre os meus
lábios para me calar.
Seguidamente, voltamo-nos a beijar, desta vez mais intensamente. A sua
língua começa a explorar a minha boca, como se nela mergulhasse. Sinto o seu
sabor inundar-me. Levantamo-nos e agarramo-nos para nos sentirmos. Sinto-o
tão perto. Agarro-o com força com medo de o perder. Continuamos a beijarmo-
nos ferozmente, como se nada nos saciasse. Sinto o desejo do seu corpo aflorar
ao seu membro que começa a inchar contra o meu corpo.
Ele começa a desapertar-me o roupão e eu tiro-lhe a blusa e desabotoo-
lhe o cinto e o fecho das calças. Colados um ao outro dirigimo-nos para o meu
quarto. O roupão cai e eu fico nua. Ele deita-me na cama, sem tirar a sua boca
da minha. Começa a beijar-me o pescoço e depois os mamilos que se encontram
rijos. O desejo de o ter dentro de mim percorre todo o meu corpo enquanto ele
me beija todo o corpo, até chegar aos pés.
Seguidamente, recomeça mas agora debaixo para cima. Beija-me as ancas
e demora-se na minha vulva que beija e acaricia. Quero-o! Desejo-o! Quero
senti-lo como se fosse a primeira vez.

135
Tiro-lhe as calças e depois os boxers, exibindo o seu sexo erecto. Ele
coloca-se sobre o meu corpo e beija-me na boca. Prendo-lhe os ombros e
começo a arranhar-lhe as costas. Então, penetra-me.
Primeiro lentamente, deixando que o desejo se continue a inflamar.
Contudo, algum tempo depois, começa a investir rapidamente contra mim.
Sinto-o cada vez mais fundo. Gemo de prazer enquanto ouço a sua respiração
ofegante nos meus ouvidos.
Sinto-me a atingir o clímax e grito de prazer. Ele não pára. Mudamos de
posição e eu fico sobre ele. Coloco as minhas mãos no seu peito e ele penetra-
me ainda mais fundo ao mesmo tempo que acaricia os meus seios. Novamente,
atinjo o clímax, ficando com convulsões de prazer.
O meu corpo, ainda que cansado, continua a pedir mais, inundando-me de
prazer e excitação. Rodamos novamente e ele volta a ficar por cima. Gravo as
minhas unhas nas suas costas quando ele começa a investir com mais força.
Agora ouço-o gemer, também de prazer. Continua, intercalando movimentos
rápidos e movimentos mais lentos para dar mais prazer. Sinto o seu sexo atingir
o máximo de erecção e rigidez dentro de mim, significando que dentro em breve
ele atingirá o clímax.
Começa com movimentos rápidos e bruscos enquanto me beija,
sufocando os meus gemidos. Estou a atingir novamente o clímax e é então que o
sinto vir-se dentro de mim, ao mesmo tempo que grito e tremo de prazer do
terceiro clímax.
Ele continua dentro de mim, beija-me uma última vez antes de sair. Ouço-
o respirar ofegantemente, tal como eu.
Não tenho forças para me levantar, pelo que fico nua, descoberta sobre a
cama. Ouço o som dele a vestir-se e depois ouço a porta a abrir e a fechar.
Sorrio. Senti-me novamente amada, desejada. Como pude eu aguentar
tantos anos sem fazer amor com o Luís?
Sei que o amo, ainda, apesar de tudo. E tenho a certeza que ele ainda
sente alguma coisa por mim.

136
Capítulo 26
Presente
Terça-feira, 23 de Dezembro

Evelyn
________________

Durante toda a noite não dormi. Estive desperta, de vigília. Dois assuntos
perturbaram a minha mente durante a noite. Não, não foi o facto de ir para uma
sala de operações.
Um dos motivos foi o facto de ir submeter a minha filha a um transplante
que pode não resultar. E se ficar tudo na mesma? E se ela não resistir?
Enquanto a maioria dos londrinos dormia, eu equacionava todas as
hipóteses possíveis e imagináveis para o destino da minha filha. Tenho tanto
medo, por ela, não por mim.
Estou segura de mim mesma. Sei que tenho que fazer isto e, mais
importante, quero fazer isto, uma vez que isto pode salvar Esperança. A estranha
ansiedade do dia anterior aumentou, talvez pela falta de sono. Ao menos esta
ansiedade compensa a falta de medo e receio que sinto.
Outro motivo que me levou a estar toda a noite acordada foi o facto de ter
feito amor com o meu ex-marido que agora tem uma nova mulher, Ana Semedo,
e que não merece ser traída. Bem, na verdade, acho que ninguém merece ser
traído pela pessoa que ama. Mas a Ana é diferente. É uma pessoa amável e com
quem estabeleci um bom relacionamento.
Relembro que foi ela que me ligou a informar da recaída de Esperança.
Tive pena dela pelo que aconteceu no dia anterior entre mim e Luís. Porém, não
fui eu a única culpada. Apesar de ter sido eu a beijá-lo primeiro, eu “queria”
parar, mas ele impediu-me e continuou o que eu havia começado.
Acho que a Ana não tem com que se preocupar. Se Luís se mantiver como
o conheci, isto apenas terá sido uma descarga de emoções, há muito
condensadas numa bola que foi crescendo e que, com esta situação, acabou por
atingir o seu limite.
Sei que nada levará Luís a abandonar Ana. Nem mesmo se ainda nutrisse
algum tipo de sentimento por mim. Luís é demasiado orgulhoso e rancoroso.
Nunca irá esquecer o que eu fiz à nossa filha, nem que tenham passado dois
milénios.
Mas uma sensação de calma invade o meu corpo quando a manhã
começa a despertar. De repente, todas as minhas dúvidas e os meus receios
começam a ser abafados por uma sensação de harmonia quase inexplicável.
Olho para a janela, onde a escuridão começa a dar lugar à luz de um novo
dia, de um novo despertar. Levanto-me da cama e contemplo o céu. Acho que
nunca apreciei verdadeiramente o nascer do dia. Muitas pessoas acham que o
pôr-do-sol é lindo, o que concordo. Ainda assim, esquecem-se que o amanhecer

137
ainda pode ser mais lindo, uma vez que mostra que um dia novo se abre perante
os nossos olhos. Um novo dia em que temos a “página em branco” e que
podemos escrevê-la, ou rescrevê-la. Uma segunda oportunidade de viver.
O céu começa a ser tingido de amarelo, misturado com azul e cor-de-rosa,
criando uma tonalidade completamente bela e natural. As estrelas começam a
desaparecer do céu, ainda que a Lua se mantenha, brilhante.
Os primeiros raios do Sol brotam do horizonte, iluminando-me. Sei que
chegou a hora. Sorrio e deixo os cortinados corridos para que a luz do Sol possa
entrar no meu quarto.
Vou tomar um banho de água quente, como adoro. Antes de entrar para a
banheira olho-me ao espelho. Contrariamente às outras vezes, não me odeio
nem tenho vergonha de mim. Tenho orgulho em mim, na pessoa que era e que
agora sou. Do meu processo de “transformação” e de tudo o que de
ultimamente aconteceu na minha vida e me fez viver de novo.
Entro para a banheira onde a água quente jorra do chuveiro e contacta
com o meu corpo. Deixo-me me estar, em silêncio, sob a corrente de água.
Fecho os olhos e abraço-me. Após um breve momento de relaxamento e plena
harmonia, começo a lavar-me.
O banho dura quase meia hora, sempre com a água quente a jorrar sobre
o meu corpo. Fico com a pele ligeiramente vermelha, mas não me importo.
Nada importa, a não ser a saúde da minha Esperança.
Seco-me lentamente, acariciando cada parte do meu corpo. Os meus pés,
os meus braços, os meus lábios, os meus cabelos, tudo.
Depois de me vestir, como uma maçã e saio de casa em direcção ao
hospital.

- Mãe! – grita Esperança ao ver-me chegar.


- Sim, my angel?
- Tenho tanto medo… – revela num suspiro, ao mesmo tempo que os seus
olhos se enchem de lágrimas.
Olho para Luís, que tenta ignorar a minha presença por culpa da noite
anterior, tal como tinha previsto que faria.
- Não tenhas meu amor, desta vez a mãe estará ao teu lado – digo,
tranquilizando Esperança.
- A sério? – pergunta olhando-me nos olhos.
- Sim minha querida. Só te irei deixar quando souber que ficarás bem! –
asseguro a Esperança, pegando-lhe nas mãos.
A minha filha está tão crescida, mas parece indefesa, como uma menina
de oito anos.
- Prometes?
- Sim, prometo Hope.
- Obrigado mummy – diz Esperança abraçando-me com força.

138
Antes de entrarmos para a sala de operações, Luís despede-se de
Esperança, abraçando-a e beijando-lhe o rosto. Vejo uma pequena lágrima no
canto do seu olho. Seguidamente, e para minha surpresa, dirige-se para mim.
- Até já – diz, sorrindo. – E feliz aniversário.
Naquele momento lembro-me que é o meu aniversário. Faço quarenta e
dois anos hoje e não me havia apercebido. Por vezes vejo em filmes ou em
series personagens que se esquecem do seu próprio aniversário, mas nunca
pensei que isso me fosse acontecer.
Olhando para Luís admirada por se lembrar do meu aniversário, aclaro a
garganta e digo:
- Obrigado. Até já.
Então, eu e Esperança somos encaminhadas para a sala de operações. Ela
sorri para mim e eu sorrio para ela. Desta vez não tenho medo. Não tenho medo
de uma “sala”, uma vez que sei que não estou sozinha. Ela está comigo. Sempre
esteve e sempre estará.
As memórias antigas de anos passados são relembradas pela minha mente.
Tudo o que aconteceu naquela sala de operações há oito anos foi complemente
imaturo e irracional.
Os médicos, de bata verde e com máscaras que lhes cobrem o nariz e a
boca, andam de um lado para o outro de modo a verificarem que tudo se
encontra a postos para o início da operação.
Desta vez não me sinto deitada sobre um tapete de espinhos nem grito
interiormente. Pelo contrário. Sinto-me deitada sobre uma nuvem e sorrio.
Todos olham para o relógio. Chegou o momento. Olho para o aparelho que
mostra o meu batimento cardíaco. Acho que desta vez o meu coração pulsa
normalmente.
Uma enfermeira dirige-se a mim com uma espécie de “máscara
respiratória” que reconheço de há muito tempo.
- Vou pôr isto e você contará de dez para um, sim?
Assinto com a cabeça, quando ela coloca a “máscara” sobre o meu nariz e
boca. Contudo, ainda antes de ela ligar a máquina para que o meu corpo
comece a adormecer, retiro a máscara e digo:
- Esperem, esqueci-me de algo!
Todos olham para mim, admirados. Esperança tem medo que tudo esteja
a acontecer outra vez. Vejo nos seus olhos. Mas não é isso que se passa.
Levanto-me lentamente, arrastando o aparelho que mostra os meus batimentos
cardíacos. Coloco-me perto de Esperança e abraço-a com força, muita força. Não
sei bem porquê, mas sinto que devo abraçá-la com muita força, com muito amor,
com muito afecto.
Após uns breves minutos, regresso para a minha maca, onde me deito,
colocando de novo a “máscara respiratória”.
- Estou pronta – informo, olhando para a minha filha que me fita com os
seus olhos tingidos de violeta. Aqueles olhos que jamais irei esquecer.
- Dez…

139
Ao contrário da outra vez, penso em todos os momentos da minha vida
em que fui feliz e que para mim foram importantes…
- Nove…
Os momentos passados com a minha mãe e a Phoebe; com Luís; com Tyra
e Amy; e, em especial, os momentos com Esperança: quando descobri que
estava grávida; o nascimento de Esperança; o seu perdão…
- Oito…
Os meus pensamentos começam a baralhar-se e a difundir-se. Não sei se
são memórias ou sonhos. Ao longe ouço um barulho que, bruscamente
desaparece. Adormeço, caindo na escuridão.
Ao fim de algum tempo, aterro sobre uma superfície macia e negra. A
escuridão envolve-me, mas não tenho medo. Respiro em busca de alguma luz,
que encontro passados alguns minutos.
A escuridão mostra uma luz, ou melhor, uma doce criança com cerca de
oito anos que irradia uma terna luz. Tal como eu, a criança apenas veste uma
túnica branca, brilhante, que lhe chega aos joelhos.
A jovem é-me familiar. Os seus cabelos castanhos com madeixas louras; o
seu suave sorriso; e os seus olhos, grandes e coloridos de violeta, que me olham
com uma expressão de ternura, fazem-me sentir tão familiarizada com ela.
Ficamos em silêncio, até porque eu não consigo dizer nada. A sua harmonia
deixa-me sem palavras.
Ela estende o braço direito e abre a mão, aclarando a garganta.
- Está na hora! – declara com a sua voz suave de criança.
Não respondo e não me movo. Inspiro novamente, deixando que a luz que
ela emana entre em mim.
- Pelo que esperas? – pergunta ignorando o meu silêncio.
- Por nada! – acabo por responder caminhando na sua direcção.
Sei que não estou simplesmente a sonhar. A cada passo que dou sinto um
abalo no meu corpo. Uma sensação de afastamento, de leveza, de libertação.
- Obrigado – digo ao colocar a minha mão na sua, sentindo-a quente.
Ela transmite-me uma calma e harmonia como jamais encontrei em toda a
minha vida.
Então, sinto o chão ceder mas não caio, como inicialmente pensei. De mão
dada à criança brilhante, continuamos no mesmo local, flutuando.
Sinto o meu corpo a entrar em colapso, lentamente. Não largo a sua mão,
que me mantém suspensa no vazio. Ao longe, como um sussurro, ouço um apito
constante e de seguida sinto o meu corpo ser envolvido numa estranha energia
eléctrica, que o atravessa rapidamente, mas que não me afecta. Pouco depois, o
apito cessa e sei que não me resta mais nada.
Olho para a criança que sorri e é então que a escuridão que nos envolve
se quebra, deixando-nos sob o céu estrelado. Estamos tão perto das estrelas que
sinto que lhes posso tocar se esticar o braço.
Sinto os dedos da criança deixarem de tocar na minha mão.

140
- Sei que, agora, vais ficar bem! – refiro, sorrindo para a criança. – Estarei
sempre contigo, minha Hope.
A criança sorri e seguidamente é envolta num misto de luz, acabando por
desaparecer. A luz continua a brilhar, como um Sol num céu estrelado, belo e
fascinante.
Deixo-me envolver pela luz, que me inunda de uma calma e de um
sentimento que não sou capaz de exprimir nem explicar. Não me preocupo, uma
vez que sei que Hope ficará bem. Sinto-o. Tal como lhe prometera, não a
abandonarei.
Sorrindo, abraço o meu destino.

141
Capítulo 27
Futuro
23 de Dezembro

Esperança
________________

O céu está iluminado pelas estrelas e pela Lua cheia. O vento passa, livre,
por entre as árvores fazendo com que as suas folhas dancem. Adoro o campo à
noite. Estou sentada sobre a relva verde e fresca a contemplar o céu.
Adoro a forma como toda a Natureza parece adormecer em meu redor.
Envolta em silêncio, escuto o som da Natureza que vive, à minha volta.
Sorrio ao olhar para o céu pintado de índigo e coberto de pequenos pontos
brilhantes, parecendo-me mais próximo do que alguma vez esteve.
Sinto-me tão bem, tão calma. Ainda que esteja um pouco de frio, sinto o
calor do meu corpo compensar essa diferença de temperatura.
Aperto a minha pequena filha nos meus braços, enquanto ela dorme,
angelicamente. Passo a minha mão pelos seus cabelos louros com dois pequenos
“totós” e beijo-lhe a testa clara. Olho para ela. A minha pequena Eve, com
apenas quatro anos. Aninho-a contra o meu corpo de modo a protegê-la do frio
que o vento transporta.
Penso no meu marido que dorme descansado na cama, não tendo dado
pela minha ausência. Como o amo…
Olho novamente para o céu e contemplo as estrelas que me sorriem.
Parece que emitem estranhos brilhos. Vejo, ao longe, estrelas cadentes, belas e
momentâneas. Passam rápidas e luminosas pelo céu escuro, desaparecendo em
seguida, ainda mais rapidamente. Não peço nenhum desejo, uma vez que tenho
tudo o que eu sempre quis: um pai que me adora; um marido que ama; uma
filha muito especial; muitos e bons amigos e, de modo muito importante, a
minha mummy que sempre olhou por mim, esteja ela onde estiver…
- Obrigada! – digo, de olhar preso no céu.
Sei que ela está ali. Sei que sempre esteve e que nunca me abandonou, tal
como me prometeu. Desde aquele dia que penso naquele abraço forte que me
deu antes da operação. Sinto que ela sabia, de uma forma que eu não entendo, o
que estava prestes a acontecer. Os médicos ainda tentaram reanimá-la, mas ela
acabou por falecer, devido a um ataque cardíaco, momentos depois de lhe ser
retirada a medula óssea para o transplante. Coincidência ou fruto do Destino,
desde os meus dezoito anos que a doença não recidivou. Já passaram vinte anos
e ninguém me faz desacreditar que foi por causa do transplante que a minha
mãe me deu que eu fiquei “curada”.
Sei isso porque algo nos une. Algo que não se pode explicar. Algo que se
sente constantemente. Algo que nos acompanha para toda a vida.

142
Sei que o que nos une é muito forte. Tão forte que nada o pode quebrar.
Tão forte que não existe distância suficiente para nos separar. Nem a terra, nem
o horizonte, nem mesmo o firmamento conseguem separar-nos, pois o que nos
une é especial, único.
O que nos une é mais do que um amor de mãe, mais do que uma história
para contar, mais do que uma memória que não se esquece e que vive
constantemente no meu pensamento… O que nos une faz parte de mim e fez
parte dela, em tempos. O que nos une corre no meu corpo, fugazmente.
É o seu sangue que corre em mim, que me dá vida. É uma parte dela que
nunca chegou a morrer e que ainda existe em mim, ainda corre no meu corpo,
pelo que jamais estaremos separadas, aconteça o que acontecer.
É um laço que se formou e que não pode ser quebrado. É um laço de amor,
de carinho, de dádiva e de muitos sentimentos mais. É, sem dúvida, um laço de
esperança.

143
Nota do Autor

A história, anteriormente apresentada, trata-se de pura ficção, pelo que


não se encontra cientificamente correcta, tendo em conta o ponto de vista
médico e científico.
Apesar da leucemia enunciada e do tratamento desta serem reais, a
história, fruto de fantasia, leva certos aspectos da doença a outros níveis, daí
não serem total e realmente verdadeiros.
Peço a compreensão dos leitores, em especial daqueles que são
entendidos na matéria científica abordada.
Desde já, um muito obrigado,
Pedro Salvador

144
Agradecimentos

Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, à minha família, em especial à


minha mãe a quem dedico o livro; ao meu pai por ser um grande orgulho para
mim e um exemplo a seguir; ao meu irmão Miguel por ter escutado sempre o
que eu tinha a dizer e ao Guilherme, o benjamim da família, por ser a
“Esperança” na minha vida.
Um muito obrigado: à Ana Duque por estar sempre lá e por me ouvir
naquelas noites; à Ana Gonçalves por ser a magnifica amiga que me acompanha
desde os três anos e por dizer que o prólogo estava “brutal”, encorajando-me a
avançar; à Marli Silva, uma amiga que muito estimo e que é, sem dúvida, a irmã
mais velha que nunca tive; à Joana Carrapiço e à Margarida Padilha por, muitas
vezes, me fazerem sorrir perante a Vida; ao Diogo Galhofo por me apoiar; à
Professora Bernardete Amorim pela ajuda na revisão; e a todos os outros cujo
nome não referencio, mas que de uma forma muito especial contribuíram para a
concepção da história.
E, por fim, um muito obrigado a si, leitor, por ter adquirido este exemplar,
espero que goste.

145

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