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f Elk fe Casa do Psicélogo® - © 2002 Casa do PricGlogo Livraria ¢ Editore Leda. E protbida a reprodugaa total ou parcial desta publicagao, para qualquer finalidade, sem autorizagio por escrito dos editores. 3" Edigéo 2002 Editor Anna Elia de Villemor Amaral Gizntert Produgio Grafica Renata Vieira Nines Capa Yeoty Macambira Sobre obra de I. Ingres, Edipo e a Esfinge Efitoragio Bletrinica Angelica Gomes Borba Revistio Sandra Regina Souza Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Mezan, Renato, 1950 ~ ‘A Vinganga da Esfinge : Ensaios de Psicandiise /Renato Mezan. — 3a. ed. —~ Sao Paulo : Casa do Psicdlogo, 2002. Bibliografia, ISBN 85-7396-171-6 1, Peicandlise 2. Psicandlise ~ Interpretacio 3. Pscoterapia 1 Téeulo 02-1573, CDD-150.195, Indices para catalogo sistema L. Psicandllise : Interpretacio 150.195, 2. Psicandlise : Psicoterapia 150.195 Impresso no Brasil Printed in Brazil Revervados todos os diteitos de publicagio em lingua portuguesa & GG Casa do Psicélogo® Livraria e Editora Ltda. Bz Rua Mourato Coelho, 1.059 — Vila Madalena ~ 05417-011 ~ Sao Paulo/SP ~ Bras Bw Tels (11) 3034.3600 ~ E-mail: casadopsicologo@casidopsicologo.com.br F — bup://wwwcasaiopsicologo.com.br SUMARIO Prefiicio P Psicandlise ¢ psicoterapia 23 Rumo a epistemologia da psicandlise. 47 A querela das interpretagdes_ _ 67 Desejo ¢ inveja Nostra culpa, nostra maxima culpa s Uma primeira sessio na poltrona Memoria e identidade A vinganga da Esfinge Pode-se ensinar psicanaliticamente a psicandlise?_ Uma arqueologia inacabada: Foucault e a psicandlise Inveja, narcisismo e¢ ca: Klein, Lacan: para além dos mondélogos cruzados Identidade ¢ cultura Viena imagindria _ Reinvencdo da psicanilise _ 5 O bati de Freud : Seis autores em busca de um personagem Indice de obras ¢ autores _ 2 429 Sobreoautor BT om direitos PREFACIO E ste livro retine textos redigidos entre 1982 e 1986, que me pareceram conservar algum interesse, para além do evento ou da publicagao que lhes deu origem. Raras sao as ocasides em que se escreve um ensaio por pura necessidade interior; 0 mais das vezes, prosaicamente, é em fungao do convite para participar de um coléquio ou de algum niémero de revista sobre determinado tema que nos decidimos a p6r em ordem certas idéias e damos nascimento a um texto... Nao ha entre estes escritos, assim, mais do que a unidade um tanto ficticia devida ao fato de serem assinados pela mesma pessoa; ¢ digo “um tanto ficticia”, porque hd sérios motivos para duvidar da “mesmidade” do autor. Pois, como mostrou Foucault em A arqueologia do saber, as idéias nao provém da subjetividade soberana de uma consciéncia, mas de um solo que torna possiveis certos recortes e impossiveis outros, que autoriza alguns a falar e a outros impée siléncio, que legitima certos objetos de pensamento e certos tipos de discurso, em detrimento de outros, desqualificados. Os temas a que se referem estes ensaios me foram ditados por esta configuragao, que é a da psicandlise no Brasil na década de oitenta. E claro que materializam interesses e preocupacdes que me s4o préprios, porém seria erréneo supor que devam sua origem apenas aeste fator. Ha que considerar ainda, no interior desta rede descrita por Foucault, que a prépria figura do autor nado coincide consigo 8 A VINGANGA DA Eseince mesma: suas idéias podem se modificar, em nenhum de seus textos ele esté completamente ec em todos esté de algum modo. Experiéncia mais ampla, leituras que tém o poder de desperta-lo de algum sono dogmiatico, encontros inopinados impostos pela Fortuna e que, no caso de um psicanalista, podem tomar a forma de momentos cruciais vividos no diva de outrem ou em sua propria poltrona — estes fatores e certamente outros vém a determinar modos de inserg4o de quem escreve no tecido do pensamento de uma época e de um lugar. E sobretudo, se admitirmos as descobertas da psicandlise, ha o fato de que nenhum de nés é “um”: somos varios, e, como disse Drummond, “das peles que visto / muitas ha que nao vi”. Tal constatagao é mais do que um artificio de retérica, destina- do a converter a necessidade em virtude: j4 que sdo dispares estes escritos, e que nado ha meio de apagar sua disparidade, mais vale reconhecer isso de saida e transformar o defeito em qualidade... E um lugar-comum da técnica de redigir prefacios a alegacao de que, ao se reunirem ensaios num volume, a heterogeneidade deles seja decretada apenas aparente, posto que, “‘no fundo”, obedecem a uma inspiragéo comum, a ldégica sinuosa que preside aos desdobramen- tos sucessivos de um mesmo percurso. Nao creio que este seja 0 caso da presente coletinea. Preferi, alids, deixar os textos na ordem cronolégica em que foram escritos, renunciando a uma sistemati- zagao artificiosa e inutil. Pois foram feitos para intervir em debates diferentes, destinaram-se originalmente a ptblicos diversos, e 0 ato de os apresentar em conjunto responde ao desejo de tornd-los aces- siveis a um circulo mais amplo, submetendo-os 8 critica e ao deba- te publicos sem os quais no existe cultura. KK Porque a psicanilise faz, é claro, parte da cultura, e nao apenas como parte num todo. A cultura também atravessa a psicanilise, tanto no sentido lato de que esta é uma pratica social que pressupde determinagGes nao geradas por ela mesma, quanto no sentido res- PREFACIO 9 trito de que as ideologias vigentes reverberam sobre nossa discipli- na de modos variados, quanto ainda no sentido especffico em que Sérvulo Figueira fala de uma “cultura psicanalitica’’', Figueira su- gere que uma cultura psicanalitica pode ser decomposta segundo trés eixos: um eidos ou légica para O pensamento, um ethos ou cédigo para as emogées, um dialeto ou forma de expressao codifi- cada que serve para a coesio e 0 controle de certos grupos no inte- rior da sociedade. Estas sao as categorias utilizadas pelo autor para dar conta daquilo que denomina “psicologismo” sobre variados com- portamentos sociais e sobre a producgo de conhecimentos tanto nas ciéncias sociais quanto na psicandlise. Neste dltimo caso, Figueira assinala a existéncia de um duplo desconhecimento: a recusa, pelos psicanalistas, de perceber que eles mesmos e sua disciplina sio um dos focos irradiantes do psicologismo, que contribuem ativamente para a instauracao de uma cultura psicanalitica; e a ago retroativa do psicologismo e da psicologizagéo sobre 0 campo psicanalitico, nele influenciando, de forma sutil, a produg&o de conhecimentos. Estas idéias de Sérvulo Figueira me parecem extremamente liteis para situar adequadamente o problema das relagoes entre a psicandlise e 0 meio no qual ela se implanta. Gostaria de acrescentar a elas um outro aspecto que me parece importante, e que diz respeito a uma faceta facilmente perceptfvel no campo psicanalitico brasileiro, embora esteja longe de se reduzir apenas a este setor da nossa sociedade. Refiro-me a algo que chamarei “vulnerabilidade ao dogmatismo”, ¢ que consiste na facilidade com que certas idéias adquirem valor de evidéncia axiomatica, como se desde sempre estivessem inscritas em nosso céu de anil. Um dos determinantes da cultura psicanalitica brasileira é que, entre nds, a psicandlise é uma planta exdtica, importada dos centros culturais hegemOnicos; que existam neste momento muitos analistas praticando-a, muitos pacientes se tratando e numerosas instituigdes (1) Figueira S. et alii, Cultura da psicandlise, Sio Paulo, Brasiliense, 1985. 10 A Vinoanga ba Esrsct que dispensam um ensino de psicandlise nao altera, ainda, este fato. Quando doutrinas ou praticas de origem estrangeira se instalam num meio sociocultural, é evidente que sua implantagdo e sua difusio virdo a se dar segundo prismas de refragio especificos a este meio. Entendo por “prismas de refragao” tanto as instituigdes formais € informais que servem de canal entre o que é importado e seus destinatérios, quanto os sistemas de representagdes formais e informais que vao filtrar este “algo”, o qual deverd se impor em face de tais sistemas e a tais instituigdes, acomodar-se em parte a eles, reformulé-los parcialmente para os torar compatfveis consigo proprio. Relativamente as instituigdes que a acolhem, nao é indiferente que a psicandlise se difunda em determinado pais através do vetor médico-psiquiatrico, ou da Universidade, ou dos meios literdrios e culturais em sentido amplo. Quanto aos sistemas de representagdo que atuam como filtro ou como peneira, podem ser formais (por exemplo teorias psiquidtricas, psicologicas ou filos6ficas vigentes e aceitas) ou informais (por exemplo, atitudes difusas porém socialmente s6lidas relativas 4 sexualidade, ao sofrimento psiquico, a loucura, as categorias que captam a vivéncia emocional, etc.). A respeito destes grandes prismas de refragao que operaram na difusio e no enraizamento da psicandlise no Brasil, pouco se sabe de concreto; hd pouquissimas pesquisas acerca desta questao, varias delas valiosas, mas que nao permitem ainda uma visdo de conjunto do processo que resultou na situagio atual.? Por (2) Algumas indicagées: R. aw: . “A psicandlise pioneira e os pioneiros da psicandlise em Sao Paulo”, in Cultura da psicandlise, R. Sagawa, “Durval Marcondes ¢ 0 inicio do movimento psicanalitico brasileiro”; Cadernos Freudo- Lacanianos, n° 2, S80 Paulo, Cortez, s. d.; M. Perestrello, Histéria da sociedade brasileira de psicandlise do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Imago, 1987; U. Tourinho, “Um processo em questo”, Ensaios de Psicandlise, n° 1, Salvador, 1981: U. Tourinho, “Psicandlise na Bahia”, Revirdo, n° 3, Riode Janeiro, Aoutra, s. d.: J. Freire Costa, Ordem médica e norma familiar, Rio de Janeiro, Graal, 1983; P. Lima Silva, Crénica da vida clinica, tese de doutorado na PUC-SP; ¢ outros trabalhos, poucos, mencionados na bibliografia destes que citei. PreeAcio UW esta razdo, as consideragdes que farei a seguir baseiam-se em hip6teses e em experiéncias pessoais, e portanto estao sujeitas a confixmagao ou refutagao ulteriores. O fato de a psicandlise nos chegar de fora tem uma conseqii- éncia cujo impacto é enorme, e que tende a crescer proporcional- mente ao aumento do nimero de pessoas com ela envolvidas: ficamos sabendo das coisas somente quando elas j4 atingiram um grau de complexidade e de sofisticagio tal, que as torna dignas de interesse fora do seu circulo de origem, e portanto artigo exportével. Em outras palavras, escapa-nos 0 mais das ve- zes © processo de constituigdo de uma teoria ou o trajeto de pensa- mento de um autor, aquilo a que temos acesso é, em intimeros casos, sua obra pronta ou pelo menos bem adiantada. Por razées ébvias, é comum iniciar-se a tradugao de um autor pelo seu livro “mais importante”, isto é, por aquele que normalmente nao é o primeiro, embora pressuponha este primeiro e uma série de ou- tros. A conseqiiéncia disso é que as idéias aparecem cortadas da sua origem, como verdades jd prestigiosas; a tendéncia natural é assimild-las jé neste estégio, sem que nos demos conta de que elas consistem em respostas a problemas que vém de longe, que tém uma dimensio de provisoriedade, e que muitas vezes foram acerbamente criticadas por outros autores, dos quais nem mesmo ouvimos falar. O que denomino “vulnerabilidade ao dogmatismo” tem aqui uma de suas rafzes: impossibilitados de reconstituir a génese do que nos é apresentado, resta-nos acatar cegamente 0 que estd escrito ou recusar-lhe cegamente nossa adesao. Tal situagdo nao é exclusiva dos estudantes de nossa discipli- na, mas no meio psicanalitico 6 agravada por uma circunstincia es- pecifica: o poder da transferéncia. E bastante claro que os individu- os empiricos que funcionam (e que funcionaram no passado) como veiculo de transmissdo dos conhecimentos e da pratica da psicand- lise niio sfio professores como os de literatura ou de filosofia, pela simples e boa raz4o de que freqiientemente sao (e foram no passado) 12 A VINGANCA DA EsrINGE também os analistas e os supervisores da primeira geraciio de pro- fissionais “nativos”. Nada mais natural que as concepgGes transmi- tidas por pessoas investidas deste prestigio sejam acolhidas com um misto de respeito e de cumplicidade que torna muito dificil 0 exercicio de um pensamento critico, o qual ainda por cima é difi- cultado pela inacessibilidade teérica e pelas hesitagGes da pratica inevitaveis em que comega a exercer a psicanilise. Historicamente, uma primeira onda de formagio psicanalitica deu-se em Sao Paulo, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre nas décadas de quarenta e de cingiienta, porém em condigées culturais e sociais que possivelmente tornavam menos dificil (6 uma hipéte- se) 0 exercicio deste pensamento aut6nomo. Uma nova vaga de formagao analitica, a meu ver qualitativamente diferente, vai ocor- rer em meados da década de setenta. No que diz respeito aos analis- tas das primeiras gerag6es, alguns puderam viajar para Londres e Buenos Aires, ali permanecendo por varios anos e trazendo consi- go, ao retomarem, uma nftida influéncia da escola kleiniana; outros foram formados por analistas europeus que aqui se fixaram, como Adelheid Koch em Sio Paulo e Werner Kemper no Rio de Janeiro. Aos poucos, 0 nimero de psicanalistas foi-se aproximando da casa das dezenas, e estes por sua vez formaram novos analistas, num movimento de transmissio que podera ser retrospectivamente estu- dado (e a meu ver seria urgente estud4-lo), e ao qual se deve a existéncia da psicandlise em nosso pais. O processo em questao, alids, nao se verificou de modo homogéneo: no Rio e em Porto Alegre, a monopolizacao da psicandlise por médicos interessados na manutengao de privilégios corporativos teve conseqiiéncias ne- fastas que nao ocorreram em Sao Paulo, cidade na qual, gracas 4 visio e 4 coragem de Durval Marcondes, a psicandlise acolheu pes- soas de diferentes formagGes profissionais e muito cedo se abriu ao contato com 0 servigo piblico e com a Universidade. O que desejo ressaltar é que esta primeira fase da psicandlise brasileira vai até, grosso modo, 1970. A partir de entao, novos PREFACIO. 13 elementos vao intervir no campo analitico, em grande parte deter- minados pela situagao social e politica do pais. Um destes fatores é oconsiderdvel aumento na escala do universo psicanalitico, até entdo restrito a poucos profissionais (algumas dezenas) e a pou- cos pacientes (talvez uns dois mil entre 1940 e 1970). O incremen- to de escala foi provocado por varios fatores: maior busca de tera- pias por parte da classe média “desmapeada” (termo utilizado por Figueira), aparente democratizagdo do ensino universitério (na verdade, destruigdo implacavel do que prestava na Universidade bra- sileira), ¢ outros aspectos bem estudados por autores que, de diver- sos Angulos, se ocuparam deste problema.’ A meu ver, tal incre- mento de escala teve um efeito qualitativo considerével sobre o campo psicanalitico, efeito dificil de precisar, mas que certamen- te é outro dos motivos que engendram o que denominei “vulnera- bilidade ao dogmatismo”. De maneira muito esquemitica, pode- mos dizer que se cruzam duas ordens de fendmenos. Por um lado, yém a se interessar pela formagao psicanalitica profissionais diplomados por escolas muito fracas, daquelas que brotaram feito cogumelos pelo pafs afora. A formagio universitaria nelas obti- da, por raz6es 6bvias, era em geral deficiente; os que vinham de faculdades sérias estavam em melhores condigdes, mas comparti- lhavam com os primeiros um dado essencial: quase nada se ensi- nava de psicandlise em seus respectivos cursos, fossem eles de psicologia, de psiquiatria ou outros. Confrontados com a pratica terapéutica, muitos destes ex-estudantes voltaram-se para novas tendéncias — nao exclusivamente para a psicandlise - em busca de fundamentagao teérica e de consisténcia clinica; assim houve 0 boom (3) L. Martins, “A geragao AI-S”, Ensaios de Opinido, n° 2. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979; J. Freire Costa, “Violéncia e narcisismo”, in Violéncia e psicandlise, Rio de Jan 0, Graal, 1984; §. Figueira, O contexto social da psicandlise, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978; ha uma ttil bibliografia no artigo de P. Lima Silva “Anos de andlise”, Teoria da Prética Psicanalitica, n° 5, Rio de Janeiro, Campus, 1987, 14 A VINGANGA DA ESFINGE das terapias corporais, do psicodrama, e posteriormente da psica- nalise. Por que da psicandlise? Esta era, até 1970 mais ou menos, inacessivel para os que ndo se dispusessem a uma formagdo dispen- sada exclusivamente pelas sociedades psicanaliticas afiliadas 4 International Psychoanatlytical Association (IPA). E aqui que intervém a segunda ordem de fendmenos: esta demanda por formagdo vem se inscrever num campo atravessado por linhas de forga politicas e doutrinais conflitantes, o campo da psicandlise nos anos setenta. Linhas de forga politicas: as socieda- des filiadas 4 IPA comega a ser retirado o monopélio da formagio, devido 4 chegada ao Brasil de um numero ponderdvel de psicana- listas argentinos rompidos com a IPA em seu pafs de origem, e devido ao inicio da penetragao do lacanismo, na esteira das influ- €ncias culturais complexas que ligam o Brasil a Paris. Concreta- mente, a demanda por formag&o vem encontrar uma oferta de for- magdo, que se caracteriza inicialmente por seu aspecto fluido e capilar (grupos de estudo, semindrios, andlises pessoais e supervi- sdes), contrastando agudamente com o modelo rigido entao vi- gente nos Institutos de Psicandlise. Em termos econémicos, 0 custo crescente da formacio nestes Institutos torna vidvel o surgimento de redes alternativas de ensino em varias cidades do pais, tanto na Orbita lacaniana (os Centros de Estudos Freudianos) quanto fora dela (o Curso de Psicandlise, que entao tinha outro nome, no Ins- tituto Sedes Sapientiae de Sao Paulo). Grupos semelhantes surgi- ro em outros locais, como Salvador, ou ganharao novo impulso, como associagées ligadas aos Circulos Psicanalfticos em Belo Ho- rizonte ou em outras cidades. Isto resulta numa primeira conseqii- €ncia de grande alcance, que é a multiplicagao de oportunidades para que quem deseja tornar-se psicanalista possa fazé-lo; mas também implica uma primeira forma de “diaspora”, a didspora institucional, didspora na qual a luta pela clientela e a necessidade de estabelecer um perfil proprio virfo a criar um ambiente muito particular, impregnado de criticas reciprocas e em geral muito PREFACIO 15 acrimoniosas. Do ponto de vista doutrinal, a grande novidade dos anos setenta é a introducao das correntes psicanaliticas francesas, tanto a centrada em torno de Lacan quanto outras mais discretas, € que, sem ignorarem a contribuigdo lacaniana, nado se pautam exclusivamente pelo pensamento de Lacan. Ora, 0 cruzamento destas duas ordens de fenémenos — uma demanda especifica e uma oferta especifica, originalmente inde- pendentes uma da outra, mas que vém a se encontrar pelas astuci- as da Histéria -, este cruzamento determinara em grande parte 0 panorama analitico dos anos oitenta, ¢ em particular seré co-res- ponsavel por esta caracteristica precisa dele que estou denomi- nando “vulnerabilidade ao dogmatismo”. Pois se a demanda por formagio surge de profissionais muitas vezes dvidos de certezas e propensos a ver na psicandlise um meio para atingi-las; se estes profissionais se deparam com uma oferta de formacao de indole freqiientemente missiondria, carregada por tenses transferenciais, € portanto propensa a apresentar o contetido de seu pensamento tedrico-clinico como “‘o melhor”, “o mais avancado”, quando nao como “o Unico verdadeiramente psicanalitico” (modo eficaz de fulminar a concorréncia); e se a esta situagdo se acrescenta a im- possibilidade de efetuar a critica destas teorias, pelo desconheci- mento da origem delas e pela auséncia quase completa de instrumen- tos para /er que é 0 efeito muito comum do tipo de ensino dispen- sado nas escolas que haviam freqiientado os profissionais em busca desta formagio — se estes trés fatores se encontram, estio criadas as condig6es para que a formagio psicanalitica te- nha boas chances de se dar num clima de paixGes exacerbadas, de assimilacao fragmentada e parcial dos conhecimentos especifi- cos, e de crenga fandtica na veracidade das proposigGes enuncia- das pelo “mestre”, seja ele de que escola for. Em outras palavras, a fragilidade dos referenciais identificatérios tenderd a ser oculta- da pela assungao de um discurso oco, freqiientemente eivado de express6es em jargao incompreensfvel para os de fora, e que cum- 16 A VINGANGA DA Estince pre a mesma fungdo que a giria dos marginais ou dos adolescen- tes: “dialeto que, variando ao sabor da moda, € sustentado pelo uso por grupos que assim se mantém coesos, num infindavel exer- cicio de auto e alocontrole no qual o poder interpessoal se exerce através do equilibrio precdrio entre manipulagao autoritaria do outro e dosagem automanipulatoria da confissio” . E evidente que estas condiges no sao regra universal. Mas acredito que a descrig&o que propus corresponde, se nio a um lado bastante vis{vel da realidade psicanalftica no Brasil de hoje, ao menos a uma virtualidade nela contida, virtualidade que, para se atualizar e produzir efeitos, necessita de muito pouco. E este pouco é freqiientemente encontrado pelo pais afora. Nao penso que isto seja inevitdvel; e penso que uma das tarefas de quem escreve a psicandlise e sobre psicandlise consiste em procurar, na medida dos seus meios, diminuir o risco de que tal virtualidade se converta em “destino funesto”, para falar como Frangois Roustang num livro recentemente traduzido. Dos fatores que mencionei, existe um que me parece passivel de ser, em parte, neutralizado pelo trabalho da escrita e da leitura: trata-se da crenga no parto virginal das idéias, como se elas surgissem, 4 maneira de Palas Atena, prontas e acabadas da cabega de algum Zeus psicanalitico. E como abalar esta crenga? No que me concerne, creio ser possivel avangar na direcao que convém através de dois caminhos: 0 que passa pelos temas e 0 que passa pelo método. O que passa pelos temas: neste volume, o leitor encontraré questionamentos sobre alguns dos tépicos que ocupam atualmente o debate psicanalitico. Das diferengas entre psicandlise e psicoterapia a origem dos sistemas kleiniano e lacaniano, passando pelas relagGes entre singularidade individual e cultura ou pela discussdo de alguns argumentos levantados por Foucault, ou ainda pela avaliagao de certas criticas dirigidas 4 leitura psicanalitica (4) Figueira, Cultura... p.8. PREFACIO 17 das tragédias gregas, os artigos e conferéncias aqui reunidos procuram refletir sobre a situagao atual da psicandlise, por “atual” entendendo-se tanto sua posigao diante de outras disciplinas humanas quanto o fato de que a psicandlise de 1988 é tributaria, mais do que as vezes imaginamos, de uma histéria j4 quase centendria. Outros textos abordam questées surgidas da clfnica, em especial na dimensao das transferéncias e das identificagoes do psicanalista. Neste dominio, preocupam-me em especial as relagdes complexas que podem se estabelecer entre o analista e o fundador de sua disciplina, isto ¢, com a figura de Freud. E 0 leitor talvez se surpreenda ao encontrar diversos ensaios redigidos a partir da leitura de livros, resenhando-os criticamente; 6 que me parece impossivel compreender e praticar a psicandlise sem passar pelo didlogo com outros analistas, didlogo que pode — por que nao? — tomar a forma de uma leitura atenta do que eles escrevem. A leitura é sempre um trabalho, trabalho para suscitar novas significag6es a partir do encontro com 0 texto e com 0 seu autor; ao fazer a ambos perguntas determinadas e ao buscar construir com eles, ou a partir deles, respostas para aquelas, o leitor-analista ganha 0 acesso a um instrumento precioso para seu proprio questionamento. E isto me conduz ao segundo caminho, o do método. O que se pode ensinar da psicandlise? Num dos textos deste livro, ar- gumento que a resposta a esta questio pode ser: um método. Um método de andlise, isto 6, de decomposig&o de um discurso se- gundo suas linhas de forga, respeitando as sutilezas de sua orga- nizagao, a fim de descobrir com ele a que necessidade e a quais questées ele responde. Esta é a forma pela qual eu mesmo leio, penso e interpreto; os escritos aqui reunidos foram todos, sem excegao, construidos desta maneira. E verdade que este modo de questionar, de expor e de concluir exige paciéncia e cuidado; também é verdade que considero fundamental nado apagar o per- curso que, em cada caso, me levou As conclus6es atingidas. Pois, se queremos evitar a arrogancia e o dogmatismo, um dos meios 18 A VINGANCA DA ESFINGE de que dispomos é nao impedir quem 1é de examinar as premis- sas ¢ a ossatura de um raciocinio, de modo a poder segui-lo pas- SO a passo, e a poder conceder-lhe ou recusar-lhe sua adesao. Outro destes meios é nio esconder que, por vezes, tive de rever posigGes anteriores, que pareciam sélidas, mas se revelaram par- ciais ou simplesmente erradas. Assim, certos problemas retormam algumas vezes no decorrer destes ensaios, seja a referéncia a uma obra (por exemplo, La hataille des cent ans, de Elizabeth Roudinesco), seja o estudo de um problema clinico ou teérico (por exemplo, a inveja ou a maneira pela qual o analista ou o supervisor do psicanalista podem estar “presentes” no trabalho deste ultimo). E espero ter, no futuro, outras ocasides de realizar © mesmo exercicio, modificando meus pontos de vista sempre que me convencer de que tal modificacao é titil e justificada. a ok ok Disse atrds que uma das especificidades do campo psicanali- tico é 0 papel nele desempenhado pela transferéncia. Esta se en- contra, por certo, presente em inumeras relagdes humanas, em particular nas situagdes em que alguém acredita que outrem pode ajuda-lo seja no que for. A busca do conhecimento é uma destas situagdes, pois o aluno é levado a investir quem se dispde a acompanhé-lo nesta busca de uma aura originalmente atribuida a figuras arcaicas de sua infancia. Em meu trajeto pessoal, na época em que me iniciava na filosofia e depois na psicandlise, tive a sorte de encontrar pessoas que tinham, do seu papel de professo- res, uma concepgao que tomava em conta a dimensdo transferen- cial, porém sem que tal concepgao as autorizasse a se servir dos lagos afetivos para sujeitar seus alunos a eterna minoridade inte- lectual. Duas destas pessoas marcaram-me de modo excepcional: Marilena de Souza Chaui e Regina Chnaiderman. Marilena ensi- nou-me a pensar; assistindo a seus cursos, descobri que a filosofia PrErAcio 19 nao era avessa a paixao, que a crudig&o, ao invés de ornamento inutil, era ferramenta indispensavel para o trabalho intelectual. Ela foi meu modelo do que devia ser um professor: sua inteligén- cia cintilante, sua clareza, seu interesse pelas aulas e pelos alunos, a generosidade com que compartilhava os frutos do seu trabalho, as severas exigéncias que fazia a si mesma — tudo isso foi para mim fonte de inspiragéo. Ela mesma, num artigo admirdvel no qual se refere a impossibilidade de distinguir entre “fil6sofo” e “professor de filosofia” como sendo respectivamente “quem pen- sa idéias originais” e “quem apenas transmite conhecimentos”, exprime com limpidez o que entende por ensinar: “O trabalho pedagégico nao é o de uma transmissdo de conhecimentos nem o de uma comunicagao intersubjetiva entre professor e aluno. O professor de filosofia existe para suprimir a existéncia dos alunos de filosofia, isto é, trabalha para que seu lugar permanega sempre vazio, pois sua fungdo é tornar possfvel o preenchimento deste lugar por todos aqueles que estio fora dele e ao qual ndo poderiam aspirar se estivesse preenchido. Por isto a relagio pedagégica pode ser extremamente erética, sem ser jamais a do didlogo: o didlogo 86 se torna possivel quando 0 trabalho do professor terminou, isto €, quando a seu lado encontra-se seu igual, 0 novo professor (...). Mas justamente porque se trata de uma relagfo amorosa e assimétrica, de uma auséncia de didlogo e de uma supressio da figura do aluno como aluno, a figura do professor de filosofia € arriscada: esta sempre a um passo de tornar-se guru. E contra esta tendéncia sedutora que nossa luta é cotidiana, e, no meu entender, uma das formas mais ‘filos6ficas’ da ‘pedagogia filosé6fica’ esté em interrogar, a cada passo, de onde vem, em nés € nos alunos, o desejo de que haja um Mestre, o apelo (por vezes a stiplica) a figura da autoridade™*. (5) “Quem sao os amigos da Filosofia?” , Discurso, n° 12, FFLCH-USP, 1981, pp. 129-130. 20 A Vinaanca pA Esrinor SAo palavras que merecem meditagao por todos nés, psi- canalistas brasileiros no final da década de oitenta. E que po- deriam ter sido proferidas por outra das pessoas que primeiro me mostraram caminhos que depois vim a trilhar com meus préprios pés: Regina Chnaiderman, cuja trajetéria marcou de modo indelével uma geragao inteira de jovens analistas, incul- cando em nés uma idéia exigente do que significa “analisar”. Exigéncia que em nada implicava rigidez ou intolerancia, por- que era antes de tudo exigéncia consigo prépria, Exigéncia de rigor tedrico nas discussdes, de compromisso ético na pratica da anflise, de coeréncia politica no trabalho comum; Regina soube cultivar a rara virtude de ser inquebrantavel no essenci- al e mostrar-se flexivel no acessério. Algumas interpretagdes em supervisao, algumas formulacdes em conversas e debates mostravam sua sensibilidade apurada por anos de escuta e por um rigoroso esforgo de auto-andlise. Regina foi psicanalista até a medula, era feita para o officio e nele se destacou como poucos. Costumava dizer que ensinar psicandlise deveria pro- duzir “efeitos analiticos”, o que para ela consistia num “fazer saber” ao invés de um “saber fazer”. Para ela, a ética— a essén- cia da psicandlise — nao devia se transformar em moralismo normativo; a elaboragio e a reflexdo da experiéncia psicanali- tica necessitavam da leitura de autores divergentes, a fim de propiciar uma atmosfera critica e liberadora. Exame das teori- as, recusa dos fanatismos, lucidez quanto A prdtica: para Regi- na, a psicandlise era assunto para homens e mulheres livres. Com ela, eu e outros aprendemos que uma associagao entre psicanalistas nao est4 necessariamente fadada a produzir esclerose tedrica e serviddo transferencial, nem a resultar em incapacidade para conviver com a diferenga e em tendéncia insopitdvel 4 secessao. Escreveu pouco; era uma maga da fala, da luminosidade e da sombra inerentes A palavra erotizada. A lembranga que deixou para os que a conheceram foi a de uma PRrerAcio 21 mulher em cujo cardter a exigéncia podia ser temperada pela docura, em cujo pensamento o rigor abragava a fantasia, e em cujos afetos a tenacidade era tingida pela sedugao. A filosofia e a psicandlise nao so apenas meios para se atingir 0 conhecimento de certos setores do real; so também uma experiéncia que pode servir para alcangar algum grau de liberdade intelectual e afetiva. Marilena e Regina, cada uma a sua moda, foram para mim provas vivas de que isto é possivel. Que estes ensaios, nos quais elas est&o tantas vezes presentes sem o saber, yenham a ser dignos dos exemplos em que se miram.” * Estes ensaios, cujas primeiras duas edigdes - esgotadas - foram publicadas pela Editora Brasiliense, retornam agora a existéncia piblica através da Casa do élogo. A Anna Luiza Costa, que digitou os originais, assim como as Dr.” Regina Célia Cavalcanti ¢ Eveline Alperowitch, que revisaram cuidadosamente a2¢a 3. edicdo, meus sinceros agradecimentos, PSICANALISE E PSICOTERAPIA um “e” os termos psicandlise e psicoterapia, nao deixa de suscitar algumas questGes a meu ver intrigantes. Trata-se de duas formas de trabalho sobre 0 psiquismo que se poderiam diferenci- ar com nitidez, ou de algum modo uma delas deve ser concebida como uma variante da outra? Entre ambas, vigora ou nao uma relagéo como a que hierarquiza o género ¢ a espécie — ¢, neste caso, serd a psicandlise uma espécie do género psicoterapia, ou 0 inverso? A julgar pelas imagens que circulam correntemente, ha- veria antes um antagonismo entre clas: ou se faz psicanilise, ou se faz psicoterapia. Antagonismo que, no mais das vezes, encerra uma valorizacao implicita da psicandlise como forma can6nica de trabalho, frente 4 qual a psicoterapia viria conotada como um sucedineo mais ou menos bastardo, aplicdével nos casos em que por uma razao ou por outra uma psicandlise nado pudesse ser reali- zada. Poder-se-ia também supor que a deciso de empreender com um paciente uma psicandlise ou uma psicoterapia relevasse de um diagnostico diferencial, uma ou outra evidenciando-se como O tema proposto para este debate, ao vincular por meio de Comunicagado na IV Jornada Cientifica do Curso de Psicanilise, Instituto Sedes Sapientiae, junho de 1982; publicado na brochura Psicandlise e psicoterapia, Instituto Sedes Sapientiae, Séo Paulo, 1982, pp. 19-38. 4 A VINGANGA DA ESFINGE mais indicada para tal situagao precisa. Mas quais os critérios deste suposto diagnéstico? Ao efetud-lo, estaria o diagnosticador agin- do como psicanalista ou como psicoterapeuta? A possibilidade de tal diagnéstico pressuporia que tanto a andlise como a terapia se- jam antes de tudo instrumentos; instrumentos, porém, do que e para o qué? Uma resposta apressada — para recobrar a “sade mental” — passaria por alto certas questdes espinhosas, entre as quais a do circulo vicioso: estar-se-ia pressupondo exatamente 0 que se deveria demonstrar, isto é, a instrumentalidade como ca- racteristica essencial de ambos os procedimentos. Pens4-las como instrumentos implica considerar a psicandlise e a psicoterapiacomo técnicas neutras, cujo emprego pode ser decidido em fungao da conveniéncia quanto aos fins que se deseja alcangar. Mas esta for- mulac&o do problema exige que se precisem tais fins, de modo que 0 critério da conveniéncia possa ser aplicado com conheci- mento de causa; e isto nos faz retornar ao ponto de partida: seria apropriado conceber a psicandlise e a psicoterapia como espécies do mesmo género, ou no? Mais sutilmente, é possivel que se trate nao tanto de uma diferenga de concepgao ou de modo de atuar, porém de uma difi- culdade na definigdo da identidade profissional: 0 prestigio vin- culado a psicandlise seria neste caso tio intenso que aquele aquem se dirige a demanda hesitaria em qualificar-se como psicanalista, preferindo, por estar inseguro, ou por pensar que sua maneira de agir nao corresponde a imagem idealizada do “ser psicanalista”, designar-se mais modestamente como “psicoterapeuta”. Reencon- trariamos, pois, a valorizagdo sub-repticia de antes, mas agora bloqueada num par de figuras im6veis, engendrando por conse- guinte tentativas de racionalizagdo destinadas a mascarar a an- gustia suscitada pela posigdo de si no lado errado da linha divis6- ria. O psicoterapeuta que se definisse desta forma colocaria na figura do psicanalista uma completude da qual se estimaria priva- do, realizando assim a projegdo do perfeito numa entidade por definigdo fora de seu alcance: situagdo proxima 4 que Hegel des- PSICANALISE E PSICOTERAFIA 25 creve, na Fenomenologia do Espirito, com 0 nome de “conscién- cia infeliz”. Caso a valorizacao seja invertida — 0 psicoterapeuta julgando-se mais instrumentado do que o psicanalista para obter os efeitos presumivelmente desejados por ambos — seriam estig- matizados certos tragos atribuidos 4 psicandlise, tais como sua suposta determinagao de classe, sua duragao excessiva, sua énfa- se nos aspectos regressivos e dissociados da personalidade, ou outros, com 0 resultado de que o psicanalista viria a encarnar ou- tra figura hegeliana, a da “bela alma”, que se recusa a macular sua pureza no contato com a “realidade efetiva”, e, sob o pretexto de preservar sua integridade, acaba por se desvincular da “marcha do mundo”. Estas questées estio longe de ser académicas. Especialmente no contexto latino-americano, a pratica da psicandlise classica ten- de a ser vista como sintoma da alienagao do psicanalista, de seu desinteresse pelas questdes polfticas e sociais. de sua aceitagio conformista de um exercicio profissional restrito 4s camadas mais privilegiadas da burguesia, de sua disposigao nao-criticada a co- piar modelos emanados dos centros intelectuais dominantes. Frente a esse personagem pouco simpatico, o psicoterapeuta tende a apa- recer como alguém disposto a ampliar sua faixa de ago, a inter- vir critica e ativamente — nado sé como cidadio, mas sobretudo como profi ional — no campo da vida social (por exemplo, na &rea da “satide mental”), a traduzir em seus atos didrios um com- promisso de ndo pactuar com as formas de dominagao e de explo- tagdo vigentes em nossas sociedades. A maneira apropriada de realizar este projeto seria renunciar a pratica da psicanilise classi- ca, considerada invidvel para atender amplos segmentos da popu- lagao, e aperfeigoar técnicas capazes de materializar tais objeti- vos: de onde a énfase na brevidade dos tratamentos e na sua aplicabilidade a grupos, como forma de baratear custos e de am- pliar significativamente 0 raio de agao do profissional. Parece-me que estes designios sao louvaveis e dignos de atengio; nao me 26 A VINGANGA DA EsriNcE. parece, ao contrario, que deles possa ser extrafda uma critica per- tinente quanto a psicandlise. A natureza desta nao exige em abso- luto que seja praticada a precos escorchantes, embora as questies do tempo e da efetiva limitagio do ntimero de pacientes que um analista pode atender nas condigées do setting classico meregam ser abordadas. Permitam-me, porém, sugerir que a ampliagao da faixa de pacientes pode ser imaginada como conseqiiéncia do au- mento da quantidade de psicanalistas e da disponibilidade destes num regime de seguro social, sem implicar necessariamente 0 abandono da psicandlise como forma de trabalho. Na verdade, creio que os dilemas apontados nascem de uma confusdo que deve ser dissipada. A confusao consiste em pensar que a psicandlise e a psicoterapia — ou, melhor dizendo, as psicote- rapias — sejam em principio homogéneas, de modo que se pudes- sem estabelecer os méritos ¢ deméritos respectivos a partir de uma compara¢ao que poria em jogo critérios uniformes. Nao é verdade que a psicandlise seja uma forma de psicoterapia, nem que a psico- terapia seja uma psicandlise que se ignora. Os objetivos de ambas so diferentes, seus métodos de trabalho pouco tém de comum, os pressupostos teéricos divergem e, para dizé-lo de uma vez, parece- me que 0 “e” do nosso tema sugere um parentesco que inexiste. Estas afirmagGes soam paradoxais, bem o sei; procurarei funda- menté-las a seguir, e gostaria de vé-las debatidas como uma contri- buicéo ao esclarecimento do tema que nos ocupa. 1 O paradoxo surge em primeiro lugar quando examinamos os textos de Freud. Nao afirma ele que a psicandlise é uma forma de psicoterapia (“Sobre psicoterapia”, “Tratamento psiquico” etc.)? Sem dtvida, ela consiste na “psicoterapia mais ampla”, aquela que “obtém uma transformagao mais extensa no paciente”, além de ser “‘a mais interessante” e a “nica que instrui acerca da géne- PSICANALISE E PSICOTERAPIA 27 se e da conexao dos fenémenos patoldgicos” (“Sobre psicotera- pia”). Mas convém perguntar se aquilo que Freud designa por “psicoterapia” corresponde ao que nés entendemos hoje por este termo. As palavras tém uma histéria, e muitas vezes pequenos deslocamentos de sentido acabam por impor grandes alteragdes em seu campo semantico. Quando Freud se refere 4 psicoterapia, é para contrasté-la com “meios curativos fisico-quimicos”; neste sentido, ela pode ser definida como “tratamento a partir da psi- que, tratamento — seja de transtornos psfquicos ou corporais — através de meios que atuam em primeiro lugar e imediatamente sobre 0 psiquico do homem” (“Tratamento psfquico”). O meio privilegiado desta atuaciio é a palavra, e, de fato, esta constitui 0 mais antigo dos recursos terapéuticos, remontando 4 magia e aos exorcismos das civilizagOes primitivas. Mas a palavra pode atuar sobre o psiquismo de diversas ma- neiras, e nisto reside, para Freud, a diferenga crucial entre as vari- as formas da psicoterapia. Em “Sobre psicoterapia’, ele distingue trés modalidades da agdo da palavra: a sugestao, a catarse e a interpretagao. A sugestao pode ser direta ou hipnotica; nos dois casos, trata-se de uma iniciativa do terapeuta, de uma ordem, a fim de que o paciente modifique seu comportamento no sentido desejado. Trata-se, pois, de um procedimento que, por nao ir 4 raiz do problema, permanece no plano do “cosmético” e “reforga as repress6es” (“A terapia psicanalitica”). J4 a catarse nao depen- de de uma sugestao proibitiva, mas baseia sua eficdcia na rememoracao da situagado traumatica que gerou o sintoma e na revivescéncia dos afetos que naquela ocasiao nao puderam ser “ab-reagidos”, isto 6, eliminados. Também aqui 0 terapeuta guia ativamente 0 processo mediante perguntas e estimulos. Frente a estes dois métodos, a psicandlise se situa no extremo oposto: re- cusando-se a “introduzir” 0 que quer que seja, ela abandona a direcdo do tratamento ao paciente, submetido apenas a regra fun- damental da livre associagao. Esta decisaio coloca a psicandlise 28 A VINGANGA Da Esttnor numa posigao especial; e, assim como em certos didlogos de Platao, nos quais a definigéo do conceito se faz por divisao, a espécie “mais elevada” transborda 0 género em que se havia pensado po- der inclui-la, esta posigao especial da psicandlise a faz extravasar © género das psicoterapias e instalar-se num género préprio, do qual é a nica representante. E isto por uma razéo muito simples: de 1904 para cd, 0 leque das psicoterapias ampliou-se considera- velmente, passando a incluir procedimentos derivados da prépria psicandlise, o que implica uma distribuigao dos dados inteiramente nova. Quando nos referimos hoje ao conceito de psicoterapia, estamos pensando em coisas como terapias de apoio, terapias bre- ves, terapias de grupo, terapias familiares, psicodrama, terapias centradas na pessoa, e outras modalidades de “tratamento psfqui- co” absolutamente inexistentes na época em que Freud afirmou que a psicandlise era uma forma (ainda que muito particular) da psicoterapia. Eis aqui, portanto, um primeiro critério para distin- gui-las: 0 emprego ou a recusa da livre associacaio como forma de obter o material sobre 0 que se vai trabalhar; os desdobramentos deste critério sio miiltiplos e mais importantes do que poderia parecer a primeira vista. Podemos abordar a questéo por um outro angulo. O termo “terapia” significa em grego “‘cuidado”, e neste sentido aparece no Eutifron, de Platéo, no momento em que, solicitado a definir o que seja a piedade, o personagem a conceitua como “a parte da justiga que concerne ao cuidado com os deuses” (t6 méros tou dikaiou peri tén ton theén therapéian, Eutifron 12a). Sécrates, porém, nao se satisfaz: 0 que entende Eutifron por “cuidado”? A seqiiéncia do didlogo estabelece que “o cuidado consiste num be- neficio e num proveito daquele a quem cuidamos, como se verifi- ca que aproveitam e melhoram os cavalos sob o cuidado do palafreneiro”. Dois elementos merecem nossa atengao nesta defi- nigdo de “terapia’’: o cuidado tem que ser prestado por um especi- alista, e resulta num beneficio — definido como melhoria; melhoria das condig6es de que dispée 0 “objeto dos cuidados” para exercer PSICANALISE E PSICOTERAPIA 29 sua fungao (por exemplo, o cavalo se torna mais veloz ou mais resistente). Se transpusermos a definigao platénica para o caso da psicoterapia, poderemos dizer que ela consiste no cuidado dis- pensado a psique por um especialista, e que resulta num beneficio para o paciente, beneficio que pode ser caracterizado, por exem- plo, como melhoria de seu estado emocional, o que 0 conduziria a dispor de melhores condiges para funcionar e para se relacionar com outras pessoas, Este caminho etimoldgico nao é tio estranho como parece & primeira vista; tanto porque a definigéo proposta para a terapia me parece bastante aceitdvel, pelo menos para comegar, quanto porque ele nos reserva uma pequena surpresa. Com efeito, o ter- mo latino para cuidado é cura. E a problematica da cura esté no centro da discussao de hoje: ela nos fornece um segundo critério para diferenciar a psicoterapia da psicandlise. Uma consulta ao diciondrio nos ensina que “cura” é um termo polissémico; veja- mos rapidamente algumas de suas acepgdes. Em primeiro lugar, curar é restabelecer a satide; daf vem curative, curandeiro, etc. Também significa “levar certos produtos a seu grau de perfei- ¢40”: diz-se curar o queijo, curar a madeira. No sentido de cui- dado, temos curador e curatela, que se referem a idéia de prote- go, de zelo por pessoas ou objetos fraégeis: curador de menores, de loucos, de 6rfaos; curador de um museu. Da mesma raiz vém ainda cureta e curetagem, vinculados 4 idéia de raspar, de elimi- nar do interior do organismo algo cuja presenca é indesejada. Por fim, 0 cura é 0 vigdrio, 0 paroco, isto é, o representante de uma autoridade ausente (falamos, num sentido préximo, de satisfagdes, substitutivas ou vicdrias). No total, cinco campos semanticos que, sem se recobrir inteiramente, nao deixam de apresentar um certo parentesco; trata-se de intervir para eliminar algo que se supde danoso (a doenga, o risco, a substincia indesejada), para impedir que algo danoso se instale (no sentido do curador), ou para afastar uma possibilidade de degradagées (a podridao, 0 pecado). Em to- 30 A ViNGaNga DA Estisice dos os casos, as ages relacionadas com a cura pressupdem um modelo, uma norma, em fungao da qual age aquele que esta en- carregado de curar; norma da satide, do queijo saboroso, do inca- paz bem protegido, do fiel bem orientado, da superficie isenta do acréscimo que a desfigura; modelo que situa a agdo curante do lado de um bem a estabelecer ou a restabelecer, por oposi¢ao a um mal a debelar ou a manter afastado. Voltemos a Freud. Na conferéncia “Sobre psicoterapia”, afir- ma ele que “o tratamento psicanalitico s6 pode se propor uma finalidade: a cura pratica do doente (die praktische Genesung des Kranken), © estabelecimento de sua capacidade de agir e de ter prazer (die Herstellung seiner Leistungs-und Genussfahigkeit)”. Duas observagGes podem ser feitas a este respeito. A primeira é de ordem lingiifstica; Freud nao escreve que se trata de “restabe- lecer” no paciente sua capacidade de agir e de ter prazer, mas sim que se trata de “estabelecé-la”, posto que antes do tratamento ela nao existia em ato. Além disso, surge freqiientemente um mal- entendido a propésito do termo “cura”, j4 que é comum lermos em textos estrangeiros a expressao “cura psicanalitica”. Trata-se a meu ver de um erro de tradugdo que tem conseqiiéncias graves. Freud emprega a palavra Kur como sinénimo de Behandlung, isto é, de tratamento; o vocdbulo para cura nao é Kur, mas Genesung, assim como os franceses falam em cure psychanalytique e em guérison, ou os hispanofonos de cura psicanoalitica e de curacion. Em portugués, a palavra é ambigua: ora designa 0 processo terapéutico (por exemplo, na expressdo “cura de aguas”), ora 0 seu término (“esta curado”). E isto nos conduz a segunda obser- vacio: se muitas vezes Freud fala em “tratamento psicanalitico”, a idéia de uma “cura psicanalitica” é inteiramente estranha a seu sistema conceptual. E outra vez € preciso recordar 0 peso que 0 vocabulario médico tem nos injcios da trajetéria de Freud, peso do qual ele mesmo sé veio a se dar conta ao redigir “A questo da andlise por nao-médicos”, em 1926. A partir desta data, desapare- PSICANALISE & PSICOTERAPIA 31 cem as referéncias, comuns até entao, ao “médico” e ao “doente”, sendo substitufdas por “o psicanalista” e “o paciente”. Daf uma proposta que submeto 4 consideragao de vocés: traduzir Kur, cure, cura, por tratamento, ¢ reservar cura para verter Genesung, guérison e curacion. Deste ponto de vista, creio ser adequado dis- tinguir entre psicandlise e psicoterapia segundo dois parametros: um vinculado aos procedimentos empregados na condugao do tra- tamento, outro associado aos critérios para decidir sobre o térmi- no da série de sess6es. Veremos a seguir que, do lado da psicoterapia, a nogiio de cura tem um sentido e que do lado da psicandlise as coisas se apresentam de forma mais complexa. 2 Como em minha pratica nao tive ocasiao de efetuar psicotera- pias, as consideragGes que farei a este respeito foram-me sugeridas pela leitura do livro de Hector Fiorini, Teoria y técnicas de psicoterapias (Buenos Aires, Nueva Vision, 1975). Quanto a psi- candlise, examinarei um texto de Hanna Segal, um verbete do Vo- cabuldrio de Laplanche e Pontalis, 0 trabalho de G. Rosolato sobre a “Psicandlise transgressiva”, e algumas idéias de Conrad Stein. O mérito do trabalho de Fiorini consiste, em meu entender, ha corajosa tentativa de estabelecer uma teoria para fundamentar a pratica da psicoterapia, teoria que, longe de igno- rar a psicandlise, toma-a constantemente como polo de referén- cia, mas que afirma por outro lado suas divergéncias frente a ela. Em seu livro, encontramos uma descrigao pormenorizada do pro- cesso psicoterapico, do vinculo terapéutico e dos modos de inter- vengiio do terapeuta, bem como uma reflexdo bastante aprofundada sobre os mecanismos e fontes das modificagdes obtidas, e um intento de explicagado, em termos teéricos, de por que ocorrem tais modificag6es. E da leitura resulta que a psicoterapia se funda- menta sobre pressupostos diferentes dos da psicandlise, opera com 32 A VINGANGA Dé ESFINGE recursos diferentes e visa objetivos diferentes; resulta também uma série de observagGes sobre os limites da psicandlise, que mere- cem ser comentadas no contexto de nossa discussao. Podemos partir dos modos de interveng4o do terapeuta. Laplanche e Pontalis definem a psicandlise como “um método de investigag4o que consiste essencialmente na colocagio em evidéncia da significagdo inconsciente das palavras, ac6es e pro- dugées imagindrias de um sujeito, método fundado principal- mente sobre as livres associagdes do sujeito”, e também como “um método psicoterdpico fundado sobre esta investigacdo, e especificado pela interpretagéo controlada da resisténcia, da transferéncia e do desejo” (Vocabulaire de La Psychanalyse, verbete “Psychanalyse”, grifos meus). Desta defini¢do resulta claramente que o procedimento técnico caracteristico da psica- nalise é a interpretagdo ou “colocagiio em evidéncia da signifi- cagao inconsciente”. A interpretacdo é exigida porque se supde existir um conflito defensivo, em conseqiiéncia do qual impor- tantes parcelas da vida psiquica do sujeito se encontram em re- gime de repressdo e se véem bloqueadas em sua manifestagao, de onde a idéia de uma deformagio das significagées, cujo sen- tido se vé em grande parte subtraido 4 consciéncia. Segundo Hanna Segal (“Fatores terapéuticos em psicandlise”), a inter- pretacao conduz, em condigées favordveis, ao insight, definido como “aquisicgao de conhecimento sobre o préprio inconsciente através de experiéncias conscientes, de modo explicito e ver- bal”. O insight é 0 fator terapéutico decisivo em psicanilise, na medida em que ilumina processos que langaram as bases dos padrGes de relagao internos e externos do sujeito. Na tradigao kleiniana, a interpretagio focaliza de modo particular as ansie- dades arcaicas, de modo a diminui-las significativamente e a possibilitar ao paciente lidar com seus sentimentos e com o mundo externo de modo menos infantil, isto é, perceber a si mesmo e a realidade exterior de modo mais exato. PSICANALISE E PSICOTERAFIA, 33 Em seu artigo, Rosolato mostra como o recurso privilegiado & interpretagao se vincula 4 chamada “regra de abstinéncia”, que por sua vez encontra sua justificativa na nogao de transferéncia. Sem entrar no detalhe de argumentacao do autor, creio ser impor- tante frisar que é a abstinéncia antes de tudo da agao e da suges- tao. Abstinéncia da sugestao: o psicanalista se limita a interpretar os dizeres do paciente, sem pretender impor, direta ou indireta- mente, modelos e normas de agio ou pensamento, em vista do que chega ao extremo de preservar 0 segredo sobre suas proprias opiniGes ou reagGes. Abstinéncia da acao: o tinico veiculo da co- municagio, a exclusao de todos os outros, é a palavra, pondo en- tre parénteses 0 corpo e as convengoes da amabilidade social. Tal atitude de abstinéncia cria condicées favoraveis para o isolamen- to e para a andlise da transferéncia. Sem entrar, igualmente. na caracterizagéo pormenorizada desta ultima, limitar-me-ei a assi- nalar que ela é o elemento no qual se trabalha em psicanilise, o que significa que a realidade externa a situagao analitica é coloca- da entre parénteses. Em tiltima instancia, portanto, a abstinéncia é abstinéncia de referir-se a ou de intervir na realidade externa, con- centrando-se a atengao do psicanalista na interpretagdo do “mun- do interno” tal como se expressa no elemento da transferéncia. E por isso que interpretago, abstinéncia e transferéncia encontram- se indissoluvelmente ligadas entre si, numa adesao as significa- ¢6es e numa mesma “Epokhé”, ou suspensao do juizo, em relagao aos fatos da realidade “externa”. Rosolato afirma em seu trabalho que o proprio da psicandlise “transgressiva” consiste em infringir a regra de abstinéncia, com a finalidade de abreviar o tratamento, de superar situagGes de ur- géncia ou de levantar impasses julgados incontorndveis por ou- tros meios. Um elo implicito no raciocinio de Rosolato, que me parece Util formular por extenso, é que com a rentincia a abstinén- ciaa situagao transferencial se altera decisivamente, coma conse- qiiente introducao de modos de intervir estranhos a interpretagao, aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. PSICANALISE E PSICOTERAPIA 35 te” pelo terapeuta. Este dispde de uma ampla gama de modalida- des de intervengdo, entre as quais podemos mencionar a pergun- ta, a informagao, a explicagao, a recapitulacgio, a sugestio de con- dutas alternativas, as intervengGes diretivas e, ocasionalmente, a interpretagio. Ao terapeuta cabe assim a “planificagdo estratégi- ca” do tratamento (p. 98). E bastante claro que a idéia de uma “planificagdo estratégica” implica o abandono da regra da absti- néncia, tanto pela distribuigao diferente das iniciativas no decor- ter da sessio, como pelo fato de o terapeuta buscar a intervengéo no nivel da realidade externa, ainda que tal intervengo se faga mediada pela interpretacao das “figuras internas” do paciente. E é finalmente em torno da nogdo de realidade que, a meu ver, se articula a diferenga essencial entre psicandlise e psicoterapia. A énfase nas fungdes egdicas e na relagio de trabalho personificada, como efeito, deriva da importancia atribuida a realidade, ou melhor, a um conceito muito preciso de realidade, que dista enormemente do que se entende em psicanilise por este mesmo termo. A relacao de trabalho “personificada” significa simplesmente que o terapeuta se coloca como “pessoa real”, manifestando “cdlida” e “empaticamente” sua presenga, comunicando dados acerca de si e sua percep¢do do que esté ocorrendo, etc. O fundamento desta postura é, no dizer de Fiorini, a intengdo de evitar que a hostilidade do paciente ultrapasse um certo limiar, e também evitar a “erotizacao excessiva do vinculo, que poderia interferir com a relagdo de trabalho”. Ou seja, a “personificagao” do vinculo de trabalho visa impedir que a transferéncia se converta no elemento essencial da relagado entre os protagonistas do processo. E, se a razdo explicita desta atitude é manter a referéncia 4 “realidade” como eixo fundamental do processo, duas outras afirmagGes do autor deixam entrever uma outra dimensdo desta recusa de uma transferéncia de tipo analftico: ade que o processo terapéutico é uma tarefa de indole pedagégica, e ade que a espontaneidade do terapeuta fornece ao paciente um 36 A VINGANGA DA EstiNcE modelo identificatério. Fiorini insiste diversas vezes na articulacio entre estas duas facetas: € porque 0 terapeuta dispde de um melhor controle sobre suas fun¢des egdicas — em outras palavras, porque tem um ego mais estruturado — que pode funcionar como “modelo inspirador”, dada a “natureza docente da tarefa, que lhe outorga uma lideranga” (p. 104). Sejamos, porém, prudentes: Fiorini deixa claro que sua intengao nio é fabricar cépias de si mesmo, mas produzir, no paciente, a ativacdo das fungées egdicas deste ultimo. E pela sua atitude, mais do que pelo contetido do que diz, que o terapeuta fornece ao paciente esse modelo. E como tal atitude é resultado da “ativagio de suas préprias fungdes egdicas”, isto nos conduz a examinar brevemente este conceito fundamental da teoria das psicoterapias. Baseada nos trabalhos de Heinz Hartmann, a reflexao de Fiorini parte da idéia de que as fungSes egéicas regulam o controle e o ajuste a realidade, devendo-se distinguir e hierarquizar trés tipos destas fungGes: as basicas, as defensivas e as integradoras. Sao fungGes egéicas bdsicas as que se dirigem para 0 mundo exterior e possuem certo grau de autonomia, tais como a percepgao, a mem6- Tia, a atengdo, o pensamento, a exploragao, a execugio, etc. As fun- ges defensivas neutralizam as ansiedades e manejam os conflitos, enquanto as integradoras asseguram uma coesaéo em meio a varie- dade dos comportamentos. Fiorini propoe ainda, na parte a meu ver mais original de sua reflexdo, distinguir entre as fiuncdes egdicas, seus efeitos (adaptacio a realidade, controle dos impulsos, regulacao do nivel de ansiedade, etc.) e suas qualidades (autonomia relativa, forga, plasticidade, etc.). O pressuposto desta elaboragao teérica é uma idéia que a meu ver separa radicalmente psicandlise e psicoterapia, a saber a nogao de que existam no ego “Areas relativa- mente livres de conflito”, capazes de fornecer um suporte as fun- gdes egdicas e objeto preferencial da atuagio reasseguradora do terapeuta. Em psicandlise, pensamos que o desejo, a angiistia e a fantasia permeiam todas as fungées psfquicas, inclusive as que PSICANALISE E PSICOTERATIA 37 Fiorini considera “fungGes egdicas basicas”. A andlise dos lapsos ¢ dos atos falhos mostra como a atengao, por exemplo, se encontra literalmente atravessada pelo processo primério, 0 mesmo poden- do-se dizer da memé6ria, a partir da nogio de “recordagées encobridoras”, e do pensamento judicativo, vinculado a repressao e & aceitacAo intelectual do reprimido mediante 0 simbolo da nega- gao. Isto, longe de resolver o problema, s6 0 complica; pois se trata de precisar por onde passa a fronteira entre processos primdrios e secundarios, o que repGe em pauta a questao da “realidade” visada pelo funcionamento psiquico do sujeito. Em todo caso, o objetivo da psicoterapia é reforgar a eficacia dos rendimentos do ego, a par- tir de um conjunto de recursos postos em disponibilidade pelo tra- tamento. Nas palavras de Fiorini, “em sintese, pode-se entender que, nas psicoterapias, as fungGes egdicas se reforgam mediante a criagdo de um contexto de gratificacado, alivio da ansiedade, estimulagio e verificagio (situagdo psicoterapéutica), que as solici- ta ativamente e as consolida no seu exercicio guiado (processo psicoterapéutico). Com sua propria atividade, o psicoterapeuta prové 0 paciente, além disso, com um modelo egdico de identificagao. Na relagdo de trabalho, por outro lado, constata-se a existéncia de um interjogo entre as fungGes egdicas do paciente e do terapeuta: entre ambas, hd uma constante cooperag4o, a0 mesmo tempo em que se instala uma relagao de complementaridade, que se regula habitual- mente de maneira automatica” (p. 127). Penso que esta sintese deixa suficientemente claras as divergéncias entre o processo psicoterapéutico: trabalha-se sobre as fungGes egdicas com referéncia a realidade externa, o paciente € solicitado ativamente e guiado no exercicio das ditas fungdes por um terapeuta que se propde como modelo, o clima de trabalho é predominantemente de cooperagao entre duas pessoas “reais”, e, por fim, a visada é pedagdégica — e por isso terapéutica. Nestas condigées, 0 critério para a “cura” é facil de definir: esta vem substituir uma situago em que, por raz6es variadas, as fungdes aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. PSICANALISL & PSICOTERAPIA 41 com a qual operamos em psicanilise: tanto porque a “realidade psi- quica” é constituida em torno do triangulo edipiano — fantasia, de- fesas, angtistias, modo de relaciio de objeto, tipo de neurose, moda- lidades de transferéncia giram em torno do Edipo e sao estruturados por ele, raz4o pela qual Freud o denominou “complexo nuclear” -, quanto porque a “realidade exterior” se encontra situada de modo inteiramente diferente quando a pensamos de forma a incluir a ques- tio do complexo de Edipo. Existem termos freudianos como “perda da realidade”, “prova de realidade’’, “principio de realidade”’. Eles nao se referem ao mundo exterior como resultado de um processo hist6rico, no qual os ho- mens produzem suas condig6es materiais de existéncia, mas & ma- neira pela qual o individuo vem a se inserir neste tecido que o ante- cede e que, por meio de sua agdo, pode ser eventualmente modifi- cado. A realidade “externa” nao é aquilo que, como pardmetro, poderia servir para “testar” o realismo do desejo ou da fantasia, isto é, suas possibilidades de concretizagao, e sim, do ponto de vista psicanalitico, o resultado de uma constituicdo, na qual intervém, de um modo que recorda certas nogdes kantianas, categorias como projecao/introjecao, prazer/desprazer, interior/exterior, etc. Se a prova de realidade devesse servir unicamente para distinguir entre alucinagio, percepco e representagao, ela seria, como observam Laplanche e Pontalis, perfeitamente inttil; sabemos que nenhuma “prova de realidade” é capaz de convencer um delirante de que as imagens que vé ou as vozes que ouve sao alucinagdes e nao perceptos. A realidade “externa” é constituida de objetos progressi- vamente entrelacados na histéria libidinal, no mundo da fantasia inconsciente, e isto nos obriga a pensar de forma inteiramente nova a propria distingao entre realidade interna e externa. Quando Freud escreve Totem e tabu, seu objetivo nao é encontrar apoio para a teoria psicanalitica nos dados da antropologia, mas estabelecer um ponto capital: 0 ato pelo qual 0 individuo se constitui como sujeito psiquico é 0 mesmo ato pelo aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. PSICANALISE E PSICOTERAPIA 45 liberdade precisamente porque a psicandlise conduz a um reconhe- cimento, embora de outra ordem do que aquele desejado pelo paci- ente: ao reconhecimento de que é de si mesmo, e no do psicanalis- ta, que o paciente deve e pode esperar o reconhecimento de sua prépria obra ~ ou, em outras palavras, o reconhecimento de que o lugar do psicanalista esta vazio. A isso damos 0 nome de dissolugdo da transferéncia, que nao consiste, como é comum ouvirmos, em “perceber o psicana- lista como uma pessoa real”, mas em se tornar capaz de prosse- guir o processo psicanalitico sem a presenga de um analista dife- rente de si, do qual se esperaria, justamente mesmo, que nos diga quem somos. Daf por que 0 psicanalista nao pode se propor como modelo a seu paciente: e isto em dois sentidos diferentes. O pri- meiro, banal, seria recusado igualmente por Fiorini: ser modelo no sentido de impor, direta ou sutilmente, sua prépria visio de mundo ao paciente. Mas, se o psicoterapeuta pode oferecer-se como imagem de um ego estruturado e liberado — sentido de mo- delo para Fiorini — o psicanalista nao pode se oferecer como ima- gem de um inconsciente “psicanalisado”, j4 que o processo anali- tico 6, por natureza, intermindvel. Ha assimetria, seguramente, entre o psicanalista e seu paciente: este espera algo do primeiro - sua designacio como sujeito livre, uma cumplicidade, uma con- denagao, uma sedugaéo, ou mesmo a cura — enquanto o analista aprendeu a analisar-se e portanto renunciou a veleidade de “cu- rar-se”. Com o luto de sua prépria andlise, ele acedeu a posigado em que pode designar-se a si mesmo como livre; liberdade que nao € ilusGria, porque nao se funda na negacao imaginaria da ne- cessidade, e sim no trabalho para reconhecé-la e conviver com ela. Como a atividade de auto-andlise que caracteriza o analista toma por elemento, entre outras vivéncias, as experiéncias com seus pacientes, a situacio analitica tem efeitos sobre os dois pro- tagonistas, efeitos que podem ser resumidos como continuagaio do processo de educagao para a liberdade. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. RUMO A EPISTEMOLOGIA DA PSICANALISE 49 autor (“reflexdo sobre as regras de funcionamento deste saber”) € mesmo em relacaio ao conceito de epistemologia tout court. Esta consiste sempre no exame da racionalidade de uma disciplina, por oposigo ao que poderfamos chamar uma “reflexdo racionalista sobre as ciéncias”'. Esta tiltima supde uma universalidade da razao que se expressa de diferentes maneiras em diferentes ciéncias, inspiran- do-se em ultima instancia em Kant; para o epistemélogo, ao contré- rio, a racionalidade instaurada por uma ciéncia nado € necessaria- mente idéntica 4quela instaurada por uma outra, e é este espaco de dispersao, de explosao da razfo classica, que torna necessdria uma pesquisa sobre o modo de instauragao de uma racionalidade especi- fica. A idéia de uma epistemologia geral nao é, portanto, um proje- to similar, mas um mau uso do termo que esvazia seu sentido. As ambig6es de uma epistemologia da psicandlise seriam abusivas: “ir mais longe que Freud na sistematizagao do saber freudiano e conferir-Ihe seus titulos de nobreza epistémicos” (p. 15). Estas pretensdes talvez sejam abusivas, mas nao tém nada a ver com 0 conceito de epistemologia proposto pelo autor: ela nao € 0 Gotha’ das ciéncias, e nfo se sabe o que poderiam ser os tais “titulos de nobreza epistémicos”. Além disso, a sistematizagao nao é da mesma ordem que a “reflexdo sobre as regras de funcio- namento”, pois a sistematizagio pressupée as regras e, portanto, nao poderia dar conta delas. E por esta razdo que os autores men- cionados sob a rubrica “epistemologia da psicandlise” (M. Dorer, Binswanger, J. Hyppolite, Fenichel, etc.) podem ser deseartados: seus escritos nao tém nada a ver com os objetivos de uma reflexdo (1) G. Lebrun, “L’Idée d’épistémologie”, Manuscrito I, 1, Unicamp, Campinas, 1979. “A epistemologia sabe pelo menos como deve se orientar dentro da ciéncia que estuda: no a levando ao Conceito nem historicizando-a, mas determinando os sistemas ¢ subsistemas que a fazem funcionarenquanto campo de inteligibilidade” (p. 20). (2) Anuario genealégico, diplomitico ¢ estatistico, publicado em Gotha, cidade da Alemanha Oriental, em francés ¢ alemio, desde 1763. (N. T.) aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. RUMO A EPISTEMOLOGIA DA PSICANALISE 53 tui em Freud” (p. 100), A 6tima pergunta inicial, propriamente epistemolégica — qual é 0 sentido da teleologia no pensamento freudiano e quais suas relagdes com os princfpios fisicalistas her- dados de Briicke ~, desapareceu completamente: em seu lugar, vemos surgir uma afirmacio dogmiatica sobre a identidade epistémica de Freud, misterioso atributo que opera desde a sua juventude e gragas ao qual o saber analitico se constitui nele. A tese inicial, segundo a qual esta identidade é imanente a seu texto, foi portanto abandonada no meio do caminho, j4 que é patente que, se esta identidade funcionava em surdina desde a época em que ele comecou seus trabalhos sobre a coca, ela nao poderia se constituir ao mesmo tempo que o saber freudiano (que nao é um saber sobre a coca), mas antes desse saber (que tem por objeto a psique). O mencionado saber seria entao alicergado por esta iden- tidade, e nado constituido simultaneamente a ela. O problema é falseado pelos termos nos quais 0 autor 0 coloca; ele n&o consiste em saber se a identidade epistémica de Freud é aut6noma ou heter6noma, mas em determinar o funcionamento da teleologia em sua teoria metapsicolégica. Em todo caso, a identidade em questao nao poderia aderir 4 pessoa de Freud, razao pela qual é intitil ir procura-la nas experiéncias bioldgicas dos anos 80. A conclusio do livro sofre dos mesmos defeitos que seu desenvolvimento: as perguntas sio excelentes, as respostas desconcertantes. Tomando ao pé da letra certas formulagdes de Freud, a psicandlise é nela definida como “um intervalo imaginario que explora um espago transitorio” (p. 189). E verdade que a t6pica, a econédmica e a dindmica sio, 4s vezes (mas nem sempre), apresentadas por Freud como construgées provisérias, validas enquanto a anatomia, a quimica e a fisica nao forem capazes de descobrir os determinantes organicos da neurose. Porém Assoun vai mais longe quando afirma: “a psicandlise vive do inacabamento dessas trés construg6es, ela se situa no cruzamento delas” (p. 189). Desejarfamos que esta tese fosse precisada, que nos fosse indicada, aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. RUMO A EPISTEMOLOGIA DA PSICANALISE 37 sofista nao é, parece, o artista da mutag4o, o homem das mil mas- caras Cuja esséncia os interlocutores do Sofista de Platao tém tan- ta dificuldade em definir; sob essa aparente mobilidade, a inter- pretagao encontra a imagem gélida da morte, figura na qual o idén- tico se fixa para sempre. O sofisma é a expulsao da angistia de morte. Eis por que o enunciado da fantasia sofistica é: “salvar sua vida custa da morte do outro” (p. 85). A construgao circular do livro, no qual os mesmos termos tomam sucessivamente a boca de cena (angistia, sujeito, sentido, fantasia, mito, etc.), pretende assim ser desconstrugio da fantasia sofistica. O esforco para abrir as categorias classicas, para estabe- lecer “pontes-de-sentido” entre elementos a primeira vista dispa- ratados, para operar transferéncias e tradugGes, pode ser atribuido a consideragao da dimensao de angtstia presente na atividade te- orizante. Nesta espiral, o fio condutor que o leitor pode tentar seguir é a “encruzilhada fundamental” da transferéncia/contratrans- feréncia/transferido, na qual é decidido o destino do sujeito. Este, com efeito, “encontra inevitavelmente em suas fronteiras e em sua Constituigdo as estruturas da fantasia, do corpo e do mito, em comunicagoes, combinagGes e cruzamentos permanentes” (p. 197). Do ponto de vista da “teoria psicanalitica do conhecimento”, qual é a contribuigao desse copioso volume? A meu ver, ela resi- de no esforgo para redefinir as nogdes de sujeito e objeto, abrin- do-as As determinagées da angtistia e da fantasia; em lugar das declaragGes retéricas sobre a epistemologia a ser construfda, 0 autor toma die Sache selbst’ ¢ tenta estabelecer novas relagdes entre alguns dos conceitos basicos da psicandlise. Prevenindo 0 leitor sobre os riscos do excesso sofistico, ele sugere um critério de leitura aplicavel a seu préprio texto. Pode-se, contudo, lamentar a quase completa auséncia—exceto em dois exemplos curtos — da matéria viva da psicandlise, a experi- (4) A prépria coisa. (N. T.) aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. RUMO A EPISPEMOLOGIA DA PSICANALISE 6! também a teoria pela qual a crianga outorga sentido 4 realidade. Esta teoria € investida porque o Eu acredita em seu valor de verdade; ela passard pela prova da dtivida num momento posterior; a busca da causa sera deslocada para outros objetos ¢ outras regides, investindo novos campos, muito distantes das questdes originais. Este resumo bastante fragmentario de um argumento rico e complexo, que, alids, nio ocupa o centro da obra (dedicado a and- lise das relagGes de simetria e assimetria entre os Eus), deixa en- trever, no entanto, qual é o sentido de uma abordagem psicanaliti- ca em teoria do conhecimento. E notavel que varias andlises de Piera Aulagnier lembrem ao leitor os primeiros trabalhos de Melanie Klein, particularmente na época de Early analysis (1923). O elemento comum é uma teoria da sublimagdo, concebida muito freudianamente como ponto de jungao entre as fungdes intelectu- ais e a libido. Para M. Klein, nessa época em que ela ainda nao formulou suas teorias pessoais, a sublimagio é “a capacidade de empregar a libido supérflua no investimento das tendéncias do Ego”, o que leva a considerar como sublimagao nao sé as ativida- des intelectuais ¢ artisticas, mas também a palavra, o canto, o an- dar, a orientagao espacial e o investimento da realidade ambiente. Também para ela, este investimento passa pela intermediacao da mae, mas aqui 0 pensamento de P. Aulagnier toma um rumo dife- rente: ao é a proliferagao fantasmatica sobre o interior do corpo da mie, mas 0 investimento dos desejos identificatérios dela, que constitui o ponto de partida do investimento da realidade. A partir desse momento, as duas teorias nio podem mais ser comparadas, ainda mais porque Melanie Klein, posteriormente, acentuard os fatores de agressividade e desenvolverd uma teoria metapsicologica que pode dar conta deles, enquanto P. Aulagnier insistira — pelo menos nesta obra, embora essa ja fosse uma tendéncia identificdvel em A violéncia da interpretagdo — sobre o funcionamento e as perturbacées do Eu. E, sobre este ponto, parece-me possivel fazer algumas observagées. 62 A VINGANGA DA ESFINGE A primeira diz respeito ao conceito de “eu”. A distingéo entre duas formas pronominais substantivadas, no original Je e Moi,>é uma particularidade da lingua francesa; um tradutor alemAo ou brasileiro ficaria numa situagio dificil para apresentar de maneira adequada sua diferenga conceitual em psicanilise. Em que o conceito de Je (Eu) difere essencialmente da nogio classica de Moi (Ego)? Em Freud, 0 Ego (Moi) tem por tarefa levar em conta as exigéncias da realidade, e sua origem (pelo menos na segunda t6pica) é o processo de identificacdo. Ele tem também uma outra fungio, a de ser o pélo defensivo no conflito neur6tico, funcdo deixada na sombra por Piera Aulagnier, exceto nos breves momentos em que ela lembra que o Eu (Je) possui uma ampla parte inconsciente. Seria entao desejavel que a autora precisasse melhor por que o Eu € 0 her6i da sua obra, se se trata de uma preferéncia léxica (que, alids, Ihe concederfamos de bom grado), ou se as razGes propriamente teéricas determinam sua escolha. A segunda observagdo diz respeito a discretissima fungado do Superego na metapsicologia aulagnieriana. Este aspecto me parece ligado a um outro: aqui ¢ ali, a autora fala de “excesso de Pprojecdo que caracteriza a relagdo do neurético com a realida- de” (p. 95); sabemos que a projegdo é um mecanismo defensivo contra a anguistia, e que a angistia é definida por Freud como a sensagao no Ego frente a um perigo que emana de modo privile- giado do Superego (€ por esta razio que o protétipo da angustia é para ele a angtistia de castrag&o). Em sua obra anterior, Piera Aulagnier afirma que a origem da angustia é o medo da morte e nao o da castragiio, o que a aproxima de M. Klein e a afasta de Freud. Ora, para M. Klein, esta importancia fundamental do medo (5) Cé esté o tradutor numa situagio dificil... Este artigo foi escrito originalmente em franeés. “Ego” é designado, em francés, pela palayra “Moi”. Ora, grosso modo, “je” e “moi” significam, em portugués, “eu”. (N. T.) RUMO A EHSTEMOLOGIA DA PSICANALISE 63 da morte resulta nado s6 de sua concepgao do Todestrieb, mas também de uma concepgao da psique na qual as fantasias infiltram fortemente a representacio da realidade, e onde, por conseguinte, o acesso a realidade depende nao sé da sublimagao das puls6es libidinais, mas também e sobretudo da necessidade de vigiar os objetos fantasmaticamente atacados a fim de impe- dir sua vinganga e sua retaliagao. Isto nos conduz a tese de P. Aulagnier sobre 0 investimento simulténeo do Eu e da realidade por puls6es libidinais. Ela fala muito em desprazer e édio, mas o papel discreto da angistia e do Superego (no nivel te6rico, ndo necessariamente em suas sutilis imas descrigGes clinicas) esté na origem de um problema deixado em suspenso em seu livro. Numa passagem dedicada ao rio e ao prazer suficiente (p. 152-5), ela nos diz que o Eu ocupa apenas um lugar do espaco psiquico, jd que o processo origindrio e 0 processo primario se dio suas préprias prazer nece: representagdes do que se passa na psique. “Digamos que, para que 0 prazer seja possivel, é preciso que 0 objeto, tnico capaz de responder 4 necessidade e 4 demanda de prazer do Eu, preste- se a uma fantasmati 0 que o torne apto a satisfazer o objeto pulsional e o desejo inconsciente. Para que o Eu invista a reali- dade, é-Ihe necessdria no minimo a neutralidade desses dois outros processos.” Podemos fazer, quanto a isso, algumas per- guntas: que acontece se 0 objetivo pulsional for de natureza agres- siva? De que modo 0 pictograma e a fantasia desta situagio vao — ou nao vao — co-determinar a representagao ideacional que o Eu se forja dela? Em geral, que dizer desta co-determinagio e como ela se constitui do ponto de vista metapsicolégico? Que condigGes so requeridas para a neutralidade postulada? A pre- senga Constante, tanto na crianga como no adulto, de fantasias de contetido sddico ou agressivo, faz com que freqiientemente as instAncias pictografiante e fantasmante nao sejam nem cim- plices nem neutras, mas totalmente antagénicas A instancia 64 A VINGANGA Da Esrincr pensante, forjando representagdes que de uma maneira ou de outra passam para a representagao ideacional. Parece-me que a conceituagao de P. Aulagnier deixa de lado, pelo menos em sua atual formulagao, este problema fundamental: a infiltragéo do pensamento pela fantasia, infiltragdo cujas relagdes com a re- presentagao da realidade no nivel do pensamento sio muito mais amplas que a simples projegao. Em compensagio, considero importantissima sua andlise do mito, que o separa da fantasia, na medida em que ele é uma explicag4o “partilhada”, cujo objeto é 0 sentido e a ori- gem daquilo que é. O mito pertence ao mesmo registro que a religido e a ciéncia, e nao ao da fantasia inconsciente. A ga- rantia de verdade do mito nao é sua conformidade ao desejo inconsciente, mas sua transmissao fiel desde os tempos anti- gos pela memoria da comunidade. Isto nao impede que 0 con- tetido do mito possa ser representado também por um pictograma ou uma fantasia, como qualquer outro objeto pen- sado pelo Eu. Acreditar no mito nao é a mesma coisa que acreditar em suas fantasias: 0 mito nao surge porque as soci- edades que o investem ignorem o princfpio de realidade, mas porque os esquemas da causalidade admitidos por essas soci- edades comportam a explicagao mitica. Este esclarecimento me parece muito util, dada a persisténcia do equfvoco, tao comum entre os psicanalistas, entre fantasia e mito, equ{voco pelo qual Freud € 0 primeiro responsdvel. E pena que, apés esta elucidag4o, encontremos a expressao “mito pessoal” no texto de P. Aulagnier (uma tinica vez, é verdade, a p. 246), para significar o registro fantasmatico. Estas poucas observagées criticas néo podem fazer com que se esquega, contudo, o valor das contribuigdes de P. Aulagnier, a obra assinada por ela é bela e rica, e podemos esperar que em sua elaboragao ulterior ela venha a considerar © que parece, no momento, ainda nao conceitualizado. RUMO A ERSTEMOLOGIA DA PSICANALISE 65 * kK A epistemologia da psicandlise permanece até este momento com um amplo futuro a sua frente: eis a conclusdo que se impde ao término da leitura dessas trés obras. Ela pode e deve fazer uso do que a psicandlise conseguiu estabelecer sobre a atividade de pensar em geral e sobre a atividade teérica em particular, seria apenas um paradoxo a mais que a psicandlise viesse a fornecer uma parte dos materiais para a elaboragao de sua prépria epistemologia. Esta, no entanto, pode ter por objeto apenas os dispositivos de racionalidade instaurados pela prdtica analitica, sern se confundir com essa prdtica nem com a teoria psicanalitica stricto sensu. Aquilo que poderiamos chamar de teoria psicanali- tica do conhecimento, em compensagio, parece mais avangado, ainda que se possa ressaltar a forte obscuridade que paira sobre dois pontos importantes: a relagio da fantasia e do pictograma com 0 pensamento, e o lugar da angtistia na atividade de pensar. Resta uma pergunta intrigante: por que uma epistemologia da psicandlise é tao urgente para analistas? As relagées silenciosas entre fantasia e teoria, e a dimensao de angdstia presente na atividade de pensar, talvez tenham algo a ver com isso. Material com direitos autorais A QUERELA DAS INTERPRETAGOES ma polémica opde hd décadas psicanalistas e estudiosos das ciéncias humanas: a psicandlise tem ou nao o direito de se pronunciar sobre fendmenos exteriores a situacdo analitica? As criagGes da literatura, da arte ou da religio sdo passfveis de uma interpretagdo psicanalftica, ou esta interpretagdo, sob o pre- texto de desvendar a dimens4o inconsciente destas criagdes, na verdade passa ao largo de seu sentido verdadeiro? Os argumentos invocados para justificar cada uma das posigGes variam segundo © campo em que, a cada vez, a discussdo é retomada; mas, a um exame mais atento, eles se reduzem a duas formas elementares. A psicandlise sustenta que tudo o que é humano traz a marca do inconsciente e é portanto de sua algada; seus opositores afirmam a especificidade inerente a cada tipo de atividade do homem, ¢ acusam de reducionismo imperialista a pretensiio analitica de ver em toda parte os efeitos do desejo, do inconsciente e do complexo de Edipo. Colocado nestes termos, 0 debate faz pensar no debate entre a baleia e o urso polar de que fala Freud no Homem dos Lobos: como cada um dos contendores permanece em seu ele- Comunicagdo na mesa-redonda “Mitologia, filosofia e antropologia” do IX Congreso Brasileira de Psicaniilise, Séo Paulo, abril de 1983; publicado na Revista Brasileira de Psicanilise, XVI, 3, Sdo Paulo, 1983, pp. 365-379. 68 A Vinoanca ba Esrincr mento, o gelo ou a gua, o afrontamento jamais pode se verificar, muito embora os rugidos de um e de outro possam fazer crer que a luta é de vida ou de morte, A interpretagao psicanalitica das manifestagGes culturais re- pousa sobre alguns pressupostos que convém explicar. Em pri- meiro lugar, a cultura tomada em seu sentido mais amplo nao é estranha a esfera da psicandlise, porque esta niio se reduz a um método terapéutico, mas assenta tal método sobre uma teoria da génese e do funcionamento do psiquismo em geral. Esta teoria se caracteriza pela idéia de que a humanizagao do pequeno ser nas- cido de um homem e de uma mulher equivale a um processo de culturalizagao, isto é, de transformagao da mente num érgiao ca- paz de representar nao apenas os fantasmas engendrados por ela propria, mas ainda objetos e entidades que ela nao pode criar por seus meios exclusivos: 0 corpo préprio, os outros seres humanos e o mundo exterior. Para tanto, ela tem que receber do ambiente que a circunda — inicialmente reduzido & sua prépria mae — as informagGes apropriadas e os meios para metabolizar essas infor- mages. Como esses meios sao fruto do processo cultural, a trans- formagao da psique em psique humana equivale a sua transfor- magado numa psique marcada pela cultura. Disso resulta que a cultura néo se opde a psique individual como o fora ao dentro, mas que ela lhe é simultaneamente interior e exterior: interior porque € aquilo mediante o que o individuo se constitui como individuo, e exterior porque nado depende apenas dele e continua a subsistir apés sua morte fisica. Em virtude disso, a teoria sobre 0 psiquismo individual é necessariamente e ao mesmo tempo uma teoria sobre a cultura e sobre as modalidades pelas quais a psique se culturaliza, isto é, torma-se humana. Portanto, a investigagao psicanalftica da cultura ndo somente é legitima, mas é também parte integrante da propria psicanilise, razdo pela qual me parece inadmissivel falar-se em “psicandlise aplicada” para designar esse tipo de trabalho. A QUERELA DAS INTERPRELAGOES 69 Existe, portanto, uma teoria psicanalitica da natureza huma- na, e é importante assinalar que ela se caracteriza por um trago muito particular, que se torna evidente quando a confrontamos com outras teorias sobre a mesma questo. Quando Arist6teles define o homem como “animal racional” ou como “animal soci- al”, razio e sociabilidade sio consideradas como capacidades ine- rentes ao ser humano, sem no entanto pressupor qualquer contet- do que deva necessariamente acompanhar tais capacidades: a de- finigdo afirma que o homem é capaz de pensar ou é destinado 4 vida em sociedade, mas disso nao se segue que para ser homem é preciso pensar tal pensamento determinado ou viver em tal tipo determinado de sociedade. O mesmo ocorre com a tese marxista de que o homem se caracteriza por sua capacidade de trabalhar, isto é, de negar e ultrapassar a Natureza, ou com a tese de Cassirer segundo a qual o homem é o animal que simboliza: ainda aqui, trata-se de potencialidades que devem se efetivar no real, mas que nao necessitam em absoluto cristalizar-se em tal tipo de trabalho ou em tal espécie de forma simbélica. A tese de Freud difere das anteriores num ponto capital: ao enunciar que o homem se define pelo conflito que o constitui, conflito cujos pélos sdo 0 desejo e a defesa contra o desejo, ela afirma no mesmo enunciado que este conflito é suscitado pela existéncia de objetos privilegiados do desejo, a saber, 0 pai e a mae. Segundo Freud, nao é a capacidade genérica de desejar e de se defender contra o desejo que constitui a humanidade do homem, mas a capacidade de desejar objetos simultaneamente proibidos pela cultura. Nao sao, pois, quaisquer desejos os que fazem do homem homem, mas uma constelagao precisa e insubstituivel que organiza esses desejos como desejo de incesto e desejo de parricfdio: em termos mais simples, o que torna o homem humano é 0 complexo de Edipo. E evidente que este postulado coloca Freud frente a uma difi- culdade desconhecida para seus predecessores: a de explicar como € por que existem na psique humana conietidos universais e inde- 70 A VINGANGA DA EsFinGe pendentes de varidveis como a época, o lugar ou a formagio social. Sabemos que a esta dificuldade ele tentou responder de varias ma- neiras, em particular com seu “mito cientifico” da horda primitiva e do parricfdio originario, ou ainda com a hipétese das fantasias pri- mordiais. Os sucessores de Freud, para quem estas teses pareceram insatisfatérias, foram obrigados a sugerir outras hipéteses para re- solver o mesmo problema: a presenga, na psique humana, de con- tetidos universais que se cristalizam na constelagao edipiana. Melanie Klein falara das ansiedades primdarias causadas pela agio silenciosa da pulsao de morte, Lacan invocaré a necessidade de escapar A ali- enagao imaginaria pela submissao a linguagem e ao simb6lico, ou- tros levantarao hipéteses diferentes: mas todos se verdo a bragos com a necessidade de inventar modelos capazes de dar conta do cardter universal do complexo de Edipo, pedra de toque da teoria psicanalitica em qualquer de suas versdes. Seria essa universalidade do Edipo uma idéia absurda de Freud, como sustentam os que se opGem 4 interpretagio psicanalftica da cultura? Para responder a esta questo, é preciso examinar outro dos pressupostos da interpretacao analitica: a idéia de deformagdo. Em si mesma, essa idéia é muito simples: em virtude da aco simultnea dos impulsos e das defesas, 0 conteddo manifesto de qualquer ato humano, em qualquer plano, é resultado de um compromisso entre tendéncias opostas, compromisso que encobre e desfigura — embora deixe entrever — seu sentido e também 0 percurso pelo qual ele foi deformado, até atingir o ponto em que pGde ser expresso porque ja se afastara o suficiente de seu momento de origem. Disso resulta que o interesse do psicanalista se atém preferencialmente a esses procedimentos de deformacao, © que esclarece por que o debate com os especialistas dos outros campos é tao freqiientemente andlogo a luta da baleia e do urso polar: ali onde os especialistas véem a agao de fatores histéricos ou estéticos, 0 psicanalista procura a fantasia de desejoe as defesas que, ocultando-a, a exprimem de maneira dissimulada. Todo o A QUERELA DAS INTERPRETAGOES a problema consiste em saber se os dois procedimentos so mutuamente exclusivos ou se, ao contraério, podem ser pensados como complementares, caso em que se coloca a questao inevitavel de como articular as diferentes dimensdes do fendmeno estudado. O que costuma irritar os pesquisadores de outros campos € a pretensao de exaustividade que, explicita ou veladamente, os psi- canalistas habitualmente reivindicam para suas interpretagdes, pretensao segundo a qual somente a psicandlise estaria em condi- ges de revelar o sentido mais profundo ou o sentido verdadeiro dos temas abordados. O primeiro a dar este exemplo é 0 préprio Freud, sob cuja pena encontramos inumeras vezes expressdes do tipo “somente a psicandlise pode langar um raio de luz nestas tre- vas” (Totem e tabu). Tal afirmativa contrasta curiosamente com a prudéncia com que ele reconhece, quando trata de problemas mais diretamente atinentes a pratica ou a teoria em sentido estrito, a provisoriedade de suas conclusdes e a extensdo do que, mesmo apés um percurso laborioso, continuamos a ignorar. Mas, poder- se-ia objetar, a psicandlise nado precisa explicar todos os fenéme- nos humanos, nem, como diz C. Le Guen, tudo desses fendme- nos: basta que elucide a dimensao que lhe é prépria, a dimensdo inconsciente, sem precisar negar que outros fatores, de ordem qualitativamente diferente, intervém de modo igualmente decisivo para a constituigéo dos fendmenos em questio. O problema, no entanto, é mais complicado do que parece. Tudo estaria muito bem se esses “outros fatores” viessem sim- plesmente se acrescentar aos que a psicandlise p6e em destaque, se eles por assim dizer funcionassem na mesma diregdo. Ora, no € o que de hdbito se verifica: para empregar os termos que figu- ram no titulo de nossa mesa-redonda, a antropologia, a epistemologia, a mitologia, a filosofia — e, por que nao, também a hist6ria, a geografia, a economia e a sociologia — trazem a luz fatores explicativos que se opdem — e nao que simplesmente dife- rem —aos revelados pela psicandlise. Ou melhor: cada uma dessas 72 A VINGANGA ba ESFINGE disciplinas considera suficientes ¢ adequados, para o esclareci- mento de seus objetos respectivos, os meios de estudo de que se serve habitualmente, enquanto o psicanalista se ver conduzido a afirmar que estes mesmos objetos incluem em si uma dimensio inconsciente que somente 0 método psicanalitico permite abor- dar. Enquanto os mitdlogos, epistemdlogos e demais especialistas enfatizam a especificidade e a irredutibilidade daquilo que estu- dam, a interpretagdo analitica, que é forgosamente redutora, nao visa simplesmente acrescentar um outro nivel de significado aos mesmos objetos. Implicita ou explicitamente, ela afirma que, em virtude da lei da deformagao, as andlises das demais disciplinas nao apenas se detém em niveis mais “superficiais”, mas ainda que sao tributarias das mesmas forgas deformadoras que geraram a forma imediata dos objetos a serem estudados. Em outros termos, ao interromper 0 movimento interpretativo antes do ponto em que tais objetos se revelariam como compromissos entre os desejos inconscientes e as defesas erigidas contra ele, as disciplinas espe- cificas reforgariam os efeitos da repressao, porque apresentariam como titimos e fundamentais contetidos ainda muito distantes da esfera do inconsciente, embora possivelmente jd bem distantes da forma imediata do objeto. Por outro lado, os especialistas decla- ram-se freqiientemente estarrecidos com a leviandade com que, inimeras vezes, os analistas atravessam as complexidades de de- terminada manifestagao cultural para reencontrar, ao cabo de pou- cos passos, a sinonimia universal dos desejos inconscientes, e at6- nitos pela acusaco de “resisténcia” com que os mesmos analistas acolhem seu ceticismo quanto a validade das interpretagdes apre- sentadas como sendo de inspiragao psicanalitica. O procedimento autoritario de nao responder as criticas, desqualificando o critico ora como dominado pela resisténcia, ora como obnubilado pela ignorancia, reencontra-se portanto dos dois lados, e sem dtivida contribui apenas para reconfortar cada intérprete na certeza dogmitica de que 0 outro é 0 tolo e de que ele detém a boa expli- A QUERELA DAS INTERFRETAGOES 23 cagao tanto do objeto em pauta quanto do erro do seu adversario. Um exemplo desta polémica — que como toda polémica nao pode ser um didlogo, porque consiste em dois mondélogos cruzados - €o problema da anilise das tragédias gregas. Para os helenistas, capitaneados por J. P. Vernant, a tragédia é uma forma cultural especifica do século V a.C. em Atenas, e corresponde a um momento preciso ¢ tinico da civilizagio grega. Este momento se define por certos tragos relevantes: conflito entre formas arcaicas e modemas do direito; conflito entre 0 passado da polis retratado nos mitos e as novas formas sociais e mentais; conflito entre a dependéncia dos caprichos dos deuses em que, segundo a religiao antiga, se encontra a agdo humana, e a experiéncia de uma ainda hesitante autonomia da vontade do homem. Sao esses conflitos e a ambigilidade com que sao vividos e apresentados que constituem a esséncia da tragédia: quando a ambigiiidade for percebida como contradigao, quando a filosofia vier dissipar essa contradig&o por meio da definigdo unfvoca e do principio do terceiro exclufdo, a “mola da tragédia” se quebraré e a constelacao tinica de fatores religiosos, sociais, politicos, psiquicos e estéticos que tornavam possivel a tragédia serd dissolvida. A tragédia é, portanto, nessa Perspectiva, um fenémeno singular que obedece a certas leis gerais — as leis que governam as complexas relagdes entre um artefato cultural e a sociedade na qual ele € criado — ¢ nada mais aberrante do que projetar sobre ela a interpretagao psicanalftica, que desconhece o contexto cultural e vai diretamente ao encontro do que j4 pressupunha: que a tragédia é mais uma deformacao — Freud diz uma “elaboragdo secundaria a servigo de um propésito teologizante” — do contetido edipiano universal. Para os psicanalistas, por sua vez, nada mais evidente do que a presenga do complexo de Edipo numa série de dramas que pOem em cena as diferentes modalidades do ddio e do amor entre os membros da mesma familia, o problema da culpabilidade pelas agdes e pelas intengGes, as quest6es fundamentais da identidade pessoal e da 74 A VINGANGA DA EsFINGE diferenga entre os sexos ¢ entre as geragées. Livros importantes foram escritos a este respeito por intimeros analistas, uns com mais, outros com menos sucesso; talvez 0 mais conhecido seja 0 de A. Green, Un ceil en trop, Néo podemos aqui entrar no exame dos argumentos de cada autor; basta-nos assinalar a aparente impossibilidade de conciliar as duas interpretagdes, j4 que cada uma delas avanga como motivo essencial do surgimento da tragédia teses que se refutam mutuamente, ainda que por vezes os analistas se mostrem dispostos a acatar, como motivos secund4rios e finalmente pouco relevantes, os fatores que para os helenistas sao os decisivos. Creio que a explicagao histérica e a explicagio psicanalitica permanecerio inaudiveis uma para a outra enquanto no exami- narmos a idéia da leitura e do significado do ato de ler que subjaz a cada uma delas. E talvez nos surpreenda verificar que, apesar dos resultados antagénicos, ambas as leituras repousam sobre um pressuposto idéntico, que torna finalmente a leitura histérica muito pouco histérica e a leitura psicanalitica muito pouco psicanaliti- ca. Refiro-me 4 idéia de que a leitura € uma operagiéo de deciframento, idéia que me parece ocultar o verdadeiro sentido do ato de ler, e ser responsdvel pela traigdo a seus préprios princi- pios efetuada costumeiramente tanto pela abordagem que se diz. histérica quanto pela abordagem que se diz psicanalitica. Que significa considerar que ler é decifrar? Significa supor que a obra lida tem um sentido intrinseco, que a leitura ird revelar se se dotar dos instrumentos adequados e se 0 leitor for suficien- temente perspicaz. Este sentido seria o original, a verdadeira in- tengao do autor ou a verdadeira constelacao de fatores que, com- binados, resultaram na configuragao da obra tal como ela se da ao leitor: sentido original, intengaéo profunda e fatores operativos se- riam completamente restitufveis pela leitura adequada. Tal leitura é dita dificil, mas nao impossivel: refazendo em sentido inverso 0 percurso da criagdo, ela daria conta integralmente das determina- A QUERELA DAS INTERPRETAQOES 75 ¢6es relevantes tanto do contetido quanto da forma da obra, no limite permitindo ao leitor, de posse dos elementos constitutivos e das regras de construgao revelados pela bem-sucedida operagio de deciframento, reescrever de cabo a rabo a obra lida. Dessa pers- pectiva, é perfeitamente indiferente que os “elementos constituti- vos” sejam as fantasias edipianas, e as “regras de construgiio” os mecanismos dos processos primdrio e secundadrio mediados pelas defesas do autor, ou que os “elementos constitutivos” sejam os ritos, Os mitos e oO presente da pdlis, e as “regras de construgao” a transpos 0 para a “forma da tragédia” da problematica social e ética prépria ao século V a.C. O que tanto o deciframento hist6ri- co quanto o deciframento psicanalitico tém em comum € a i/usdo da transparéncia e a supressao da leitura enquanto tal: transpa- réncia da obra, enfim legivel em suas determinagGes essenciais, e supressao da leitura, porque esta é imaginada como atividade neutra e asséptica que nao deixaria tragos no resultado final A leitura nao é deciframento, mas trabalho, ou seja, negagio determinada do dado imediato e construgdo de um novo objeto, que mantém com a “matéria-prima” relagGes muito complexas. A obra € feita para ser lida por alguém que nao é o seu autor, ¢ comporta, nao uma pluralidade de significados que o deciframento viria desvendar, mas uma potencialidade de suscitar novas signi- ficagées mediante o trabalho da leitura, e que s6 vém a ser se esse trabalho for realizado. A historia de uma obra é a historia das leituras sucessivas que ela suscita, as quais em primeiro lugar s6 podem ser efetuadas porque, devido a circunstancias que lhe sio exteriores, ela se tornou interessante ou enigmatica, e em segun- do lugar lhe propdem quest6es novas e a fazem dar respostas a estas quest6es, movimento pelo qual surge uma faceta dela capaz de significar algo para o leitor e para seus contemporaneos. Esse movimento nao equivale, porém, a retirar mais um véu na diregdo da transpar€éncia absoluta; esta faceta resulta da negagao do texto imediato por meio de um trabalho —e nao de uma simples mudan- 76 A VINGANGA DA ESFINGE ga do Angulo de visio. As metdforas visuais carregam uma conotagao de estaticidade, como se apenas 0 observador se movi- mentasse ¢ a obra permanecesse no mesmo lugar, seriam precisas metdforas manuais, que indicassem 0 movimento simulténeo da obra e do leitor, 8 guisa do torneiro que movimenta 0 barro ao mesmo tempo em que movimenta seu préprio corpo. A diversida- de dos resultados a que chegam leituras diferentes da mesma obra se explica pela diversidade das perguntas que lhe so enderecadas, perguntas relevantes num sistema de referéncias e irrelevantes nou- tro, mas sempre orientadas pela significagdo que o leitor espera produzir: o trabalho da leitura tem sempre um destinatdrio, para quem ele se dirige e em relacdo ao qual deseja ser portador de uma eficdcia. Vejamos em que medida essa idéia da leitura como trabalho que deixa suas marcas no texto lido pode nos auxiliar a esclarecer nosso problema. A leitura histérica sera tributéria da sua especificidade, da situagio dos estudos da Area, das finalidades pragmaticas que visa 0 historiador. Como podem os helenistas, por exemplo, criticar a interpretacao psicanalitica por se servir de um instrumento forjado no século XX, e supor que sua prépria leitura nado tem data e se limita a revelar o que a tragédia foi? A interpretacdo de um Vernant pressup6e estudos de filologia, de mitologia, de histéria das formas sociais e das idéias, que dio da tragédia uma visdo muito diferente da que os prdprios autores e os espectadores do século V poderiam ter, e que é tio “contempo- ranea” de nés quanto a interpretag4o psicanalitica. E importante enfatizar esse aspecto: os gregos tinham da tragédia - como de qualquer outra de suas manifestagGes culturais — uma experiéncia imediata que dispensava o laborioso trajeto heurfstico imposto a nos pela distancia que deles nos separa, de modo que mesmo a reconstituigéo minuciosa de suas categorias experienciais e inte- lectuais s6 pode nos oferecer um acesso mediato ao que para eles era significagiio facilmente legivel. Além disso, a tese segundo a A QUERELA DAS INTERPRETAGOES 7 qual a tragédia é filha da polis é ela mesma filha do século XX, na medida em que pressupée pelo menos a teoria marxista da inter- pretagio das “superestruturas culturais” e a critica dos aspectos dogmaticos desta teoria, critica que rejeita a idéia mecdnica do reflexo mas conserva a nogdo basica de que uma forma cultural mantém relagGes complexas com as contradigées da sociedade na qual se elabora. Tal idéia chocaria Esquilo e Séfocles tanto quan- to as teses incriminadas por Vernant, e de modo algum pode pre- tender retratar com mais fidelidade do que elas 0 sentido “ultimo” do objeto “tragédia”. Ela indubitavelmente revela dimensdes que aumentam nossa compreensao da tragédia; mas, justamente, au- mentam nossa compreensio, e seriam rejeitadas como nao-perti- nentes no sé por Eurfpedes, como também por Nietzsche ou por Hegel, cujo trabalho de leitura repousava sobre pressupostos di- ferentes. Qual das interpretagdes é mais verdadeira: a que vé na tragédia a luta do principio apolineo e do principio dionisiaco, ou a que a concebe como luta do direito antigo e do direito da pdlis? Esta pergunta nao tem sentido algum: a tragédia é 0 texto dos tragediédgrafos e tudo o que resulta dos trabalhos de leitura que ele suscitou nos tltimos vinte e cinco séculos, entre os quais a interpretagdo “histérica” dos helenistas atuais. Essa leitura, po- rém, nada tera de histérica, se persistirem se pensar como revela- go definitiva do sentido da tragédia, isto €, se trair o préprio prin- cipio da historicidade, que é a criagéo e emergéncia do novo a partir e contra o antigo do qual nasce. Nao se veja nestas conside- ragGes, de resto, qualquer defesa do relativismo ou do historicismo. As diferentes interpretagGes nado se escalonam segundo um prin- cipio de maior “profundidade” das posteriores com relagao as an- teriores, nem sdo equivalentes entre si porque todas seriam “rela- tivas” e datadas, e no fundo puramente projetivas. Pensar a leitura como trabalho implica pensar a hist6ria da obra como seus efeitos e como retorno desses efeitos sobre ela mesma, na triplice dimen- sao da histéria da obra, da histéria das leituras e da histéria do 78 A VINGANGA DA EsFINGE intérprete, Nesse sentido, a leitura de Vernant é parte constitutiva da historia das tragédias, da historia das investigagGes helenisticas e da historia do pensamento de Vernant, assim como a interpreta- go freudiana do “Moisés” de Michelangelo é parte constitutiva da hist6ria da estatua, da hist6ria da psicandlise e da historia da auto-andlise de Freud. Podemos dizer algo semelhante a respeito da interpretagéo psicanalftica. Ela deixa de ser psicanalitica se se limitar & aplica- ¢4o de um corpo ja constituido de doutrinas sobre um objeto su- posto inerte, isto é, se no caso presente partir da hipdtese de que qualquer obra humana é deformagao e elaboragéo do complexo de Edipo. Sabemos disso no que se refere A interpretaciio do dis- curso do paciente — a interpretagdo sé tem valor se nao resultar da aplicaco mec4nica da teoria, mas se brotar do encontro dos dois inconscientes em presenga. Contudo, relutamos em tirar as con- seqiiéncias Gbvias disso, a saber que uma interpretagdo jamais seré psicanalitica se nao obedecer ao principio fundamental do método freudiano, que é 0 da interpretagdo do singular pelo sin- gular nas condig6es definidas — porém ndo preenchidas a priori — pelos parametros reguladores da teoria. O que o analista intérpre- te da tragédia esquece ~ ¢ isso nos vem do préprio Freud, ao me- nos numa das vertentes de sua obra — é que seu instrumento de trabalho nao é 0 Vocabuldrio da psicandlise, mas seu proprio in- consciente, e que portanto é abusiva qualquer pretensao de “obje- tividade” no sentido comumente admitido deste termo. A inter- pretagao psicanalitica do que quer que seja implica o intérprete na sua formulagio mesma, e é também parte de sua propria andlise, parte tomada possivel pelo encontro com o discurso do paciente ou pelo encontro com um texto literario. No entanto, dir-se-d, este Gltimo nao pode associar, nem possui um inconsciente. E verda- de; mas, se o texto nao associa, a associagao serd do psicanalista — é Freud quem o diz, na Gradiva; se a interpretagdo concerne aum inconsciente, e aqui s6 o intérprete possui inconsciente, este tera “A QUERELA DAS INTERPRETAGOES: 79 de reconhecer que a interpretagao diz respeito antes de tudo a ele proprio, e s6 por essa mediacao ao texto interpretado. Ela nao é nem mais nem menos verdadeira por causa dessa passagem ne- cessdria: se ilumina 0 texto ¢ acrescenta algo A nossa compreen- sao dele, é porque — e nao apesar de que — é fruto de um trabalho de leitura que nega os dados imediatos por meio das associagdes despertadas pelas ressondncias deste texto no inconsciente do in- térprete — exatamente como na situagdo em que se interpreta a fala do paciente. Ou sera que, ao interpretar um texto literdrio, o psicanalista p6e miraculosamente fora de circuito sua contratransferéncia? A interpretagao psicanalitica obedece, portanto, a critérios definidos: ela nao é psicanalitica porque emprega o vocabuldrio e os conceitos freudianos, a fim de ilustrar pela enésima vez a ver- dade e a fecundidade das teses ja conhecidas, mas porque repro- duz a maneira de pensar inventada por Freud. E essa maneira de pensar se define pela percepgao dos efeitos do inconsciente tanto no objeto a analisar quanto na atividade do analista, o que faz da interpretag4o ndo apenas reconstrucio do sentido, mas sobretudo construcdo dele. A negagio do dado imediato — fala do paciente ou texto da tragédia ~ é aqui trabalho para criar uma significado nova e inédita, fruto simultineo das associagGes presentes e das experiéncias passadas, entre as quais se inclui, para o analista, sua propria andlise e os efeitos que ela teve — entre os quais 0 de tornd- lo apto a analisar os outros no mesmo movimento pelo qual se analisa a si mesmo. Se o texto nao transfere nem associa, pode- mos, no entanto, considerar que essas caréncias sao de certo modo suprimidas pela simultaneidade com que ele oferece todas as suas partes a leitura, simultaneidade que se opGe 4 sucessividade das comunicagGes do paciente, e que pode funcionar como elemento de controle para avaliar a propriedade da interpretacdo apresenta- da. Mas nao podemos esquecer que tal interpretagao niio desven- da significados ocultos j4 preexistentes na obra — posto que s6 80 A VINGANGA DA ESFINGE surgem, e s6 sdo de interesse para a psicandlise, se resultarem da leitura singular que implica 0 leitor e seu inconsciente na opera- ¢&o que os faz surgir. Por isso é va a discussio sobre se o rei Edipo tem ou nao tem complexo de Edipo: o que interessa & psi- candlise — e nao a apologética que lhe usurpa 0 nome - é 0 movi- mento pelo qual cada leitor pode descobrir algo sobre seu proprio complexo de Edipo, e em geral sobre sua propria vida psiquica, por ocasido de uma tal leitura. E importante frisar que, por essa mesma razdo, as leituras psicanaliticas — é dbvio agora que deve- mos pé-las no plural, posto que cada uma é singular — podem fazer surgir do texto de S6focles novas significagdes, que passa- rao a fazer parte também da histéria desse texto e, portanto, a interessar seus futuros leitores. Onde fica, entéo, a universalidade do complexo de Edipo e da lei da deformagao? Podemos agora perceber que afirma-la a priori nao se justifica: nesta forma geral e assertiva, tal afirmacg4o tem valor como condensaciio de inumerdveis psicandlises, mas s6 pode ser psicanaliticamente substanciada se for em cada caso reinventada e redescoberta. E s6 pode ser reinventada e redescoberta se nio quiser se fingir de cientffica e de definitiva, ilustragdo ad nauseam de um principio estabelecido de uma vez. por todas, deciframento aparentemente objetivo mas na verdade malandro de um sentido que j4 se conhece antes de comegar a ler. A psicandlise, porque é leitura, é trabalho e nao deciframento, é instauracdo do sentido e nao mera revelagao dele, é negagio singular e dolorosa e nao marcha triunfal rumo a uma transparéncia enganadora. Para concluir: 0 que é a tragédia? Nem a interpretagdo his- térica serd histérica, isto é, datada, nem a interpretagio psica- nalitica psicanalitica, isto é, singular, se procurarem responder a esta pergunta por meio de uma mistificagao objetivante. O que a tragédia foi para os gregos do século V se perdeu para nds, e nada pode mitigar a dor desta perda irreparavel. Talvez, se con- A QUERELA DAS INTERPRETAGOES 81 sentirmos em efetuar o luto dela — que também é um trabalho ~ possamos abandonar as ilusdes gémeas de que a leitura é 0 cri- me perfeito, que nfo deixa rastros, ou a epifania do sentido ori- gindrio pela voz inefayel de um leitor sem corpo, ¢ reconhecer que a tragédia so pode significar algo para nds caso nos decida- mos a aceitar que nos é impossivel saltar por cima da nossa pr6- pria sombra. Referéncias Bibliograficas A. Green, Un oeil en trop: le complexe d’Gdipe dans la tragédie, Paris, Minuit, 1969, C. Castoriadis, L institution imaginaire de la société, Paris, Seuil, 1975. C. Lefort, “A obra de pensamento ¢ a hist6ria”, i As formas da Historia, Sio Paulo, Brasiliense, 1979. C, Le Guen, “Le Moise de Michelange: un discours de la méthode psychanalytique”, in Revue Francaise de Psychanalyse, vol. 50, outono de 1976. » Pratique de la méthode psychanalytique, Paris, PUF, 1981. C. 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DESEJO E INVEJA ¢ s muss also dabei bleiben ~ ich sehe keine andere Méglichkeit: entweder ist die von seiner Kindheitsneurose ausgehende Analyse tiberhaupt ein Wahnwitz, oder es ist alles so richtig, wie ich oben dargestellt habe.”' “Assim, € preciso ficar nisso — nao vejo nenhuma outra possibilidade: ou a andlise que parte da sua neurose infantil ¢ um completo desatino, ou tudo esta tio correto quanto o descrevi acima.” Assim Freud colocava um ponto final, na primeira versdo de seu escrito, as “discusses” acerca da reconstrugao proposta para a cena primitiva do Homem dos Lobos. O tom peremptorio ser4, sem duvida, mitigado na segunda versio: aqui a questo da realidade da cena, longe de ser decidida na forma do “‘ou-ou”, vem se deparar com 0 célebre non liquet — com uma suspensao do juizo. Suspensao que se refere & realidade dos fatos, mas no ao modelo construfdo no universal a partir da singularidade de um ser humano: o conceito de cena primitiva poderé ser recuperado como fantasia originéria. O Comunicagéo no coléquio “O desejo em psicanilise”, promovido pela Unicamp, novembro de 1983; publicado em Manoel T. Berlinck (org.), O desejo em psicanilise, Campinas, Papirus, 1985, pp. 67-104. (1) Histéria de uma neurose infantil, Stadienausgabe (SA), VIII, p. 173, Biblioteca Nueva (BN), II, p. 1970. a A VINGANGA DA ESFINGE modelo s6 pode ser este, ou tudo nao passa de rematada loucura. E nao ha “nenhuma outra possibilidade”, porque a conclusao nasce da aplicagao conseqiiente das hipéteses psicanaliticas basicas ao relato do paciente: a certeza a elas vinculada passa para a tese corretamente construfda, de modo que, pela transitividade do raciocinio, duvidar dela implica duvidar dos postulados fundamentais que a sustentam; inversamente, a certeza que adere aos postulados desliza para o teorema deles extraido. O adversdrio de Freud, no Homem dos Lobos, € 0 pensamento junguiano, caracterizado como uma dissidéncia, porque seu fundamento é o princfpio da pars pro toto: da doutrina psicanalitica, selecionam-se certas nogdes e se recusam outras, hipostasiando as primeiras como base para novos desenvolvimentos. Os conceitos repudiados, porém, sao de tal forma centrais para a teoria psicanalitica - como a sexualidade infantil, por exemplo — que a nova construgio jd nao pode ser encarada como pertencendo ao campo teérico inaugurado por Freud. A presenga de certos termos comuns nao deve induzir em erro: embora oriundos da psicandlise, nio conservam na nova doutrina o mesmo sentido — os conceitos que designam nao so os mesmos — e sua travacdo reciproca nio obedece aos mesmos principios. Ha aqui premissa assumida e conseqiiéncia negada: nisto consiste a dissidéncia, por oposigiio a teorias que nada devem a psicandlise e Ihe sao simplesmente exteriores, como o behaviourismo ou a psicologia da Gestalt. A dissidéncia é assim uma faldcia légica, assentada numa re- sisténcia emocional. Frente a ela — ou a elas, porque sao varias —o freudismo se impde como bloco monolitico: ou tudo est correto, ou é um disparate absoluto. O que equivale a dizer: destas pre- missas, s6 tais conseqiiéncias — as enunciadas por Freud. Talvez isso fosse verdadeiro em 1914; seguramente nao o é hoje em dia. A histéria da psicanélise gerou uma situagao paradoxal: existem diversos modelos tedricos psicanaliticos e escandalosamente ndo- Dbsbjo E INVEJA 8 idénticos ao freudiano, que no entanto permanece como a funda- ¢Go de todos eles. O kleinismo, o lacanismo, a psicologia do ego, em diferentes niveis e com graus varidveis de distanciamento em relagao ao modelo original, sdo derivagdes do pensamento freudiano, sendo outros sem deixarem de ser psicanalitico. So outros, porque em determinadas inflexGes da doutrina, cruciais, afirmam teses diferentes ou mesmo contrdrias 4s de Freud; sio psicanaliticos, porque o fazem a partir da aceitagao integral das teorias basicas da psicandlise: inconsciente, a defesa, a sexualida- de infantil, a transferénci: ... Ha, pois, outras possibilidades e a enumeracao proposta nao tem pretensao alguma a exaustividade, pois deixa de lado conceptualizac6es marginais ou futuras, ou, simplesmente, possiveis. A psicandlise é como a Natureza, da qual dizia Leonardo que é “piena di ragioni che non furono mai isperienza””. Colocada neste nivel de generalidade, porém, esta afirma- ¢4o soa temerdria, sobretudo porque a heterogeneidade entre os diversos modelos da psicandlise parece ser, entre os psicanalis- tas, o mais bem guardado dos segredos, para nao dizer o ele- mento mais cuidadosamente reprimido. O paradigma da dissi- déncia é aplicado a torto e a direito, ficando subentendido (e as vezes muito pouco subentendido) que o enunciador do andtema é, ele sim, o herdeiro fiel e legitimo do legado freudiano. “Isto nao é psicandlise”: quantas vezes nao ouvimos, com este veredito suméario, lacanianos estigmatizarem kleinianos, estes torcerem 0 nariz diante dos psicdlogos do ego, ¢ assim por diante, até que a pecha se volte contra quem a langou? Para escapar a este bate- boca de cortico, s6 hé uma via: tomar problemas especfficos e confronté-los nas diferentes perspectivas, utilizando-os como reveladores das convergéncias e divergéncias reais entre os mo- delos que buscam dar conta da experiéncia psicanalitica. O tema * “cheia de razdes que jamais se tornaram experiéncia.” 86 A VINGANGA Da ESFINGE do desejo e da inveja pode se prestar, como qualquer outro, a esta tentativa. Acredito que andlises parciais, como a que procu- rarei lhes apresentar, séo mais elucidativas para demonstrar meu argumento do que resumos panoramicos ou bombAsticas decla- tag6es de principio. Limitar-me-ei, portanto, a abordar esta ques- tao em Freud e em Melanie Klein, e, mais do que isto, somente em alguns textos que me foi possivel trabalhar. Como afirma 0 final de Além do principio do prazer, “aonde nao se pode chegar voando, ha que chegar coxeando; o Alcorfio reza que coxear nfo é pecado”. 1 Poucas sao as referéncias de Freud & nogao de inveja, se dei- xarmos de lado o conceito de inveja do pénis. Uma consulta aos indices da Standard Edition revela que 0 termo aparece isolada- mente em nao mais do que quatro contextos: a) ainveja queas criancas sentem frente aos irmios, geralmente mais novos, que lhes retiram o privilégio de ser 0 objeto exclusivo do amor dos pais.’ Levemente modificado, este aspecto reaparece na Novela familiar do neurético: acrianga descobre a hierarquia social, sente inveja dos que Ihe sio superiores e utiliza esta descoberta para atribuir-se pais fantasmaticos “melhores” do que os seus;* b) a inveja da juventude sentida por adultos j4 maduros, em particular pelo pai frente ao filho* ou pela mae frente a filha em idade de casar:5 (2) A interpretacdo dos sonhos, V. E.~SA II, p. 265; BN I, p. 500; Psicologia das massas ¢ andlise do ego, 1X - SA IX, p. 111; BN IIL, p. 2594. (3) A novela familiar do neurético, SA WN, p. 224; BN HI, p. 1362. (4) A interpretacao..., VII, C (sonho do fitho na guerra), SA IL, p. 534; BN 1, p. 686. (5) Psicogénese de um caso de homossexualidade feminina, SA VII, p. 267; BN Ul, p. 2551 Deskjo E INVEJA 67 c) a inveja sentida diante daquele que quebrou um tabu, por exemplo o do assassinato, j4 que todos albergamos as mesmas tendéncias e habitualmente as reprimimos:® d) a inveja que 0 rei provoca por seus privilégios’ ou, mais geralmente, aquela que projetamos no outro quando possu- imos algo precioso e perecivel, cuja posse sentimos ameagada pela inveja alheia: é que lhe atribuimos o senti- mento que nés mesmos experimentarfamos caso a situagdo fosse inversa.* O que ha de comum entre estas situagdes, que permita for- mular claramente o que Freud entende por inveja? A primeira parece caber melhor na rubrica dos citimes: é rivalidade pelo amor e envolve uma triangulagdo, jd que os personagens do drama sao a crianga, 0 irmao e os pais. Nao € por acaso que, nas duas vezes em que Freud © evoca, o termo aparece no contexto de uma dis- cussio sobre 0 complexo de Edipo. Quanto a juventude e aos pri- vilégios reais, s4o casos particulares do “precioso, mas transité- Tio”; 0 jovem fatalmente deixard de sé-lo, 0 rei pode morrer ou ser destronado. H4, pois, um atributo que 0 outro possui e eu nao, e do qual frui na dimensao do gozo: por ser rei ou por ser jovem, pode ter prazeres de que me vejo privado. O castigo do assassino é outra variante do mesmo caso: deve ser punido aquele que sa- tisfaz uma tendéncia proibida pela cultura, isto €, que se permite (6) Totem e Tabu, 0, 2: SA 1X, p. 324; BN IL, p. 1767. Na tradugao espanhola, falta uma frase decisiva: “... ejemplo. / Er erweckt Neid; warum sollte ihm gestauet sein, was anderen verboten ist? { (Ele desperta inveja; por que the deveria ser permitido 0 que é proibido aos outros?), Resulta, pues...” Também Q futuro de uma ilusdo, 8: SA IX, p. 174; BN Ill, p. 2983. (7) Totem e tabu, Il, 2: SA 1X, p. 325; BN I, p. 1768. Aqui se fala em “evitar a tentacio”, e aos privilégios do rei se seguem trés casos de desvalimento que poderiam provocar excitagdo sexual e por isso sdo tabu: o morto, a crianga ¢ a mulher que acaba de dar & luz. (8) O sinistro, cap. 2: SA IV, p. 262-263; BN Il, p. 2497. 88 A VINGANGA DA ESFINGE um prazer do qual os demais estaéo necessariamente exclufdos. Punir o transgressor é assim punir a todos, na medida em que 0 ato castigado poderia ter sido praticado por qualquer um; a puni- ¢ao é defesa contra a inveja, justificada pela identificagao com o transgressor e pela disposigao ao crime que ele ousou atualizar.O que a inveja inveja 6, assim, num primeiro momento, o atributo e a ousadia; mais precisamente, é aquilo a que a posse do atributo ou 0 exercicio da ousadia dao acesso, ou seja, uma gratificagao pulsional da qual me vejo privado. E neste sentido que surge, por projegao, o medo de ser invejado, se sou eu quem me encontro na posic¢ao de fruir algo que escapa 4 algada do outro. A inveja é, entdo, 0 sentimento que surge em A quando B possui algo que preenche trés condigées: ser de sua posse exclusiva, proporcionar uma gratificagao excepcional que nao pode ser partilhada e, curi- osamente, ser transitério ou perecivel. Este trago ¢ explicitamente afirmado n’O sinistro, mas pode ser igualmente predicado das outras situagdes. Por que este elemento figura com tanto destaque na nogio de inveja? ‘Vejamos 0 texto, que procura explicar o temor do mau-olha- do: “Quem possui algo precioso, porém transitério, teme a inveja dos outros, na medida em que projeta sobre eles a inveja que teria sentido na situagao inversa. Eo olhar que trai estes movimentos, mesmo que lhes seja negada expressdo verbal, e, se alguém se destaca frente aos demais por signos especiais, principalmente por sinais voluntdrios, cré-se que a inveja deles alcancard muita forga, e que esta forga se traduzirdé em atos, Assim, teme-se uma intengao secreta de prejudicar, e, baseando-se em certos indicios, supde-se que esta intengao também tenha a disposico os meios de realizar”, A inveja é descrita como sutil e tendo que ser inferida por indicios e sinais; esté associada a uma intengao secreta de prejudicar. No que consistiria a realizagdo desta intengao? Na in- versio da situag’o: o que é agora meu pode deixar de sé-lo, se a inveja do outro alcangar forga suficiente para se traduzir em atos. DESEJO E INVEJA 89 E condigio da inveja, assim, que o bem invejado seja algo capaz de circular entre os sujeitos, mas igualmente perecivel e fragil, isto é, capaz de ser destruido neste processo de furto sorrateiro em que consiste a apropriagao. O prejuizo sera, desta forma, pri- var-me do gozo propiciado pelo atributo em questao, sem que no entanto 0 invejoso possa estar seguro de que, ao me tomar tal atri- buto, este resista 4 apropriacdo e possa ser por sua vez causa de fruigdo para ele, Nisto consiste a diferenga entre a cobiga e a inve- ja: o alvo da cobica é apropriar-se do desejavel, o da inveja é pri- var o outro do que o gratifica ou é condigao da gratificagao. Con- yém ainda distinguir 0 ato de prejudicar, oriundo da inveja, e a intengao de prejudicar, que seria o correspondente ideativo do afeto invejoso. Em suma, Freud concordaria com a definigdo espinozana da inveja, segundo a qual “a inveja é o 6dio na medida em que afeta o homem de tal maneira que se entristece com a felicidade de outrem, e, ao contrario, experimenta contentamento com o mal de outrem” (“Definigaéo das afecgdes”, Livro III da Etica, item 23), apenas com 0 reparo de que o contentamento surgiria da pré- pria ago do invejoso. Neste ponto, ¢ util introduzir o tema da inveja do pénis, objeto de inimeras referéncias nos escritos de Freud. Cabe perguntar se ela responde as condigées gerais enunciadas para a inveja, ou se nao seria mais adequado falar de desejo pelo pénis. Isto implica questionar © conceito freudiano de desejo, posto que no afeto invejoso ha claramente algo da vertente do desejo: caso contrério, nao se compreenderia o porqué da inveja; ninguém inveja o que lhe parece desprovido de valor, ou, como diz 0 provérbio, “quem desdenha quer comprar”. Ao falar da descoberta do pénis pela menina, Freud introduz o termo Penisneid da seguinte maneira: “ela percebe 0 pénis bem visivel e grande (...), reconhece-o incontinenti como contrapartida superior de seu préprio érgfo, pequeno e oculto, e a partir daf sucumbe a inveja do pénis. (...) Num dtimo, ela toma sua decisio 9% A VINGANGA ba EStINGE e formula seu juizo: ela viu isso, sabe que nao o possui, ¢ quer possui-lo”’. Por que falar aqui em inveja e nao simplesmente em desejo do pénis? Laplanche e Pontalis, ao definirem em seu Vocabuldrio da psi- candlise 0 conceito de desejo, afirmam candidamente: “Em toda concepgao do homem, hé certas nogGes demasiado fundamentais para que se possa delimité-las firmemente; é sem diivida 0 caso do desejo na doutrina freudiana”!*. Prudente lembrete! Nao pretendo mais do que aflorar uma das dimensGes do desejo: a da perda. O objeto do desejo é um objeto perdido, e por esta raziio ele se define como indestrutivel: mais do que um adjetivo, esta propriedade é a esséncia mesma do desejo. Por qué? Porque ele se constitui na alu- cinagéo. Um primeiro objeto trouxe satisfagao, e, como “conseqii- éncia desta experiéncia, 0 trago mnésico de uma certa percepgao ficou associado ao trago mnésico da excitagdo resultante da neces- sidade. Quando esta necessidade surge novamente, iré se produzir, gragas 4 ligagao anteriormente estabelecida, um movimento psi- quico que procurard reinvestir a imagem mnésica desta percepgio, e buscar4 mesmo evocar esta percepgio. Um movimento psiquico deste tipo é o que chamamos desejo. A reaparigao desta percepgdo é arealizacdo do desejo””''. A necessidade ndo é 0 desejo: este con- siste no “movimento psiquico” (psychische Regung) que desembo- ca no reinvestimento da imagem daquele objeto que uma vez apla- cou a necessidade. Freud distingue a extingao da necessidade, que denomina satisfagio (Befriedigung), da presenga daquilo a que o desejo visa, ¢ que o realiza (erfiillt). O desejo se realiza quando reaparece uma percep¢io, que tanto pode provir do exterior quanto do interior do aparelho psiquico: 0 que o desejo deseja é uma iden- tidade de percepgio, a qual é indiferente que corresponda ou néo (9) Algumas conseqtiéncias psiquicas..., SA V1, p. 260; BN Il, p. 2899. (10) Laplanche e Pontalis, Vocabulaire de la Psychanalyse, Paris, PUB, 1967, artigo Désir, p. 120. (11) A interpretacao dos sonhos, VII, C: SA I, p. 539; BN 1, p. 689. DEsjO £ INVEJA oI um objeto externo. Quer dizer que a realizag&o do desejo pode se dar no registro da fantasia, do sonho, do sintoma ou da alucinagio, que o desejo funda uma ordem de realidade que lhe é prépria e que Freud nomeia como “realidade psiquica.” Neste sentido, 0 desejo é indestrutivel porque a primeira percepgao, embora visada em per- manéncia, estd simultaneamente perdida, em virtude tanto da pas- sagem do tempo quanto dos mecanismos de defesa postos em mo- vimento para impedir alucinagées constantes. O que é visado é a identidade de percepgao, mas 0 que é reinvestido (idealmente) € 0 trago mnésico, ou imagem mnésica, da percepgao, isto é, uma ins- crigdo, uma recordagdo, mas jamais la chose méme. Dai o deslizamento incessante do desejo, em que novos objetos vao ser investidos como que & cata do primeiro objeto perdido (objeto que nao se confunde, repitamos, com o que primeiro aplacou a necessi- dade, e cuja auséncia ou a auséncia de um equivalente conduz o organismo & morte. Ha necessidade de leite, mas desejo de seio, eo seio é uma fantasia). O desejo € assim definivel por sua caracteris- tica intrinsecamente fantasmitica, e é por isso que a fantasia serd 0 correlato do desejo, seu cendrio, seu roteiro e sua realizagio. Na fantasia, como no sonho, os desejos nao precisam se realizar por- que jé estao sempre realizados: fantasiar e sonhar sdo realizagdes de desejo, independentemente de seu contetido especifico. Dizer que 0 objeto do desejo é um objeto perdido significa dizer que ele se constitui sobre um fundo de falta, e 6 desejo de abolir esta falta. Sera por isso igualmente desejo de coincidéncia e de plenitude, de Evfiillung, de preenchimento. Uma das dimen- sdes do narcisismo € precisamente o investimento de uma ima- gem de si tida como perfeita e sem caréncias. Ora, a questo da inveja do pénis esté diretamente articulada ao narcisismo, posto que a descoberta de sua auséncia é vivida pela menina como uma ferida narcisica de cardter traumatico. Freud assinala que ela o descobre como “contrapartida superior de seu préprio 6rgio, pe- queno e escondido” . Ha, pois, um sentimento de inferioridade e 92 A VINGANGA Da Esrisce de ter sido prejudicada em relagiéo ao menino, e sabemos quaéo amargas serao as recriminagGes que enderecard & mae por té-la feito “incompleta”. Mas aqui surge o problema: se reconhece que “ndo o tem” e “quer té-lo”, como entender este “quer” a luz da teoria do desejo elaborada na /nterpreiagdo dos sonhos, segundo a qual no se quer o que nfo se tem, mas o que se perdeu? E que, na fantasia, ela o teve e o perdeu: se nao se pode atribuir 4 mulher uma angustia de castragao (pois a castragao é para ela um “fato ja ocorrido”), certamente é legitimo admitir-lhe um complexo de castragao. O desejo de ter um pénis é mais forte que o reconhecimen- to de nao o ter: a fantasia inconsciente nega esta realidade, ou, como diz Serge Viderman, “transforma em realidade psiquica a irrealidade fisica’'?. Podemos dizer que a evolugao da sexualida- de feminina est4 condicionada por esta transformagao da inveja do pénis em desejo do pénis, e é desta forma que Freud descreve, em 1925 como em 1932 e 1933, as possibilidades abertas 4 menina para elaborar a cruel descoberta: a recusa da falta (sie doch einen Penis hat, ela no entanto tem um pénis, logo nao precisa desejé- Jo), o complexo de masculinidade (ainda nao o tem, mas ele cres- cerd no lugar do clitéris), ou o dificil e doloroso trajeto rumo a feminilidade ps{quica, passando pelo desejo do pénis do pai e cul- minando no “deslizamento ao longo da equac4o simbélica pénis = crianga”. E evidente que no hé rentincia ao desejo, mas substi- tuigdo do objeto suposto capaz de trazer sua realizagao. Em que momento, contudo, se expressaria a inveja do pénis, se considerarmos como inveja o sentimento definido pelas trés condig6es que enunciamos — visar a um objeto precioso e fragil, possuido exclusivamente pelo outro e que the proporciona uma gratificagdo nica em seu género? Nao é nada facil responder a esta questo, talvez estejamos aqui diante de uma ambigiiidade (12) Viderman, S., La construction de espace analytique, Paris, Gallimard, 1981, 3*ed., p. 221 DESEJO E INVEJA 93 fundamental, que convém nao tentar reduzir apressadamente. E sintomdatico que Freud passe quase insensivelmente da inveja ao desejo do pénis; nao diz, por exemplo, que a menina renuncia a inveja, mas ao desejo de um pénis. A inveja falica “abandona seu verdadeiro objeto, mas nao deixa por isso de existir: mediante um leve deslocamento, persiste no traco caracterial dos citimes (...), que recebem um enorme reforgo da inveja félica desviada”'*, No artigo sobre as diferengas psiquicas, a inveja falica aparece, pro- duz certas conseqiiéncias (afastamento da mae, entre outras), des- loca-se para os citimes, e, pela via da rentincia 4 masturbagio clitoridiana, desaparece do cendrio para dar lugar ao desejo por um pénis. Vejamos isto de perto: “Nao posso explicar-me esta rebeliao da menina contra a masturbago falica, sendo aceitando que algum {ator concorrente interfere nesta atividade tao prazen- teira, estragando sensivelmente sua fruigaéo. Nao é necessario ir muito longe para encontrar este fator: trata-se da ofensa narcisica ligada a inveja do pénis, isto é, da adverténcia que a menina se faz de que a este respeito nao pode competir com o menino, e que portanto seria melhor renunciar a qualquer equiparagdo com este. Desta maneira, 0 reconhecimento da diferenga sexual anat6mica forga a menina pequena a se afastar da masculinidade e da masturbagio masculina, dirigindo-a para novos caminhos, que desembocam no desenvolvimento da feminilidade (...) A libido da menina desliza para uma nova posig4o, seguindo o caminho preestabelecido — nao é possivel expressé-lo de outra forma — pela equacao “pénis = crianga’”’. Renuncia a seu desejo do pénis, pondo em seu lugar o desejo de uma crianga, e com este propésito toma 0 pai como objeto de amor’. O desejo da crianga é um substituto do desejo do pénis, mas de onde vem este Ultimo? Se ha rentincia, é porque ele em algum momento se instalou; mas 0 ponto de par- (13) Algumas conseqiién (14) Algumas conseqiiéncia: SA V, p. 263; BN III, p. 2900. SA V, p. 264; BN II, p. 2901. 94 A VINGANGA DA ESFINGE tida nao é este desejo, ¢ sim a inveja 4 qual a menina “‘sucumbe” no instante mesmo em que descobre sua caréncia. Talvez —é uma hipétese — possamos nos representar este processo da seguinte maneira: a menina vé 0 pénis e 0 quer para si. Neste momento ha inveja, inveja do atributo visivel e da gratificacado que ele é supos- to proporcionar (nao a penetragdo vaginal, mas mais amor por parte dos pais, talvez). A masturbagdo clitoridiana visa reprodu- zir de algum modo a gratificagao local, 0 que Freud chama em outras ocasides “prazer de 6rgdo”. Esta é num primeiro momento geradora de prazer, mas, sob o efeito da ferida narcfsica que nasce da comparagao (a qual dé simultaneamente origem a inveja) — 0 prazer malogra e ha abandono da masturbacio clitoridiana. Soba pressao do narcisismo ferido, a inveja produz suas “conseqiién- cias”, e pode ou bem persistir ou bem ceder lugar ao desejo do pénis. Persistir: no complexo da masculinidade ou na recusa da falta, que, no caso de se prolongar, assinalard a entrada na psico- se. Ceder lugar ao desejo do pénis: a fantasia de ter um pénis no lugar do clitoris se transpde em querer gozar do pénis na relagao sexual ou querer ter 0 pénis-bebé. Da inveja, poderd restar um trago atenuado nos citimes, sentimento mais sofisticado ¢ que pres- supoe a triangulacao e a travessia do Edipo. Entio: inveja do pénis ou desejo do pénis? Parece que, nes- tes termos, a questdo estd mal colocada. Nao hé “ou”, mas “e”. antes e depois. Contudo, a ambigitiidade permanece, e o deslizamento é patente, tanto em Freud como nos que, depois dele, procuraram elucidar a questao. Em Laplanche e Pontalis, é mesmo possivel perceber o lugar exato em que se da o desliza- mento semantico: “L’envie du pénis nait de la découverte de la différence anatomique des sexes: la petite fille se sent lésée par rapport au garcon et désire posséder comme lui un pénis (complexe de castration)”. O desejo de possuir um pénis como o do menino é assim uma manifestacg4o da inveja que nasce da descoberta da diferenga — a oposi¢a4o pertinente € aqui a do falico ¢ do castra- DESEO £ INVEJA 95 do, a diferenga nao se dando como entre dois positivos (pénis e vagina), mas como entre um mais e um menos. “Puis cette envie du pénis...” (portanto hd imbricagao do desejo e da inveja; o determinativo refere-se tanto ao sentimento de ter sido lesada quanto ao desejo de possuir 0 Orgiio masculino) “prend dans le cours de |’CEdipe deux formes dérivées” (a inveja do pénis se dé assim antes do “curso do Edipo, porque é 0 fator que precipita a menina neste curso): “Envie d’acquérir un pénis au dedans de soi, principalement sous la forme du désir d’avoir un enfant; 2745 envie de jouir du pénis dans le coit”’, Nesta ultima frase, “en- vie” significa obviamente “vontade” e nao “inveja’”, esta dupla vontade esta conotada como “désir”, desejo. Convenhamos que a polissemia do termo “envie” nao pode ser atribuida a Freud, que escrevia em alemao; mas penso que a ambigiiidade que per- cebemos no texto freudiano encontra-se admiravelmente trans- posta no francés dos autores do Vocabulario. O mesmo ocorre com Ernest Jones, citado por Laplanche e Pontalis, quando, ao procurar levantar a ambigiiidade da expresso “penis-envy”, dis- tingue trés sentidos diferentes, todos formulados em termos de desejo: “desejo de adquirir um pénis, desejo de ter um pénis na tegido clitoridiana, desejo de gozar do pénis no coito adulto”!*. A linguagem, assim, reflete uma dificuldade da prépria coisa; podemos retomar a critica que Laplanche e Pontalis fazem a Jones (os trés desejos nao sao tao claros e distintos que convenha separd-los por completo), aplicando-a para assinalar que, se ha oscilagao do sentido, & porque inveja do pénis e desejo do pénis s&o dois lados de um mesmo problema, o da mola fundamental da sexualidade feminina. Resumamos nosso percurso. Ele conduz a dois tipos de observag6es: (15) Laplanche e Pontalis, (16) Apud Laplanche ¢ Pontalis, op. cit, p. 137 Envie du pénis”, Vocabulaire..., p. 136. 96 A VINGANGA DA ESFINGE Em Freud, a inveja como tal esté longe de ser uma referén- cia te6rica importante; aparece sempre em meio a discus- sio de outros temas, € 0 texto mais longo dedicado a ela nio ultrapassa meia diizia de linhas. E descrita como um sentimento que visa privar 0 outro de uma gratificacio pulsional, que pode ser agressiva (assassino) ou libidinal, caso em que a dimensao narcisica parece prevalecer (inveja da juventude, dos privilégios, etc.). Volta-se para um atri- buto possufdo pelo objeto, atributo qualificado como “pre- cioso” e “perecivel”. Os exemplos concernem sempre pes- soas (criangas ou, mais freqientemente, adultos), sem qual- quer distingio de sexo. Nao se distingue claramente do de- sejo pelo atributo gratificador, a nado ser por uma “secreta intengao de prejudicar”, e se presta bem a projegao sobre outrem. Oconceito de inveja do pénis pouco tem a ver com a nogio de inveja tout court. Refere-se a um objeto parcial, ¢ exclu- siva do sexo feminino, e forma um dos sentimentos associ- ados ao complexo de castragao, sendo por assim dizer a dimensao narcfsica deste ultimo. E 0 momento de identifi- cagio com 0 menino, momento que deve ser abandonado para que o desenvolvimento rumo a feminilidade, via com- plexo de Edipo, possa ser satisfatoriamente concluido. For- nece o motivo principal para o afastamento da mie e para a escolha do pai como objeto erdtico, primeiro tempo do Edipo. Distingue-se dificilmente do desejo pelo pénis, cons- tituindo a bem dizer a forma rudimentar deste Ultimo. Pro- duz um certo nimero de conseqiiéncias, devido ao cardter de ferida narcfsica que assume a descoberta da diferenga anat6mica dos sexos; pode ser deslocada, ou cristalizar-se num trago de carater (citimes), ou ainda persistir e formar a base para certos transtornos psiquicos. Situa-se na fase falica (3-4 anos), sendo portanto uma emogio relativamente tar- dia, o que é igualmente comprovado por ser acompanhada de um juizo de valor e de uma decisdo descrita como ocor- Desij0 EINVEJA 97 rendo no plano da consciéncia. Por fim, na qualidade de fantasia inconsciente, permanece ativa e de certa forma em oclusio com o desejo do pénis, que no entanto deve vir atenud-la decisivamente, para que se plasme a realidade psi- quica prépria a mulher. 2 Se nos voltarmos agora para as concepgGes de Melanie Klein acerca da inveja, verificaremos que elas nao somente sdo bem mais amplas e detalhadas do que as expostas por Freud, mas sobretudo que se situam num ponto diferente da rede conceptual destinada a explicar o funcionamento psiquico e os fendmenos observados na situagado analftica. Para maior clareza, convém distinguir aqui também o tépico “inveja” do tépico “inveja do pénis”. Ao contrario do que se passa com Freud, 0 segundo termo aparece muito menos vezes, denotando a primeira vista uma importancia relativamente menor do conceito; isto explica, a meu ver, por que 0 conceito de inveja do pénis muda radicalmente de sentido ao ser claborado por Melanie Klein. Os dois tragos essenciais da inveja do pénis em Freud sao 0 cardter eminentemente erdtico deste sentimento, isto 6, sua pertinéncia ao registro das pulsdes sexuais (ele precipita a menina no complexo de Edipo), e seu papel de motor da evolugao sexual feminina. Nem uma coisa nem outra ocorrem em Melanie Klein, e por razGes muito sdlidas, que nio podem ser reduzidas a uma mera mudanga de énfase, e muito menos a um problema de cronologia. A tese de um complexo de Edipo que se instala durante 0 primeiro ano de vida, em meio & fase do “apogeu do sadismo” e em reagao a frustragao oral do desmame —~ tese exposta no artigo de 1928 sobre os “Early stages of the GEdipus conflict” ~, implica reformular com- pletamente tanto a teoria da sexualidade feminina quanto a questao mais especifica da inveja do pénis, além de tornar a travessia do 98 A VINGANGA DA EsFnNGE Edipo um processo que se estende por varios anos ¢ determina pra- ticamente todos os passos da evolugao psiquica dos dois sexos. Prova disso é 0 impacto desta concep¢do sobre os temas da pulsio de saber, da agressividade, da neurose e da psicose infantis, da forma- ¢ao do pensamento simb6lico e abstrato, e da propria técnica de and- lise pelo jogo, para ficarmos apenas numa enumeragio superficial. O ponto focal do pensamento kleiniano é a teoria da angistia, e € natural que o problema do complexo de Edipo venha a tomar forma no contexto desta intuig&éo matricial. Melanie Klein distin- gue, no inicio do Edipo, uma fase “feminina” comum aos dois se- x08, na qual prevalece uma identificagao com a mae; a passagem a etapa seguinte, “‘masculina” nos dois sexos, é condicionada pela angutistia; o terceiro tempo, feminino na menina e continuagiio do tempo masculino no menino, também se vem instalar no sulco aberto pela angtistia. Como nao podemos entrar nos detalhes deste proces- so, digamos apenas que a inveja do pénis pertence 4 segunda etapa na seqiiéncia feminina, e que tem seu correspondente no que pode- ramos chamar de “inveja do Utero” no momento equivalente do menino. Vejamos mais de perto qual a origem da inveja do pénis. O complexo de Edipo surge na fase oral “canibal” e é uma reagdo 4 privagao do seio materno, que desencadeia fiiria, ddio e fantasias agressivas no bebé. A receptividade caracteristica da fi- nalidade sexual feminina, que se manifestara como oralidade nos meses que precedem a eclosio do Edipo, facilita a transigdo do bebé feminino para as finalidades genitais receptivas: em busca de um objeto para ser incorporado, a menina pequena volta-se para o pénis do pai, como substituto do seio materno. Este pénis € suposto estar no interior da mae, e, como lemos em Psicandlise da crianga, é imaginado como portador de formidéveis capacida- des de gratificagao oral."’ Dentro da l6gica Kleiniana, na qual o (17) M. Klein, A psicandlise da crianca, Sio Paulo, Mestre Jou, 1981, cap. XI. p. 280 e segs. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. DESEO E INVEJA 101 de cobiga ¢ de desejo na expressio “inveja do pénis”, inserida entre dois momentos de desejo por um bebé. Em ultima andlise, o sentido desta inveja é essencialmente defensivo e de compensa- ¢4o, como fica claro em outra passagem do mesmo artigo: “O temor de que sua feminilidade seja ferida exerce uma profunda influéncia no complexo de castragao da menina, porque a conduz a superestimar o pénis que lhe falta; este exagero é entao muito mais 6bvio do que a angtstia subjacente quanto a sua propria fe- minilidade”™. E, pois, em fungao do privilégio da angtistia que o tema da inveja do pénis se desloca do registro libidinal para o defensivo, recebendo portanto o estatuto de um fenémeno secun- dario, e no o de fulcro da dialética da sexualidade feminina, como Laplanche e Pontalis a definem em seu Vocabulario, na esteira de Freud”, ROK O amplo estudo dedicado a inveja em 1957 (Inveja e grati- dao) situa-se no contexto do crescente interesse de Melanie Klein, em seus escritos finais, pelos mecanismos e manifestagdes da posigio esquizoparandide, interesse acompanhado pela retomada da problematica das pulsdes, em termos da intensidade relativa e da proporgdo varidvel em que as pulsGes de vida e de morte se combinam em cada caso individual. As “express6es” das pulsdes tornam-se assim objeto de descrigdes pormenorizadas e de ensai- os de génese metapsicoldgica: é 0 caso da avidez nos artigos de 1952, da inveja e da gratidao no texto que discutiremos agora; a distingao fundamental passa a ser a do “excessivo” por oposigéo ao “necessdrio”, no caso das expressGes da pulsdo destrutiva. Por outro lado, a vinculagdo da inveja as pulsdes agressivas, se a prin- (22) M. Kle (23) Laplanche ¢ Pontalis, “ ..", p. 193. Envic du pénis”, Vocabulaire... p. 136. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book.

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