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Na Lapa de Makemba

Vissungos do Tijuco: O translado fantástico da música morta-viva

Notas etnológicas sobre uma longa viagem música africana do Brasil adentro

(Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos pretos de Milho Verde-MG / Foto de Spírito Santo -Jan 2009)

Por Spírito Santo


Rio de Janeiro de 2009/Julho 2010
“Com licença de Curiandamba, com licença de Curiacuca...”
O garimpo e a lapidação da pequenina pedra bruta

Depois de ansiosos dias, parti em 02 de janeiro deste 2009, de mala e cuia para o alto da
Serra do Espinhaço, MG, na região do antigo Serro Frio (Diamantina e adjacências). Voltei lá
quase 30 anos depois, desta vez a convite do documentarista paulista Cassio Gusson, para
coordenar a pesquisa que subsidiará um filme longa-metragem sobre os ‘Vissungos do Tijuco’,
protagonizado por seus cantadores remanescentes (e seus eventuais sucessores) todos
descendentes de escravos e quilombolas mineradores de diamante trazidos de Angola para cá,
a maioria a partir de meados do século 18.

A viagem, com origem em São Paulo (Cassio Gusson, o diretor, Felipe Mantovan, o camera-
man e Paulo Genestreti, fotógrafo) e Rio de Janeiro (eu mesmo) cobriu um extenso roteiro no
qual, depois de nos encontrarmos em Belo Horizonte, cruzamos de carro pequenos trechos de
estrada asfaltada, descambando num sem fim de barrentas estradas vicinais, atoleiros,
córregos e – a pé – trilhas de montanha, cruzando desconjuntadas porteiras que se abriam
para o não-sei-o-que que avidamente procurávamos: As sobrevivências dos cantos africanos
denominados Vissungos.

Assim, atropelando cobras e observando, extasiados o vôo de gaviões, carcarás sobre recorte
pré histórico do relevo local, atravessamos as cidades do Serro, Diamantina (nossa base
financeira), Conceição do Mato Dentro e, já no trecho da chamada Estrada Real (hoje ainda tão
intransitável quanto no período colonial), nos baseamos na cidade de Milho Verde (onde nasceu
Chica da Silva), já no contexto da extensa área de nossa coleta: Um conjunto de minúsculos
vilarejos onde outrora, entre os séculos 18 e 19 se concentraram milhares e milhares de
pessoas, funcionários, soldados portugueses, aventureiros brasileiros livres e escravos, todos
empenhados na extração e no garimpo (clandestino) de ouro e diamantes.

Visitamos assim também os povoados de Ausente de Baixo, Ausente de Cima e Baú


(verdadeiros ermos formados por quilombos ali estabelecidos nos velhos tempos da Extração),
São João da Chapada (outrora a sede das tropas portuguesas), culminando com a visita ao
incrível lugarejo (cerca de 50 casas) Quartel de Indaiá, onde as condições de vida dos antigos
quilombolas da região podem ser ainda vislumbradas, como se o tempo ali tivesse sido
congelado no século 19.

As minhas conclusões, ainda muito preliminares sobre o tema, complementando emocionados


e muito particulares estudos iniciados em 1975 – coincidentemente, meu pai era descendente
de escravos da mesma região – e interrompidos em 1981 são, posso garantir, muito
interessantes – e inusitadas até – mesmo para aqueles já familiarizados com o assunto.

Um dos momentos sem dúvida mais emocionantes desta viagem – fantástica em todos os
sentidos – foi mostrar a foto que havia tirado há 27 anos atrás de uma dupla de moradores do
quilombo de Quartel de Indaiá, a uma alegre senhora de São João da Chapada conhecida como
‘Miúda’ (a primeira pessoa que me recebeu à porta) e vê-la sair correndo atrás dos óculos, já
com os olhos marejados exclamando:

_” Meu Deus do céu! Mas este é… é o meu irmão Francisco Xavier!”

Coincidência, acaso ou obra de Deus? O que eu sei é que foi mesmo de chorar vê-la se
embrenhando pela casa, a esta altura apinhada de parentes, todos envolvidos com a folia de
Reis que brincava o seu último dia deste ano (6 de janeiro), mostrando a foto que passando de
mão em mão, ensejava novas emocionadas exclamações:

_” Olha aqui! É o meu vô Chico!”

_” Olha aqui! É o meu tio Chico!”


_” Ah, cristo!.. Mas é o meu pai, gente!”

Soube ali que Chico Xavier (na foto, à direita, cabisbaixo e Paulo, seu parceiro numa caçada
que faziam na ocasião) ambos, de algum modo quilombolas e vissungueiros, tinham falecido
há tempos e as famílias não tinham nenhuma imagem deles para avivar as lembranças.

Vivo de novo, Chico Xavier abriu então todos os nossos caminhos.

(Chico Xavier – de cabeça baixa- e Paulo Lucindo na entrada de


Quartel de Indaiá. Foto Spírito Santo, 1981)

Viviam todos em 1981 ainda em Quartel de Indaiá, pequena povoação formada por
quilombolas que, liderados em certa época (presume-se que, mais ou menos ali pelo início do
século 19) por um tal de Makemba, dominavam as elevações do pedregoso relevo da área,
gretado de lapas (grutas) de onde atacavam as tropas de mulas (carregadas de víveres, ouro e
diamantes) escoltadas por tropas do exército colonial (‘dragões’).

Com a desativação da Real Extração na área do Arraial do Tijuco e a transferência das tropas
já ali por volta da primeira metade do século 19, os quilombolas desceram da serra e passaram
a ocupar uma espécie de várzea onde ficava um dos quartéis construídos na região para
combatê-los: O Quartel de Indaiá, nome inspirado numa curiosa e selvagem palmeira muito
abundante no local.

Vitoriosos, os descendentes de Makemba e seu pessoal tomaram o quartel de assalto, por se


assim dizer.

…O morro mais próximo do quilombo é conhecido como Makeba. Palavra de origem


Banto (Makemba, mais precisamente, do Kimbundo angolano: nota do autor). Segundo
os moradores, no período escravagista, o morro Makeba era usado por escravos fugidos
para esconderem dos fazendeiros e da fiscalização.

Os escravos fugidos praticavam assaltos na região para poderem sobreviver e escondiam


o fruto do roubo no morro Makeba. Segundo o morador Expedito: “Na comunidade havia
um túnel que dava no morro do Makeba.

Ele fazia o túnel que saia na beira da estrada. Da estrada saia para a beira do rio e de lá
era tocado no mato do Makeba. Assim assaltavam a tropa. O carregamento de diamante
era jogado dentro do túnel. Quando o tropeiro chegava, o dono da tropa, ao local todo o
carregamento já estava vazio.

Antes o morro do Makeba era chamado por muitos de esconderijo. O túnel não era muito
grande. “A cera era carregada misturada ao ouro e diamante, fazia-se um bolo de cera
para que pudesse passar despercebidos, a passagem era feita dentro do mato.”

(Texto do Centro de Documentação Eloi Ferreira da Silva de Minas Gerais, acerca da


comunidade quilombola de Quartel de Indaiá)

Facilmente indicada pelos informantes locais, enorme e plenamente visível no horizonte de São
João da Chapada, à chamada ‘Serra do Makemba’ pode enfim ser filmada e fotografada.
Filmamos a imponente serra do pátio barreado do rancho de Pedro Lucindo, que é Vissungueiro
‘respondedor’ como era o seu falecido irmão Paulo (o mesmo parceiro de Chico Xavier da foto
de 1981).

Na casa de Pedro Lucindo, um autêntico rancho quilombola de séculos atrás, sobre o fogão de
lenha na tosca cozinha, um enorme tatu (morto pelo cachorro) era defumado. Fizemos ali uma
emocionada entrevista que, enevoada pela fumaça do fogão de lenha, juntou dois velhos
Pedros (um deles o nosso guia) e suas lembranças.

É de Pedro Lucindo a eletrizante descrição do fim do líder quilombola Makemba, atraiçoado e


morto numa emboscada com um ardil baseado em sua própria tática de guerrilha, que
consistia em dar sumiço no menino que guiava a coluna de burros (interrompendo a marcha da
tropa) e se apossando da carga de algumas mulas, sem ser visto.

A cena que descreve os pormenores da tática de guerrilha praticada por Makemba e seu grupo
me foi narrada por Maria 'Miúda' que deve tê-la ouvido de seus pais, que, provavelmente
ouviram de seus avós, um episódio fundamental da história oral da população de São João da
Chapada. Ela contava mais ou menos como reproduzo abaixo:

_ ...”A tropa envinha com a 'madrinha da tropa' à frente, trazida pelo moleque campêro. Os
povo de makemba fazia um buraco, escondido no mato num canto do caminho e...prucutu,
caçava o moleque e jogava lá dentro... A 'Madrinha', meio assim desnorteada voltava pra trás
e a tropa inteira se desembestava. Daí é que o pessoá de makemba atacava, espingardeava os
soldado e roubava o que dava, manta de carne seca, baú de ouro, diamante, o que desse...”

A estranha personagem denominada 'Madrinha da Tropa', evidentemente exigia maiores


explicações, ao que Miúda respondeu, descrevendo:

_” Ela tinha na cabeça um negóço...um capacete assim de cobre ou bronze, todo enfeitado,
muito brilhante, a lhe cair pelos ombros, lustroso inguá a ouro, que brilhava no sol e um
peduricalhos, uns guizo que fazia barulho assim, sendo balangado pelo caminho...”
A descrição aumentou mais ainda a curiosidade sobre a misteriosa figura, cujo identidade só foi
desvendada no dia seguinte quando, de novo inquirida Maria 'Miúda' ás gargalhadas acabou
com o segredo:

_ 'Que moça nada, menino! A madrinha era uma mula, gente! Uma mula guia, que ia guiando
as outras mulas pelo caminho, tocada pelo menino.”

Com efeito entre as práticas e modos de transportar cargas naquela época devia haver este
modo tão peculiar, um procedimento militar, talvez o qual, logo depois pude confirmar
analizando uma prancha de Johan Moritz Rugendas (veja ilustração abaixo) descrevendo,
exatamente uma tropa assim a caminho de Diamantina.

(Ao centro, na gravura de Rugendas de meados do século 19, a incrível mula 'Madrinha da tropa',
exatamente como me foi descrita por Maria Miúda' em 2009)

A gruta (ou túnel) suposta morada de Makemba e seu grupo, descrita de forma mítica naquilo
que antes pensávamos ser apenas uma lenda, só não foi visitada porque seu acesso estava
inteiramente coberto pela mata (segundo os informes, o corpo de Makemba teria sido
sepultado dentro da gruta após ter sido morto pela tal emboscada armada pelos Dragões da
Real Extração).
(Serra do Makemba. Imediações de Quartel de Indaiá –MG. Foto Spírito Santo 2009)

O empecilho não impediu, contudo que a equipe visitasse e filmasse uma gruta (‘lapa’ como se
diz por lá) idêntica que, por mais incrível que possa parecer, foi habitada durante 18 anos (!)
pelo nosso guia, o sereno mestre de folia de reis Pedro ‘da Miúda’ (ela mesma, a irmã de
Chico, o Vissungueiro sonso e cabisbaixo da foto de 1981, aquela que, não resistindo à emoção
que a saudade do tempo da gruta lhe suscitava, de novo ficou com os olhos marejados.)

Garimpeiros todos os personagens de nossa história, viramos garimpeiros nós outros também.

Que viagem!
(Maria ‘Miúda’ - olhos marejados- e Pedro da ‘Miúda’. Foto Spírito Santo, Janeiro 2009)

Foram muitas as surpresas, as redescobertas e, principalmente as perguntas respondidas


gerando novas perguntas, um infinito novelo de perguntas, naquela que foi uma coleta de
campo voltada para esclarecer, pelo menos em parte, um emaranhado formidável de pistas
dispersas, a maioria delas, apesar de, recorrentemente discorridas em teses, livros e
dissertações de mestrado, por uma quantidade razoável de pesquisadores, envoltas na névoa
que ainda hoje turva quase tudo relacionado à cultura dos escravos trazidos da África para o
Brasil.

Vissungos do Tijuco: História oral, musical, ansiando por se tornar visível: audiovisual. Tudo
ainda carecendo de ser ouvido, lido e melhor entendido para poder enfim ser descrito ou
escrito com os detalhes e minúcias que merece toda história que, subestimada como mero
conjunto de mitos e crendices de povos bárbaros, vai ficando cada vez mais clara, menos lenda
de negros supostamente incultos, cada vez mais assumindo o seu caráter de história de gente
real.
(Filhas de Pedro Lucindo com tatu pego pelo cachorro, defumando ao fundo- Quartel de Indaiá-Foto
Spírito Santo 2009)

Kurima de Vera
Lavra de Vissungos e diamantes

E o que seriam estes chamados ‘Vissungos do Tijuco’, curiosa prática de origem africana,
muito discutida no Brasil desde a década de 1940?

“Vissungo em etnografia, se refere à música de caráter responsorial praticada por


escravos utilizados nas lavras de Diamante na região compreendida, entre outras, pelas
periferias das cidades brasileiras de Diamantina, Serro e São João da Chapada em Minas
Gerais. Tal música era entoada raramente em língua portuguesa, prevalecendo línguas
africanas principalmente o Kimbundo e o Mbundo (chamadas de língua Benguela pela
população local) e relacionadas a idiomas até hoje falados na atual República Popular de
Angola.”

(O verbete na enciclopédia on line Wikipédia)

Ao que nos consta, por tudo que podemos reunir sobre o assunto (e a despeito de ser esta
uma afirmação ainda hoje discutível) Os cânticos dos Vissungos são mesmo uma prática
musical rigorosamente, africana.

Mais ainda: No âmbito das manifestações de inspiração africana introduzidas no Brasil, talvez
os Vissungos sejam o único elemento (ao lado, talvez, apenas da música de Candomblé) com
tal grau de integridade – autenticidade, diríamos com todo o peso que a palavra contém –
podendo representar, do ponto de vista etnomusicológico, sem nenhum exagero, um
verdadeiro elo perdido entre as estruturas da música tradicional de certa região de Angola
(notadamente aquela praticada nos séculos 18 e 19) e suas referências ou ocorrências atuais,
tanto em África quanto aqui na América do Sul.
Por conta destas especiais circunstâncias (que tentaremos enunciar, mais detidamente, no
decorrer deste trabalho) considerando-se obviamente, que não havia ainda na época, nada
sequer parecido com o que hoje conhecemos como música tradicional brasileira, sabe-se hoje,
com alguma certeza, que houve pouca ou, praticamente nenhuma simbiose deste gênero
musical (Vissungos) com qualquer outra influência, mesmo portuguesa, durante todo o
processo de sua longa existência (bem entendido que afirmamos isto do ponto de vista
estritamente musical)

Circunscritos – pelo menos com esta denominação – à vasta região de Diamantina e do antigo
Serro Frio, em Minas Gerais, havendo sido praticados desde tempos idos (talvez desde a
segunda metade do século 18, com a intensificação da mineração em larga escala na região) e
ainda relembrados, até o final da segunda década do século 20, por várias razões (entre as
quais algumas discorremos aqui), os Vissungos permaneceram, portanto, por curiosas e
particulares razões, e sob quase todos os aspectos, legitimamente africanos.

Afora esta surpreendente longevidade, há que se considerar, contudo que, sendo música
socializada (ou ‘socialmente interessada’, no dizer exato de Mário de Andrade), ou seja, música
com motivações, diretamente relacionadas às especiais condições do trabalho praticado por
aquelas pessoas naquela região (garimpo de ouro e diamante sob regime de total escravidão),
embora estejam relacionados à práticas culturais talvez ainda hoje ocorrentes na África, os
Vissungos podem ser considerados – mais ainda a partir dos recentíssimos indícios que tivemos
a oportunidade de recolher in loco – como estando praticamente, extintos no Brasil.

Devemos observar também que, neste curioso – apesar de natural – processo de extinção
(hoje, sem sombra de dúvida, em seu curso definitivo) enquanto cantos específicos,
aparentemente os elementos mais característicos dos Vissungos foram se diluindo ao longo do
tempo, num processo paralelo ao desaparecimento daqueles modos e meios de produção do
regime de trabalho escravo que os motivavam e caracterizavam.

“Estes cantos de trabalho ainda hoje são chamados de Vissungos… Pelogeral se dividem
em Vissungos de boiado, que é o solo tirado pelo mestre sem acompanhamento nenhum,
e o dobrado, que é a resposta dos outros em côro, às vezes com acompanhamento de
ruídos feitos com os próprios instrumentos usados na tarefa.

Alguns são especialmente adequados ao fim e acompanham fases do trabalho nas minas.
Outros parecem cantos religiosos adaptados à ocasião…”

(Aires da Mata Machado Filho em 1944 em‘O negro no garimpo em Minas Gerais’)

Por outro lado, as raízes destas práticas de garimpo, do ponto de vista tecnológico, apropriadas
que foram, pragmaticamente pelos portugueses, podem ter sido algo similares àquelas
técnicas, muito antigas, utilizadas na África remota, pelo menos a partir do século 12. Este
fator (a integridade ancestral da cultura destes povos) também pode ter contribuído bastante
para a longevidade, quase perenidade, da manifestação dos vissungos entre nós.

A época é indicada como sendo, aproximadamente a da fixação dos Bakongo nas margens do
Rio Kongo, povo do ramo etnolinguístico bantu, que descendo da região do Camarões, se
tornou a matriz étnica de quase todos ‘reinos‘ da região do antigo Kongo (entre os quais o
chamado ).

Este fator (a integridade ancestral da cultura destes povos) também pode ter contribuído
bastante para a longevidade, quase perenidade, da manifestação dos Vissungos entre nós.

É bastante provável enfim, que o formidável estado de preservação destes cantos (pelo menos
enquanto duraram) ouvidos ainda hoje, fragmentariamente tanto tempo após a extinção do
trabalho escravo e a interrupção do fluxo de angolanos para a região, esteja relacionado à
manutenção, mais ou menos inalterada, de certas condições sociais e culturais por parte dos
negros fixados naquela região mineira.
Entre estas condições, podem figurar também certos modos de organização sócio-familiar
ancestrais, favoráveis à perpetuação de núcleos ou agrupamentos populacionais em estado de
relativo isolamento (cuja natureza mais provável, pode ter sido a de povoados originados de
antigos quilombos).

Foram exatamente estes grupos que, com a extinção do trabalho escravo passaram a se
dedicar à prática do garimpo clandestino ou qualquer outra forma de economia de subsistência
ou sobrevivência, independente da economia convencional da área, mantendo-se,
culturalmente arredios até uma ocasião próxima aos nossos dias (na verdade até hoje, como
podemos constatar na coleta de campo atual – veja as fotos).

Mesmo a ocorrência de gírias, expressões idiomáticas e vocábulos extraídos de um português


castiço (uma espécie de ‘idioma crioulo são joanense’ como bem definiu Aires da Mata
Machado) nas letras de muitos vissungos, não podem ser com, total segurança, atribuídos à
experiência lingüística destes escravos no Brasil, pela simples razão de que esta mesma
experiência - como sugerimos a seguir - já se daria ainda na África, desde época bem remota
(só como exemplo, devemos considerar que o catolicismo português já havia sido introduzido
em Angola desde o século 15, notadamente em regiões no entorno dos centros administrativos
de então tais como Luanda e, posteriormente, Benguela)

Os detalhes suscitados por esta viagem de coleta, relacionados a uma análise acurada de todo
o material anteriormente disponível sobre o assunto (entre os quais, formidáveis registros em
áudio) é objeto deste trabalho e – queiram os deuses de Makemba – do filme que mais dia
menos dia realizaremos.

Kurima de vera (muita coisa mesmo a se lavrar e garimpar).

(Interior da gruta de Pedro e Miúda-- Foto Spírito Santo 2009)


(Fundos da casa de Pedro Lucindo em Quartel de Indaiá. Foto Spírito Santo, Janeiro 2009)

Secando a água
A lavra nunca será de todo lavrada

“… Quando o defunto suava, o enterro era suspenso para que o curiandamba*


colocasse um punhado da raspa da casca de uma árvore especial, para atestar se o
defunto havia sido envenenado. Se fosse mesmo veneno, o defunto se levantava e vivia
de novo..”

* (do kimbundo ‘akulu-a-ndamba‘= o ‘mais-velho’, ancestral)

(descrição de parte do ritual de enterrar defunto fornecida por mais de um dos


entrevistados de São João da Chapada nesta coleta de 2009l)

Tal como um bando de Indiana Jones tupiniquins (na ousadia aventureira) ou repórteres do
Discovery Channel (no bom sentido fílmico do termo), planejamos o nosso emocionante
garimpo de Vissungos como uma expedição etnológica de verdade.

Nosso objetivo estava focado em dois eixos geográficos principais que conciliavam os
interesses dos documentaristas paulistas (orientado para os apelos e supostas facilidades de
uma área que eles já conheciam muito bem, por conta da locação de seus filmes anteriores) e
os meus, numa segunda área também muito familiar para mim, magistralmente coberta por
Aires da Mata Machado Filho e seus assistentes na década de 1930 e, sabe-se lá porque, quase
nunca mais priorizada a partir de então, pelos esquadrinhadores que se seguiram.

Contudo – verdade seja dita – foi exatamente naquela área mais assediada que os bravos
rapazes documentaristas tiveram, pela primeira vez, contato com os ‘estranhos’ cantos em
língua africana, que ouviram imiscuídos às cantigas de Catopês, manifestação afro-católica que
filmavam. Foi este contato fortuito que culminou, muito providencialmente no nosso, não
menos fortuito encontro pela internet.
(Sim porque, acredite quem quiser – coisa de loucos! – todo o meticuloso planejamento desta
quase saga, foi feito na imponderabilidade absoluta da internet, sem que um conhecesse
sequer o ‘focinho’ dos outros)

Mais detalhadamente, portanto os dois eixos desta ‘expedição’ virtual que se materializou de
forma tão excitante, consistiam no seguinte:

- Visita às cidades de Serro, Milho Verde, Ausente de Cima, Ausente de Baixo e Baú, no
âmbito da antiga Vila do Príncipe do Serro Frio, cobertas (na verdade esquadrinhadas,
quase escalavradas) pelas pesquisas de campo que subsidiaram as inúmeras teses e
dissertações de mestrado no âmbito, principalmente da UFMG.

- Visita a São João da Chapada, como se sabe, importante vila de garimpeiros surgida
na época da corrida ao Diamante, ali descoberto no início do século 18 e para onde se
transferiram grande número de escravos e todas as loucuras e anseios de fortuna dos
colonialistas portugueses, que haviam descoberto que eram totalmente infundadas as
suas esperanças de encontrar um Eldorado em Angola, nos anos que se seguiram a
conquista efetiva do território em 1665. A este segundo eixo de nossa viagem juntava-
se a vila de Quartel de Indaiá, antigo reduto de arredios quilombolas. Objeto de
pesquisa anterior do autor, naquele longínquo ano de 1981.

…”Existem inúmeras outras ‘ilhas culturais’ em Minas Gerais, além de São João da
Chapada e Quartel de Indaiá onde ainda se continua a falar idioma africano, entre elas
Milho Verde, onde um grupo de linguistas da Universidade Federal de Juiz de Fora, sob a
orientação do Professor Mário Roberto Zágari realiza um programa de pesquisa em
prosseguimento aos estudos do sociolinguísta alemão Jürgen Heye do Rio de Janeiro.

Jürgen Heye tocou para mim algumas de suas gravações de Vissungos realizadas em
Milho Verde,em outubro 1980 no Rio de Janeiro, nas quais numerosas palavras são
compatíveis a forma como são faladas em Angola. O grupo do professor Zágari, que
trabalhou em um Atlas Lingüístico de Minas me informou também sobre a existência
continuada de estranhos rituais de enterramento Milho Verde.”

(Gerhard Kubik in ‘Extensionen afrikanisher Kulturen in Brasilien’1979)

Não foi, contudo na já assaz lavrada Milho Verde que Kubik encontrou as chaves de sua
pesquisa. Nós também não.

Como veremos a seguir, a abandonada lavra do nosso segundo eixo (talvez pela simples e
evidente razão de ter sido subestimada pela maioria das pesquisas mais modernas) foi onde o
cascalho bruto mais diamantes puros revelou.

A conclusão – pura intuição de velho e cascudo pesquisador – estava no fato de que, cantos de
trabalho que são – ou foram – ligados, diretamente ao surto do diamante, os Vissungos devem
ter sido praticados, muito mais intensamente, na área em torno de Diamantina e São João da
Chapada (sedes executivas da Real Extração e das tropas do exército português) do que no
entorno do Serro, historicamente uma área cujo esplendor cultural (inclusive no que diz
respeito á cultura ‘escrava’) se deu, predominantemente no século anterior, durante o ciclo do
ouro.

Seguindo a pista das fontes primárias mais importantes, sabemos, por exemplo, que no século
20, da época da coleta de Luiz Corrêa de Azevedo em diante, só se teve notícia de uns poucos
registros originais de Vissungos do Tijuco, entre eles no fim da década de 1970, o do
etnomusicólogo austríaco Gerhard Kubik.
“6/05/1979 –Quartel de Indaiá: Gravação de um ‘Vissungo’, parte em português, parte,
na língua de Angola ‘banguela’, acompanhado por uma ‘caixa’ (tambor de marcha). O
cantor e informante é o Sr. Cecílio Assunção Bela Guarda, 60 anos, enquanto era
entrevistado acerca da “língua banguela’.”

(Gerhard Kubik também em ‘Extensionen afrikanisher Kulturen in Brasilien’)

O material recolhido por Kubik em áudio, ao que parece, contém apenas uma cantiga de
Vissungo, gravada por Cecílio Assunção da Bela Guarda. Da mesma época, haviam também os
breves registros realizados pelo autor deste artigo (um ponto de ‘Pádi Nosso’) cujas fitas k7
recolhidas no mesmo Quartel de Indaiá em 1981 foram dadas como perdidas, misteriosamente
(sobravam, galhardamente os registros fotográficos da ocasião) mas foram reencontradas, do
mesmo modo misterioso enquanto elaborávamos estas conclusões quase finais da pesquisa.

Em época mais recente, já no século 21 (entre os anos de 2001 e 2005) o assunto atraiu um
surpreendente interesse dos meios acadêmicos mineiros. Foram realizadas neste período
inúmeras coletas e gravações, como se aludiu à cima, a maioria nos municípios de Milho Verde,
Baú e Ausente, entre outras razões por serem locais ou adjacências de antigos quilombos, na
região do Serro.

Estas coletas ensejaram interessantes conclusões de vários pesquisadores, entre eles a


etnolinguísta – e grande referência sobre o assunto – Yeda Pessoa de Barros, além de vários
estudantes e pesquisadores ligados à UFMG, entre os quais Lúcia Valeria do Nascimento (que
fez um curioso estudo fonológico sobre o tema), Neide Aparecida de Freitas Sampaio (autora
de um trabalho que tenta associar literatura oral – textos de cantigas de vissungo – com
literatura ‘culta’ africana) e a poeta e doutora Sonia Queiroz (conceituada orientadora de teses
sobre o tema).

As conclusões de quase todos estes especialistas brasileiros (por uma misteriosa razão, alguns
dos pesquisadores estrangeiros mais importantes neste campo – inclusive o mui respeitado
G.Kubik – não são, sequer citados) podem ser observadas no interessantíssimo suplemento
‘Vissungos: cantos afro-descendentes de vida e morte’ publicado pelos Cadernos Viva Voz, na
Faculdade de Letras da UFMG, em 2006, com o concurso de diversos outros estudiosos de
Minas Gerais.

Entre estes estudos, no âmbito do relativo interesse que o tema provocou em pesquisadores
estrangeiros, devemos incluir também a dissertação do suíço Marc-Antoine Camp,
involuntariamente talvez, um dos responsáveis pelo verdadeiro ‘boom’ de pesquisas sobre
Vissungos na região.

A principal qualidade destas, relativamente esparsas coletas e gravações é servirem de


constatação cabal de que, infelizmente, a maioria dos variados elementos da prática dos
chamados Vissungos (cantigas ‘de multa’, cantigas ‘de mofa ou insulto’, cantigas de ‘secar
água’- ‘cantos de trabalho’ em si, etc.) se extinguiu, completamente, sobrevivendo na memória
de dois ou três cantadores remanescentes, apenas fragmentos daquelas cantigas ligadas aos
rituais de sepultamento, as chamadas ‘cantigas de carregar defunto’.
(Gravura de Debret de meados do século 19 descreve funeral de escravo diante de igreja com muita
similaridade com os funerais descritos pelos vissungueiros de São João da Chapada e adjacências)

Cantando e carregando o defunto


O novo vivo ao velho morto conta as novidades

“Ê conga,
ererê conga auê
Ê conga Maria Gombê,
erê rê conga”

(Cantiga de carregar defunto – Refere-se talvez à entidade da mitologia dos kimbundo


‘Rimi ria Ngombe*’, muito recorrente em pontos de Vissungo, apesar de seu sentido e
função serem, completamente desconhecidos pelos vissungueiros atuais)

* ‘Língua de boi (ou vaca)’

Este aspecto peculiar do processo de extinção dos Vissungos – a aparente sobrevivência


isolada das ‘cantigas de carregar defunto’- talvez tenha levado alguns pesquisadores a
conclusões algo equivocadas, muitos tendendo a generalizar o sentido da manifestação
‘Vissungos’ como sendo, exclusivamente, uma prática ritual ligada à morte quando, o que
parece mais provável é que tenha havido sim, ao contrário, a migração das cantigas gerais
utilizadas no âmbito do garimpo de diamantes (denominadas por Aires da Mata, também
generalizadamente, de Vissungos) para diversas outras manifestações culturais habituais dos
descendentes de escravos angolanos da região, entre as quais os também já extintos enterros
cerimoniais seriam apenas um dos destinos.

Há que se considerar também que, mesmo no contexto destes rituais de enterro supostamente
africanos (cujo desaparecimento parece ter se dado por volta de 2001) se podiam encontrar,
mais recentemente, cantigas próprias do catolicismo popular mais convencional, como os
benditos e incelenças, com pouca ou nenhuma relação com os ‘Vissungos’ originais angolanos.

(Aldeia típica bakongo, Angola -Extraído de xiconhoca.com.br)

(Na verdade, como poderemos observar mais adiante, a exata compreensão do que sejam,
exatamente os chamados ‘Vissungos do Tijuco’, pode ser um enigma ainda bem distante de ser
decifrado).

As gravações resultantes das coletas mais recentes (tão inestimáveis quanto as de décadas
anteriores, se relevarmos o caráter, a nosso ver, excessivamente reiterativo de suas
conclusões) expressam também, de forma bem clara e elucidativa, o processo de extinção da
manifestação do ponto de vista da sua diluição etnolinguística, melhor dizendo, da
desconstrução etimológica dos textos das canções que, à medida que os cantadores
remanescentes foram perdendo as referências vernaculares (semânticas, lexicais, gramaticais,
em suma) da língua original, foram sobrevivendo apenas em seu aspecto, meramente fonético.

Os cantadores porventura remanescentes - hoje em dia meros repetidores do que os


verdadeiros mestres entoavam - intuitivamente acabaram encontrando um sentido, uma
etimologia alternativa, associada ao português do Brasil (como aconteceu na coleta atual com
o termo do Kimbundo Nganga a Nzambi (senhor Deus ou, mais precisamente talvez,
‘sacerdote’) do texto de uma cantiga de Catopês, traduzido pelo informante para Engana
jambi (agora com o fugidio sentido de uma entidade do mal que ‘engana’ – do verbo enganar
– as pessoas incautas).

A expressão Nganga a Nzambi, contudo possui problemas etimológicos muito longe ainda de
serem resolvidos, mais ainda se considerarmos a precariedade, a superficialidade das
abordagens disponíveis por aqui.

A expressão 'Nganga' por exemplo, quando traduzida literalmente, no contexto da Angola


colonial, desde os idos tempos da chegada de Diogo Cão, podia significar 'Santo', 'Sagrado', ou
mesmo 'Padre' (sacerdote católico) ou ainda, por extensão, 'rei cristão', ou 'cristianizado' (caso
de muitos chefes do período dos 'Muene Kongo' e 'Muene Ngola', sobas e suseranos das nações
locais).

Estas nossas considerações ainda muito recentes e inéditas, sugerem que talvez haja muito
que se levantar para que se possa compreender, em sua exata medida, as intrínsecas e
simbióticas relações anteriormente ocorridas entre as culturas bakongo e portuguesa ao longo
de tantos séculos, relações estas que, evidentemente se refletiram, profundamente na cultura
negra trazida para o Brasil com os escravos daquela região.

Infelizmente, nestas circunstâncias, no caso dos vissungos do Tijuco, apenas alguns vocábulos
esparsos e desconexos podem ainda ser identificados, havendo se perdido muito do sentido, do
conteúdo ou ‘fundamento’ dos textos (‘pontos’), notadamente em sua essência, fortemente
metafórica (metalinguística, diríamos) muito superficialmente abordada na maioria das teses
posteriores e, de certo modo talvez pouco apreendida mesmo nas ‘traduções’ feitas por Aires
da Mata em seu livro.

O trecho a seguir extraído da entrevista concedida por Crispim Viríssimo (talvez o ultimo
vissungueiro) para o Museu da Pessoa em 2007, pouco antes de falecer, é bem elucidativo
acerca do processo gradual de esmaecimento e diluição semântica da língua benguela naquela
região de Minas Gerais, reduzida já a esta altura a apenas umas poucas dezenas de vocábulos
esparsos, descolados de sua gramática original ou mesmo de seu estrito sentido idiomático:

“_O dialeto é cultura. É cultura, entendeu? Ele é cultura mesmo, o dialeto.


Dialeto, por exemplo, nós então: você minha andê, essa moça minha andê,
esse moço também meu Andê... O quê eu falei procê?. Isso que é dialeto. Não,
Andê, e se nós trabalhar junto num setor só? Igual tá vocês, veja, vocês
trabalham num setor só, vocês é Andê e parceiro. Parceiro. Por que vocês é
parceiro? Porque trabalham num setor só.

Antão, companheiro de serviço é parceiro, viu? Eles falam: Andê. E a casa,


como é que chamam? A é que é a história que vocês vieram saber de mim aqui,
e tudo mais. Anjó, casa chama anjó. E cavalo? Entendeu? Você tá à cavalo. Eu
tô de à pé. Lá no Milho Verde, e “ocê” tá à cavalo, eu já bebi uma pinga, eu não
agüento mais vir em casa à pé. Ah, bom. Eu vou fala e então: “´Ocê´ pode
arruma um goro par eu ir pro meu anjó?”

“Ocê” entende a língua dos outros. Arruma um goro par eu ir pro meu anjó.
Pega seu cavalo na estaca, passa a perna nele, vem embora. Pronto. Mas aqui,
não, sabe? Mas aqui quem falou com ela? Arruma um goró pra eu ir pro meu
anjó! E isso aqui, como é que chama? Bom, isso aqui é um boné, né? Não é
lugar de chapéu. Entendeu? Por que o chapéu chama quipum Aí, é, feijão:
pipoquê, arroz: maçan; passarinho: canjirauê. Cachaça: oranganja.
Cachaça, chita. Galinha: araçangue Boi, ongombe. Carne de boi chama chita de
ongombe. A carne de porco: chita de omburo. E o toicinho? Oréra de Omburo
E a estrada? Ogira. Ah, entendeu? Isso, do lado do meu pai não trouxe essa
língua. Isso tá pra o lado da minha mãe. Porque eles já são um outro lado. Eu
sei isso aí. E a coisa é mesmo assim. Não é tirar a cabeça, não. Falar o que tá
escrito. Entendeu? Está escrita essa palavra,existiu. É, tanto que chama dialeto.
Não é, moça nova? Kaimina. Mulher velha? Macuca.”

(Antônio Crispim Viríssimo, o último vissungueiro)

O veneno da memória
A ressuscitação dos mortos vivos

…’ Essas coisa que eu tô falano, nada que eu tô pra falá num tá no dialeto não. A gente
num pode inventá… As palavra que a gente falá, a gente tem que falá uma coisa que ocê
pode caçá ela nas orige e incontrá…”

(Sábias palavras de Crispim Viríssimo, talvez o último dos mestres Visungueiros,


recentemente falecido, em entrevista à pesquisadora Neide Freitas Sampaio)

Além da notável – e eventual – superficialidade de alguns destes estudos acadêmicos recentes,


em relação às suas conclusões (como já afirmamos, no nosso entender por demais
reiterativas), dois fatos chamam também, curiosamente a atenção:

Um é a surpreendente dificuldade destes estudos no estabelecimento de um diálogo com as


copiosas (e indispensáveis) fontes bibliográficas originais africanas (inclusive e, sobretudo
linguísticas) existentes sobre o assunto – isto sem aludirmos à pequena recorrência a trabalhos
europeus – notadamente portugueses – óbvia referência em se tratando de cultura angolana e
do mesmo modo, estranhamente subestimada – quando não solenemente ignorados - pela
maioria das teses e dissertações.

O outro fato que chama a atenção – este sobre muitos aspectos, lamentável – é o caráter,
culturalmente invasivo destas coletas, no sentido de que, talvez se devesse ter avaliado melhor
o impacto negativo que poderia resultar da enorme quantidade de trabalhos de campo, lançada
no âmbito de uma manifestação cultural tão inestimável quanto frágil, com um grau de assédio
quase predatório (quiçá insuportável) sobre informantes locais, aspecto que detectado na
coleta atual, produziu efeitos importantes que deveriam ser melhor avaliados e considerados
nas pesquisas futuras na região, principalmente pelas instancias acadêmicas incumbidas de
coordenar ou orientar pesquisas de campo neste caso.

Um bem articulado membro de uma associação cultural da região – ele mesmo descendente de
escravos mineradores – tocou francamente no assunto, questionando a nossa equipe sobre que
espécie de contrapartida pretendíamos dar em troca de depoimentos, frisando que, no caso, a
questão não era dinheiro, interessando-lhes algum tipo de intercâmbio de fontes e cópias do
material (o que, prontamente nos dispusemos a providenciar).

Em sua pertinente argumentação afirmou que corria entre os remanescentes da prática dos
Vissungos (e de outras manifestações culturais da região) já há algum tempo, a noção de que:

“… ninguém viria de tão longe, para um local tão escondido á cata de Vissungos se não fosse
pra ganhar muito dinheiro”.

Forçoso se faz relatar também (senão como uma característica das táticas destas coletas a ser
criticada ou lamentada, pelo menos como uma constatação incontornável) que o trabalho de
coleta etnológica neste como em vários outros casos, efetivamente interferiu no
desenvolvimento da manifestação que – não raro, ao contrário do alegado ou pretendido –
supostamente visava preservar, contribuindo de algum modo, mesmo involuntariamente, para
apressar a sua extinção.

Com efeito, no caso dos Vissungos, a se julgar pela maioria dos depoimentos obtidos na
presente coleta, o intenso assédio de inúmeros pesquisadores de campo (antropólogos,
musicólogos, mestrandos, doutorandos, etc.) sobre esta algo exótica manifestação,
infelizmente se deu por meio de diversas – e nem sempre sutis – táticas de convencimento e
aliciamento, num processo que poderíamos chamar de corrupção das fontes, com todas as
implicações advindas da contaminação dos dados obtidos por diversos tipos de falseamento
possível (inclusive, presume-se, com a possibilidade de se estimular no futuro, o fornecimento
de depoimentos forjados por supostos conhecedores).

Estas táticas de aliciamento (difíceis de serem comprovadas, dada a natureza sigilosa de sua
aplicação) pelo que disseram os entrevistados, se deram à maioria das vezes por meio de
pequenos favores materiais ou quantias irrisórias de dinheiro, prática, claramente antiética
que, rapidamente noticiada de um para outro suposto conhecedor de Vissungos, pode ter feito
proliferar na região, algumas mistificações que, caso realmente tenham ocorrido, irão
demandar muito discernimento aos interessados em prosseguir estudos sérios sobre o tema no
futuro, no sentido de, em termos mais claros, separar o joio do trigo.

É mesmo possível – embora improvável – que a maioria dos pesquisadores e coletadores de


informações sobre os Vissungos do Tijuco, Desde 1928, não tenham resistido à tentação de
comprar depoimentos, desta forma corrompendo informantes.

Além desta não ser ainda, nos meios acadêmicos (do ponto de vista ético) considerada uma
prática condenável, o grande valor etnológico do tema e as condições de extrema penúria em
que vivem as pessoas da região, por si só já justificariam o oferecimento de algum tipo de
contrapartida material em troca de informações que mesmo, indiretamente vão acabar se
transformando em algum tipo de vantagem pecuniária evidente para os pesquisadores - sob a
forma de títulos e promoções acadêmicas, direitos autorais por textos publicados, prêmios,
etc.)
Complementando a proposta embutida no justo questionamento do membro daquela
associação, o que se sugere enfim é que a natureza destas transações quando, totalmente
indispensáveis, envolva algum tipo de salvaguarda ética que impeça a bastardização dos
registros e a consequente deformação da manifestação original, que se arrisca a ser
transformada neste processo, em pobre pastiche ou mistificação de si mesma.

A boa notícia é que, curiosamente, ao que nos demonstram os indícios preliminares da coleta
atual, as características, exclusivamente musicais dos Vissungos – escalas, inflexões vocais
etc. (aspecto, curiosamente pouco aprofundado na maioria dos estudos citados, com exceção
talvez dos trabalhos de Gerhard Kubik e Marc-Antoine Camp) se encontram ainda quase que,
inteiramente preservadas nas remanescentes ‘cantigas de enterrar defunto’(que, aliás,
segundo um abalizado informante, muitas vezes tinham as melodias aproveitadas de outros
cantos, de finalidades diversas).

A luz de todas estas assaz discutíveis ponderações, algumas novas linhas de pesquisa podem
ser propostas, entre elas aquela que abre a possibilidade de que, o que se convencionou
chamar de Vissungos, ser na verdade uma mera generalização usada para classificar, muito
grosso modo (segundo o estágio ainda embrionário dos estudos sobre o negro no Brasil na
época da pesquisa de Aires da Mata), um conjunto bem mais amplo e diverso de manifestações
musicais

Estas manifestações musicais estariam abrigadas sob a mesma denominação apenas por conta
de serem praticadas pelo mesmo grupo de indivíduos (ainda não exatamente identificado na
ocasião), mas com características que permitiam já classificá-lo como tendo, mais ou menos, o
mesmo traço étnico (ou, pelo menos, representando hábitos culturais, relações inter-étnicas
etc. pré-estabelecidas antes de sua chegada ao Brasil).

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Nota urgente e sensacional:

Acabo de conhecer e acessar o jovem blogueiro angolano Gociante Patissa cujo blog é escrito
todo na língua Umbundo (!).

Patissa passa agora a integar a nossa equipe como colaborador do futuro filme e já me manda
contributos essenciais sobre as palavras angolanas para as quais tentei alguma tradução:

Com vocês o meu malungo Patissa:

1. (sobre ‘Curiandamba‘) Ukulu wendamba (plural: akulu vendamba)

– ‘Diz-se de pessoa idosa e reconhecidamente idónea como que em jeito de legitimar o


estatuto. Parece-me que o segundo elemento surge apenas como ênfase. A língua é Umbundu
(da etnia dos ovimbundu), predominante na região centro e sul de Angola (6 províncias:
Benguela, Bié, Huambo, Kwanza-Sul, Namibe, Huila) e falada um pouco por todo o país dada a
mobilidade social’.

2.(Sobre Maria Gombê’

_ ‘Limi (ou elimi) lya ngombe (pode variar o sentido dentro do contexto da variante em causa).
Naquilo que domino, “elimi”, não “rimi“, refere-se à língua como idioma, enquanto que
“elaka” é língua no sentido biológico. Vale acrescentar que a letra “R” raramente é utilizada
em Umbundu.’

3. (Sobre Anganazambi)

_‘Receio que o correcto seja Ngana (e não Nganga) Zambi, que em kimbundu significa, como
o amigo Spirito Santo diz e com razão, Senhor Deus.’
(Cachoeira vista da lapa de Pedro da ‘Miúda’– Foto de Spírito Santo, Janeiro 2009)

O Bem o Mal e os ‘diablitos Ñanigos’

Caminhar até a lapa de Pedro e ‘Miúda’ foi assim como caminhar no paraíso. Parecia ser uma
graça obtida por termos seguido tão contritos – apesar de surpresos, a Folia de Reis
comandada por Pedro da Miúda, mas, não. Aquilo era muito mais do que uma graça.

Primeiro que, graça mesmo quem tinha obtido era ele, Pedro, o sortudo que além de ter a
alegria companheira de ‘Miúda’ e a euforia divina da folia, tinha – digamos assim – certa
independência financeira representada pela casinha própria, de alvenaria industrializada (coisa
rara por ali) e do bem abastecido bar que, proprietário feliz (e sóbrio) administra tudo isto
obtido – segundo ele diz jurando de pés juntos – pela graça suprema de ter achado, há pouco
tempo atrás, o mais valioso diamante de toda a sua vida.

O diamante da vida. Sonho recorrente de todos os quilombolas ou não quilombolas por aquelas
– por isto mesmo – tão espertas e arredias brenhas. Um anseio tão intenso quanto irresistível,
que se transformara em vício incurável que a todos contamina, a ponto de nós mesmos,
citadinos incrédulos, influenciados pelas histórias de tantos garimpos bem sucedidos, das
notícias das generosas rodadas de pinga gastas nos festejos dos ‘enricados’ da vez, passarmos
a andar, furtivamente investigando, de rabo de olho, o cascalho dos córregos do caminho,
como crianças que acreditam que no pé de todo arco íris existe um pote de ouro escondido.

Delírios à parte, pobre como manda o figurino de uma folia de reis de vera, a do Pedro tinha
um jeitão assim, inacreditavelmente autêntico, com um ar de folia ‘á moda antiga’ mesmo –
pelo menos como eu podia imaginar – ou vagamente lembrar – que fossem as folias de reis da
minha infância.

Seria mais incrível ainda enxergar toda esta autenticidade, esta veracidade tão inusitada na
folia do Pedro, se considerássemos que a manifestação esteve extinta em São João da
Chapada durante quase 30 anos (o mesmo incrível tempo que demorei para voltar ao lugar).

Contaram-nos os mais orgulhosos que a prática acabara de ser, totalmente ressuscitada por
obra do pessoal de Quartel de Indaiá, como já se constatou – e afirmou cheio de razão o
Gerhard Kubik - uma formidável ‘ilha cultural’, um verdadeiro ‘Shangrilá’ de hábitos e
costumes deste negro Brasil profundo que visitávamos.

A Folia rediviva viera de Quartel de Indaiá junto com os descendentes dos quilombolas de
Makemba, que hoje num processo de franca mudança para a cidade ‘grande’ (São João
grande? Pobre São João!) trouxe também na sua curiosa memória a Folia de Reis original, do
mesmo jeitinho que a faziam por lá até pelo menos 1980, por aí.

Morta-aqui-viva-acolá que era, a Folia de Quartel de Indaiá comandada pelo Pedro (que
também é oriundo de Quartel) parece que veio pura, renascida do fundo do oco da gruta onde
ele morara naqueles 18 anos com ‘Miúda’.

(Só pra vocês terem uma ideia do quanto a folia deles é insólita, nela não tem nem sombra
daqueles ‘palhaços’ nossos conhecidos, os mesmos que o Fernando Ortiz viu no El dia de Reyes
de Cuba, algo inspiradas segundo ele nos ensina, em sociedades secretas típicas da África, com
o nome de ‘Diablitos Ñañigos).

Vocês sabem de quais palhaços estou falando? Isto mesmo. Aqueles com as aterrorizantes
máscaras peludas, fedidas, que muitos de nós no Brasil cansamos de ver por aí a fora (as
favelas mais antigas do Rio de Janeiro tinham, antigamente, folias de Reis clássicas).

(Pedro da 'Miúda' – à esquerda - capitaneando a Folia de Reis de São João da Chapada- Foto
Spírito Santo 2009)
Falando nisto, aliás, honestamente não sei por que os etnólogos daqui – talvez eu não saiba
que eles sabem – não se deram conta ainda de que, se o El dia de Reys (06 de Janeiro) de lá
de Cuba é o mesmo que o Dia de Reis daqui do Brasil, porque diabos os palhaços de lá e daqui
não seriam ‘hermanos’, da mesma origem? (Se bem que, no caso da folia do pessoal de
Quartel e São João da Chapada, esta acadêmica discussão seria, totalmente irrelevante, não é
não?)

Irrelevâncias à parte, o fato é que eu nunca havia ouvido falar também, em nenhuma outra
Folia de Reis, do pitoresco entrecho dançante chamado de ‘Chula’ que a Miúda, agitadamente,
lá pelas tantas, nos anunciou. Você já havia ouvido falar disso?

Até o momento em que ‘Miúda’ de Pedro, excitada com a hora de organizar o tal entrecho (do
qual ela se declarou a ‘chefe’) eu não fazia mesmo a menor ideia do que fosse. Juro por Deus.

Ah sim! ‘Chula’ – pude logo deduzir, mesmo antes de ver – um nome recorrente em nossa
cultura popular, sempre relacionado a certo contexto. No caso, “chula’ de vulgar (no sentido de
insólita, profana) em relação à catolicíssima Folia. Fora esta tentativa chinfrim de conceituar
alguma coisa, a ‘Chula’ da Miúda era um grande mistério para mim.

E como era insólita esta chula da ‘Miúda’! Nada a ver com a folia em si. Ela era um entrecho
mesmo, um ‘interregno’, um ‘intermezzo’, a mais pura e rasgada dança, enfiada na pudica
Folia.
(A dança da ‘Chula’. Entrecho dançante – só para mulheres- da tradicionalíssima Folia de Reis de SãoJoão
da Chapada – Foto Spírito Santo, Janeiro 2009)

E mais: só havia mulheres dançando. Todas, das mais antigas (como ‘Miúda’ e Maria
‘Macarrão’) as mais pequetitinhas, todas graciosamente meninas, terçando passos de pura
alegria feminina.

(No dia seguinte, já em Quartel de Indaiá, soubemos que por lá ainda praticavam duas outras
danças também, absolutamente desconhecidas para mim (estas com muita pinta de serem
espécies de lutas marciais quilombolas, de machos por se assim dizer): O ‘Lundu de Pau’ e a
‘Pomba chorou’, ambas baseadas em estripulias agressivas, ritmadas com longos porretes
(errou, paulada levou).

E foi assim que no dia seguinte Pedro da ‘Miúda’, por conta das várias emoções que trocamos
nos deu então honra de nos levar a conhecer a sua lapa querida, distante 3 horas a pé de São
João, montanha a dentro e, no dia seguinte, a casa-mocambo de Pedro Lucindo, o
Vissungueiro, que evasivo e reticente como que (por conta talvez de ter sido já por demais
assediado nos últimos tempos, quando até um filme sobre ele andaram fazendo) falou, falou,
mas, nenhum ponto de vissungo cantou (alegou a dor da perda do irmão Paulo, seu parceiro
mas, talvez – sussurou alguém da família – se rolasse uma ‘ajudazinha’, quem sabe…) Nem
precisava.

Sorte nossa que queríamos ouvir mesmo – e gravar – muito mais o que ele falou, falou (a
agonia, o assédio, o processo da memória dos vissungos se apagando) do que dos ‘pontos’ que
porventura cismasse de cantar. Tínhamos já toda uma coleção de registros, pelo menos desde
1942, além do acesso já garantido à inúmeras fontes seguras, em acervos públicos, onde
outras gravações essenciais se acham também preservadas, acessíveis a qualquer interessado.

Pedro Lucindo não sabe (ou não liga) ainda, mas, cultura oral é memória cega, vaga, imagem
que se distorce ou se apaga com o tempo. Tem valor inestimável apenas enquanto não virar
registro perene. Antes disto ninguém sabe direito o valor que tem, como um caco de imagem
sem rosto, um fragmento de canção sem sentido (ainda mais se for coisa rarefeita como são os
diamantes e os Vissungos).

Quem dá mais por uma remota lembrança íntima, pessoal? Quanto vale uma cantiga estranha
entoada no enterro do seu avô? Quanto estaríamos dispostos a pagar pela tradução de uma
(Cecílio Assunção Bela Guarda em foto de G.Kubik:...’uma das poucas pessoas que podem
cantar vissungos e conhecem alguns vocábulos do idioma benguela’, provavelmente. é parente
de José Paulino de Assunção cantor do ponto de Vissungo recolhido por Luiz Heitor Correa de
Azevedo em 1942)

palavra esdrúxula que encerra um enigma histórico transatlântico?

Dez? Cem? Mil reais? Um punhado de telhas de barro?

Largados naquelas brenhas com o fim da Real Extração e a tardia abolição da escravatura, os
angolanos do Serro, Diamantina e adjacências garimparam a própria sorte nas gretas da
montanha e sobreviveram se alimentando dos fósseis de suas lembranças da África durante
quase 300 anos, mas, da ‘descoberta’ dos Vissungos em 1928 até a sua provável morte em
2008, foram necessários apenas 80 anos.

Ah… Tão poucos diamantes para tão pouca vida.

Zélia do Baú, uma das quilombolas entrevistadas, franca, alegre, porém, incisiva nos contou
que entre as suas lembranças mais pungentes do tempo de criança, estava a fome, esperando
noite a dentro, muitas vezes em vão, que o pai retornasse de Milho Verde com algumas
‘pouquinhas coisas de comer’.

(Zélia 'do Baú', descendentes de escravos mineradores da região de Baú. Foto Spírito Santo
2009)

_”Os homens viviam do garimpo de umas poucas pedrinhas. Com o que achavam, iam para
Milho Verde, onde eram ludibriados pelos intermediários dos compradores, mas, mesmo assim
felizes, se embebedavam. Às vezes nem voltavam. Ficavam caídos pela lama da estrada, sem
um tostão”.

Hoje, devassada redoma de memórias em que se transformaram seus quilombos…


‘remanescentes’, ainda largados nas mesmas brenhas de sempre, ainda sem acesso a qualquer
benefício social que seja, trabalho, escola, saúde, etc. sem mais o que garimpar nos córregos e
cachoeiras (já sendo tomadas pelos turistas) deixam então que lhes garimpem a própria alma.

(Á margem da bucólica Folia de Reis de Pedro e de Miúda já se pode ver um ou outro


menininho de São João da Chapada pedindo uns trocados aos poucos visitantes. Jovens sem
trabalho já fumam baseados de maconha pelas esquinas (por acaso uma palavra vinda do
kimbundo: ‘Ma-kanha’). Na chegada à Milho Verde, a sensação de que havíamos aportado no
oco do mundo logo se desvaneceu quando ouvimos o bate-estaca de uma festa rave, em
algum recanto próximo.

Pedro Lucindo, precisa mesmo saber, antes que seja tarde, que o que vale ‘algum dinheirinho’
é o registro, a coisa física, a memória franca tornada concreta num filme, num CD, a memória
tornada produto, documento visível, audível para todos.

Talvez seja por não saber disto ainda que, convencido pela força do assédio de alguns espertos
esquadrinhadores, tenta vender os fragmentos de sua memória, já meio embaçadas
lembranças, não mais tão pepitas de diamante como eram, por exemplo, as de João Tameirão
(registrado por Aires da Mata em 1930), as de José Paulino de Assunção (gravado por Corrêa
de Azevedo em 1942) ou mesmo as lembranças do último mestre Vissungueiro real, Crispim
Viríssimo (adepto da difusão incondicional dos cantos) que, mesmo assim, como as lembranças
de todos os outros antecessores, inapelavelmente morreram, foram para o kalunga.

(Interessantíssima figura, Crispim Viríssimo, pouco antes de morrer havia começado o


dicionário que ele chamou de ‘linguagem africana’ um caderno manuscrito, roto, de poucas
páginas, no qual ele começou a anotar palavras e significados de uso corrente no repertório
dos Vissungos e no linguajar ‘dos mais antigos’ segundo lhe ditava a memória. Emblemática, a
iniciativa simboliza o formidável esforço dele em transpor o umbral da literatura oral para a
escrita para melhor cumprir a sua assumida missão de perpetuador da cultura benguela)

(Página do ‘dicionário’ de Crispim Viríssimo)

Em memória do falecido
Por uma genealogia dos Vissungos

…_Otê…Pádi nosso cum ave Maria


Securo, tamera, nta’anganazambi…
Ê calunga qui tom’ossemá
Ê calunga qui ntan’nganazambi, aio!”

(‘Pádi Nosso’ de Vissungo, Quartel de Indaiá)

Deixando a nostalgia de lado, juntando todas as evidências que se pode levantar e registrar até
aqui, a palavra ‘ovissungo’, plural de ‘ocisungo’ significando, literalmente ‘hinos’ ou ‘louvores’
(no vernáculo Umbundo), pode ter servido de forma genérica para, erroneamente denominar
na área de Diamantina, muitas outras práticas musicais características de grupos
etnolinguísticos conhecidos hoje, ainda vulgarmente como Kimbundos, Umbundos ou
Benguelas (na verdade um conjunto bem maior e diverso de grupos étnicos descendentes dos
Bakongo), vindos como escravos para Minas Gerais em determinada época, acentuadamente a
partir do fim do século 18 e início século 19.

Resumindo em termos mais precisos (utilizando ainda a coleta de Aires da Mata Machado Filho
como referencia) é provável que Vissungos sejam, portanto apenas uma parte específica do
conjunto dos 65 cantos recolhidos, exatamente aquela identificada por Aires como sendo de
‘evidente teor religioso’ (como os cantos para enterrar defuntos, por exemplo).

Por este ponto de vista, a maior parte dos cantos teria outras especificidades, usados que
seriam enfim para finalidades as mais diversas, entre as quais a marcação do ritmo de
atividades laborais tais como ‘secar água’, ‘subir ladeiras’, anunciar a ‘hora do almoço’ ou o fim
do dia de labuta (cantos de trabalho clássicos).

Como é recorrente na cultura africana - notadamente nesta região angolana que compreendia
os reinos do Kongo e do Benguela - Estes cantos podem ter até mesmo um caráter sócio
recreativo, caracterizados que são pelas disputas na decifração de adivinhas e charadas
conhecidas mais a sudeste de Minas Gerais pelo nome de Jongo, corruptela talvez da prática
angolana classificada por Hèli Chatelain no século 19 como Jinongonongo (modelo no qual se
pode inserir, perfeitamente, as chamadas canções de ‘mofa’ ou de ‘insulto’, descritas por
Aires).

É importante se ressaltar, sobretudo que a palavra ‘Vissungo’, isolada do contexto


generalizante no qual a maioria das teses e artigos acabou por reduzi-la, pode estar
relacionada sim, diretamente, a um tipo especial de canção tradicional de caráter
eminentemente religioso (música sacra, litúrgica, por assim dizer).

Com efeito, a palavra parece servir em Angola até hoje em dia, para designar hinos religiosos
especiais (como os ‘benditos’ e ‘incelenças’ de expressão portuguesa) utilizados talvez em
missões apostólicas, tanto católicas quanto protestantes, notadamente na região do Benguela,
local onde a disseminação deste tipo de missionarismo ocorreu, com alguma regularidade, de
meados do século 18 até o início do século 20.

A existência de vocábulos do português, intrinsecamente associados ao texto de alguns destes


cantos mais clássicos (como os ‘pádi nossos’, por exemplo) afora a possibilidade algo remota a
nosso ver de terem sido incorporados no Brasil, não invalidam, de modo algum a hipótese de
muitas destas canções terem chegado ao Brasil da forma muito próxima da que foram
encontradas da primeira vez por aqui no fim da década de 1920.

Mesmo a ocorrência de gírias, expressões idiomáticas e vocábulos extraídos de um português


castiço (uma espécie de ‘idioma crioulo são joanense’ como bem definiu Aires da Mata) nas
letras de muitos Vissungos, não podem ser com, total segurança, atribuídos à experiência
linguística destes escravos no Brasil, pela simples razão de que esta mesma experiência já se
daria ainda na África, desde época bem remota (só como exemplo, devemos considerar que o
catolicismo português já havia sido introduzido em Angola desde o século 15, notadamente em
regiões no entorno dos centros administrativos de então tais como Luanda e, posteriormente,
Benguela)

Esta prática, em seu sentido etnomusicológico mais genérico, com relativa segurança, pode ter
se disseminado por todas as regiões brasileiras onde foram utilizados escravos da mesma
origem etnolinguística.

A única razão que justificaria a interpretação que se dá ao vocábulo, portanto, como sendo o
nome de uma prática cultural específica, é o fato de ele ter sido usado (pelo que se pode
averiguar até agora) com esta denominação, apenas naquela remota região.

Nesta linha de raciocínio, genericamente como tem sido feito, seriam também ‘Vissungos’
alguns tipos de pontos de jongo, de congada, de candombes e moçambiques, assim como de
catupês (ou catopés) e diversos outros gêneros de música tradicional de inspiração angolana
existentes no Brasil, principalmente em Minas Gerais.

Já tivemos inclusive, pessoalmente a oportunidade de observar em muitas destas


manifestações, a insistente ocorrência de ‘pontos’ e canções com a mesma estrutura musical
dos ‘Vissungos’, inclusive no seu aspecto etnolinguístico.

“… Outra importante função no grupo (de catopês) é a do Corongigia, que carrega


consigo um remédio preparado com raízes com a função de proteção e de cura
espiritual.”

(‘Os cantos sagrados de Milho Verde, publicação da Associação Cultural e Comunitária do


Catopê e da Marujada de Milho Verde e Adjacências ACMVA- Milho Verde MG)

Sintomaticamente, na gravação da The Library of Congress de 1942, os cantores de Vissungos


– José Paulino de Assunção e seu filho Francisco Paulino – são os mesmos que entoam as
cantigas de catopês. José Paulino, aliás, (a exemplo de Crispim Viríssimo, Ivo Silvério da Rocha
e outros) consta até hoje na lista dos mais eminentes mestres de Catopês da região, condição
que, ao que parece, é comum a todos os mestres de Vissungos. A estreita relação existente
entre Vissungos e Catopês ao que tudo indica, é mais estreita do que, comumente a maioria
dos estudiosos tende a admitir.

É mesmo provável que, num fenômeno ainda pouco estudado ou observado no Brasil, práticas
musicais ancestrais trazidas pelos escravos da África como uma todo, após a extinção das
práticas sociais que as consubstanciavam, tenham tido como destino natural, a migração para
o repertório de outras manifestações de caráter mais, claramente profano (ou festivo, artístico
enfim) ganhando deste modo uma sobrevida, até se incorporarem, muitas vezes
imperceptivelmente, no âmbito do que chamamos de Música Brasileira de uma maneira geral.
(Dois Pedros...e duas medidas: Pedro de 'Miúda' e Pedro Lucindo. Até hoje e para sempre
garimpeiros de diamante)

Pra Nganazambi um Pádi Nosso cum Ave Maria


O Vissungo morreu! Viva o vissungo!

Sobraram-nos no testemunho do drama pungente da morte dos vissungos, os registros de um


modo de vida tão arcaico quanto digno, envenenado pelo tempo sim, mas – um pouco que seja
talvez – também pela ética estranha dos esquadrinhadores, portadora de um veneno que não
há casca de árvore nem curiandamba capaz de debelar.

Sem choro nem vela, do ponto de vista etnomusicológico a importância dos ‘vissungos do
Tijuco’ seria por estas hipóteses, maior ainda do que se imaginava, abrindo novas
possibilidades para uma melhor compreensão das especificidades de toda a música africana
praticada no Brasil, bem além das reiterações e dos lugares comuns ainda em voga.

Em resumo o que teria ocorrido na região do entorno de Diamantina e Serro em Minas Gerais
teria sido nada mais nada menos, do que o acaso de especiais circunstancias ensejarem a
preservação de práticas culturais – principalmente, musicais – muito específicas de uma
determinada região africana mantendo-as, maravilhosamente íntegras até a década de 1928,
quando Aires da Mata Machado Filho e Araújo Sobrinho, seu informante local, as ‘descobriram’,
com a ajuda decisiva do garimpeiro João Tameirão.

A natureza tão especial destas circunstâncias como vimos está, por ordem de importância,
ligada, muito provavelmente, às opções estratégicas adotadas pelas autoridades coloniais
portuguesas, no sentido de transferir para as minas de ouro (e, em seguida diamantes)
descobertas na região do Serro e, posteriormente, São João da Chapada em Diamantina
(Arraial do Tijuco) no início do século 18, escravos oriundos de certa região de Angola (o Reino
do Benguela) onde a mineração já era praticada pelos habitantes locais, de forma especializada
e sistematizada (de forma talvez até mais intensa, na época, do que no resto do território sob
o jugo de Portugal).

“O Reino de Benguela era assim constituído por um grupo de potentados africanos


independentes (Quissama, Libolo, Caconda, Quilengue, Cuanhama, etc. nota do autor)
que os Portugueses tentaram dominar no intuito de expandir a captura e troca de
escravos para além dos reinos do Congo e de Angola, que rapidamente perdiam
população, e que assim não podiam garantir uma oferta sustentável de escravos para os
engenhos de açúcar do Brasil.

…De acordo com este ponto de vista, os Portugueses criaram a possessão autónoma de
Benguela como “válvula de escape”, com receio da perda de Luanda, e com ela todo o
acesso ao comércio negreiro no Atlântico Sul.”.

(Helder Ponte em www.introestudohistangola.blogspot.com)

Ou seja, a questão crucial que se impõe às pesquisas atuais sobre este entre outros assuntos
do gênero, talvez seja esclarecer como e porque a prática de se cantar vissungos teria,
excepcionalmente, durado tanto tempo, a ponto de ainda ser lembrada, na maioria dos seus
muitos detalhes ainda em 1928, havendo permanecido, estranhamente, íntegra, imune às
naturais influências do seu meio brasileiro, por mais de um século depois de ter sido iniciada
por aqui. Parece evidente também neste caso, que o foco destas pesquisas deva ser ajustado
para dois pontos, ainda negligenciados da questão, a saber:

1- Muito mais do que na cultura urbana e rural (ou ‘suburbana’) acessível e visível em
manifestações culturais comuns e recorrentes, como terreiros de candomblé e umbanda e
festas periódicas tais como Congadas, Maracatus e Marujadas, por exemplo, as chaves mais
elucidativas do ponto de vista etnológico, no que diz respeito á cultura brasileira de origem
africana, parecem estar naquelas manifestações bem recônditas e obscuras, como as
praticadas em lugarejos ainda existentes no interior dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo
(como o Jongo mais ‘primitivo’), além de certos lugares remotos em Minas Gerais onde ainda
se conhece os Vissungos (antigos quilombos ou lugarejos surgidos em torno de lavras de
garimpo clandestinas, principalmente). Verdadeiros sítios etnológicos onde fragmentos
essenciais desta história oral, eventualmente estão preservados na memória dos habitantes,
há que se estabelecer um conceito de ética (acadêmica ou não acadêmica), no trato da
questão ‘pesquisa de campo‘ nestes locais.

2- Noutro sentido, as propriedades mais importantes à perfeita compreensão dos fundamentos


essenciais destas manifestações não podem ser, de modo algum, decifradas se não se realizar
um profundo estudo comparativo delas em seu contexto original africano.

No caso específico dos Vissungos (e da cultura negra do sudeste do Brasil como um todo) nada
será efetivamente compreendido se não se estudar, detidamente, a cultura angolana,
notadamente naqueles aspectos relacionados à Linguística, a cosmologia, a história enfim do
povo Bakongo, com ênfase na sua expansão pela região abrangida pela invasão e influência
militar portuguesa, região esta compreendida pelo antigo reino do Kongo (século 15 e 16), das
adjacências do porto de Luanda e da cidade de Mbaka-Ambaça (até o século dezoito) e às
adjacências do Porto de Benguela (do século dezoito até os anos mais próximos à abolição da
escravatura).

Pois foi assim – era uma vez enfim – sem tirar nem por, que a viagem aos falecidos Vissungos
do Tijuco se deu (infelizmente, como a vida, toda viagem tem um fim).

Nem pau nem pedra. Nem oito nem oitenta (como já se viu esta história – quase um filme –
tem dois Pedros e duas medidas). Pode estar nela a chave para a elucidação de diversas outras
ainda mal traçadas linhas de nossa pujante – e ainda tão pouco reconhecida – diversidade
cultural brasileira.

“_ Juro por tudo neste mundo que esta voz é do meu sangue, da minha família!” – “

Disse Ivo Silvério, ao ouvir, arrepiado, a voz do seu tio José Paulino cantando um ponto de
Vissungo na gravação da Library of Congress de 1942.

Spírito Santo
Janeiro de 2009
(Com notas suplementares em Julho de 2010)

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