Objecto multifacetado dada, por um lado, a sua totalidade (MAUSS, 1968),
e por outro lado, a fluidez dos sistemas sociais e políticos em que surgem, se desenvolvem e se movimentam, a acção de natureza política em contextos sociais presta-se a várias abordagens, suportadas por diversas heranças de pensamento e método provenientes de diversos espaços científicos e agendas de pesquisa, consoante a dimensão que pretenda salientar-se e o conjunto de questões cujas respostas se almeje. Sem prejuízo da oposição que moveu e alimentou esta multiplicidade de abordagens, elas não deixam de apresentar nuances analíticas cuja compatibilização me parece, apesar de tudo, não apenas possível mas proveitosa. Neste sentido, parece-me razoável o recurso a uma dupla hélice teórica – de inspiração extraída da Genética, em virtude quer dos inúmeros pontos de contacto histórico que apresentam – cuja complementaridade aqui se propõe face à forma como as forças de alguns dos paradigmas permitem ultrapassar as fraquezas de outros.
Diversidade teórica e complementaridade analítica: modelos de
articulação entre actores
Ao nível do contexto de articulação social e política entre actores,
emergem diversos paradigmas de que destaco quatro:
1. um que privilegia uma visão positiva da actuação dos actores económicos
e de representação de cunho político integrados no aparelho estatal (corporativista). Especificação conceptual do modelo da racionalidade limitada, o paradigma corporativista aborda uma modalidade particular de exercício de influência sobre processos de tomada de decisão pública que, concebido como reacção ao paradigma pluralista, se lhe opõe em quatro aspectos: a) sublinha uma forte concentração e complexificação da representação de interesses, em contraponto à descentralização e dispersão defendida pelo pluralismo; b) observa a existência de actores cuja agenda se centra em interesses de base estrita e comum, frequentemente profissional ou económica, ao passo que no contexto pluralista se dilui a sua base social; c) considera os actores como manifestações legítimas e naturais de sectores organizados do sistema social e político, razão pela qual não é atribuída à sua acção qualquer natureza ameaçadora da representação partidária, cujo estatuto aliás mantém; e d) admitindo a institucionalização dos actores no processo decisório democrático, apresenta um quadro de relações fortemente institucionalizadas com o Estado, com reconhecimento por parte deste, quer no âmbito da atribuição de exclusividade na representação dos seus interesses, quer no âmbito da aplicação de políticas públicas através de subvenções e de delegação de poderes (SCHMITTER, 1975; BAUDOUIN, 1998: 280-282).
2. um cuja visão positiva considera a interacção livre dos grupos de interesses
no sistema como factor de produção de equilíbrio sistémico (pluralismo liberal). Legado do pensamento liberal de Madison, o paradigma pluralista possui na sua base uma representação positiva da acção que, rejeitando o formalismo das abordagens legalistas, se joga em três dimensões. Em primeiro lugar, a multiplicidade dos actores em número e interesses representados constitui factor de equilíbrio do sistema político pois acarreta um processo contínuo de produção de consensos que, dispersando o poder e bloqueando por essa razão a instituição de monopólios, assegura a perpetuação do carácter democrático do sistema. Mesmo no cenário da manifestação de maior pro-actividade por parte de um grupo, Madison defendia que o carácter dinâmico do sistema político compreendia mecanismos de homeostase, que se traduziriam numa reacção dos grupos rivais no sentido do reequilíbrio da balança de Poder. Em segundo lugar, esta perspectiva considera que uma multiplicidade de actores modifica a imagem da Política, de um exercício de autoridade para um exercício de arbitragem e mediação, na medida em que representam uma forma de inclusão da representação de interesses bottom-up no sistema político, à qual as instituições do Estado têm apenas de filtrar e de adequar aos interesses maiores da sociedade. Finalmente, em terceiro lugar, constitui um factor de promoção da coesão social enquanto esfera de socialização, na medida em que criam uma multiplicidade de cenários nos quais não apenas podem jogar-se os diferentes selves de cada indivíduo, contribuindo para a sua integração mas também o acesso a experiências e competências que capacitam os cidadãos para o exercício cívico. Contudo, este paradigma enfermava de insuficiências, as quais são responsáveis por maiores malefícios que benefícios, ao ponto de acentuar as desigualdades cuja matriz pretendia corrigir, a maior das quais se prende com o facto de subestimar o papel decisivo desempenhado pela desigualdade de recursos, a qual torna muitas vezes um contexto teoricamente igualitário de procura de consensos num exercício de desigual influência (KEY, 1964: 150; DELLA PORTA, 2003: 114-122).
3. um para o qual os grupos constituem estruturas orientadas para a
privatização de benefícios a partir da captação de vantagens governamentais negociadas com órgãos públicos num mercado político (neo-pluralismo). Em reacção ao corporativismo, o neo-pluralismo preconiza um foco da análise política nas acções ao invés de concentrar- se em ideais e crenças, enfatizando o real funcionamento do sistema político em detrimento de qualquer juízo sobre a forma como devia funcionar – abandonando assim o estruturalismo inicial em favor de uma ênfase em aspectos funcionais do sistema. Emergindo de uma associação de intelectuais essencialmente economistas, esta revisão do paradigma pluralista mantém a tradição de Madison mas analisando a questão sob o prisma pessimista no âmbito das dinâmicas de decisão colectiva, reconhecendo que da institucionalização progressiva das relações interesses-Governo resulta não apenas a exclusão de alguns dos interesses – e como corolário do anterior, a ausência de um pluralismo absoluto – mas também que os o contrabalanço de poderes não é suficientes para o restabelecimento do equilíbrio do sistema político. Extravasando para a sociedade uma visão que perspectiva a acção dos agentes económicos enquanto orientada para a obtenção de vantagens no sector público em virtude do insucesso da sua competitividade no mercado, este paradigma aproxima-se do posicionamento do corporativismo inicial no sentido em que reconhece a existência de um mercado político com dinâmicas de oferta e procura, no qual se jogam pretensões legislativas com contrapartidas ao nível de promessas, acordos, contribuições para as campanhas eleitorais, e votos, expondo desta forma a vulnerabilidade não apenas dos legisladores mas igualmente da classe politica como um todo, e do próprio sistema político. Nesse sentido, a acção questiona os alicerces dos princípios democráticos da soberania popular e distribuição equitativa do Poder, vulnerabilizando a concepção de pretenso equilíbrio defendida pelo pluralismo liberal original (GUERRA, 2006).
4. um para o qual a existência dos grupos de interesse é não apenas legítima
e consequência natural da complexificação social, mas igualmente uma necessidade sistémica traduzida na sua participação em processos de decisão específicos e na implementação de políticas (neo-corporativismo). No entanto, o paradigma neocorporativista enferma igualmente de algumas limitações próprias. A primeira prende-se com o fechamento da sua análise sobre processos de tomada de decisão de políticas públicas centrados num reduzido número de agentes políticos, com efeitos de natureza ambígua ao nível da conflitualidade social, sobre-representando os interesses mais integrados, e excluindo os de menor estruturação. Em segundo lugar, o facto de que muitos destes processos de decisão são agora objecto de uma concertação política internacional reduz sobremaneira o espaço de decisão dos actores corporativos nacionais, reduzindo parte da aplicabilidade deste paradigma ao sistema político nacional (OFFERLÉ, 1994: 17-19; BAUDOUIN, 1998: 282/283). Diversidade teórica e complementaridade analítica: os processos subjacentes à acção
A hélice dos processos subjacentes à acção compreender, por seu turno,
diversos posicionamentos teorico-analíticos, dos quais devem ser destacados quatro:
1. aquele centrado nos mecanismos de integração e propagação da acção
(Teorias do Comportamento Colectivo). Ancoradas na Escola de Chicago, particularmente nas categorias conceptuais de Park, as chamadas teorias do comportamento colectivo pensam a ordem social como estável, suportada por normas que uniformizam as condutas. Compatibilizando uma concepção eminentemente funcionalista da sociedade com uma abordagem micro-sociológica, o comportamento colectivo constitui um fenómeno não-institucional, desviante, resposta irracional de multidões dinamizadas por uma lógica de contágio ou imitação à qual subjaz a atomização social e a alienação do indivíduo daí resultante. Em desenvolvimentos posteriores, em trabalhos como os de Tarde, este paradigma procura incluir o papel desempenhado pela Cultura e pela identidade colectiva nos processos de mobilização – plano no qual a influência de Blumer é decisiva – tentando a abordagem dos determinantes estruturais da acção colectiva e o estabelecimento de uma continuidade entre o comportamento colectivo e as instituições. Contudo, mesmo esta revisão paradigmática não permitiu fazer face à sua principal limitação: a deslegitimação da acção fora das instâncias de participação democrática mais cristalizadas (FILLIEULE, PÉCHU, 1993; BOUCHER, 2002).
2. aquele centrado na racionalidade individual dos actores perante os fins
cujo alcance se propõem (Teoria da Mobilização de Recursos). Desenvolvidas sobretudo a partir da Universidade de Michigan nos anos 50 e 60, as teorias da mobilização de recursos baseiam-se num entendimento do conflito entre uma multiplicidade de interesses enquanto processo intrínseco do sistema, em substituição de uma concepção do sistema social e político baseada na manutenção homeostática de equilíbrios, defendida pelo paradigma anterior. Recorrendo a uma perspectiva utilitarista, observam as formas de emergência da acção – o “como” – e não tanto as suas motivações ou modos de construção da sua identidade – o “porquê” – a partir do conceito de racionalidade limitada dos indivíduos nos quais agregam os seus interesses, ou seja, uma acção racional decorrente quer do conhecimento incompleto do sistema social em que se movimentam e que não controlam, quer do desconhecimento da totalidade dos efeitos da sua acção. Nesse sentido, considerando a acção uma prática racional e organizada de prossecução de objectivos, importa enfatizar as suas dinâmicas de mobilização e modus operandi (EPSTEIN, 1991: 231). Três ramos teóricos distintos foram enunciados no seio deste paradigma. A teoria dos jogos, de Von Neuman (1944), preconizando a observação das condições de cooperação e conflito por trás das escolhas estratégicas que se apresentam aos actores em contextos sociais com racionalidades específicas, centra-se interacções que envolvem essencialmente dois actores, situação cuja aplicabilidade em sociedades fragmentadas se torna delicada. Paralelamente, centrando-se na racionalidade individual e na defesa de interesses individuais, deixa de parte a acção com vista à promoção e defesa de interesses colectivos. A abordagem da lógica da acção colectiva (1965), de Olson, evidencia o mecanismo de benefício sem o esforço do envolvimento directo por parte dos actores sociais designados free-riders. Oberschall (1973) tenta solucionar este problema identificando tipologias de comportamento e de integração/isolamento social a partir de uma cartografia das relações estabelecidas entre as comunidades e as instâncias de poder; e Inglehart (1977) salientou, neste particular, a mutação nas predisposições dos indivíduos para a acção em função da satisfação das suas necessidades materiais, em paralelo com uma consciência orientada para valores de natureza subjectiva e pós- materialista. A abordagem da acção estratégica de Crozier e Friedberg (1977), centra-se na análise das condições e, sobretudo dos constrangimentos a que a acção se encontra sujeita, cabendo a Friedberg (1995) o alargamento destas noções do seu território original de aplicação – as organizações – a todo o sistema social, definindo desse modo o sistema social como contexto de acção sujeito a regras e mecanismos de regulação dinâmicos e fluidos, produto contingente dos processos de interacção e de negociação que nele se desenrolam, estabelecendo uma interdependência entre actor e sistema que estrutura ambos. Intrinsecamente ligada a este posicionamento encontra-se uma noção relacional de Poder, desigualmente distribuído mas permitindo ainda assim o exercício de influência recíproca e em constante redefinição.
3. Aquele centrado na recusa de uma ordem social e ideológica a partir da
promoção de valores e lógicas alternativas (Teoria dos Novos Movimentos Sociais). Partindo das teses de Bell sobre os valores pós-industriais e das teses de Inglehart sobre os pós-materialistas, os autores inscritos subscritores da teoria dos novos movimentos sociais recusam a natureza funcionalista subjacente à teoria da mobilização de recursos enquanto ordem de dominação sem saída, criticando a subvalorização que professam da dimensão política da acção decorrente do seu foco na racionalidade individual, e defendendo a análise da formação de solidariedades e identidades a partir de um foco no sujeito como actor central num contexto de relações sociais em condições de desigualdade, afastando-se de forças externas à sociedade. Afirmando que a sociedade não é estruturada por forças super-estruturais externas ou pela justaposição de lógicas individuais, mas pelas próprias relações e sistemas de acção estabelecidos entre os actores enquanto produção de historicidade e da orientação cultural pela qual ela é balizada, centra-se no processo de mudança social a partir da experiência de acção em conjunto e na articulação das relações sociais, ao invés de identificar princípios ou valores abstractos. Nesse sentido, centra-se na dimensão cultural dos processos sociais, isto é, na compreensão das dinâmicas sociais enquanto fenómenos de transformação cultural e de produção de historicidade, razão pela qual, segundo os seus proponentes, este paradigma se encontra mais adaptado à fragmentação e complexificação sociais, permitindo analisar as novas formas de dominação que delas resultam. Estas condutas assinalariam, pois, uma transformação social estrutural na medida em que estes conflitos se jogam igualmente ao nível do controlo dos recursos sociais, pelo que as primeiras não podem ser deterministica e exclusivamente atribuída a factores estruturais ou culturais, nem reduzidas a uma resposta a circunstâncias conjunturais históricas: constitui, antes, o objecto de análise da mudança social por excelência. Por outro lado, a acção só é possível no sentido em que os actores são capazes de definir a si mesmos, ao campo onde pretendem agir, aos fins a que se propõem e os meios a articular para atingir esses fins, de uma forma relacional (TOURAINE, 1985; DIANI, EYERMAN, 1992: 7; FILLEULE, PÉCHU, 1993: 145-146; MELUCCI, 1995: 112; MELUCCI, 1996: 39; GUERRA, 2006: 74-75).
4. aquele centrado na concepção de novas referências identitárias a partir
de novas representações da realidade (Teorias do Enquadramento). Apoiando-se numa reconfiguração das categorias conceptuais da Escola de Chicago, particularmente no trabalho de Goffman, a teoria do enquadramento da acção, de inspiração construtivista, centra-se na interacção enquanto contexto de construção das representações que enquadram o pensamento dos actores sociais e políticos. Posicionando-se criticamente face à teoria da mobilização de recursos, em especial ao nível do seu alheamento analítico face à dimensão das motivações para o envolvimento dos indivíduos na acção, critica igualmente a teoria dos novos movimentos sociais pela forma como o seu foco na dimensão política da acção colectiva tenta discernir nesta um potencial emancipatório face a um sistema social e político no qual, demonstra a História, vem a integrar-se. A acção é, para este paradigma, o território de produção e definição contínua e estratégica de matrizes de significados, num sentido não-transcendente, as quais interpretam problemas e situações, e sugerem soluções. Estas representações encontram-se, portanto, ancoradas em valores que resultam da interacção entre os actores, orientando a sua acção, e não em quaisquer princípios existentes a priori, designadamente ideológicos. No entanto, estes quadros de referência assumem-se como recursos simbólicos, aproximando este paradigma da teoria da mobilização de recursos. Paralelamente, ao circunscrever o seu foco à interacção enquanto contexto, este paradigma incorre numa subvalorização da dimensão organizacional da acção colectiva (ZALD, 1996: 265; CEFAI, TROM, 2001; SNOW, 2002: 28).
5. aquele centrado nas novas práticas de participação representação
política em espaços não habitualmente considerados no âmbito da análise do Poder (Teorias da Crise/Aprofundamento da Democracia). Para a teoria da crise e aprofundamento da Democracia a crescente mundialização da Economia traduz-se numa dinâmica de transformação das funções sociais e políticas do Estado, reduzindo a amplitude da sua intervenção enquanto agente regulador e contribuindo para a dispersão do Poder, tornando-o polimórfico e, muitas vezes invisível. A par da perda de protagonismo de algumas das meta-narrativas de referência, ocorre uma pulverização dos interesses em jogo, aumentando os tabuleiros nos quais se jogam os papéis e identidades dos actores sociais. Com esta fragmentação assiste-se igualmente a uma multiplicação e complexificação dos problemas sociais aos quais importa dar resposta, esforço para o qual o desempenho de Estado nem sempre é eficaz, colocando em causa o próprio contrato social e questionando o figurino da Democracia enquanto sistema. Daqui resultam indefinições e ajustes nos formatos de participação/intervenção política, bem como das formas de associação e representação desses interesses, obrigando a encontrar novas respostas e novos parceiros com experiências e lógicas de acção diferentes, acarretando o envolvimento, em formatos diversos, de alguns desses actores sociais fragmentados, quer pertencentes aos sectores já integrados no sistema, quer de entre os que questionam alguns dos fundamentos desse sistema. Neste sentido, o paradigma da crise/aprofundamento da Democracia questiona, em primeiro lugar, a ideia de défice democrático, considerando ser mais sensato perspectivá-la precisando a vertente a que essa crise deve, com efeito, ser apontada. Na realidade, defende a existência de um défice de apetência dos cidadãos pelos mecanismos tradicionalmente consagrados para a forma mais ortodoxa de participação política, aliado a um desencanto pela função de representação política tradicional, que se traduz no aumento da abstenção nos actos eleitorais e no alheamento dos cidadãos face à política em geral, entre outros. A análise desenvolvida por este paradigma recentra-se, então, no exercício de Poder subjacente às relações sociais, visão que pressupõe uma abordagem repolitizante das práticas concretas dos actores, ampliando o campo do político para lá do voto e da Democracia representativa a que a teoria liberal o havia reduzindo. Por esta razão a acção é considerada a manifestação de anseios e objectivos que a representação política tradicional inscrita no sistema social existente não satisfaz. Promovendo o conceito de Cidadania participativa fundado na pertença a uma comunidade e na inter-subjectividade das relações entre actores com vista a uma coordenação consensual de espaços, papéis e comportamentos, em detrimento de um conceito de Identidade baseado numa separação ontológica actor/sistema e conotado com uma filosofia do sujeito que o reduz a acção a uma dimensão utilitarista racional (Weber) e o priva de uma dialéctica de reconhecimento (Rawls), este paradigma defende um enraizamento espacial da acção que permite acomodar a ideia hegeliana de vida em conjunto num contexto específico e historicamente enquadrado de referências múltiplas, responsável pela redefinição contínua da experiência dos actores e, a partir dela, das suas práticas individuais e (sobretudo) colectivas (HABERMAS, 1987: 60; SANTOS, 1992; LUHMANN, 1993; FITOUSSI, ROSANVALLON, 1997; MELUCCI, 2000: 159; NORRIS, 2001: 4).
Aplicações: a acção política enquanto fenómeno dinâmico multiforme
Dada a tendência das sociedades contemporâneas para a
complexificação das estruturas dos actores políticos e das suas agendas, com implicações ao nível do alargamento dos campos de luta política, a acção não deve ser abordada a partir de uma base classista ou de qualquer meta-narrativa. É, aliás, por essa razão que as análises da participação política efectuadas com recurso a perspectivas tradicionais – militância político-partidária, dinamismo dos sindicatos, e resultados eleitorais – subvalorizam a intensidade das práticas políticas dos cidadãos, relativizando as transformações nelas ocorridas e ocultando a representatividade de novas formas de mediação política (EPSTEIN, 1991: 247-248; NORRIS, 2001: 2). O sistema social é atravessado por desigualdades estruturais que, encontrando-se inscritas neste, estruturam e condicionam a acção de todos os que nela se movem: contudo, a existência desse condicionamento não acarreta o desaparecimento ou o insucesso necessário de qualquer dinâmica de superação dessas desigualdades. Não é possível compreender a acção enquanto fenómeno estático, inscrito de forma estéril numa estrutura imutável de constrangimentos políticos: ela constitui, na realidade, um fenómeno dinâmico que, em contextos que definem limites mas também oportunidades, se desenvolve através de processos dialécticos de redefinição constante não apenas de si própria mas também do meio em que se movimenta, aproveitando mas igualmente criando oportunidades para a acção política (JENKINS, KLANDERMANS, 1995: 7; GAMSON, MEYER, in MCADAM, 1996: 35; TARROW, 1996: 58-61). Este processo de redefinição constante traduz-se, em primeiro lugar, numa interpretação da realidade dos problemas aos quais se propõem apresentar – e muitas vezes aplicar – soluções, enquadrada por um campo de possibilidades e limites por eles (re)construído continuamente. Mas esta reconstrução simbólica da realidade é impulsionada não apenas pela partilha de uma matriz de valores e identidades enquanto recurso simbólico, sujeita a ancoragens sociais e à fluidez daí resultante, mas também pela partilha de recursos de natureza material e instrumental, entre os quais se estabelece igualmente uma relação dialéctica contingente, podendo uma organização aumentar as suas oportunidades políticas expandido o seu repertório de acção, nomeadamente integrando novas práticas e tecnologias (MCADAM, MCCARTHY, ZALD, 1996: 8/9; MELUCCI, 1996: 40; TARROW, 1996: 58). Assiste-se desde os anos 80 a um processo de adaptação de repertórios de acção, designadamente a substituição progressiva de discursos de mudança social e de estratégias mais conflituais por retóricas de modernização e práticas de lobbying político mais consentâneas com as normas de participação no sistema político, de forma a garantir o reconhecimento por parte dos actores políticos institucionalizados. Actualmente, a acção reveste-se de uma natureza multiforme, exercendo-se agora ora directa, oculta e discretamente sobre o Poder, diligenciando junto do Governo, dos altos funcionários, e dos parlamentares, com repertórios de persuasão mediante o fornecimento de informação com vista ao enriquecimento do processo decisório, ora indirecta, aberta e declaradamente, por intervenção junto do público, cuja atitude influencia por sua vez o Poder (MEYNAUD, 1960; DUVERGER, 1964: 169). Neste processo de alteração do status quo a instrumentalização de informação desempenha um papel central, razão pela qual as formas de acção política se têm tornado cada vez mais diversificadas e os repertórios menos convencionais de acção cada vez mais populares (CROOK, PAKULSKI, WATERS, 1992: 140; CASTELLS, 1997; KUTNER, 2000; PICKERILL, 2001: 145). Para este cenário contribui não apenas a percepção de que é possível o exercício de influência sobre o sistema político sem representação política directa no seio desse sistema mas igualmente a capacidade de adaptação ao novo paradigma tecnológico, nomeadamente à instrumentalização da Internet (CASTELLS, 1997). Segundo Norris, as formas de utilização da Internet para fins políticos variam entre pressões exercidas sobre os políticos eleitos, titulares de cargos públicos e elites políticas, estabelecimento de redes de contacto e cooperação com outras organizações com vista à concertação de acções, recrutamento e a mobilização de simpatizantes, recolha de fundos, e veiculação de uma mensagem para os (e através dos) Media (2001: 10). Pode, portanto, dizer-se que os actores sociais devem, para influenciar a agenda das instâncias com poder de decisão, adoptar estratégias de sedução dos Media tradicionais e em simultâneo instrumentalizar os Novos Media, como a Internet – a qual lhes permite contornar os constrangimentos de distância e tempo – para conduzir o seu protesto até onde ele pode fazer a diferença. É precisamente esta combinação de modos de acção política jogada em diversos tabuleiros e com recurso a diferentes interpretações e reconstruções simbólicas e instrumentais que torna a aplicação da dupla hélice teorico-analítica aqui proposta tão profícua e de tão útil abrangência. BIBLIOGRAFIA
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