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>—__— Se Cap iilo Ore aaiaeieaeice Leituras sob 0 aspecto diacrénico - 1 TT Critica Literdria, Critica dos Géneros Literdrios e Sitz im Leben aac O Zeca esté em crise. O professor disse que, quando ele toca, todas as misicas parecem moda de viola, ¢ que ele precisa aprender as diferengas entre os varios ritmos, Lé na Vila do Caapora, ele ndo precisava se preocupar com essas coisas: 0 que nao era baido, era valsa, ou era miisica sertaneja, E, se ndo fosse nada disso, era rock! Mas agora, essa historia de polca, barroco, rococé, dria... “Isso é um balaio de gato”, como diria seu Janudrio, pai do Zeca Pois bem. O Zeca resolveu aprender. Emprestou uns discos e comegou a ouvir melodias dos varios ritmos, agrun pados segundo a classificagdo de cada um: primeiro, vé- | | rias polcas; depois, melodias do barroco, ¢ assim por diante | Nao demorou muito e ele jd conseguia distinguir wn estilo do outro, E mais: ficou também sabendo em quais situa. ses determinado tipo de miisica surgiu e era utilizada Ea Biblia? | Serd que, quando a lemos, levamos em considera- | eo que podemos estar lidando com géneros literdrios distintos uns dos outros? Serd que identificar as caracte- risticas formais dos textos biblicos pode ajudar nossa lei- tura? Ou serd que consideramos tudo a mesma coisa? 173 1, UM OUTRO TIPO DE LEITURA Até agora, estudamos as pericopes em sua redagao final, isto €, a formulago qué chegou até nds. Com efeito, a leiturs sincrénica nfo se questiona sobre a histéria do texto. Simples. mente procura compreender determinada pericope em sua confi. guraco atual: como se articulam as varias estruturas, 0 uso do vocabulirio, a gramitica e as figuras de linguagem. E, exceto no casos levantados pela Critica Textual, até agora nao nos questio- namos sobre a integridade do texto. Chegou, pois, o momento de investigarmos as etapas pe- las quais passou o texto, desde sua primeira elaboragtio até 4 versdo que temos em nossas edigGes criticas. Com efeito, og textos biblicos nfo nasceram por mero gosto estético e, muito menos, isolados da vida palpitante de uma comunidade conereta, seja ela judaica ou crista. Antes, as Escrituras foram geradas no ambiente comunitario, repleto de reflexdes, de intercambios com outras comunidades, de vivéncias partilhadas e de desafios pro- Ppostos por problemas concretos e situados. Alguém, talvez, pergunte: E possivel reconstruit “as fases da vida" de um texto? A ciéncia biblica desenvolveu, ao longo dos tiltimos sécu- los, passos metodol6givos ¢ critérios para recompor este proces- so. O complexo de tais passos e critérios compoe 0 chamado “Método Hist6rico-Critico”, e ser exposto neste e nos dois pré- ximos capitulos A CRITICA LITERARIA! Comecemos por uma disting&o necesséria: Critica Textual e Critica Litéréria. Embora sejam métodos de andlise bem dife- rentes € com objetivos especificos, na pritica, muitas yezes, se Muitos exegetas, notadamente os da Escola Americana, distinguem entre “Critica Literdria" e “Critica das Fontes”. Tal diferenciagao tem como base © seguinte princfpio: a critica literéria preacupar-se-ia com um tinico texto. 174 sobrepdem. Por isso, convém deixar claro o que é proprio de cada um deles. A Critica Textual procura reconstruir 0 texto tal gual saiu da mao do autor ou do ultimo redator, isto é, 0 texto “original” (em alemao, Urtext). B, portanto, uma leitura “de tras para a frente”, que parte de nos em diregao a0 redator final, a fim de elucidar as mutagdes que o texto ‘escrito sofreu.de 14 para cd. A Critica Literaria, ao contrario, procura refazer © processo de formagio literdria, por meio da reconstrugao das etapas ante tiores a redacdo final, Para tanto, precisa distinguir os elementos que foram utilizados pelo tiltimo redator na conclusao de seu trabalho e com 0s quais este mesmo redator modificou um texto ou uma tradigdo oral que jé existia anteriormente, e que € consi- erado a forma primitiva (em aleméo, Urform) , E contrariamen- te A Critica Textual, @ Critica Literdria pode ser realizada mesmo por quem nfo conhece 0 greg0 € & hebraico (embora isso nao seja 0 ideal), pots basta ter sensibilidade ao texto e aplicar 0S critérios que setao apresentados a seguir Feitas esas observagdes iniciais, tratemos especificamente da Critica Literaria. Sabemos que a maioria dos textos biblicos foram escritos “em mutirao”, isto é, foram transmitidos ¢ modifi- cados 20 longo das geragbes, a principio, oralmente. Sabemos também que cada geragio adaptou, teformulou e enriqueceu (ais textos, a partir de novas experiéncias. Por isso, é comum encon- trarmos pericopes com duplicagdes OU» mesmo, incoeréncias. ‘A Critica Literdria dé, pois, especial atengao & tais repeti- ges € incongruéneias, a fim ide determinar, caS0 por Caso, Se estamos diante de um texto unitario, homogéneo, consistente & coerente, ou, 20 contrario, diante de um texto compésito, hetero- géneo, inconsistente € iincoerente. Como resultado, quer-se che- gar & forma primitiva (Urform) do texto. Nao podemos nos es- Guecer, porém, que hé varios graus ge interferéncia do redator Gnquant a Critica da Fontes estudaria se elements semelhantes ocorrem tm outzos textos € se € posstvel estabelecer uit cronologia, uma origem © dima estratificago comuns a eles. De nossa part. deixaremos de lado tal distingo, uma vez. que nfo conquistou ‘unanimidade entre os estudiosos por revelar-se, por vezes, noperante © com resultados por demais fundados em suposig0es. 175 final, isto é, hé varios estratos redacionais, desde o acréscimo ou substituig&io de pequenos fragmentos, até unidades mais comple- xas, de um ou mais versiculos*. 2.1. Critérios para a Critica Literdria Para nossa felicidade, nossos amigos exegetas nao nos deixaram “no mato sem cachorro”. Antes, estabeleceram alguns critérios que nos ajudam a detectar as intromissdes dos redatores biblicos?. Vejamos: a) DuplicagSes ¢ repetigdes que incomodam: As mesmas informag6es tornam a aparecer na mesma per'- cope? (Jo 4,47 e 4,49; 4,50 e 4,53). Ha repetigiio de palavras sem justificagdo no desenvolvimento légico do texto? (Is 40,6c 40,74). O mesmo episédio é narrado mais de uma vez no mesmo documento ou livro? (Gn 1 ¢ 2; Ex 3,1-12 e 6,2-13; 0s sinéticos) b) Tensées e contradigdes evidente: Hi incoeréncias légicas e tematicas? (Gn 7,17 € 7,24; Gn 1,27 © 2,21.23). Convém fazer uma recomendagio importante: a Critica Litersria seja fcita somente depois da leitura sincrdnica, a fim de no se comegar jé questionan- do a homogeneidade do texto. No entanto, no podemos deixar de observar que este particular constitui um motivo de querelas entre os estudiasos. Alguns dizem que a Critica Literéria € a primeira andlise a se fazer, logo apds a Critica Textual. O estudo comegaria, portanto, pelos fatores de incoe- réneia e ruplura, Outros advogam que, antes de se questionar a unicidade de um texto, deve-se buscar os fatores de coeréncia, para nfo se cair na tenta- go de se ver apenas tensdes. Cl. Eccer, W. Metodologia do Novo Testa: mento. S20 Paulo, Loyola, 1994, pp. 160-161 e, em especial, a nota 19. Strecker, G. & Scunetce, U. Einfiihrung in die neutestameniliche Exege- se. 4, ed, Gottingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1994, p. 46; Steck, O. Fl Exegese des Alten Testaments. 13, ed. Neukirchen, Neukirchener, 1993. p. 53; Baisesois, M. Des Méthodes pour mieux lire la Bible - l'exégese historico-eritique, Montréal, SOCABL-Poolines, 1983. p. 19. 176 7 «) Fraturas e lacunas na estrutura da frase eno desenvolvimento da ago: 'A unidade 6 interrompida por uma digressao, um comen- jr ou uma observacao Secundatia? (Me 7,3-4; 18 14,15). 4) Elementos atfpicos em relagio ‘a.um determinado género literdrio* Hi intromissdo de elementos que quebram o esquema co- num a vérios textos do mesmo tipo? (Me 2,1-12) «) Dados contraditério © narrado corresponde as circunsténcias temporais, espa- ciais, culturais, sociais etc., nas guais € inserido? (Jz 9.2.6). Fé snaeronismos? (Gn 2132.34). Ha nomes ¢ informagdes contrar diorios para as mesmas pessoas ou situagdes? (Jz 8/31 2 9.1.28; 12 9,12 e Jz 6-8 ). Mudaram 0s personagens sem spiso prévio? As ages narradas se desenvolvem de forma I6gi- ta? (Ex 24,1-2,9-1] € 24,3-8.12-15a e 24,15b-18). ) Linguagens ¢ estilos diversos ocorrendo em um mesmo trecho: HA alternancia prosa-poesia? (1Tm 3,16). Hé alternancia de imagens? (Is 11,1-5 e 11,6-8 ¢ 11,9 ¢ 11,10 e 11,11-16) g) Contradigbes surpreendentes no contetido: Os temas que aparecem so tipicos desse autor? Embora nao usuais, S40 encontrados em outros textos seus? HA incoerén- cias quanto & teologia, ao ponto de vista, aos pressupostos, &s conclusées? (Paulo é 0 autor da carta aos Hebreus? E das epfsto- las pastorais?) Quaiido temos téxtos paralelos, tais como os evangelhos sinéticos, € facil perceber as diferengas e as mudancas operadas em um texto, Quando, porém, estamos diante de um texto sem A apresentagdo teGrica e sistemética sobre esse ponto se encontra mais & frente, v7 paralelo ou duplicata, o trabalho da Critica Literdria torma.se mais dificil e exigente: Como, a partir de um tinico texto, eyi, denciar as tenses e as incoeréncias e, assim, detectar a intromis. siio de outro redator? Além disso, convém lembrar que 0 mesmo autor pode ser por vezes incoerente, Convém igualmente lembrar que hé varios graus de incoeréncia. Por isso, 0 exegeta deve estar atento em determinar qual tipo de tensao e de incoeréncia presente no texto deve ser considerada retoque de um eventual redator, em um perfodo posterior ao autor original. 2.2. Um exemplo Depois destas colocagdes metodoldgicas, deixemos a teo- tia € vejamos como tudo isso funciona na pratica. Que encontra- mos em “nossa tempestade” (Mc 4,35-41)? Comecemos tomando contato com as perfcopes que ante- cedem e sucedem nosso texto. A primeira coisa a se fazer, por- tanto, é uma leitura atenta dos capitulos 4 ¢ 5, a fim de identificar eventuais repetigdes e contradigées presentes nos versiculos de nossa pericope. Depois, leiamos também comentarios abalizados, que déem especial atencao ao texto. Vamos, encontrar neles ob- servag6es que correspondem aos critérios. apenas expostos, ou que discutem a integridade da pericope que estamos estudando. Dessas leituras todas emergem algumas questdes que po- dem ser agrupadas da seguinte forma: a) Duplicagdes e repetigdes que incomodam: 4,35d115,1.21; 645; 8,13 vérias travessias do lago da Galiléia 4,36¢ 4,1 Jesus j4 no barco Il Jesus assenta-se no barco para ensinar. 4,36c-d 1 4,37b-€ 0 tetmo mAatov [arco] & exageradamen- te repetido, 437b 114,37 as ondas se langam para dentro do bar- co ll o barco fica cheio. 178 se p) Tensdes e contradigies evidentes: 435 x 4,36b quem toma a iniciativa de atravessar 0 Lago? Jesus ou os disefpulos? 4,350 x 4,2.33-34 x 413.21 * a quem se refere 0 pronome adrot {a eles}? & multidao ow aos disefpulos? 436ax 4,10 0 disfpulos despedem a multido ver- sus 08 discipulos estao a s6s com Jesus. 4,36¢ x 4,10 Jesus est no barco versus Jesus esta em um lugar & parte com os disefpulos ¢) Fraturas e Jacunas na estrutura da frase eno desenvolvimento da aco: 4,40 no seria mais l6gico depois do v. 38? 4) Elementos atipicos em relacao aum determinado género literario: 438-4 da parte de quem pede a intervengao do taumaturgo, em vez. de uma repreensio, seria de se esperar uma stiplica. 4,40 a repreensdo pelo taumaturgo nao per- tence ao “relato de milagre” Uma vez evidenciados os elementos perturbadores, deve- mos analisé-los mais acuradamente. Em Marcos, Jesus faz varias travessias do lago de Genesaré: 4,35; 5,1.21; 6,43; 8,13. Trata-se de um Leitmotiv’ que perpassa a atividade de Jesus na Galiléia e, como tal, deve ser considera- do redacional, isto é, uma interferéncia do redator ao aglutinar os relatos primitivos. 3 Ago ou esquema que se repete em diferentes textos de um mesmo autor ou livro, para os quais funciona como um fio condutor; situagao tipica que ‘gera diferentes episddios. Seré estudado com maior profundidade no capt- tulo oitavo, ao tratarmos da “Critica da Redagdio”. No caso das travessias do Iago de Genesaré, 0 Leitmoiiv marcano foi mantido em Mateus, mas cesté ausente em Lucas. 179 Allis, € de se perguntar: Quem tem a iniciativa de atraves sar 0 lago? Jesus (segmento 354) ou os discfpulos (36b)? A Cri. ca Literdria diré que estamos diante de uma nitida contradicao ¢ pergunta: se a decisio foi de Jesus, por que ele préprio nao despe. div a multidao, deixando tal encargo para seus discfpulos (36a°)? A oragio we fv & 1 mol [como estava no barco} (36c), ao mesmo tempo em que repete a informagao de 4,1, segundo a qual Jesus est no barco, opde-se a 4,10, que afirmg estar Jesus a s6s com seus discipulos. Com efeito, deparamo-nos com uma inconsisténcia do capitulo 4 de Marcos, visto que 9 ensinamento ao povo continua posteriormente ao ensinamento a s6s com 0s discipulos. Os estudiosos concordam que, em 4,10, inicia-se uma digressio em meio ao discurso parabélico; mas ainda ngo se chegou a uma unanimidade quanto ao término de tal digressao: Quando Jesus esté novamente falando a multidéo? No v. 21 ou no v. 26? Com efeito, 0 v. 36 supde que Jesus ainda esteja falando a um publico bem mais numeroso. Igualmente o suméario dos vv. 33-34 encerta o agrupamento de pardbolas do cap. 4 ¢ delimita 0 texto anterior, deixando a entender que até entio Jesus falava & multidao. E ainda mais: A quem Jesus se dirige em 35a? Aos doze (que estariam com ele no barco) ou & multidio? Notemos 0 uso indistinto de micots [a eles] em todo 0 cap. 4: no v. 2, refere-se, com certeza, 4 multidao; no v. 11, com igual seguranga, pode- mos dizer que se refere aos doze; os estudiosos admitem que, no v. 13, também se refira aos doze. No entanto, ha quem defenda que, no v. 21, Jesus ja esteja novamente falando A multidao. E, sem sombra de diivida, os dois abtoic [a eles] dos vv. 33-34 também se referem a multidao. Tal inconstancia provoca certo incémodo a quem atentamente 2 0 texto no original. Nao se sabe quando Jesus esta diante da multidao e quando esté a sés | com seus discfpulos mais préximos. Em outras palavras, nossa questo é: (a) se consideramos | | | 1 a informagao de 4,10 como precisa, entéo Jesus nao pode estar | no barco, conforme afirma 36b. E ainda, se Jesus ja esta a sis © Convém lembrar, dipévtes € nominativo plural: tendo ELI S despedido, 9s doze, nao hd necessidade de despedir a multidao (35a) Pe a pate, (b) se considerarmos 4,10-20(25) como um acrés- i ncoerente, isto é, se Jesus ainda se encontra sentado no Mm, falando a um grande piiblico, temos em as fy {como fave} wna repetigao perturbadora. HO Jsso tudo nos leva a considerar a ordem de Jesus (v. 35), 8 spedida da multdio (36a) e a referéneia ds Hy [como esiava) 5), todos eles como acréscimos marcanos ¢ inexistentes no re- jato primitivo, que, por sua ve7, comegaria assim: Tapahapfctvouaty iow & 7 tolg, [fomam-no consige no barco} Outra repetigao que nao deixa de incomodar € thotov [bar- co}. A insisténcia em tal termo, principalmente em 37b-c, teria o | Sbjetivo de chamar nossa atencao para 0 barco de Jesus, Se isso for correto, estamos diante de outra interferéncia do redator, E no menos perturbadora € a observacio date’ Hon yeuitectas td Thotoy [a ponto de ja ficar cheio o barco] (37c), que parece ser um comentirio secundario a 37b e, portanto, nao presente no relato primitivo. Neste ponto, devemos responder a seguinte questao: E os | outros barcos de 36¢? Por que desapareceram? Teriam afundado? Quanto a isso, @ critica litersria faz a seguinte observacao se fosse um acréscimo marcano, esses outros barcos teriam uma fungdo no texto estudado ou no contexto préximo, a exemplo de | BeABupev elg td Tépav [atravessemos para a outra margem) | Mas isso néo acontece, e ficamos duplamente intrigados: nao sé | esses demais barcos deixam de ser citados, como niio desempe~ | nham nenhuma fungao no relato. A critica literdria ird, entdo, considerar a informagao de 36c como de origem tradicional, isto | 6, ela ja estaria presente na forma primitiva do relato e que | ‘Marcos teria conservado” . Outro versiculo que se apresenta de forma bastante incd- | moda € 0 V. 40, que introduz um elemento estranho & dinamica | do texto, isto é, um elemento que parece nfio ter sido o tema que deu origem ao relato e nem mesmo a tese que © relato quer | TAs auséncias desses outros barcos nas verses de Mateus © Lucas seré cxplicada pela Critica da Redaglo como uma “omissS0”. 181 defender®. Além disso, sua colocacio atual pode desviar nossa interpretagdo ¢ nos levar a considerar que 0 medo dos diseipy. los (v. 41) € provocado pela repreensao de Jesus. Contudo, ao estudarmos a estrutura “os*sujeitos ¢ suas agées”, haviamos afirmado que os discipulos ficam amedrontados porque 0 vento eo mar obedecem a Jesus. E afirmaramos ainda que © v. 41 deveria estar diretamente ligado ao v. 39, por ser a conseqitén. cia Iégica deste. Além disso, nfo seria mais coerente da parte de Jesus criticar a falta de f€ dos discipulos antes de realizar o milagre, isto 6, repreender os discipulos enquanto se levanta’ Isso tudo nos leva a afirmar que a insergio deste versiculo neste ponto da narrativa € mais uma interferéncia do redator final do Evangetho. ‘Além disso, deve-se mesmo questionar 0 porqué de tal comentario da parte de Jesus. Conforme veremos mais adiante, a0 abordarmos os géneros literarios, nao cabe no esquema dos relatos de milagre uma objegio ou reprimenda da parte do tau- maturgo. Este simplesmente atende ao pedido que a ele & ende- recado. Bstamos diante de um elemento atipico a essa classe de textos: a repreensio de Jesus aos discfputos, portanto, deve ser considerada também de origem marcana. E ja que falamos em género literdrio, que dizer dos seg- mentos 38d-f? O relato de milagre deveria conter uma stiplica, ¢ nao uma repreensao da parte dos doze. Também neste ponto o redator final modificou o relato primitivo e transformou um pe- dido de socorro em uma querela entre Jesus e seus discfpulos. A férmula primeira talvez fosse somente drddoxahe, Gro AbpeBa {Mestre, estamos perecendo!). E ent&o, como fica 0 texto? Se climinarmos os elementos que consideramos intromis- sdes do redator, obteremos uma narrativa mais fluente. Talve7. seja esta a verso que Marcos usou como: fonte. Para detinigdes e distingées entre tema e tese, cf. 0 capitulo sétimo, mais & frente 182 FlaparauBdvovow adrov ev 1 Moi, kai &da TAota Ay per’ abtod cael yiveror AoctAly peydan dveyov, cod ta KOLaTE eneBorrRerreig tO ThoLOV, cal ebtag Fy &v TH TpOLVD emi 1d mpooKedéAatov Kaedebuv. Kal éyelpovow aitdy Kal A€yovowy abrd, Avédoxahe, denoRAXpeOee. Kal breyepBeic eneriunaev 1 aves koi elnev th Oaddoon, Busta, repipaoo. Kad exdracer 6 dvepos cat Eyevero yadsvy peyean. Kel &poByanowy éBov peyar Kal Eheyor TIpds GAAMAOLG, Tic tipa ofitéc Eo Bre kal 6 &vepog Kal 4 AdAcoow broxover cb [Tomam-no consigo no barco, e havia outros barcos com ele. E acontece grande empestade de vento ¢.as ondas langavam-se para dentro do barco. Eele estava na popa, sobre 0 travesseiro, dormindo. E despertam-no e dizema ele: “Mestre, estamos perecendo! E, tendo-se levantado, repreendeu o vento e disse ao mar: 183 “Fica quieto! Fica amordagado!” E 0 vento cessou € aconteceu grande bonanga. E ficaram muito amedrontados e diziam uns aos outros: “Quem é este, afinal, pois até o vento e o mar obedecem a ele?”}. 2.3. Uma observacio importante Talvez o leitor se assuste e pense: “Corta aqui, corta 14 Quase nao sobra texto nenhum para continuarmos estudando...” Nao precisamos, entretanto, ficar desesperados. E apenas um susto inicial. Talvez nfo estejamos ainda preparados para sozinhos fazermos esse tipo de andlise. Isso é mais que natural Bem mais que as leituras sob 0 aspecto sincrénico, as leituras sob 0 aspecto diacrénico exigirao de nés muita humildade diante do texto. Mas também coragem para estudé-lo mais profunda. mente. Por isso, nao desistamos! Por outro lado, nfo nos aventuremos a ser “franco atirado- res” e comegar a dissecar textos, sem consultar quem j4 hé muito tempo esta fazendo critica literaria, isto é, os exegetas, Em outras palavras, aproveitemos da imensa quantidade de comentarios que trabalham este e os demais passos do Método histérico-critico, pois, como observa Stenger, uma “relativa seguranca” s6 vird com muitos anos de pratica. Este especialista chama, ainda, a atenc%o para as divergéncias entre os exegetas de profissdo: embora usem os mesmos critérios, chegam a conclusdes diferentes! Como o proprio Stenger afirma, caminhamos sobre uma “sutil camada de gelo” € as solugdes propostas permanecem hipotéticas’. Mas isso no quer dizer que nao devamos abordar ques- tes tao desafiadoras. Antes, tal afirmagiio deveria nos encorajar a colaborar no esforgo de reconstruir a caminhada do texto bibli- co, desde © momento de sua concepgao primitiva até sua sedi- mentagiio nas edigées criticas. © Srencer, W. Merodologia Biblica. Brescia, Queriniana, 1991. pp. 81+ 184. al 28 1. Exercicios Recordamos as recomendagées j4 dadas anteriormente: co- smegat Jendo 0s capitulos a0 redor daquele que estamos estudan- do; depois, consultar cornentarios exegéticos, isto é, que déem relevo ao texto (comentarios meramene teolégicos ou pastorals nfo servem para esta finalidade); por fim, reler a pericope @ vartir dos critérios da critica literdria Sabemos que os resultados ve serdo imediatos. Por isso, deixamos trés regras para que 0 trabalho prosrida: rever, rever, fever Os textos que jé estudamos nos reservam muitas Surpresas, Nao necessariamente todos os textos serdo compésitos, muitos sao snitdrios. Chegar a tal veredicto, cis 0 trabalho da critica literdria. Antigo Testamento: Gn 39,1-6a; 2Sm 16,5-14; 2Rs 4,1-7; Js 21,1-10; 45,1-7 Novo Testamento: Mt 1 1,20-24; 26,6-13; Me 1; Le 61-11; { Rm 11,16-24; Ap 3,1-6. Alguns textos novos, com certeza, compésitos: Gn 7,17-24, 50,22-26; Jo 4,46-54; At 5,12-16. Mas, lembremo-nos de que a Critica Literaria nfo estuda apenas pericopes isoladas, mas também o conjunto de um livro ou obra. Por isso, comparemos alguns textos: Gn 12,10-20 com Gn 20,1-18; 1Sm 31,1-13 com 2Sm 1,1-16; SI 14. com ST ee 3, CRITICA DOS GENEROS LITERARIOS Desde os primeiros decénios do século XX, um grupo de exegetas, em base as conclusdes trazidas pela Critica Literdria, comecou a compatar textos formalmente semelhantes, mesmo se tais textos apresentassem diferengas quanto a seu contetido. O precutsor desse trabalho foi Hermann Gunkel, que realizou estu- dos nos livros de Génesis € Salmos. Segundo esse estudioso, em culturas eminentemente orais (tal qual 0 antigo Israel), diferen- : tes géneros literérios indicam diferentes contextos sociais. A partir desse pressuposto, Gunkel estabeleceu os principios basicos de 185 a um método que denominou “Critica dos Géneros (Literérios)» (em alemio, Gattungsgechichte)" e cujo trabalho consiste em: a) determinar a estrutura formal de um texto; b) comparar tal texto com outros estruturalmente seme. Ihantes, a fim de identificar o Género Literario, c) determinar em que situag’o concreta esse Género Lite. rério era usado (Sitz im Leben); d) determinar a finalidade desse Género Literdrio e, espe- cificamente, do texto estudado. Nesse tipo de leitura, portanto, 0 aspecto formal tem proe- minéncia sobre o aspecto contenunistico, isto &, os textos sao agrupados e abordados segundo os elementos de sua estrutura © Notemos que Gunkel utiliza o termo “Gattung" (género). A expressao “Formigeschichte” (Historia das Formas) surgiu, pela primeira vez, em um estudo de M. Diseuius, Formgeschichte des Evangetiums, de 1919. Quanto a0 uso de Gattung e Form nas Ciéncias Biblicas, devemos notar que os estuidiosos de lingua inglesa falam mais freqientemente em Form Criticism (Critica das Formas), enquanto a escola alem®, mais dada a minticias ¢ distingGes teéricas, utiliza, embora de forma muito disputada, Gating para “designar entidades literdrias maiores, tais como evangelho. epistola, apo- calipse, escrito histérico etc.", e Form para “denotar unidades litersvias menores que surgem primariamente, mas ndo exclusivamente, na tradigto oral”. Ainda falando da escola alem&, com os novos enfoques trazidos pelo estruturalismo, particularmente aplicado ao Antigo Testamento, 0 termo Forin passou a ser usado “em referencia a textos individuais”, enquanto 0 termo Gattung para designar "seja a um modelo ou esquema estrutural (Strukturmuster) envolvendo no minimo dois exemplares, seja a um texto- tipo” (ct. SouLen, R. N. Handbook of biblical criticism. 2 ed. Atlanta, John Knox, i981, pp. 75-76). Em decorréncia desta siltima distingo, a Critica das formas pertenceria & leitura sinerdnica, porque estuda 0 uspecto esperi fico de um tinico texto, a0 passo que a Critica dos Géneros Liter pertenceria a leitura diacrénica, pois insere o texto em um grupo ou uma familia, No entanto, convém repetir, tais distingdes todas ndo so unanime- mente aceitas, nem pelas alemaes, nem pelos estudiosos de lingua inglesa O resultado é uma nio-uniformidade na terminologia. Assim, 0 catdlogo dos Géneros Literérios normalmente se encontra nos capitulos referentes ‘a0 mélodo “Critica das Formas”. CI, ainda, Srencea, op. cit., pp. 72-74.88: Barrow, J. Form Criticism (OT). In: FretoMan, D.N., (ed.). The Anchor Bible Dictionary. DoubleDay, New York, 1992. v. 2. pp. 838-841. 186 i | | | i ? | i | formal, © ndo segundo set contetido, isto é segundo sua estrutura semantica. Esta tiltima forneceré elementos para complementar 0 trabalho exegético realizado a partir da estrutura formal, ou su- prird lacunas que 0 estudo do Género Literdrio deixou em aberto. Por outro lado, cada texto tem suas particularidades. oO modelo estrutural que designamos Género Literario nao existe na realidade. antes, 0 resultado de uma abstragiio, baseada no fonfronto de textos formalmente semelhantes. Em outras pala- cis, um esquema reduzido aos elementos essenciais, obtido atra- Wee da comparagao de, no ménimo, dois casos concretos, Apesar da designagdo Genero “Literdrio”, no se trata de modelos que jé nasceram escritos. Antes, surgiram oralmente, na vida quotidiana de um grupo social. Também nés temos varios, vinda hoje: boletim de ocorréncia de wma delegacia de policia, wonvite de casamento, choro das carpideiras em velério etc. No- temos que as caracteristicas de um nao se en aixam nos demais. ‘Acabamos de afirmar que a origem dos Géneros Literé rios € oral. Isso porque eles... « tém uma fungo espectfica, isto €, existem para aten- der as necessidades do grupo; +... nflo possuem pretensdes estéticas, +... geralmente sao breves; « ... tem uma tendéncia & padronizagao, isto é, seguem um modelo basico. O que € para nds, hoje, um texto, surgiu como um discur- so, para cumprir uma fungao na vida da comunidade, a saber, oferecer pistas para a comunidade encontrar respostas em me1o a situagdes espectficas. | 3.4. Géneros literarios biblicos “Ler € mais importante do que estudar”, Uma leitura cor reta de qualquer texto biblico nos levard, antes de mals nada, a fazer algumas distingdes, pot vez2s, espontneas: Estamos dian- 187 2 See. te de um texto em prosa ou em poesia? Trata-se de um relato ou de um discurso? Com isso, estamos praticando um primeiro exer- cicio de distingao entre os Géneros Literdrios. As respostas a tais perguntas nos oferecem a oricntagao elementar para classificar- mos 0 texto. Mas, como acabamos de afirmar, sao distingdes espontaneas. O trabalho cientifico comega depois. Nossos amigos exegetas j4 realizaram um precioso traba- Iho de ordenagdio e catalogacio, do qual podemos e devemos langar mao. Uma boa exposicao do assunto, nfo trard somente 0 esquema do Género Literario em questo, Mais que isso, discuti- r4 também 0 contexto existencial no qual, provavelmente, tal Género Literdrio era utilizado, bem como sua finalidade. Ma- nuais de metodologia procurarao identificar dentro de cada tradi- ga0 biblica (hist6rica, profética, sapiencial, apocaliptica etc.), quais os Géneros Literarios que Ihe sio tfpicos. Mas, cuidado! Dizer que determinado Género Literario tipico de determinada tradigao nao significa dizer que € exclusi- vo dela, Hé alguns que perpassam toda a Sagrada Escritura. Igualmente, pode acontecer uma justaposi¢&o de Géneros Literd- tios dentro da mesma pericope. Com efeito, lembremo-nos: 0 Género Literario puro existe s6 na abstragio; quando aplicado ¢ inserido em um contexto, sofrerd influéncias e alteracdes. Vejamos, pois, algumas das informagGes que os estudio- sos j4 sistematizaram ao longo dos anos Normalmente, nés as encontramos em publicagdes (metodologias, introdugdes e co- mentérios) que déem especial enfoque ao aspecto literdrio. Como nao podia deixar de acontecer, a terminologia, as subdivisdes ¢ a classificagao dos textos variam de autor para autor, Além das divergéncias metodolégicas, some-se outro fator: a enorme va- tiedade do material a ser estudado. Apesar dos grandes avangos dos estudos, ainda nao temos uma publicagio que catalogue, analise ¢ sistematize todos os Géneros Literarios, tanto do Anti- go como do Novo Testamento!! i Para o Novo Testamento, uma exposigdo abrangente, embora complexa encontra-se em Beraer, K. As Formas Literdrias do Novo Testamento. Sin Paulo, Loyola, 1998, Mas faltacnos algo semelhante para o Antigo Testa: 138 i | De nossa parte, como nosso objetivo € fornecer ferramen- tas para o trabalho exegético, apresentaremos alguns deles. Nos- ch apresentacdo, portanto, sera sumdria. Os casos que abordare- mos estatao agrupados segundo a tradigio da qual sao mais tfpi- eee, Para cada tradicao, indicaremos a bibliografia consultada que servira para um aprofundamento do assunto. 3.2. Antigo Testamento 3.2.1. A tradigdo histérica” A esta tradigao pertencem os relatos que querem dar a conhecer a ago de Deus na historia de Israel. Nao so narrativas de fatos reais, e sim releituras teolégicas: sobre um fato real, constréi-se uma histéria que 0 interpreta e atuali: A) Novela Como qualquer relato hist6rico, 0 tempo da novela é 0 passado. Nao se trata de um acontecimento isolado, ¢ sim uma erie deles. Além disso, no so acontecimentos piblicos, mas fatos da vida pessoal ¢ privada de um personagem, seus senti® mentos € suas reagdes. Na realidade, tais fatos sio importantes porque estio diretamente relacionados a0 povo: O que significa fat personagem para a comunidade israelita? A trama se desen- volve em trés tempos: Tronto, E devemos ainda notar: a quase totalidade dos Géneros Literdrios lilizades pelos autores neolestamentérios j& se encontravam no Antigo Testamento e na préptia tradicao judaicn, ve Agenntoeven, D. Assin se formou a Biblia. 2, ed. Sao Paulo, Paulus, 1978 pp. 102-109; Coxrs, G. 'W. (ed). Saga, Legend, Tale, Novella Fable. Or ffield, Sheffield Academic Press, 1985; Scrossust-Fionenza, E, Exom: plifieagts do método exenético. In: ScuReinen, J. (@d.). Palavra e Mensar fgem. S40 Paulo, Pavlus, 1978, pp. 512-515; Scimstven, J. Formas y Géne- ros Literdrios en el Antiguo Testamento, In , (di), Introduceién a los Mérodos de la Exégesis Biblica. Barcelona, Herder, 1974. pp. 257-262: Sein. E. & FouReR, G. Introducdo ao Antigo Testamento. 2. ed. Sto Paulo, Paulus, 1983. v. 1. pp. 103-120. 189 + inicio: uma situagao de conflito ou tensao: + meio: 0 conflito se complica cada vez mais; + fim: resolugio do conflito e esvaecimento das compli. cagies. Algumas novelas do AT: a histéria de José (Gn 37; 39-48: 50), a narrativa primitiva que serve de inclusao para 0 livro de J6 (1-2; 42,7-17), 0 livro de Rute. B) Narrativa histérica O leitor moderno talvez preferisse colocar o termo “histé- ricas” entre aspas, visto que a nogao de histéria, no universo biblico, nao corresponde & moderna ciéncia homénima. Com efeito, a historiografia bfblica nao é cientifica e menos ainda neutra (se € que possa existir uma apresentagao histérica neutra) ‘ E uma historia interpretada e interpretante: nao se interéssa por informar, de modo objetivo, os acontecimentos; antes, a0 mes- mo tempo em que teporta o fato, fornece critérios para dele ‘ colher a significagaio!? . Nessas narrativas, portanto, encontramos um jogo lingiifstico, no qual aparecem elementos objetivos (os fatos mensurdveis) mesclados a elementos ideoldgicos ou teolé- gicos (a interpretagdo religiosa): 1Sm 18,10-16 (elemento objeti- vo: vv. 10b-11.13.16; elemento ideolégico: vv. 10a.12.14-15); 2Sm 5,6-12 (elemento objetivo: vv, 5-10a.11; elemento ideolé- gico: vv. 10b.12); IRs 16,23-26 (elemento objetivo: wv. 23-24; elemento ideolégico: vv. 25-26). C) Saga: Nos relatos mitolégicos, os personagens sio deuses e, mui- tas vezes, interagem com os homens. A fé javista faltaram os Gowzausz Lamapaip, A. As tradigdes histdricas de Israel. Petr6polis, Vo- es, 1999, pp. 10-14, define a historiografia biblica como uma histéria sagrada, com as seguintes caracterfsticas: confessional (narrada do ponto de vista da fé); quetigmatica (ndo s6 um relato dos fatos, mas também suas significagdes); interpelante (ndo somente informar, mas também questionar 0 leitor), profética (1é os acontecimentos profeticamente). escatolégica (li- near, rumo ao encontro pleno e definitivo com Deus); salvifica (nao verda- des cientfficas, mas de salvagio). ' requisitos indispensaveis para a formulagio de mitotogias: poli- tefsmo ¢ magia. Isto, no entanto, no deixou Israel isento de sofrer a influéncia da mentalidade mitica. Pois, sendo “algo que nunca houve mas que sempre €”, 0 mito é a categorizacgio de uma visio de mundo. Gn 1-11 esta eivado de elementos miticos. Por outro lado, quanto mais se abandonaram os relatos mitolégicos, mais se adotou a saga, narrativa sobre um fato ex- traordindrio (as faganhas de um heréi ou a histéria de um lugar ou de uma coisa), contada e recontada oralmente durante muito tempo e que, posteriormente, foi redigida. Nesse perfodo de tra- digo oral, a saga adquitiu uma linguagem exuberante e poética, que acentua, por meio de um forte apelo emocional, a importan- Gia do que esté sendo contado. A saga quer explicar determina- das situagGes presentes a partir de acontecimentos passados. Dentre os varios tipos de saga, destacamos: a) Saga de uma tribo ou de um povo: Narra a hist6ria de um ancestral, real ou ficticio, cujos tragos essenciais € cujo destino se prolongam em seus descen- dentes. E muito comum nos relatos do periodo dos patriarcas. Dentre clas, podemos citar a béngdo e a maldigao dos filhos de Noé (Gn 9,20-27), bem como a adogio de Efraim ¢ Manassés por Jacé (Gn 48) b) Saga de um herdi: (0 centro do relato é um heréi (personagem positive) ou ‘um vildo (personagem negativo). O contexto vital que fez surgir e se desenvolver esse tipo de saga parece ter sido o periodo dos confrontos de Israel com outros povos, desde a saida do Egito, passando pela conquista da Terra Prometida, até a consolidacio do reino de Davi diante dos povos vizinhos: vit6ria sobre os amalecitas (Ex 17,8-16), vit6ria sobre os reis amorreus (Js 10), Davi e Golias (1Sm 17,1-54)"*, Davi e Saul (1Sm 26). 1 Sobre esse episédio em particular, no podemos deixar de perguntar: AD- nal, quem matou Golias? Sm 17,1-54 contrasta com 2m 21.19, segundo fo qual o her6i que derrotou e degolou o gigante filisteu foi Elcang, Parece 191 c) Saga de um lugar: Esse tipo de relato quer explicar a origem de um lugar, de uma cidade, ou de uma particularidade impressionante — tg] como a cidade e a torre de Babel (Gn 11,1-9) ou a origem e g esterilidade do Mar Morto (Gn 19,1-29) — e apresenta um carg. ter fortemente etiolégico (explicam a origem e 0 nome de coisas ¢ lugares). Mas, os estudiosos chamam a atengAo para o seguin. te: & necessétio distinguir entre as narrativas compostas em sey todo como uma etiologia (tal como Gn 21,22-31: os vv. 22-39 foram gerados a partir da etiologia presente no v. 31) e narrati. vas com apéndices ou acréscimos etioldgicos!? (Ex 2,1-10: no v.10, a filha do Faraé egipcio conhece filologia hebraica!)!" D) Lenda Tida por alguns como uma variante do género saga, a lenda caracteriza-se pelo santo ¢ imitével, Nao hd uma descrigao do cendrio, realga-se a oposig’o entre pessoas e atitudes, a lin- guagem € edificante e privilegia 0 milagroso e a aco vitoriosa de Deus. No centro da narrativa pode estar um profeta ou um local de culto. a) Lenda pessoal: protagonista € uma figura religiosa (profeta, sacerdots ou mértir), apresentado como exemplar, alguém chamado ¢ po: suido por YHWH. Tal tipo de narrativa visa formar discfpulos ou arregimentar devotos. As poucas lendas sacerdotais ou criti que temos aqui um tfpico caso de transferéncia: uma faganha fenomenal mas realizada por um heréi desconhecido, € transposta e creditada para alguém mais famoso, a fim de engrandecer ainda mais este ltimo. 1Cr 20,5 tenta harmonizar os dois textos ¢ atribui a Eleani a morte de Lami fitho de Golias CY. no Capitulo oitavo; a frente, os critérios para a critica da redagao. Ha estudiosos que nao gostam da expressio “saga etiolégica” ¢ preferem distinguir saga e etiologia. Para cles, a saga é uma natrativa que carinha do passado para o presente de quem a redigiu; enquanto a etiologia parle do presente do redator para o pasado, isto é, para a causa (aicia om grego). 192 cam a instituigo (18m 2,12-17) ou querem legitimar o direito dos sacerdotes (Nm 16,16-26). Em Dn 1-6 e 2Mc, encontramos diversos exemplos de lendas dos martires. Surgidos no contex- to da helenizagio e da opressio seléucida, tais relatos visam encorajar 0 judeu piedoso em um tempo de perseguigSes. Propo- sitadamente, deixamos por dltimo a lenda profética. Nela, a palavra do profeta ou homem de Deus é eficaz e capaz de trans- format-se em acontecimento quando pronunciada (novamente, a nogdo de “ato perlocuciondrio”). Macigamente utilizada nos ci- clos de Elias (IRs 17,7-16.17-24) e Bliseu (2Rs 2,19-22.23-24; 4,42-44), a lenda profética possui um esquema bésico facilmente identificavel: 2Rs2,19-22 2Rs 4,42-44 + uma situagio de erise (v.19) v2 + siplica pela intervengao do profeta v.19 - + divida sobre a capacidade para realizar 0 milagre — 43a + instrumentos para realizar o milagre v.20 (0s pies) + palavras durante a realizagao do milagre v2 vy. 42b436 + efeito produzido v.22 v.44b + conseqiéneias v.22 (até hoje) v. 44 b) Lenda de santudrio: Também € um relato a respeito de determinado lugar; mas, diferentemente da saga, quer explicar por que tal santuério é considerado sagrado. Em geral, descreve uma manifestagio de Deus naquele posto (Gn 16,7-14; 28,10-22), c) Lenda cultual: Esse tipo de narrativa quer justificar a pratica de determi- nado culto ou rito: uma imagem de serpente no Templo de Jeru- salém (Nm 21,4-9), a circuneisao (Gn 17; Ex 4,24-26; Js 5,2-9) 193 3.2.2.- A tradigéio juridica”” Profundamente marcado pela dimensio ética da £6 javista, exuberante a presenga de textos normativos, englobando desde méximas de vida até pactos e contratos. Ainda que nem todos possam ser considerados “leis” no sentido estrito da palavra, exprimem, contudo, a mentalidade “candnica” na qual os autores biblicos se inserem, a) O chamado “direito apoditico”: Preceitos ¢ proibigdes formulados de maneira categérica (“faze isto”, “ndo fagas aquilo”), geralmente, aparecem cm sé. ries (Ex 20,1-17; Lv 18,6-23). Muitos, a principio, nao tinham conotagao juridica, ¢ sim sapiencial: eram tegras de vida e de comportamento que visavam regular a convivéncia da grande familia ndmade. Podemos distinguir dois tipos basicos: (a) aque- las em que nao se faz referéncia a nenhuma punigao (Ex 22,17.28- 30) e (b) aquelas em que se prevé a sangao para o crime: maldi- co (Dt 27,16-25: 78 [maldito}) ou pena de morte (Ex 21,12.15- 17: ne nia [morrerd de morte violental).. As maldigdes possuem um esquema nitidamente littirgico"* Dt 27,16.17.18 + 378 [maldito] + descrigo do delito (com verbo no participio) vv, 16a.17a.18a + pax apap Www) [e todo 0 povo dird: “Amém”} vv. 16b.17b.18b Gonzatez Lamannip, op. cit. p. 44; Scuntor, W. H. Introdugéio ao Antigo Testamento. Sao Leopoldo, Sinodal, 1994. pp. 110-113, Scureier, For mas... art, cit., pp. 267-273; Seuuw & Fonker, op. cit. v. 1, pp. 69- ScHUSSLER-FloRENZA, op. cit. pp. 505-512 A problemética do contexto vital (Sitz im Leben) no qual os géneros liters. rios surgem c sfo utitizados ser4 discutida no ‘tem 4 deste capitulo. 194 Para as sentencas de morte pode-se estabelecer 0 seguin- te formulério padréo: : Ex 21,12.15-17 + descrigio do delito (com verbo no participio) wy. 12a.15a.16a.17a + pena capital: nig ni3 [morrerd de morte violenta] vy, 12a.15b.16b.17b b) O chamado “direito casuistico” Com precedentes no Antigo Oriente, esse tipo de legisla- cdo procura contemplar as vérias possibilidades de um caso jurf- dico e descreve os condicionamentos a respectiva punig&o (Ex 21,18-19.22-23; Dt 13,13-16). Esses textos, sempre formulados de maneira impessoal, genérica (na 3* pessoa) e condiciondl, apresentam o seguinte esquema basico: Ex 21,18-19.22-23 + prétase (primeira oragao condicional) vwy,18.22 - a descrigdo genérica da situagao _ normalmente introduzida por *> [caso, guando} + oragdes condicionais consecutivas wv. 19.2320 - as variantes € as citcunstancias - em geral introduzidas por O°X [se] + apédose vv.19b.23aB - determinagdo da impunidade ou da pena - introduzida por 9 [entdo] 3.2.3. A tradigao profética® Os profetas traduzem em palavras humanas o que experi- mentam ¢ percebem (tla palavra) do proprio YHWH. A expe- rigncia pessoal, quando verbalizada, j4 softe uma redugao. Por isso utilizam linguagem e imagens agitadas e, por vezes, agressi- vas e exageradas. Penetrar nos géneros literdrios utilizados pelos profetas € 0 melhor caminho para resgatar a profundidade da experiéncia original. a) Palavra de desgraga (ou de juizo): Trata-se de um ordculo que anuncia um juizo e um castigo da parte de YHWH. Tem como caracteristica ser breve, direto e, em geral, na presenga do acusado. Pode ser enderegado ao pove de Israe! (Am 4,1-3), aos povos estrangeiros (Am 1,3-5.6:8) ou a uma pessoa em particular (ao rei: IRs 21,17-19; ao sacerdote Amasias: Am 7,16-17; ao profeta Ananias: Jr 28,13-14; ). Nao obstante algumas variagGes conforme 0 tipo de destinatério, um esquema geral pode ser assim formulado: Am41-3 Am135 — r28,13-14 + encargo confiado ao mensageiro - = ¥. Ba + convite para escular vlab v.38 v.13 + acusagdo (fundamentaco) wile vabc ¥, 1Bed + desenvolvimento da acusagao vid v.3d - + formula da mensagem ou*2 [por isso] v. 2a - v. Ia + anGincio do juiza (a) - intervengao de Deus ¥. 2b - v. Ibe + anincio do jutzo (b) ~ conseqiéneias w.te3b wid (v. Ld) + assinatura: MM BN fordculo do Senkor} —v.3e v.Se as © Avoxso-ScuoxeL, L. & Sicxe, J. L. Profetas. So Paulo, Paulus, 1988, v. 1 pp. 73-75; Sciussuer-FioRENzA, op. cit. pp. 521-525; Scureier. Formas ait, cit, pp. 273-283; Setuin & Foner, op. cit. v. 2. pp. 520-537; Sicee, J L. Profetismo em Israel, Petropolis, Vozes, 1996. pp. 142-155. 196 p) Palavra de salvacao: E 0 equivalente positivo da palavra de desgraga. Em uma siwago de crise ou desgraga, o profeta anuncia uma nova pers- pectiva, na qual se contemple a ago salvadora de YHWH. En- Pontramos ordculos de salvagdo em Oséias, Jeremias e Ezequiel Tgualmente, no Déutero-Isafas, mas jé plenamente desenvolvidos c considerados “ordculos de salvagio sacerdotal’®: Ts 41,8-12; 44,1-5. Uma estrutura basica pode ser assim esbo ‘ada: Is 418-12 1s 441-5 + alocugdo (vocativo) v8 yy, 1-2b « promessa de salvagio (encorajamento) v. 10a ("nde temas") v 2e-d «+ motivagdo introduzida por *> [porque] v. 10 v3 + conseqiiéncias v. 1-12 ww. 45 c) Relato de ago simbélica: ‘Alguns profetas fizeram uso de encenagGes piiblicas para atrair a atengao dos ouvintes & leva-los a refletir, Tais represen- tagGes nio serviam apenas para ajudar a transmitir uma mensa- gem, reforgando & potenciando a palavra profética. As agdes simbélicas eram também um recurso didatico para captar os sen- timentos de Deus ou penetrar nos planos do Altissimo. Profetas que utilizaram tal pedagogia: Isatas (descalgo e nu: cap. 20; um nome simbélico: 8,1-4), Oséias (casamento ¢ filhos: cap. 1; aco- thida da esposa adtiltera: cap. 3), Jeremias (0 cinturao de Tinho: 13,1-11; 0 jarro de barro: 19,1-2a.10-L1a; a compra de um cam- po: 32,6-15) € Ezequiel (o desenho na cerdimica: 4,1-5,6; as duas varas: 37,15-19), entre outros. ‘As ages, em si mesmas, so muito variadas ¢ nfo segue um modelo padrao. No entanto, o relato em que aparecem, sim . 1s 201-5 Jr32,6-15 Ez 37,15-19 * ordem de Deus v.2 w. 6-7 wy, 15-17 + cumprimento da ordem vv. 2c wy. 8-14 (suposto) + interpretagdo do gesto w.3-5 v.15 wy, 18-19 2 Cf. Becacn, J, Das priesterliche Heilsor ZAW 52 (1934): 81-92, 197 3.2.4, A tradigdo sapiencial Nessa tradigo encontramos géneros literarios com uma finalidade eminentemente didética: ilustrar uma cosmovisao ou uma doutrina, exortar a assumir um comportamento, satirizar uma conduta, ou, simplesmente, ajudar na memorizagiio de um ensinamento. A) Mashal (provérbio breve) Um ensinamento formulado em 2 ou 3 membros (ou ver- sos). A principio, teria sido uma palavra magica (capaz de pto- duzir uma realidade) ou de ordem (faz buscar um comporta- mento novo). O mashal era utilizado para formagio, satira, re- flexdo sarcdstica on cética, ilustrar uma agao simbélica, amea- car, questionar. : A fim de facilitar a memorizagdo do provérbio e a assimi- ago de seu contetido, os autores sapienciais langaram mao de alguns recursos estilisticos, os quais foram empregados de forma simples ou combinados entre si. Vejamos alguns: a) Paralelismo: Esse procedimento constitui uma das bases da poesia he- braica. Nele, ndo importam os sons, ¢ sim os conceitos, isto é, 0 que deve rimar no sio os fonemas, mas as idéias’. Ha trés tipos de paralelismo: aa) sinonfmico: 0 2° membro repete a idéia do 1°, com termos semelhantes ou, sob algum aspecto, equivalentes. Sua finalidade € acrescentar énfase e esclarecimento a idéia principal (1° verso): Pr 1,8; 4,24; 19,6; Eclo 13,1 3 Scureiner, Formas..., art. cit. pp. 284-291; Seuuin & Fourer, op. cit. v. 2 pp. 460-470; Va.cuez Linoez, 5. Sabedoria ¢ Sabios em Israel. Sao Paulo, Loyola, 1999. pp. 67-72.96-101. Levéque, L. O ensinamento dos sabios. In; Maxtousou, L. Os Salmos e outros escritos. $80 Paulo, Paulus, 1996. pp. 131-134, 22 Estudaremos mais profundamente o paralelismo no capitulo nono, a frente. 198 bb) antitético: quando os dois membros se opdem entre si, com termos contrarios. Quer agugar 0 espitito critico sobre a realidade, a fim de evidenciar diferengas ¢ contrastes: Pr 10,1-2; 31,19; 13,7 : cc) sintético ou progressivo: 0 2° membro nao diz 0 mes- mo nem 0 contrério do 1°, mas prolonga ou desenvolve 0 pensa- mento, com uma nova idéia ou uma observacdo. Sua fungao € apresentar as circunsténcias, os condicionamentos e as conseqiién- cias do afirmado no 1° membro: Pr 14,27; 16,31; 21,28; S1 1,6. ) Formas valorativas: Utilizadas em provérbios que expressam a estima ou a reprovagio por uma conduta ou coisa, fazem-nos saber qual es- cala de valores era comum no tempo dos s4bios. aa) sentenga-tov (“melhor / mais... que”): prineipalmén- te para avaliar uma conduta moral: Pr 16,8; 25,24, bb) macarismo: provérbios com f6rmula de bem- aventuranga: Pr 14,21; 16,20; 20,7. ©) Questio retér Sao aquelas perguntas que se fazem sabendo, ja de ante- mio, guais as respostas, Servem para exprimir uma conviccao generalizada (Pr 6,27-29, 17,16, Eclo 2,10), mas, também, para fazer pensar (Pr 31,10a; Eclo 22,14). B) Formas compostas Em algumas passagens, encontramos textos que prolon- gam ou substituem a forma simples do mashal por uma seqiién- cia logica de pensamento™ . Alguns exemplos: 3 Os generos literdrios ora arrolados sto tipicos da Tradigao sapiencial. Mas hhé também outros, presentes em quase todos os livros biblicos: compara- gBes, pardbolas, alegorias fbulas, Esses géneros literdrios sero estuda- Gos mais a frente, ao tratarmos da Tradigdio da Palavra nos evangelhos. 199 a) Poema didatico: Textos que apresentam um comportamento a ser imitado ow a ser evitado, Quanto & sua forma, nao possuem uma estrutu- ra predeterminada, Podem ser: aa) discurso: de um pai (Pr 4,1-27); de um personagem (Jé 18,5-21); da Sabedoria (Pr 1,20-33); da insensatez (Pr 9,13-18). bb) etopéia: cenas que descrevem o cardter, as inclina- gGes € os costumes de personagens tipicos da sociedade, tais como 0 preguicoso (Pr 6,6-11), a addiltera (Pr 7,6-27), 0 b&bado (Pr 23,29-35). b) Lista enciclopédica: Nelas, temos uma catalogagao dos fendmenos ou dos ele- mentos da natureza (J6 28), bem como das atividades humanas (Eclo 41,17-42,8 - vicios e virtudes!). ©) Provérbio numérico: Bastante artificiosos, sua finalidade é chamar a atengao para o que realmente interessa ao autor, a saber, o Ultimo ele- mento apresentado. Os demais elementos servem apenas como condicionamentos, ou indicam sob qual ponto de vista 0 sbio faz sua reflexdo, Ha dois tipos de provérbios numéricos: aa) nimero global: Pr 30,15a; Eclo 25,1.2. bb) paralelismo dos nimeros (x II _x+1): Pr 30,18-19; Eclo 25,7-11; 26,5-6. Deste tiltimo tipo, em particular, o esquema é 0 seguinte: Pr 30,18-19 Belo 25,7-11 + introdugdo v.18 v. Tab + desenvolvimento wv, 19a-¢ wv. 7e-10a + climax vv. 19d wv. 10b-11 3.2.5. A tradigdo dos cantos ‘Tanto quanto em nossa cultura, ou talvez mais ainda, os momentos culminantes da vida do povo biblico esto marcados pot cantos: a guerra, a vitéria, a morte, 0 amor, 0 culto. No AT, encontramos uma enorme quantidade de cantos ou, pelo menos, de restos de cantos, A) Cantos da vida cotidiana O trabalho, a colheita, 0 banquete, a guerra, a vitéria, a derrota: tudo é motivag&o para um canto que interprete 0 que est acontecendo e sitva de recorda a) Cantos de guerra: Esses cantos cumprem as mesmas fungées dos atuais “gri- tos de guerra” das torcidas organizadas de futebol: aa) cAntico de bruxaria (ensalmo): para invocar a forca e as condigées para a vitéria, quando nao a propria vitoria: 2Rs 13,17; Js 10,12. bb) cAntico de béngaio e de maldigao: proferidos por um guerreiro ou profeta, cfnticos desse tipo uniam-se ao barulho da tropa, para aumentar poderio do exército e amedrontar o inimi- go. Um belo exemplo € 0 cantico de Balaio (Nm 22-24) ce) cAntico de mero estimulo ao combate: sua finalidade 6 empolgar, “envenenar” a tropa: Nm 5,12. dd) cAntico de vitéria: entoados por mulheres quando 0 exército voltava triunfante, eram acompanhados por instrumen- tos e dancas. Em geral, so bastante curtos: 1 ou 2 versos repeti- dos alternadamente por dois grupos. Bis alguns: Ex 15,20-21, 1Sm 18,6-7 b) Cantos de amor: No antigo Israel, casava-se apés a colheita do outono. A festa durava cerca de 7 dias. Por essa ocasiao, contratava-se (ou aparecia “por acaso”) um trovador para animar o baile. O cantor atendia a pedidos e entoava cantos populares. Byentualmente, 201 compunha cantos novos, encomendados para exaltar a beleza dos noivos. Aos poucos, foi-se formando um repertério bisico, bem como um modelo estilizado para se descrever as qualidades dos amantes. . Ha uma série de géneros menores: cAntico de admiracao (Ct 1,9-11), cAntico de anseio (Ct 2,4), cntico de auto-descri- ¢ao (Ct 1,5-6). Mas, merece especial atengo o chamado wasf ou cantico de descri¢ao dos atributos fisicos e dos charmes da pessoa amada: Ct 4,1-7; 5,10-16; 7,1-7. B) Cantos cultuais™ Os cantos que o antigo Israel entoava diante de seu Deus foram agrupados, salvo algumas excegées, no livro dos Salmos A classificagao desses poemas é complexa, plena de sutilezas e, por conseguinte, impossfvel de ser exposta brevemente nestas paginas. Por isso, veremos apenas um esquema geral e, em se- guida, alguns exemplos em particular. a) Um esquema geral de classificagao dos salmos: Nao ha um acordo entre os estudiosos, quer quanto ao mimaro de géneros literdrios, quer quanto a quais salmos perten- cem a qual género. E hd ainda quem defenda que niio se deve- riam classificar salmos inteiros, e sim textos (versiculos), pois ha muitos salmos hfbridos e pouquissimos sao os que no sofire- ram a contaminagao de outro Género Literério. Lembremo-nos, o “Género Literdrio” é sempre uma abstragéio a partir de textos concretos formalmente semelhantes. Para um primeiro contato, no entanto, podemos propor o seguinte esquema: % A bibliografia sobre os Salmos é enorme, Mesmo em portugues, encontra- remos muita coisa, Apenas algumas obras dentre as utilizadas aqui: Moxtounou, L. Os Salmos. In: et alii Os Salmos..., op. cit., pp. 13- 100; ALonso-ScnoKeL, L. & Carnini, C. Salmos. So Paulo, Paulus, 1996/ 1998, 2 v.; Ravast, G. JI Libro dei Salmi. Bologna, EDB, 1988. 3 v.: SeLuiN & FoureR, op. cit. v. 2. pp. 374-393,406-433; Srorniowo, I. Salmos, a oragao do povo de Deus. Sa0 Paulo, Paulus, 1982. 202 Aj Familia hinica + Hinos propriamente ditos (ou a YHWH Salvador). + Hinos a YHWH Criador. + Hinos a YHWH Rei. + Hinos de Sido. B.- Familia dos salmos de stiplica + Stiplica individual. * Stiplica coletiva C.- Familia dos salmos de confianga e de agio de gragas + Confianga individual. + Confianga coletiva + Ago de gragas individual. + Agdio de gragas coletiva + Salmos afins D.- Familia linirgica * Salmos de ingtesso. + Salmos-requisit6ria. + Salmos de peregrinacao. E.- Familia sapiencial + Salmos sapienciais * Salmos alfabéticos F.- Familia hist6rica G.- Familia dos salmos régios H.- Salmos de maldicdo e vindita Vejamos, com maiores detalhes, trés dessas familias. b) Familia hinica: Esses salmos louvam a grandeza € a majestade de YHWH. Sua recitagéio parece ter sido dialogada (solo + coro) ¢ acompa- nhada ao som de instrumentos musicais. Partindo das caracteris- ticas formais, podemos esquematizar esses salmos assim: 203 + Introdugdo — Convite a0 Louvor: - imperativo de 1* ou 2° pessoa. mencio de instrumentos musicais. mengao de gestos e/ou ritos: palmas, prosternagio, canto. mengiio das pessoas ou grupos interpelados exemplos: 8,2; 117.1; 145,1-2; 147,1.7.12 (tres ciclos hinicos), + Desenvolvimento — Motivagées para o Louvor: - em geral, hé uma transigiio com *> [porque]; quando o +> esta ausente, fica subentendido. - pode ser descritiva (mais genérica) ou narrativa (mais motivada e selecionada) = aparecem atributos ou feitos de YHWH (antroportorfis- { mos e antropopatismos). {1 ~ exemplos: 8,3-9; 117,2ab; 145,3-20; 147,2-6.8-9.13-20ab i (trés blocos de motivagées). * Conclusio — Novo convite ao Lowvor: - muitas vezes, forma uma inclusio com a introdugio, repetindo os mesmos elementos | - podem aparecer também: oragao, intercessao, maldicao \ ou béngio. { ~ exemplos: 8,10; 117,2c; 145,21; 147,20c (arremate para os ts ciclos). ©) Familia dos salmos de stiplica: Esse grupo € tao numeroso, que chega a abranger, aproxi- i madamente, um tergo do Saltério. Alguns estudiosos usam 0 Il termo “lamentagdes”, mas tal terminologia é impropria, porque | esses cantos propdem algo mais que simples lamentos. O esque- i ma formal desses salmos é o seguinte: + Introdugao — Invocagio ao Senhor ~ 6 comum tecer uma ladainha com os titulos de Deus. 204 = apelo a YHWH e motivagdes da esperanga na aco sal- vadora de Deus na Histéria de Israel. = exemplos: 54,3-4; 60,3; 71,1-6; 88,2-3. « Desenvolvimento — Desgraca e siplica ~ descrigao da desgraga. - reclamagao pelo silencio ¢ pela inatividade de YHWH, que outrora estava presente € ativo. _ muitas metéforas para descrever a dor e 0 softimento. ~ 08 inimigos sio simplesmente “eles” - na stiplica, usa-se 0 imperative de 2* ou 3° pessoas, dando também as raz6es para Deus agir. - auto-acusagdo dos pecados e acusagao feita pelos inimigos. ~ exemplos: 54,57; 60,4-75 717-21; 88,4-19. + Conclusao — Um final feliz ~ voto de agdo de gragas ou sacrificio de louver. - certeza da salvagio. ~ eventualmente, Deus concede um ordculo de atendimen- to ou de salvagao. - exemplos: 54,8-9; 60,8-10,11-14; 71,22-24; (ausente no S188). 4d) Familia dos salmos de confianga e aco de gragas: Fixemo-nos nos salmos de ago de gragas. Trata-se de uma « forma intermediéria entre stiplica hino de louvor, com elemen- tos de ambos os géneros. Nesse sentido, é tido como um subgé- nero, com menor defini¢’o ¢ autonomia. O voto de agao de gra- gas encontra-se, com certa freqtiéncia, ao final da siplica. O que diferencia esses salmos € a descrigdo do perigo, do qual o Senhor Jibertou seu ficl ou seu povo. Predomina o tom de reconhecimen- to. A estrutura basica desses poemas pode ser assim definida’ + Introdugao — Invitatério ~ apelo ao louvor reconhecido. 205 SS - Sitz im Leben ciiltico: cumprimento do voto na assem. bléia. - exemplos: 32,1-2; 124,1-2; 138,1-3. + Desenvolvimento - corpus de hino, em trés diregdes: a) ditico “passado trégico - presente feliz”. b) apelo a que a assembléia se una no louvor. c) atmosfera e estado de Animo gozosos. = exemplos: 32,3-5; 124,3-7; 1384-7 + Conclusio = final com sacrificio ou simples oragdo no estilo profético - exemplos: 32,6-7; 124,8; 138,8 3.3, Novo Testamento 3.3), Evangelhos® Rudolf Bultmann, um dos grandes nomes desta aborda- gem, propée, para os evangelhos, a seguinte divisdo: Tradiciio da hist6ria ¢ tradigdo da Palavra. E o material narrativo, no qual encontramos os feitos de Jesus. Bis alguns: ZiviateRMANN, H. Metodologia del Nuovo Testamento. Torino, Mariett, 197i pp. 125-140 (= Zinaweawan, H. Formas y Géneros Literérios en el Nuevo Festamento. In: Scuxeisex, Jntroduccién.. op. cit. pp. 299-316), Goucus, M. & Cuanpevrien, E, O Evangelho. A Palavra e o Assunto, In: AUMEA, J. et alii. Evangelhos Sindticos ¢ Atos dos Apdstolos. Sto Paulo, Paulus, 1986. pp. 31-39, Os exemplos tomados de Marcos implicam também os i3 paralelos de Mateus ¢ Lucas, | i 206 a) Relatos de milagre: ‘A fim de revelar a divindade, 0 messianismo ou, simples- mente, a natureza sobre-humana de Jesus, os evangelistas des- crevem agGes nas quais o Mestre dé provas de seu poder: mila- gres de cura (Mc 1,29-31p; 1,40-45p; 3,1-6p), milagtes sobre / com a natureza (Mc 6,30-44p; 4,37-41p; Le 5,1-11; Jo 2,1-11), exorcismos (Me 1,23-27p; 5,1-20p, 9,14-29), ressuscitages (Me 5,21-24.35-43p; Le 7,11-17; Jo 11,1-46). Tais narrativas seguem © seguinte esquema: Mc 1,23-27 Me 4,37-41% + introducao (descrigao do ambiente do encontro) v.23 v.37 + maiores detathes (0 problema eos esforcos para superé-lo) = — — +a siplica do pedinte v.24 v. 38d-f + a intervengao de Jesus v.25 v. 39a-e + oefeito produzido v.26 v. 39f-g «a reagdo dos espectadores ou do curado v.27 v.41 b) Relatos de vocagio: Sio narrativas breves, com uma finalidade paradigmatica, isto €, apresentar um modelo de comportamento a ser seguido (Mc 1,16-18.19-20; 2,14; IRs 19,19-21). Mc 1,16-18 — IRs 19,19-21 + quem chama passa v.16 v.19 + quem chama vé v. 16 v.19 +o nome do futuro vocacionado —_v. 16 v.19 + relagdes de parentesco v.16 v.19 * 0 futuro vocacionado desenvolve sua atividade costumeira v.16 v.19 Neste exemplo, seguiremos a segmentagdo proposta desde o inicio do livro. 207 * dito (no imperativo) ou gesto vocacional v.17 v.19 * objecdo e resposta — v. 2 *despojamento * v.18 v.21 * execugao do apelo vocacional (seguimento) v.18 v.21 ©) Controvérsias: Esses relatos surgem em um contexto de confronto com 6 Judaismo ¢ querem oferecer argumentos para que a comunidade se defenda contra os que criticam sua prética (Me 11,27-33: 12,13-17). As controvérsias seguem, basicamente, 0 esquema rabinico: Me 11,27-33 Me 12,13-17 + a pergunta dos adversérios v, 28 v.14 + uma contra-perguntade Jesus wv. 29-30 v.16 + a (ndo-)resposta dos adversdrios v. 33a v.16 + a contra-resposta (ou a ndo-resposta) de Jesus. —-y. 33b v.17 Alguns textos de controvérsias acabam se transformando em dialogo doutrinal: 0 puro ¢ o impuro (Me 7,1-23), 0 divorcio (Me 10,2-12) B)A tradigéto da palavra Nesse grupo encontramos as frases € os ditos de Jesus: é 0 material discursivo. Os principais sao: a) Comparagées, pardbolas, alegorias e fabulas: Os evangelistas usam 0 termo “parabola” para designar as varias histérias que. Jesus contava ou as comparagdes que ele fazia. Mas, precisamos estar atentos: um exame rigoroso revela- td que estamos diante de vérios tipos de discurso. Um quadro sindtico nos ajudara a perceber as diferengas. Como esses Géne- ros Literarios também so utilizados em outros livros da Sagrada Escritura, os exemplos incluirdo textos das tradigdes do AT: 208 \inica frase comparagio parabola alegoria fabula Tpode ser uma | *€uma stambém éuma | » éuma frase ow ‘comparagio comparago uma hist6ria desenvolvida _} ampliada em emformade | historia historia cada imagem eu sentido | * cada elemento + os personagens mantém seu niio esté em perde seu so animais ou significado cada elemento, | significado plantas, com um proprio: 0 esimnotodo | originale torna- | significado sentido esté no se simbélico; ou | nitidamente todo seja,o sentido} simbélico esté em cada elemento vyraia-sedeum |] enarra-seum — | +0 fato narrado fato comum, | fato particular, | no necessaria- E queacontece | no rotineiso, | mente é sempre, tomado } mas verossimil | verossfmil como exemplar + muitas * do utiliza a pardbolas formula de comegam com) comparagio uma férmula de | como”), e sim comparagao: “é } a cépula (“é”, como”, “é sao") fazendo semelhante” | comque seu significado se tome quase metafisico ‘quer persuadir, | + quer conven- | + quer mais jsto é, atingir a | cer, isto é atingir os vontade, ¢ levar aplatéia a comparar a sua atingir a inteligéncia, € transmitir um, sentimentos € sua finalidade & a instrugio, a propria situagio. | ensinamento critica ou a satira com 0 narrado Pr 10,26; 26,1; | 2Sm12,1-4;1s | Eel 12,1-7;Me | Jz 9,8-15; 2Rs Ecl 7,6; Le 5,L-7; Le 154-7 | 12,1-11; Mt 14,9 8.16; Mt 133-9 13,24-30.36-43 209 Como jé afirmado, os autores dos evangelhos nao se preo. cupam com tais diferencas, ¢ classificam tudo como “parabo- las”, mesmo quando se trata de uma alegoria. Tal 6 0 caso de Me 12,1-11. Outras vezes, os evangelistas interpretam alegorica- mente uma pardbola auténtica, como em Mt 13,36-43, b) Ditos proféticos: Ao estilo dos profetas do AT, Jesus fala da proximidade do Reino de Deus, da necessidade de se fazer peniténcia, da promessa da salvagdo: Me 1,15; 12,38-40. A novidade, em rela- cdo ao AT, € que, enquanto os profetas anunciavam a restaura- ¢a0 do reino de Israel, Jesus anuncia e inaugura a salvaco esca- toldgica e o Reino de Deus. Incluam-se aqui também o discurso escatolégico de Me 13 eas varias declaragées solenes que comecam com “amém / em verdade”: Me 3,28-29; 9,1.41; 10,15.29-30. ©) Ditos “eu”: Sao frases em que Jesus faz afirmacées a respeito de sua misso ou de sua identidade. Por isso, a maioria apresenta a f6rmula (ovx) fA8ov [eu (ndo) vim] + infinitive: Me 2,17; Mt 5,17; 10,34. A essa categoria pertencem também as senten- gas sobre o “Filho do Homem”?”: Me 8,31.38; Mt 11,18-19. 3.3.2. Epistolas** Poder-se-ia argumentar que uma epfstola j4 é, em si mes- ma, um Género Literdrio. Nao obstante, a Critica dos Géneros Literérios ultrapassa os documentos escritos e nos remete as tradigdes pré-literdrias, das quais provém dois tipos de material » Para uma discussdo sobre o significado e o desenvolvimento dessa expres- silo, cf. Vermes, G. Jesus, 0 Judeu, Sao Paulo, Loyola, 1990. pp. 165-196; Fuiter, R. H. Fundamentos de la Cristologia Neotestamentaria, Madrid, Cristiandad, 1979. pp. 42-54.71 2 Zavimermanns, Formas, ar. cit. pp. 317-328. 210 9 litirgico e 0 parenético. Devemos esclarecer que esta classifi- gagio ndo quer, primeiramente, definir o Site im Leben, ¢ sim 0 estilo dos textos ora considerados. A) Material litérgico Nitidamente de origem crist’, so fortemente marcados pelo tom celebrativo, a) Hinos: Exceto Rm 11,33-36, totalmente dedicado a Deus, todos os hinos do NT sao cristoldgicos: Fl 2,6-11; Cl 1,15-20; Tim 3,16; IPd 2,21-24. Tais textos possuem as seguintes carac- teristicas de estilo: uso da 3* pessoa para descrever a atuagio do Redentor, presenca de oragdes que se iniciam com pronome relativo, palavras sem artigo, construgao antitética. A semelhan- ga dos hinos do AT, que tm como referencia a atuagdo hist6rica de YHWH, os hinos do NT descrevem 0 caminho redentor que Jesus percorreu ¢ que o conduziu & exaltagdo. b) Confissées de Fé: Na Igreja primitiva, a celebraco do batismo e da eucaris- tia requer a profissio de fé, Trata-se de uma formulagao breve € expressiva daguilo que a comunidade eré (1Cr 15,3-5; Rm 1,3-4). ‘A diferenca dos hinos, os textos desse Género nao apresentam tum estilo laudativo e nem uma estrutura em forma de ciintico: iAdmite-se que, em 1Pd 1,18-21 e 3,18-22, encontramos elemen- tos provenientes de antigas confiss6es de fé. B) Material parenético Diferentemente do material hinico, que é de origem crista, o material parenético 6 mais judeu e helenistico. Com efeito, © cristianismo nascente teve necessidade de enraizar-se no cotidia- no concreto e isso suscitou nao poucos problemas para os mis- Sondrios do Evangelho, pois, para a maioria das situagdes nao havia “um preceito do Senbor” (ef. 1Cor 7,25). A comunidade aseumia os costumes entio vigentes ¢ a eles imprimia um espfti- to cristao. 2u1 a) Catalogos de vicios e de virtudes: Tanto quanto nas listas enciclopédicas da tradigio sapien- cial, textos desse tipo apresentam um elenco de atitudes dignas (virtudes) ou reprovaveis (vicios). Vicios: Rm 1,29-31; 1Cor 5,10-11: GI 5,19-21; 1Tm 1,9-10; Me 7,21-22. Virtudes: GI 5. FI 4,8.9; Cl 3,12-14; 2Pd 1,5-7. b) Moral familiar: Sao os textos que opinam sobre a ordem doméstica ¢ comportamento da familia cristd, diante do mundo que a rodeia Quase sempre, so respostas circunstanciais a problemas concre. tos ¢ situados. Em alguns casos apenas segue-se a moral judew- helenista, ou mesmo a estdica. Mais que uma legitimacao das atitudes propostas, o que temos é uma motivagao para assumi- las: Ef 5,22-6,9; Cl 3,18-4,1; [Pd 2,18-3,12. ¢) Catalogos de deveres: Os textos assim classificados esto presentes apenas nas espistolas pastorais e so estreitamente relacionadas A moral familiar. Enquanto, nos preceitos para a familia, admoestam-se 0s que pertencem a “casa”, nos catdlogos de deveres, apresenta- se 0 perfil dos que pertencem a “casa de Deus”. Com efeito esses catdlogos estabelecem diretrizes para os bispos (1Tm 31-7. Tt 1,7-9), os presbiteros (Tm 5,17-19; Tt 1,5-6), 08 didconos (Tm 3,8-13) e as vitivas (1Tm 5,3-16). No entanto, note-se que maioria dessas normas refere-se, nao ao exercfcio do ministé- tio, e sim & vida pessoal e familiar dos lideres da Igreja. Assim, tais determinagdes podem ser muito bem aplicadas a qualquer pai ¢ chefe de familia cristo, Sem contar o fato de que nao ha ‘muita diferenga entre o que se pede de um bispo e 0 que se pede de um didcono.., 3.3.3. Apocalipse de Jodo O tiltimo livro da Biblia possui uma estruturagao comple- xa.e altamente elaborada® . Dos Géneros Literérios nele utiliza- dos, citaremos apenas um exemplo As cartas as sete Igrejas: Essas missivas preenchem os caps. 2-3 do Apocalipse © so apresentadas como um ditado de Cristo ao profeta. A se~ qiiéncia das cartas descreve uma rota circular, tendo como ponto de partida Efeso, 0 porto de entrada na Asia Menor. Tal localiza- gio geografica levou essas sete comunidades, desde os tempos de Paulo, a se tornarem centros organizacionais e distributivos para as demais igrejas da regio. O esquema bisico para cada carta é 0 seguinte: Ap21-7 Ap 314-22 + enderego v. la v. 14a + auto-apresentaco de Cristo v. Ib v. 1db + juizo de Cristo sobre a situagao da Igreja wy. 2-4 wv. 15-17 + exortago ou conselho e motivagio wv. 5-6 vv. 18-20 + ptomessa ao vencedor v. Ta v.21 + exortagdo de caréter geral v.7b v.22 3.4. Um exemplo Depois dessa longa (¢, no entanto, suméaria) apresentagao dos Géneros Literérios do AT e do NT, é chegado 0 momento de Algumas indicagdes bibliogréficas: Caarrenvier, E. et alii, Una Leitura do Apocalipse. S20 Paulo, Paulus, 1983; Corsist, E. O Apocalipse de Sao ‘Jodo. 2. ed. $20 Paulo, Paulus, 1992; Euut, J. Apocalipse, arquiterura em movimento, S80 Paulo, Paulus, 1980; Pricer, P, Q Apocalipse. Sao Paulo, Loyola, 1993; Vast, U. L’Apocalisse - ermeneutica, esegesi, teologia. Bologna, EDB, 1988 213 analisar, com o instrumental apenas proposto, 0 relato marcano da tempestade acalmada. O primeiro passo ¢ a escolha do material. Isso supe ja uma hipétese de trabalho. Em nosso caso, a primeira tentagao é comegar comparando a versio de Marcos com os episédios pa- ralelos de Mateus e Lucas. Mas, dada sua dependéncia de Mar- cos, as verses mateana e lucana nao nos ajudardo a progredir muito. Entio é necessdrio utilizarmos outros textos. A Critica dos Géneros Literdrios preferiré comparar narrativas indepen- dentes entre si, mesmo se presentes no mesmo livro. Assim agi- mos antetiormente, ao contrapor Mc 4,35-41 e Mc 1,23-27, tex- tos que parecem estar construfdos sobre um esquema comum. O segundo passo tem como objetivo comprovar tal hip¢ tese. Para tanto, devemos estabelecer a estrutura formal de cada pericope que assumimos em nossa hipétese de trabalho e montar um quadro sinético que evidencie os elementos comuns. Em nosso exemplo, operaremos uma triplice comparagao: 214

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