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© 1975 Klett-Cotta - J.G Cotta’sche Buchhandlung Nachfolger GmbH, Stuttgart Copyright © 2013 Auténtica Editora COORDENADORA DA COLEGAO HISTORIA E HISTORIOGRARIA CAPA Eliana de Freitas Dutra Teco de Souza ‘THTULO ORIGINAL, (Sobre imagem de Chaosdna) Geschichte, Historie DIAGRAMAGAO TRADUGAO Conrado Esteves René E. Gertz REVISAO REVISAO TECNICA E DE TRADUCAO. Dila Braganga de Mendonca Sérgio da Mata EDTTORA RESPONSAVEL Rejane Dias Revisado conforme 0 Acordo Ortografico da Lingua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde janeiro de 2009. ‘Todos 0s direitos reservados pela Auténtica Editora. Nenhuma parte desta publicacSo poderd ser reproduzida, seja por meios mecanicos, eletrOnicos, sea via copia xerografica, sem a autorizacdo prévia da Editora, Cerqueira César AUTENTICA EDITORA LTDA. Belo Horizonte Séo Paulo Rua Aimorés, 981, 8° andar . Funciondrios Ay, Paulista, 2.073 . Conjunto Nacional 30140-071 . Belo Horizonte . MG Horsa |. 23° andar . Conj. 2301 Tel.: (55 31) 3214 5700 0131-940 . Sao Paulo. SP Tel.: (55 11) 3034 4468 Televendias: 0800 283 13 22 wwwautenticaeditora.com.br Dados Internacionais de Catalogacéo na Publicacéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) © conceito de Historia / Reinhart Koselleck...{et al.] ; tradugéo René E. Gertz. ~- Belo Horizonte : Auténtica Editora, 2013. ~ (Colecao Historia e Historiogratia, 10) Outros autores: Christian Meier, Horst Gunther, Odilo Engels Titulo original: Geschichte, histori, ISBN 978-85-8217-150-9 1. Conceitos 2. Histéria - Filosofia 3. Historia - Teoria |. Koselleck, Reinhart. I. Meier, Christian. il. GUnther, Horst. IV. Engels, Odilo. V. Série. 13-06383 cpp-901 Indices para catalogo sistematico: 1. Historia : Filosofia 901 : a ay Biblioteca Unive / 348813-04 i SUMARIO Prefacio Arthur Alfaix Assis Sérgio da Mata... 2 © CONCEIO DE HISTORIA |. IntroducGo.... 37 2. Conceito de historia e concepcées de “Historia”... ll. Compreensao do conceito na Idade Média... 63 1. Sobre o significado das palavras “historia” e “res gesta”. 63 2. Aescrita da Histéria, sua classificagéo e o horizonte em que ela é experimentada... 66 3. Lugar e fungéio da Historie na rede do saber..... 80 IV. Pensamento histérico no inicio da Idade Moderna. 85 1. Pressupostos .. 85 2. Dante e o Humanismo 88 3. O século XVI 92 4. O desafio da nova ciéncia ... 101 5. A respeito da alteragdo no topos de “Historia” e “Geschichte”. 109 V. A configuracéo do moderno conceito de Historia. 19 1. O percurso histérico do termo. ng 2. “A Histéria” como Filosofia da Histéri 135 3. A “Historia” se define como conceito. 165 VI. “Histéria” como conceito mestre moderno.... 185 1, Fungées sociais e politicas do conceito de Historia. 185 2. Relatividade histérica e temporalidade.. 191 3. A irrup¢do do distanciamento entre experiéncia @ expectativa.. 202 4. “Histéria” entre ideologia e crit 209 VIL. Perspectiva... _ 223 VII. Referéncias.... 227, PREFACIO O conceito de histéria e o lugar dos Geschichtliche Grundbegriffe na histéria da histéria dos conceitos* Arthur Alfaice Assis Sérgio da Mata profundo processo de reconfigura¢io vivido pela histéria dos conceitos a partir de meados do século XX foi motivado, em larga medida, pelo desejo daqueles que a ela se dedicavam de construir uma alternativa 4 antiga histéria das ideias. Meio século depois de iniciados os primeiros grandes empreendimentos na Alemanha, nao ha quem ignore a grandiosidade dos resultados obtidos e a virtual globalizagao desse género de pesquisa histérica e de historiografia. Chega-se, assim, como é natural, ao momento em que sio produ- zidos os primeiros retratos retrospectivos, os primeiros esboros de um género que, na auséncia de melhor palavra, se poderia chamar “historia da histéria dos conceitos”. De modo algo embaragoso, porém, a histéria da histéria dos conceitos talvez esteja condenada ase colocar muito mais nas proximidades da histéria das ideias e dos intelectuais que da disciplina que toma por objeto. Ela deve situar reconstruir trajet6rias individuais, constelagSes intelectuais e um. Osautores deste preficio, bem como o tradutor, gostariam de expressar sua gratidio para com 0 Prof. Temistocles Américo Cortéa Cezar (UFRGS) ¢ a Profa. Eliana Regina de Freitas Dutra (UFMG) pelo entusiasmo com que incentivaram e abracaram, desde o inicio, a tealizagio deste projeto editorial. Arthur Alfaie Assis é doutor pela Universidade de Witten (2009) e professor de Teoria e Meto- dologia da Histéria na Universidade de Brasilia. Especialista em Teoria da historia e Historia do pensamento histérico, com énfase em temas ¢ autores alemies do século XIX, publicow, entre outros, A teoria da histéria de Jom Risen: wa introdugio (Ed. UFG, 2010) © What is History for? Johann Gustav Droysen and the Functions of Historiography (Berghahn, no prelo). Sérgio da Mata doutorou-se em histéria pela Universitit 2u Kéln em 2002. Professor de Teoria € Metodologia da Histéria na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), foi pesquisador convidado do Instituto Max Weber para Ciéncias da Cultura e Ciéncias Sociais da Universitit Exfurt (2008) ¢ bolsista da Fundagio Alexander von Humboldt (2009-2010). autor dos livros Chit de Deus (Wissenschaftliche Verlag Betlin, 2002), Historia & religido (Auténtica, 2010) € A fascinasio weberiana (Fino Trago, 2013) O concerto be Histoma jogo altamente complexo de interconexdes disciplinares, tedricas e mesmo politicas. Numa palavra: 0 aparato teérico-metodolégico ¢ os problemas perseguidos pela histéria da histéria dos conceitos nio se confundem com os da histéria dos conceitos. Se uma per- segue as mutagdes de termos e significados em sua relacio com 0 invélucro sociocultural, a outra se ocupa com 0s atores sociais € suas respectivas ideias ¢ priticas cientificas, assim como os grupos € instituigSes em torno dos quais se organizam. Se numa 0 sujeito eventualmente nao é personagem principal, na outra ele faz toda a diferenga. Se uma ainda nio logrou estabelecer um amplo consenso a respeito do que € 0 seu objeto, na outra tal dificuldade nem sequer se apresenta. Caso seja verdade que todo confronto com o préprio passado traz consigo um ganho de reflexividade, o lento surgimento de uma Geschichte der Begriffigeschichte poder significar um ganho substancial nio apenas para a historia das ideias e da historiografia devendo se estender & propria Begriffigeschichte. Ao contrario do que muitas vezes acontece com o estudo de manuscritos antigos e medievais, na interpretac3o histérica de textos contempordneos as questées relativas 4 atribui¢do de autoria costumam ser ponto pacifico. Mas esse nao é exatamente 0 caso do texto que queremos aqui apresentar. Formalmente falando, trata-se de um verbete de obra de referéncia. Cada uma das suas quatro grandes se¢des possui um autor individual: Christian Meier (1929), especialista em culturas politicas da Antiguidade cléssica; Odilo En- gels (1928-2012), medievalista especializado em histéria da Espanha e na dinastia dos Hohenstaufen; Horst Giinther (1945), filésofo e conhecedor das modernas teorias politicas e filosofias da histéria; além de Reinhart Koselleck (1923-2006), historiador que se dedi- cou ao estudo da trajetéria dos conceitos formadores da linguagem politico-social moderna e contemporinea. Ao “usuario” do texto resta decidir se este verbete deve ser referenciado como um tinico trabalho escrito por quatro autores, ou se, antes, cada uma das suas partes deve contar como uma entrada individual. 10 Presa “Geschichte, Historie” — é este o titulo original do verbete que ora se apresenta pela primeira vez, em sua extensio integral, ao leitor bra~ sileiro. Trata-se dos dois termos alemaes que equivalem 3 palavra por- tuguesa “histéria”. E é precisamente uma excelente histéria do con- ceito de histéria o que o conjunto dos textos dos quatro autores nos oferece. © seu fio condutor é a transformacio que prepara a rede de significados caracteristica da moderna utiliza¢3o desse termo. A palavra histéria, cujo primeiro registro conhecido remonta a Herédoto, no século V a.C., é um patriménio de diferentes culturas ocidentais, que h4 quase 2.500 anos é cultivado, expandido e ressignificado. © verbete acompanha de perto essa longa trajetéria, analisando os usos do termo e as concepgées de histéria vigentes na Antiguidade clissica, os rearranjos semanticos decorrentes da absor¢io do termo no horizonte cultural cristio, os diferentes géneros historiograficos medievais, as reconfiguragdes do pensamento histérico sob os influ- xos do Renascimento e da Reforma, entre diversos outros temas. O argumento conflui para um exame da gestacio do moderno conceito de histéria, o que se teria dado entre 1750 e 1850, perio- do que Koselleck jé havia caracterizado como a Sattel- Zeit, a era da passagem.' Por essa altura, Huminismo, ascensio social da burguesia e industrializagao se combinam para, a partir do espaco cultural alemio, estimular uma alteragdo sem precedentes no significado dos diversos conceitos politicos fundamentais a partir dos quais se organizava a experiéncia no mundo ocidental.? Dessas transformagées histéricas nao escapa o proprio conceito de histria. Antes utilizado predomi- nantemente ou na forma plural (“‘as histérias”) ou como indicador \ KOSELLECK, Reinhart. Richtlinien fiir das Lexikon politisch-sozialer Begriffe der Neuzei Archiv fi Begifigeschichte, vol. 11, p, 88-99, 1967 (cit. p. 82). No Brasil e em outros paises, difundiu-sea tradugo nada evocativa “tempo de sela”. De fato, Sattel significa literalmente “sela”, ‘mas o termo cunhado por Koselleck também se associa a Bersatel, que se poderia traduzit por “paso de montanha”, “colo”, “porto” ou “portela”, Trata-se justamente de uma palavra que ‘remete 20 terreno, em regio montanhosa, situado entre duas elevagdese que serve de passagem de ‘uma 4 outra. O proprio Koselleck esclarece o significado do termo, a0 mesmo tempo que chama a atengio para as suas limitagdes enquanto conceito organizador da interpretagio histérica do mundo moderno. Cf Reinhart Koselleck, Javier Fernandez Sebastian & Juan Francisco Fuentes. Entrevista com Reinhart Koselleck. In: JASMIN, Marcelo; FERES JR. Joo (Orgs). Histria dos conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, p. 135-169 (cit. p. 102). KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Contribuicio a semantica dos tempos histéricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed, PUC-Rio, 2006, p. 101. VW Te | (© concerto 05 Histowa de relatos particulares, o termo histéria ganha, a luz da experiéncia moderna, um grau de abstraco e generalidade tio elevado que passa a ser capaz de se referir a todas as histérias particulares possiveis. Em consequéncia disso, na variante alemi do moderno conceito de historia passa a predominar a forma singular Geschichte em lugar da flexdo plural die Geschichte(n). E a tal circunstincia que se refere a categoria gramatical “singular-coletivo” (Kollektivsingular), com que o verbete qualifica o novo conceito de historia. Paralelamente, a generalidade do conceito também € refor¢ada em decorréncia de uma outra transforma¢ao seméntica, através da qual o termo Ges- chichte passa a absorver os significados anteriormente reservados ao termo de origem latina Historie, que desde a Idade Média tendia a ser associado primariamente 4 narrativa de acontecimentos € no aos acontecimentos propriamente ditos. No moderno campo semantico do termo Geschichte se encontra, por isso, tanto a nogio de histéria como realidade ou sintese do processo de constitui¢ao do mundo humano, quanto a referéncia a historia como forma de conhecimento do passado dos seres humanos, isto é, como historiografia.? O verbete foi escrito no contexto de um dos projetos de pes- quisa coletivos que mais fortemente marcou a cena historiografica alemi da segunda metade do século XX, os Conceitos histdricos fun- damentais: Léxico histérico da linguagem politico-social na Alemanha.* Editado entre 1972 e 1997 pelo proprio Koselleck em parceria com outros dois importantes historiadores, Otto Brunner e Werner Conze, o léxico abrigaria no seu segundo volume o verbete sobre o conceito de histéria. Quando da publicacio do verbete de Meier, Engels, Giinther e Koselleck em 1975, j4 nao era inédita a tese central de que a ideia Anteriormente ao verbete dos Geschichiiche Grundbegriff, tanto a caracterizagio do moderno conceito de historia como um termo “singular-coletivo” quanto a tese da absorcio dos sig- nificados do termo Historie pelo termo Geschichte jé haviam aparecido num famoso ensaio de autoria de Koselleck, publicado pela primeira vez em 1967. Ver: KOSELLECK, Reinhart. Historia magistra vitae. Sobre a dissolugio do topos na historia moderna em movimento. In: Futuro passado, op. cit., p. 41-60. « BRUNNER, Otto; CONZE, Werner; KOSELLECK, Reinhart. Geschichtliche Grundbegrife Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, 8 vols, Stuttgart: Klett Cotta, 1972-1997, HOFFMANN, Stefan-Ludwig, Reinhart Koselleck (1923-2006): The Conceptual Historian. German History, v. 24, n. 3, p. 475-478, 2006 (cit. p. 476) e Prerkoo de hist6ria e a pratica da historiografia passaram por transformages fundamentais entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Na verdade, nos anos 1820, Hegel, na introducdo 4 sua Filosofia da histéria, j4 falava na entao contemporanea transi¢a0 da “histéria refletida” para a “histéria universal filos6fica”, cujo fundador seria ele préprio.> No influente Manual do método histérico, de Ernst Bernheim, publicado pela primeira vez em 1889, sugere- se que a transig¢ao de uma concep¢io “pragmitica ou instrutiva (lehrhafiy” de historia para uma historia “genética ou evolutiva (en- twickelnd)” s6 ha pouco se havia consolidado, com a adesio a esta por parte da imensa maioria dos grandes representantes da ciéncia hist6rica alema oitocentista.* Em 1936, Friedrich Meinecke des- tacava que por volta do final do século XVIII teria se dado “uma das maiores revolugées espirituais” j4 vivenciadas pelo pensamento ocidental.’ A lista de registros poderia ser estendida, mas sera sufi- ciente para ilustrar a preexisténcia da percepcao de que, ao menos no espaco cultural alemao, modificagées no conceito de historia similares as descritas no verbete tiveram lugar ao inicio do que chamamos de Idade Contemporanea. Ainda assim é importante sublinhar a originalidade das interpretacdes de Koselleck acerca da modernizagio do conceito de histéria, que sio marcadas pela preocupa¢io em entrecruzar contextos intelectuais, politicos e sociais; pela distribui¢do bem balanceada de atengio analitica entre os grandes e os nao tao grandes autores que lhe servem de fonte; bem como pelo emprego inovador de dicionarios e enciclopédias, antes largamente ignorados na histéria das ideias.® 5 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Filosofia da histria, Brasilia: Ed. UnB, 1999 p. 13-21. © BERNHEIM, Ernst, Handbuch der historschen Methode, 1. Aufl. Leipzig: Duncker und Humblot, 1889 p. 15-21 7 MEINECKE, Friedrich, El historic y su genesis, México: Fondo de Cultura Economica, 1943, p. 11 Desde meados da década de 1950, Hans Freyer insistia nesta ampliagio do repertério das fontes. Ele se queixava da historia das ideias que “geralmente se detém muito em grandes obras que, de fato, sio represencativas mas que se elevam muito acima das cabegas”. Freyer toma como exemplo a ser seguido o estudo de 1927 de Bernhard Groethuysen, sobre a formagio da visio de mundo burguesa na Franga, ¢ que ele caracteriza como uma “historia do espirito anénimo” baseada em “sermées, livros didéticos, cartas, literatura recreativa, documentos do cotidiano casualmente obtidos”, FREYER, Hans. Teoria da época atual. Rio de Janeiro: Zahar, 1965, p. 74 13 : O concenio ve Hisroxa Salta aos olhos, em todo caso, que o segmento modemo da historia do conceito de historia parte de uma perspectiva alemi destes problemas, o que no é de espantar, posto que o verbete se insere numa obra de referéncia dedicada a dar conta da historia da linguagem sociopolitica no espaco cultural alemio. Recentemente, tal orientago deu azo ao surgimento de uma consistente critica 4 tese-chave de que nas décadas finais do século XVIII 0 conceito de histéria teria ganhado a forma de um singular-coletivo, com a absorgao pelo termo germinico Geschichte das principais camadas de significado relaciondveis ao termo histéria. Uma importante matriz dessa critica é a demonstragio feita por Jan Marco Sawilla de que no espago linguistico francés o termo histoire j4 era, no tiltimo tergo do século XVII, comumente mobilizado na forma singular para conotar, as vezes até mesmo simultaneamente, tanto o conhecimento hist tico como a realidade dos acontecimentos passados. Com base em citagdes de autores como Jean Bossuet, Jean Racine, Saint-Réal e Fontenelle, Sawilla busca refatar a interpretagdo de Koselleck de que o velho conceito de histéria teria adquirido 0 carater de um conceito coletivo-singular apenas no bojo das transformagées da Sattelzeit.? A partir desses e de outros argumentos, Sawilla sugere que os elos entre a hist6ria da palavra histéria e a histéria da ideia de histéria, tao bem amarrados no texto de Koselleck, “precisam ser desfeitos”.”” Decerto, a critica de Sawilla coloca em questéo um aspecto importante da tese de Koselleck, nomeadamente, o de que a lingua alemi teria sido pioneira na disponibilizacio de um conceito coleti- vo-singular de histéria. Mas aqui seria sem ditvida apressado deitar fora o bebé junto com a agua do banho e simplesmente afirmar que a tese central do verbete no mais dispde de potencial explicativo. Afinal de contas, continua, hoje como ontem, sendo inegavel que * SAWILLA, Jan Marco. ‘Geschichte’: Ein Produkt der deutschen Aufklirung? Eine Kritik an Reinhart Kosellecks Begriffs des ‘Kollektivsingulars Geschichte’. Zeitschrift flr historische Forschung, v. 31, p. 381-428, 2004 (cit. p. 388-394), © SAWILLA, Jan Marco, ‘Geschichte’: Ein Produkt der deutschen Aufklirung?, p. 419. Ver também: SAWILLA, Jan Marco. Geschichte und Geschichten 2wischen Providenz und ‘Machbarkeit. Uberlegungen zu Reinhart Kosellecks Semantik historischer Zeiten. In: JOAS, Hans; VOGT, Peter (Hrsg) Begrffene Geschichte. Beitrige zum Werk Reinhart Kosellecks. Frankfart am Main: Subrkamp, 2011, p. 387-422. 14 Prerhoo ao longo do século XVIII mudancas fundamentais ocorreram nas formas de experiéncia e representagio do tempo. Tais mudangas, evocadas pela palavra-chave “temporalizagdo” (Verzeitlichung), se relacionam, por exemplo, a crescente disjungdo entre experiéncias € expectativas alimentada pela difusio da percepgio da aceleragio do tempo; a abertura do futuro, dantes fechado nos quadros de uma concepgio escatolégica de histéria; ao reconhecimento da natureza perspectivistica da apreenséo da experiéncia; 4 énfase no cardter individual dos sujeitos histéricos; 4 admissio da “produtibilidade” (Machbarkeit) do proceso histérico; ao enfraquecimento do padrio exemplar de justificagao da historiografia.'' Todos esses € muitos outros processos sio muito bem apresentados e analisados no verbete, € com uma abrangéncia e profundidade que, parece-nos, ainda nao tém rival na literatura especializada. Projetos coletivos das dimensées do léxico dos conceitos po- Iiticos sé podem ser realizados com uma incomum disposi¢o para 0 trabalho em conjunto, abdicando os envolvidos de veleidades “autorais”.”? Isso nao significa que na confeccao de cada um dos " JUNG, Theo. Zeichen des Verfalls. Semantische Studien zur Entstehung der Kulturkritik im 18, und frithen 19. Jahrhundert. Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2012, p. 68; STOCKHORST, Stefanie, Novus ordo temporum. Reinhart Kosellecks These von. der Verzeitlichung des GeschichtsbewuBtseins durch die Aufklirungshistoriographie in methodenkritischer Perspektive. In: JOAS; VOGT (Hrsg) Begriffene Geschichte, op. cit., p 359-386 (cit. p. 379); FULDA, Daniel. Rex ex historia. Komédienzeit und verzeitlichte Zeit in Minna von Barnhelm’. Das achtzehnte Jahrhundert, v. 30, n. 2, p. 179-192, 2006 (cit. p. 182): “Von Sawillas Kritik betroffen ist nicht die Temporalisierungsthese insgesamt, sondern ‘nus’ ihre Stiitzung durch Kosellecks Kollektivsingular ‘Geschichte””. ‘Um depoimento do sociélogo francés Julien Freund, por ocasido do aparecimento do primeiro volume do léxico, nos dé uma vaga ideia do modus operandi estabelecido pelos editores. Depois de presenciar algumas das reunides de trabalho do grupo na Alemanha, Freund escreve que ‘com os pesquisadores encarregados de tedigir o verbete Poder “estavam reunidos historiadores, sociélogos, filésofos, economistas, juristas, cientistas politicos, teSlogos, etc. (cerca de vinte e cinco pessoas). [..] Seguiu-se um grande debate e uma confronta¢io que podia se basear, na ‘maior parte, em um volumoso dossié composto de trechos fotocopiados de dicionarios latinos, alemaes, ingleses, franceses, italianos, etc., e que tratava do conceito do século XVI a nossos dias. Assim, foram reunides de trabalho em equipe que permitiram ao autor designado para 0 vverbete obter 0 maior niimero possivel de dados eruditos, literirios e cientificos”. FREUND, Julien. Compte rendue de ‘Geschichtliche Grundbegriffe’. Revue Francaise de Socilogie, v.15, 'n.2, p. 287-289, 1974 aqui p. 287-288). 15 a 1 —————<—<_«€_ eh © concerto be Hist verbetes as preferéncias e op¢ées individuais tenham sido simples- mente eliminadas, nem que na distribuigio das tarefas executadas pelos editores-chefes tenha havido um perfeito equilibrio. Se é a Koselleck, indiscutivelmente, que se deve atribuir centralidade na concepgio geral dos Geschichtliche Grundbegriffe, intmeros comenta- ristas tém sido levados, porém, a ignorar a real importancia de Otto Brunner e Werner Conze. Ocupemo-nos agora com algumas das razGes que levaram estes dois historiadores a dividir a editoria do léxico com Koselleck e com a influéncia por eles exercida sobre a arquitetura geral do projeto. Dos trés, Brunner era, no comego da década de 1970, o mais conhecido. O jé septuagendrio medievalista austriaco nfo assumiu praticamente nenhuma tarefa organizacional importante na edigio do léxico, tendo aportado um tnico verbete: “Feudalismo”." Se essa muito modesta participagio se deveu a idade, a alguma idiossincra- sia pessoal ou a um possivel constrangimento de natureza politica, é uma questio ainda em aberto. Em todo caso, a importincia de Brunner se dé em outro plano. Seu livro Terra e dominagao (1939) é um clissico da moderna histéria dos conceitos e pode talvez ser considerado uma das primeiras tentativas bem-sucedidas de se in- corporar 0 pensamento politico-juridico de Carl Schmitt & historio- grafia. A inovagio tedrica e metodolégica assim promovida se liga, porém, e de forma indissocidvel, uma inegivel Belastung politica. Sabe-se que desde 1937 Brunner estava entre os que acreditavam no advento de uma “nova realidade” na Alemanha apés a ascensio do nacional-socialismo. Em consonancia com Schmitt, ele constatava © esgotamento dos conceitos fundamentais até entdo vigentes.'* Essa convicgio é projetada em Terra e dominasdo, onde se afirma que o aparato conceitual do século XEX deveria ser “destruido” porque Dentre os autores que escreveram verbetes para o léxico, apenas vinte contribuiram com mais, de 100 paginas. A lista & encabegada por Conze ¢ Koselleck (nesta ordem). DIPPER, Christof. Die ‘Geschichtliche Grundbegriffe’. Von der Begriffsgeschichte zur Theorie der historischen Zeiten, In: JOAS; VOGT (Hrsg) Begrffene Geschichte, op. cit, p. 297 “© topos da “nova realidade” é analisado por OEXLE, Otto Gerhard. Wirklichkeit—Krise der Wirklichkeit - Neue Wirklichkeit. Deutungsmuster und Paradigmenkimpfe in der deutschen Wissenschaft vor und nach 1933. In: HAUSMANN, Frank-Rutger (Hrsg) Die Rolle der Geisteswissenschafien im Dritten Reich 1933-1945, Miinchen: Oldenburg, 2002, p. 1-20. 16 Prericio nao se prestava fosse ao entendimento do presente, fosse ao das instituigdes juridicas e sociais da Idade Média. Nesse sentido, foi particularmente influente para o léxico a sua tese a respeito de uma transi¢do epocal na histéria do continente europeu. O conceito de “nova Europa” ganhara forca no ambito do pensamento nacional-socialista. Brunner adere a ela, desenvol- vendo, por oposi¢io, a nogio de “antiga Europa”: nada menos o espacgo de tempo que se estende de Homero a Goethe. Brunner propée, assim, um esquema evolutivo tripartite: “antiga Europa”, “era limitrofe” (Schwellenzeit) e “sociedade moderna”. Reinhard Blinkner acredita ser essa a concep¢io de fundo do léxico: “sem a antiga Europa de Brunner [...] nem a Sattelzeit, nem o léxico Geschichliche Grundbegriffe poderiam ser pensados”.'5 Ao lado de Koselleck, o grande animador do léxico de con- ceitos fundamentais € Werner Conze. Personalidade admirada por amigos e alunos, Conze vinha de uma familia do chamado Bildungsbiirgertum — 0 segmento da burguesia alema mais direta- mente afeto 4 educagio e A cultura. Seu av, 0 arquedlogo Ale- xander Conze, tinha sido aluno de Leopold von Ranke. Como Koselleck, Conze lutou e foi ferido na Segunda Guerra mundial. Ambos tinham ainda em comum seu ceticismo em relagdo 4 fungao emancipatéria que a geragio do maio de 1968 atribuia 4 ciéncia histérica. Para Conze a grande ruptura moderna se dera com o aparecimento de uma cesura e uma crescente polarizagio entre Estado e sociedade a partir de fins do século XVIII. Até entao, um nio se dissociava nitidamente do outro. Com a Schwellenzeit, "© Preyer empregou o neologismo Zeitschwelle, praticamente idéntico i Schwvellenzeit de Brunner. Infelizmente ndo nos foi possivel verificar qual dos dois autores teve precedéncia nesse caso. C£BLANKNER, Reinhard. Begriffigeschichte in der Geschichtswissenschaft. Otto Brunner und die Geschichtliche Grundbegriffe. Forum Interdisziplinire Begrifigeschiohte, v. 1, n. 2, p. 101-107, 2012 (ct. p. 106); SCHULZE, Winfried. German historiography from the 1930 to the 1950's In: LEHMANN, Hartmut; MELTON, James (eds) Paths of continuity, Central european historiography from the 1930's to the 1950's. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 40. Na introducio a0 primeito volume do léxico, Koselleck afirma que o objetivo ali perseguido era o de investigar o “desaparecimento do mundo antigo e o surgimento do mundo moderno”, KOSELLECK, Reinhart. Einleitung. In: BRUNNER, Otto, CONZE, ‘Werner; KOSELLECK Reinhart. (Hrsg) Geschichtliche Grundbegrife: Historisches Lexikon xzur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, v. 1. Stuttgart: Klett-Cotta, 2004, p. xvi. = O concerto oe Histon surge a “sociedade”. Conze pretendia compensar analiticamente essa divisio a0 promover uma aproximagio radical entre ciéncia hist6rica e sociologia. Sua carreira se inicia na chamada Ostforschung, campo de pesquisas dedicado ao leste europeu e sobre o qual pairou, por muito tempo, a pecha de ser uma espécie de ciéncia auxiliar do expansionismo alemdo. Estuda sociologia em Leipzig, tendo como mestres o historiador Hans Rothfels e os sociélogos Hans Freyer e Gunther Ipsen.'® Conze se tornou assistente de Ipsen e escreve seu doutorado sobre uma comunidade de lingua alema na Livénia. Depois de aprender russo e polonés, prepara sua tese de acesso 4 catedra (Habilitation) sobre a estrutura agraria e populacional da Lituania e Bielorrdssia. Esses trabalhos ndo acompanham a tradi- cio de alta contaminagao ideoldgica e geopolitica da Ostforschung. Em 1938 Conze chega a ter um artigo vetado pela Zeitschrift fiir Volkskunde porque havia sido demasiado isento em suas anilises.!” Mesmo num ambiente intelectual pouco favoravel, ele se abriu a influéncia da sociologia norte-americana e posteriormente a obra de Fernand Braudel. Em 1965 funda o Grupo de Trabalho em Histéria Social Moderna, no qual Koselleck tomar parte entre 1960 e 1965. Tendo marcado época na historiografia alema do pés- ~guerra, esse grupo publica nada menos que 43 livros entre 1962 e 1986. A primeira incursio de Conze pela histéria dos conceitos se dera antes, num artigo de 1954: “Vom ‘Pébel’ zum ‘Proletariat’, em que mostra quais processos sociais esto por detras da gradual substituigéo do termo “ralé” (Pébel) pelo de “proletariado”. A histéria dos conceitos abre para Conze um acesso novo ao estudo da dindmica histérico-social; ela possibilita um controle lexical que, com 0 auxilio da hermenéutica, deveria fundamentar histo- ricamente a anilise cientifico-social. Koselleck viu nesse estudo de Conze uma verdadeira “obra de mestre”. Trés nomes que Koselleck classificou como “conservadores nacionalistas”. KOSELLECK, Reinhart. Vom Sinn und Unsinn der Geschichte, Frankfart am Main: Subrkamp, 2010, p. 324 " SCHIEDER, Wolfgang. Sozialgeschichte zwischen Soziologie und Geschichte, Das wissenschaftliche Lebenswerk Werner Conzes. Geschichte und Gesellschaft, v. 13, n. 2, p. 244- 266, 1987 (p. 254). 18 a Preto E com razio que se costuma sublinhar a ascendéncia da socio- logia dos conceitos de Carl Schmitt sobre os editores do léxico.!* Curiosamente, pouco tem sido escrito fora da Alemanha sobre uma figura nao menos influente que Schmitt naquele contexto — 0 ja citado Hans Freyer. Da obra desse brilhante socidlogo e historiador, Brunner assimilou o principio segundo 0 qual os conceitos usados por um campo do conhecimento sempre esto “historicamente impregnados”, de que “mesmo os conceitos mais gerais [...] t¢m em si este elemento histérico”. De suma importancia para Conze foi a tese de Freyer (desenvolvida em obras da década de 1930 e 1950) a respeito do surgimento moderno da oposi¢ao entre Estado e sociedade, assim como da “ruptura histérico-universal de primei- ra grandeza” ocorrida na passagem entre os séculos XVIII-XIX.”” Apontado por Winfried Schulze como um dos mais influentes livros alemies da década de 1950, a Teoria da época atual (1955) de Freyer foi adotado por Conze como o ponto de partida dos trabalhos do Grupo de Trabalho em Histéria Social Moderna. Nessa obra, Freyer subscreve inteiramente a visio de Karl Léwith sobre a filosofia da histéria como uma forma de escatologia secularizada, e que sabemos ter exercido forte influéncia sobre Koselleck.” Nio resta divida, contudo, de que foi Reinhart Koselleck o grande propulsor do empreendimento de organizacao do léxico de histéria dos conceitos na Alemanha ao qual o texto do verbete “Geschichte, Historie” foi originalmente destinado. Por isso, sera importante considerar, com especial atengao, a sua trajetria bio- grifica e académica. Segundo o proprio testemunho, Koselleck cresceu num con- texto familiar em que se valorizavam a leitura, a misica, as visitas ™ As linhas basicas de tal abordagem foram desenhadas ainda na década de 1920, Cf, SCHMITT, Carl. Teologia politica. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 42-43. ™ BREYER, Hans, Lasociologia, cencia de la realidad. Buenos Aires, 1944, p. 23, 108; FREYER, Teoria da época atual, p. 73 ® SCHULZE, Winfried. Deutsche Geschichtswissenschaft nach 1945, Miinchen: DTV, 1993, p. 295-297. A importincia da visio de Lawith para Koselleck ¢ as dificuldades dai resultantes so analisadas por JOAS, Hans. Die Kontingenz der Sakularisierung. Uberlegungen zum Problem der Sakulatisierungim Werk Reinhart Kosellecks. In: JOAS; VOGT (Hrsg) Begrifene Geschichte, op. cit, p. 319-338. Ver também: OLSEN. History in the Plural. An Introduction to the Work of Reinhart Koselleck. New York: Berghahn, 2012, p. 21-23. 19 © concen be Histoma a museus, a escrita de cartas. O seu pai foi professor ginasial e de instituigdes de formagio de professors. A mie, de abastada familia burguesa de origem hugenote, fez estudos superiores em francés, historia e geografia, além de ter se formado como violinista de concerto. Nascido em 1923, Koselleck nao escaparia de vivenciar diretamente a II Guerra Mundial. Foi recrutado para a artilharia do exército nacional-socialista em maio de 1941 e enviado para a frente leste de batalha, mas um pequeno acidente na marcha para Stalingrado ensejou a sua transferéncia para operagdes de suporte na Alemanha e na Franca. Em maio de 1945, foi capturado pelo exército soviético e, depois de um curto periodo de trabalho na desmontagem de instalagdes da planta da IG-Farben nos arredores do campo de concentrago de Auschwitz, foi enviado para um Gulag no Cazaquistao, de onde escaparia, depois de 15 meses, com a ajuda de um médico que fora amigo de um dos seus tios-avés. Koselleck teve a vida fortemente marcada pela experiéncia da guerra e da derrocada da Alemanha em 1945. O seu irmio mais velho morreu em combate, enquanto 0 mais novo faleceu em decorréncia de um bombardeio. Uma de suas tias, que sofria de esquizofrenia, foi vitima do programa nacional-socialista de eutandsia.” Com essa dupla bagagem fornecida pelo universo cultural da burguesia educada e pela experiéncia da guerra e da prisio Koselleck iniciaria os seus estudos em 1947, aos 24 anos, na Uni- versidade de Heidelberg, Frequentou cursos de importantes figuras da vida académica de entio, tais como o socidlogo Alfred We- ber, o jurista Ernst Forsthoff, 0 médico Viktor von Weizsicker, 0s filésofos Hans-Georg Gadamer, Karl Jaspers ¢ Karl Lowith e os historiadores Johannes Kiihn e Hans Rothfels. Contudo, a principal influéncia sobre o jovem Koselleck no seria exercida por nenhum desses professores; a0 contririo, por um académico que no contexto da desnazificagio operada imediatamente apés » KOSELLECK, Reinhart; HETTLING, Manfred; ULRICH, Bernd. Formen der Biirgerlichkeit. Bin Gesprich mit Reinhart Koselleck. In: HETTLING, Manfred; ULRICH, Bernd (Hrsg) Biirgertum nach 1945. Hamburg: Hamburger Edition, 2005, p. 40-60 (cit. p. 46- 52); OLSEN, Niklas, History in the Plural, op. cit. p. 10-16; MEYER, Christian. Gedenkrede auf Reinhart Koselleck, In: BULST, Neithard; STEINMETZ, Willibald (Hrsg). Reinhart Koselleck 1923-2006, Reden zur Gedenkfeier am 24. Mai 2006. Bielefeld, 2006, p. 7-34 (cit. p. 11-12) 20 PrerAcio a queda do III Reich havia se tornado “maldito”, o jurista Carl Schmitt.” E com a persona de Schmitt e com o diagnéstico do mundo politico do século XX por ele desenvolvido que se trava o grande didlogo intelectual que estruturou a tese de doutorado defendida por Koselleck em outubro de 1953 e intitulada Critica e crise: um estudo sobre a patogénese do mundo burgués.® Esse trabalho é muito mais do que uma erudita e desinteressada investigacdo do pensamento politico moderno com foco no desen- volvimento da critica iluminista 4 ordem absolutista. E também, na expressio do proprio Koselleck, uma tentativa de “explicar a formaio da utopia com a qual a sociedade burguesa se rompe”.* Trata, assim, tanto do passado setecentista quanto do cendrio presente que se desenhou com o final da If Guerra Mundial. Partindo de postulados teéricos desenvolvidos por Carl Schmitt ~ como os de que a soberania é 0 poder de decidir sobre 0 que constitui o caso excepcional e de que a politica é uma arena marcada por um eterno conflito que nio pode ser anulado pela supressio do inimigo, Ko- selleck pretende chamar a aten¢io para a nocividade dos conceitos estruturantes das ideologias politicas modernas. A sua critica incide nao somente sobre o nacional-socialismo, mas também sobre os dois polos ideolégicos da entao emergente Guerra Fria: liberalismo e comunismo. Para Koselleck, a vulnerabilidade propiciada pela afir- magio de todos esses “-ismos” configura uma crise politica de dificil resolugio. Tal crise seria o desdobramento de uma maneira utdpica e moralizante de lidar com as coisas politicas, iniciada com a critica politica no contexto do Iluminismo e cristalizada nas modernas filo- sofias substantivas da histéria. No diagnéstico schmittiano assimilado por Koselleck, liberalismo, comunismo e nacional-socialismo seriam % Schmitt atuou, na pritica, como um orientador da tese doutoral de Koselleck, ainda que formalmente a orientagio tenha sido assumida por Johannes Kiihn, Sobre a relagio entre Koselleck e Schmitt, ver: MEHRING, Reinhard. Begriffsgeschichte mit Carl Schmitt. In; JOAS; VOGT, (Hrsg,) Begriffene Geschichte, op. cit; OLSEN, Niklas. Car! Schmitt, Reinhart Koselleck and the Foundations of History and Politics. History of European Ideas, n. 37, p. 197~ 208, 2011. KOSELLECK, Reinhart. Critica ¢ crise. Uma contribuigio a patogénese do mundo burgués Rio de Janeiro: Contraponto; Ed, PUC-Rio, 1999. KOSELLECK; HETTLING; ULRICH, Formen der Biirgerlichkeit, op. cit,, p. 54. 21 O concerto ve Histon 0s frutos diretos do utopismo iluminista; donde a importincia de se estudar este para se compreender aqueles.”5 Nos anos 1960, Koselleck daria continuidade A sua reflexio sobre a natureza e os problemas da modernidade na sua tese de Ha- bilitation sobre a hist6ria constitucional e administrativa da Prassia entre 1791 e 1848, orientada por Conze. Publicada em 1967, A Prissia entre reforma e revolugao é fruto de uma investigacio cuidadosa em que a abordagem hermenéutica das fontes da época é comple- mentada com anilises de corte estrutural e estatistico, para produzir uma histéria que abarca nao s6 conceitos politicos, mas também a interface entre intelectuais, instituigdes € atores sociais na Prussia da primeira metade do século XIX.” Logo apés publicar este livro, Koselleck se volta para um novo projeto, desta vez um grande empreendimento editorial coletivo que marcaria época na cena historiogrifica alema da segunda metade do século XX. Em 1967, publica no Arquivo para a histéria dos conceitos um artigo, redigido quatro anos antes, detalhando as linhas mestras de um “léxico dos conceitos politicos e sociais da modernidade”,”” que em 1972, por ocasio da publicacio do seu primeiro volume, seria rebatizado como Conceitos histéricos fundamentais: Léxico histérico da linguagem politica e social na Alemanha. A fim de adquirir uma compreensio mais ampla do significado do léxico dos conceitos fundamentais para a histéria da historio- grafia, deve-se levar em consideragio a evolugio da historia dos conceitos dos seus primérdios até a década de 1970. Esquivar-se de tal tarefa significa desistoricizé-la, reforcando a impressio de que essa disciplina € a expressiio de um fiat ocorrido na Alemanha apés ® DUARTE, Joio de Azevedo ¢ Dias. Tempo e crise na teoria da modernidade de Reinhart Koselleck. Histéria da Historiggafia, n. 8, p. 70-90, 2012 (it. p. 81-82); OLSEN, History in the Plural, op. cit, p. 46-48. % KOSELLECK, Reinhart. Preussen zwischen Reform und Revolution. Allgemeines Landrecht, Verwaltung und soziale Bewegung von 1791 bis 1848, Miinchen: DTV, 1989, p. 17. » KOSELLECK, Reinhart, Richtlinien, op. cit., p. 81-99. 22 Prerhao a catdstrofe da Segunda Guerra Mundial. O fato é que a historia da hist6ria dos conceitos se inicia muito antes. A despeito de algumas iniciativas no século XVIII ¢ XIX, so- mente em meados do XX a histéria dos conceitos iria se emancipar e adquirir 0 estatuto de disciplina auténoma, compreendendo-se, ao longo da maior parte de sua histéria, como um instrumento heuristico necessdrio ao desenvolvimento de uma teoria filos6fica. Desde a década de 1960 seu programa s6 fez se alargar, no sentido seja de uma metaforologia, seja de uma tépica histérica ou uma hist6ria dos conceitos cientifico-naturais. Em nenhum outro campo da historiografia se realizou tao plenamente a concep¢io pioneira de Ernst Cassirer da hist6ria enquanto um ramo da semAntica.” Mas se 0 conceito é simultaneamente um fator e um indicador, nem por isso se deve supor que seja capaz de produzir milagres. Como sublinhou Gunter Scholtz, a coisa muitas vezes existe antes do termo que a designa — coisas nem sempre sio feitas de palavras. De fato, e como veremos a seguir, a historia dos conceitos se coloca como projeto e mesmo como uma incipiente pritica disciplinar antes do surgimento do conceito “histéria dos conceitos”. Que a histéria jamais se esgota na linguagem, é algo que o proprio Koselleck nunca deixou de ressaltar.”” Com seu Léxico filoséfico (1726), 0 tedlogo luterano Johann Georg Walch foi o primeiro a insistir que 0 carater “histérico” dos conceitos deveria ser estudado 4 parte do seu carater “dogmitico”, de modo a esclarecer os conceitos filos6ficos. O esforgo de ex- plicagio e definigio nio poderia ser dissociado de uma “narrativa hist6rica” dos conceitos e controvérsias filos6ficas. Em 1774, Jo- hann Georg Heinrich Feder (professor de filosofia em Gattingen), defendia que, para a preparacao de um dicionério filoséfico, seria imprescindivel o estudo hist6rico daqueles conceitos em torno dos quais se produziam polémicas. Christoph Gottfried Bardili, em 1788, elaborou um programa de pesquisa dos principais conceitos > CASSIRER, Ernst. Antropologiaflesifica. México: Fondo de Cultura Econémica, 1992, p. 287. ® SCHOLTZ, Gunter. Begriffigeschichte als historische Philosophie und philosophische Historie. In: JOAS; VOGT (Hrsg) Begriffene Geschichte, op. cit, p.273. Para Koselleck, “Geschichte geht nie in Sprache auf”. Cf, KOSELLECK, Reinhart. Vom Sinn und Unsinn der Geschichte, op. cit. p. 88. 23 (© concero ne Histo filos6ficos. Para Bardili também era importante investigar a presenga dos termos filos6ficos na linguagem cotidiana, na literatura e nas religides. Helmut Meier identifica um evidente “sotaque hist6rico- conceitual” percorrendo essas diversas obras.” Em 1806, éa vez de Wilhelm Traugott Krug, sucessor de Kant em Kénigsberg, estabelecer seu plano de um Diciondrio histérico-crftico da filosofia nestes termos: “Seria muito instrutivo caso houvesse um dicionario de todos os conceitos e proposiges (Satzen) filosoficas, que os colocasse em ordem alfabética e indicasse suas origens, evo- lucao, transformagées, contestagdes e defesas, deturpagées e retifi- cages, com indicagao de fontes, autor e das épocas até o momento atual”2! Em seu Do conceito da histéria da filosofia (1815), Christian August Brandis chega ao ponto de conceber a histéria da filosofia como a histéria dos conceitos filos6ficos. Nio obstante todas essas declaracdes de boas inten¢ées, na pri- meira metade do XIX a histéria dos conceitos se limitou a poucas iniciativas isoladas, nao chegando a conhecer nenhum empreendi- mento sistematico. Em 1870, enfim, Friedrich Adolf Trendelenburg — autor cujas marcas se fizeram sentir no pensamento de Dilthey — escreveu uma histéria do conceito filos6fico de “pessoa”. Com isso, Trendelenburg pretendia entender por que 0 conceito de persona, que para os antigos evocava uma méscara, mera aparéncia, assumira mais tarde, com e a partir de Kant, o sentido daquela instancia que expressa a esséncia moral do homem.” O impulso decisivo s6 vem em 1872 com Rudolf Eucken, que ambiciona editar um léxico histérico da terminologia filoséfica. Se- guindo de perto as concepgées de Trendelenburg, Eucken entende que a historia dos conceitos nio deve ser uma colegio de curiosidades, mas revelar “a histéria interna de cada termo especifico”. Somente a pesquisa histérico-conceitual estara em condigées de decidir se um determinado termo filoséfico deve sua origem a um ato criador Esta seco se baseia amplamente em MEIER, Helmut. Begrifsgeschichte. In: RITTER, Joachim (Hrsg) Historisches Weorterbuch der Philosophie (vol. 1). Basel: Schwabe, 1971, cols. 788-808, " Apud MELER,, Begriffesgeschichte, op. cit., col. 792. » Publicado postumamente: TRENDELENBURG. Friedrich Adolf, Zur Geschichte des Wortes Person. Kant Studien, v. 13, p. 1-17, 1908 (cit. p. 3-4). 24 ; ; [FARE BIBLIOTECA| individual ou a um an6énimo trabalho de elaboracio coletiva. Ela permitiria avaliar em que medida a linguagem técnica dos filésofos ea linguagem do mundo da vida sio mutuamente permedveis. Eu- cken percebe também a grande importancia de se articular dinamica hist6rica e dinamica conceitual: “toda grande transformagio da vida histérica faz com que conceitos e termos de circulos limitados se tornem os da coletividade”.** A histéria dos termos e conceitos fi- loséficos espelha, assim, o movimento da histéria humana. Para os argumentos de Eucken, tio ou mais importante que a de Trendelenburg foi a influéncia de Gustav Teichmiiller, autor de Estudos para a histéria dos conceitos (1874) e dos Novos estudos para a histéria dos conceitos (1876-1879). Teichmiiller via na Geschichte der Begriffe a pré-condicio para o progresso da filosofia, na medida em que seria capaz de revelar os carninhos por meio dos quais um dado conceito ascende 4 condi¢io de “conceito fundamental”. Para esse fim, a histéria conceitual deveria levar em conta nio apenas 0 estudo dos estados de consciéncia individuais daquelas pessoas que formulam os conceitos, mas também as “condigdes sociais, da atmosfera religiosa e politica” em que isso acontece. Teichmiiller concebia a histéria conceitual como uma tépica cronolégica. Depois de lecionar na Universidade de Basileia entre 1868 e 1879, decide retornar 4 Alemanha. Os principais aspirantes a sua sucessio sio ninguém menos que Nietzsche e Eucken, sendo este (um ex-aluno de Teichmiiller) 0 escolhido. O fracasso de Nietzsche significou, curiosamente, a continui- dade do desenvolvimento da histéria dos conceitos a partir de seu berco suigo. De fato, na virada para 0 século XX, diversos estudos hist6rico-conceituais viriam atestar a influéncia do programa esta- belecido por Eucken. Sua Histéria e critica dos conceitos fundamentais da atualidade (1878) passa a se chamar, na segunda edigio (1893), Os conceitos fundamentais do presente e se estrutura a partir de uma série de pares antitéticos: subjetivo/objetivo; a priori/a posteriori; monis- mo/dualismo; orginico/mecanico; teérico/pritico; imanéncia/ transcendéncia, etc. » Apud MEIER, Begriffesgeschichte, op. cit, col. 795. ee (© concerto oe Histon Na introdugio de seu livro, Eucken diz que os conceitos “no sao filhos do momento, mas se enraizam no passado”. Nao se pode falar em histéria do conceito enquanto um de seus elementos centrais se mantém constante na diacronia. A tarefa da hist6ria do conceito estaria em identificar quais seriam esses elementos centrais invariantes. Mas Eucken reconhece a historicidade dos conceitos e, portanto, a necessidade de adequé-los ao tempo presente, a essa “era dos jornais didrios e de maquinas”. Insistindo num ponto que ser igualmente sublinhado pela geragdo seguinte de historiadores dos conceitos, ele percebe com clareza a indissociabilidade entre experi- éncia hist6rica e vocabulério filoséfico: “uma intangivel quantidade de novas experiéncias implodiu, junto com as antigas formas, os antigos conceitos”. Assim, “nao surpreende que hoje se negocie e discuta tanto por causa de conceitos!”** E importante observar que Eucken fala em Geschichte des Begriffes e em Begriffiforschung. Em 1899, surge 0 Diciondrio de conceitos filosédficos, do fildsofo austriaco Rudolf Eisler. Em sua segunda edigio se Ié que “o objeto deste diciondrio é a histéria, baseada nos escritos dos filésofos, dos conceitos e expressées filoséficas”. Seu objetivo expresso era “dar a conhecer esta mudanga no sentido dos conceitos e expressées, esta alterac4o de quantidade, qualidade, valor e contetido concei- tual”. Para Eisler, seu diciondrio “de forma alguma pretende ser ou substituir uma histéria da filosofia”, mas apenas “completé-la”.** A. despeito de toda essa aparente sofisticagdo, posteriormente se cri- ticou essa obra por se concentrar principalmente em definigées e na tentativa de solucionar problemas filos6ficos, ficando o trabalho especificamente histérico-conceitual praticamente obliterado. \V. Na transigdo entre essa titubeante primeira geracio de trabalhos em histéria dos conceitos ¢ a que tomaria forma depois da Segunda ™ BUCKEN, Rudolf. Die Grundbegriffe der Gegenwart. Historisch und Kritisch Entwickelt, Leipzig: Veit & Comp., 1893, p. 7-12, % EISLER, Rudolf. Vorwort. In: Worterbuch der philosophischen Begriffe historisch-quellenmassig bearbeitet. Berlin: Ernst Siegfried Mittler und Sohn, 1904, v. I, p. iii-vii, 26 Prrico Guerra, lugar de destaque cabe a Erich Rothacker. Rothacker iniciara seus estudos de filosofia em Kiel e ainda na graduacio percorrera os livros de Karl Lamprecht e Kurt Breysig, os mais controvertidos representantes da histéria cultural na Alemanha de fins do século XIX. Entre os professores que o marcaram estavam o socidlogo Ferdinand Ténnies, o historiador da arte Carl Neumann, e, em especial, o filésofo Max Scheler. Em sua tese de doutora- mento, concluida em 1911, Rothacker se dedicou ao pensamento histérico de Lamprecht. Para a tese de Habilitation, se transfere para Heidelberg e escreve uma Introdugao as céncias do esptrito que é, em larga medida, uma histéria da escola histérica alema. O trabalho nio deixa de ser notado por historiadores de prestigio como Georg von Below e Friedrich Meinecke. Em Heidelberg, cidade que viria a se tornar um dos principais centros irradiadores da histéria dos conceitos em sua acepgio atual, Rothacker chega a atuar algum tempo como Privatdozent, mas seu caminho 4 catedra nfo parece muito promissor na “aldeia mundial” de Baden. Em 1926 publica sua Légica e sistemdtica das ciéncias do espirito, em que manifesta uma primeira aproximacio em relacio A antro- pologia filoséfica. Como a obtengio de um cargo universitirio nio se apresentava ainda como uma possibilidade real, Rothacker vé sua grande oportunidade na inteng4o anunciada em 1927 pela “Sociedade alemi de apoio 4 ciéncia” de editar um grande diciona- rio filos6fico-cultural. Rothacker abraga entusiasticamente a ideia. Ele elabora um projeto no qual esse diciondrio deveria se estruturar em torno de conceitos filos6fico-culturais fundamentais e de uma concep¢4o autenticamente interdisciplinar, uma vez que “todo o trabalho de esclarecer filosoficamente os conceitos fundamentais nao dé em nada caso a filosofia nao se mostre capaz de colocar seus conceitos numa relagio viva com os conceitos fundamentais das ciéncias especificas”.° Em abril de 1927 esse projeto é enviado ao ministério da educagio. Para concretiz4-lo, Rothacker acreditava ser necessario fundar um instituto de pesquisa nos moldes dos Institutos % Citado por STOWER, Ralph. Erich Rothacker. Sein Leben und seine Wissenschaft vom Menschen, Bonn: Bonn University Press, 2012, p. 97. 27 © concen ve Hiroe Kaiser-Wilhelm (atual Sociedade Max Planck) crementar o contato entre as diferentes disciplinas nas humanidades Seu intento era in- e, simultaneamente, preparar 0 léxico em conjunto com uma equipe sob seu comando. Tal empreendimento, acreditava, seria condi¢ao necessdria para se chegar a uma “ciéncia do homem” assentada em bases histérico-culturais e antropolégicas. Seus planos, entretanto, nao sensibilizaram as autoridades educacionais prussianas, Ralph Stéwer acredita que se tenha visto na ideia do léxico e do instituto algo além das possibilidades de um pesquisador que sequer chegara A catedra ainda.” Com sua nomeagio para a Universidade de Bonn em fins de 1928, Rothacker passa a se dedicar a outros temas, mas o desejo de levar adiante o diciondrio permanece vivo. Ainda que sejam evidentes os sinais de sua aproximag3o com © regime nacional-socialista, Rothacker nado enfrentou maiores problemas para reiniciar sua vida académica apés 1945.* J4 nos anos posteriores ao fim da Segunda Guerra, ele percebe que hd um clima favoravel 4 retomada do seu antigo projeto. A partir de 1949, tenta viabilizd-lo através da recém-fundada Academia de Ciéncias de Mainz.” Em 1955, finalmente funda o prestigioso Arquivo para a historia dos conceitos, primeiro periddico especializado nessa area. Para Rothacker o diciondrio de Eisler se limitava a um amontoado de citagGes e nao oferecia uma “histéria do conjunto da terminologia relativa 4 filosofia e as vises de mundo [que fosse] realizada com esmero histérico-filolégico”. A nova histéria dos conceitos deveria aliar o rigor da pesquisa histérica 4 tradi¢do da historia dos problemas (que remontava as pesquisas em hist6ria da filosofia de Wilhelm Windelband), abrindo espa¢o nao apenas para a inovagio no campo da histéria das ideias, mas também para uma “aprofundada critica da » STOWER, Erich Rothacker, op. cit. p- 100. Embora tenha declarado num questionsrio preparado pelas forgas de ocupacio aliadas, em 1946, ‘que “a politica esti, dentre 2s coisas que me interessam, quase no 12° lugar”, sabe-se que na década de 1920 Rothacker se sentia préximo do campo conservador. Nao se sentiu atraido pelo famoso circulo intelectual mantido por Alfted Weber e Marianne Weber em Heidelberg, por consideri-lo demasiado liberal e mesmo “impatridtico”. STOWER, Erich Rothacker, op. cit, p. 53, 78. KRANZ, Margarita, Geistige Kontinuitt? Rothackers Projekt eines begriffsgeschichtlichen Wérterbuchs von 1927 und dessen Wiederaufnahme 1949. Forum Interdisziplinare Begriffigeschichte, v. 1, n, 2, p. 46-48, 2012. 28 Preraco razio”. Insiste na importancia de se explorar os conceitos filos6fico- culturais fundamentais ¢ sonha com algo das dimensdes da grande enciclopédia protestante Religiao na histéria e no presente. Rothacker toma o exemplo das obras de Troeltsch, Heussi e Meinecke para mostrar que, nao obstante sua importancia, elas nio bastavam para se obter uma visio ampla da histéria e do significado do conceito de “historicismo”. Em tltima instancia, o Arquivo deveria fomecer as bases sobre as quais se erigiria, mais tarde, um grande diciondrio de conceitos.“” Simultaneamente a esses movimentos de Rothacker, davam-se 0s primeiros passos para o surgimento do primeiro ¢ mais ambi- cioso léxico de histéria dos conceitos do pés-guerra: 0 Diciondrio histbrico da filosofia (Historisches Werterbuch der Philosophie). Em 1957, a editora Schwab, de Basileia, adquire os direitos do diciondrio de Eisler com a intengdo de fazer uma reedi¢ao atualizada. Dois anos depois, 0 projeto é assumido pelo filésofo Joachim Ritter. Ritter coloca como condig&o que o trabalho seja realizado em conjunto com alguns de seus alunos na Universidade de Minster. Do grupo inicial fazem parte, além do proprio Ritter: Hermann Liibbe, Odo Marquard, Robert Spaemann, Karlfried Grinder (que assumira a editoria depois da morte de Ritter), Ludger Ocing-Hanhoff, Heinrich Schepers ¢ Wilhelm Kambartel. Um protocolo de uma das reunides, realizada em 13 de agosto de 1959, mostra que nio se buscava apenas uma atualiza¢io, mas uma total reestruturagio do antigo diciondrio de Eisler. O novo léxico deveria fugir das definigées até entio existentes, inclusive da influéncia de quaisquer “doutrinas”, com vistas a produzir “uma histéria dos conceitos a partir da hist6ria lexical”.*! Entre fins de 1959 e inicios de 1961, ainda durante os trabalhos preparatérios, Ritter e seus alunos tentam trazer Hans-Georg Gada- mer (entio presidente da “Comissio de Investigagdes em Historia dos Conceitos da Sociedade Alema de Pesquisa”) para o grupo, na “© ROTHACKER, Brich. Geleiewort. Archiv flr Begriffigeschichte, v. 1, p. 5-9, 1955. “' Citado por TINNER, Walter. Das Unternehmen ‘Historische Wérterbuch der Philosophie’. In: POZZO, Ricardo; SGARBI, Marco (Hrsg,) Eine Typologie der Formen der Begriffgeschichte. Hamburg: Meiner, 2010, p. 10. 29 | i ss O concerto ve Hstéa condi¢ao de editor-chefe ao lado do proprio Ritter. As negociagdes fracassam diante do volume dos honorarios pedidos por Gadamer e de sua demanda de que os direitos do diciondrio fossem passados aos editores-chefes, € nao a editora Schwab.” Fato é que ao longo das décadas de 1950 e 1960 ocorre uma evidente pluralizacao de concei- tos a respeito da hist6ria dos conceitos. Em 1965, no seu conhecido estudo sobre a histéria do conceito de secularizagio, Hermann Liibbe defende a histéria dos conceitos como uma histéria do uso das pa- lavras (Wortgebrauchschichte), vendo nela um instrumento poderoso no sentido de langar luz sobre aquelas crises recorrentes na hist6ria da filosofia e das ciéncias humanas, situagdes “cadticas” no uso de determinados conceitos. Ela serviria, portanto, como instancia de controle e de antidoto em épocas de anomia conceitual.* Concluido em 2007, 0 Diciondrio histérico da filosofia abarca 0 universo de 3.670 conceitos. Para tanto, foi mobilizado um exército de 1.500 autores (inclusive um presidente da Repiblica: Roman Herzog), a um custo final estimado em quinze milhées de euros. Ante os outros grandes projetos similares, como 0 Léxico dos conceitos politico-sociais na Franga e os Conceitos histéricos fandamentais, a marca distintiva do Diciondrio histérico da filosofia — sua forga, mas possivel- mente, também, sua fraqueza — radica na nao subordina¢ao a uma tese constitutiva central ou a uma concepgio unitaria de histéria dos conceitos.# V. Esta breve exposigéo sobre a hist6ria da histéria dos conceitos na Alemanha e paises de lingua alemi nao poderia ser concluida sem que enfrentéssemos uma questo polémica, mas da qual nao estamos no direito de nos esquivar. O momento decisivo de aproximagio “© TINNER, Das Unternehmen, op. cit., p. 10-11. “© LUBBE, Hermann, Sakularisierung. Geschichte cines ideenpolitischen Begriffs. Freiburg: Karl Alber, 2003. “ RITTER, Joachim. Leitgedanken und Grundsitze des Historischen Wérterbuchs der Philosophie. Archi fir Begrffgeschichte, v. 1, p. 75-80, 1967. Um bom exemplo das vantagens € desvantageni da auséncia deliberada de uma tese “forte” subjacente ao dicionirio de Ritter €o verbete escrito por SCHOLTZ, Gunter. Geschichte, Historie, In: Historisches Worterbuch der Philosophie, vol. 3. Basel: Schwab, 1974, cols. 344-398, 30 Prerhcio entre ciéncia histérica e histéria dos conceitos ocorreu, segundo Koselleck, ao longo da década de 1930, confindindo-se com os nomes de Rothacker na filosofia, de Brunner na hist6ria, de Carl Schmitt na ciéncia do direito e de Jost Trier na linguistica.”* Significa dizer: entre os principais inspiradores da virada teérico-metodolégica vivida por essa disciplina, nio poucos estavam proximos do espec- tro mais conservador da politica alemi do periodo entreguerras, quando nao do nacional-socialismo.** Nas derradeiras paginas de sua Filosofia da Histéria (1934), Rothacker chega a evocar passagens de discursos de Hitler com mencées “mentalidade heroica da raga nérdica” e insiste na “‘necessidade de apoiar energicamente todas as medidas eugénicas” levadas a cabo pelas autoridades.‘” Antecipando um argumento que seria empregado por Brunner cinco anos mais tarde em Terra e dominagéo, Rothacker afirma que diante da vitéria da “revolugio nacional-socialista [...] os conceitos fundamentais tém de encontrar a sua confirmac4o nos acontecimentos recentes tanto quanto nos pretéritos”.** O préprio Koselleck, numa carta enviada a Carl Schmitt em 18 de fevereiro de 1961, comenta as razGes pelas quais “a irrupgao revolucionaria de 1933 se perdeu”.” © KOSELLECK, Reinhard. Sozialgeschichte und Begriffageschichte. In: SCHIEDER, Wolfgang; SELLIN, Volker (Hrsg) Sozialgeschichte in Deutschland, vol. 1. Géttingen ‘Vandenhoeck & Ruprecht, 1986, p. 91 “ Da vasta literatura sobre Schmitt, cf excelente biografia escrita por MEHRING, Reinhard. Carl Schmitt. Aufstieg und Fall. Miinchen: C. H. Beck, 2009. Sobre as relagdes de Trier, Rothacker e Brunner com 0 nacional-socialismo, ver os estudos de HUTTON, Christopher. Linguistics and the Third Reich, London: Routledge, 1999, p. 86-105; BOHNIGK, Volker. Haltung, Stil, Typus, Kultur. Rothackers begriffigeschichtlicher Entwurf einer nationalsozialistischer Kulturtheorie, Forum Interdsziplinare Begrifigeschichte, v. 1, n. 2, p. 70-82, 2012; MELTON, James van Horn, Otto Brunner ¢ as origens ideolégicas da Begriffsgeschichte. In: JASMIN,; FERES JR.(Orgs) Histiria dos concetos, op. cit., p. 55-69; ALGAZI, Gadi. Otto Brunner. Konkreter Ordnung und Sprache der Zeit. In: SCHOTTLER, Peter (Hrsg) Geschichte als Legitimationswissenschaft, 1918-1945, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998, p. 166-203, © ROTHACKER, Erich. Geschichtsphilosophie. Miinchen: Oldenbourg, 1936, p. 147-148. @ ROTHACKER, Geschichsphilosophie, op. cit, p. 145. _.] warum der revolutionare Aufbruch von 1933 verspielt wurde”. Citado por MEHRING. Begriffsgeschichte mit Carl Schmitt, op. cit., p. 151. Se levarmos em conta que 0 uso de detetminados conceitos permite, no interior de um dado campo semantico, imediatamente identificar e “localizar” um determinado interlocutor no espectro politico, pode-se imaginar ‘que significa, sobretudo num pais como a Alemanha do pés-guerra, referir-se a 1933 como uma “revolugio”, 31 © concerto be Histon Essa associa¢io entre histéria dos conceitos ¢ a chamada “Revolucao conservadora” da Repiblica de Weimar e a sua continuagdo sob o nacional-socialismo ter4 contribuido para 0 grau de reconhecimento relativamente modesto de que gozou o projeto do léxico no meio historiografico alemfo entre as déca- das de 1970 e 1990? Em seu balango da historiografia do século XX, o papa da histéria social da Escola de Bielefeld, Hans-Ulrich Wehler, procurou inflacionar a influéncia de Brunner (a quem se refere como “o historiador nazista mais influente até hoje”) sobre o Grupo de Trabalho em Histéria Social Moderna e sobre os Geschichtliche Grundbegriffe, falando ainda em “contaminagio” do léxico pelo pensamento de Schmitt.*° E rigorosamente irrelevante para a historia da historiografia, assim como para a histéria das ciéncias em geral, a tentativa de valorar a contribuigio dos pais fundadores da moderna historia dos conceitos a partir de critérios extracientificos; mesmo porque os inspiradores da Escola de Bielefeld (Theodor Schieder e Hans Ro- thfels) tinham igualmente pertencido ao campo conservador. Nao é incomum, na histéria das ciéncias humanas, que justamente de autores politicamente conservadores possam advir grandes avancos, enquanto aqueles situados no campo liberal ou progressista se man- tém, muitas vezes, firmes na sacraliza¢4o da tradigao. Os nomes de Otto Brunner, de um lado, e de Gerhard Ritter, de outro, ilustram esse “paradoxo” a perfeicao.> A pergunta que se deve colocar — sine ira et studio — 6 de outra natureza: por que a (re)descoberta da linguagem enquanto po- téncia histérico-social foi originalmente realizada por académicos © WEHILER, Hans-Ultich. Historisches Denken am Ende des 20, Jahrhunderts, Géttingen: Wallstein, 2002, p. 48-49, Sobre as tenses entre a histéria social de Bielefeld e a histéria dos conceitos, cf. DIPPER, Die ‘Geschichtliche Grundbegriffe’, op. cit., p. 304-305, * Para Koselleck, Brunner é um bom exemplo de como “interesses cognitivos politicamente condicionados podem conduzir a novas ideias tedricas ¢ metodol6gicas, as quais sobrevivem a seu contexto de origem”. KOSELLECK, Sozialgeschichte und Begriffsgeschichte, op. cit., p. 109, Gethard Ritter foi um dos poucos historiadores alemaes de prestigio que se opés resolutamente 20 nazismo. No imbito da disciplina, contudo, sc opés de forma igualmente decidida a recepc3o da Escola dos Annales na Alemanha, tendo ainda criado dificuldades ao estabelecimento da histéria social na década de 1950, Cf, SCHULZE, Deutsche Geschichtswissenschaft nach 1945, p. 285-289. 32 —- ee Prerkoo do campo conservador? A questio esta longe de ser simples, mas deve-se sublinhar aqui ao menos um aspecto importante. Uma das dimensdes da vida social sobre a qual 0 nacional-socialismo atuou de forma programada, e em proporcées desconhecidas até entio, foi precisamente a esfera da linguagem. Um precioso tes- temunho de Ernst Cassirer nos di uma pilida ideia do que isso Tepresentou na pritica. De seu exilio norte-americano, ele escre- ve: “Atualmente, se alguma vez acontece que eu tenha de ler um livro alemio publicado nestes tiltimos dez anos [...], descubro com grande surpresa que ja no entendo o idioma alemio. Cunharam- se palavras novas, € as antigas sio empregadas com um sentido novo; sofreram uma mudanga profunda de significado”. Cassirer afirma que “aquelas palavras que antes eram usadas num sentido descritivo, l6gico ou semintico, se empregam agora como palavras migicas, destinadas a produzir determinados efeitos ¢ a estimular determinadas emogdes”.>? Em um de seus mais importantes ensaios, Koselleck postula que transformagées “no meio social ou politico se correlacio- nam com inovagdes metodolégicas”, transformagées essas que nao raro sio experimentadas de forma relativamente homogénea no interior de “unidades geracionais” especificas.* Tal conex4o ilumina bastante bem o nosso problema. Pois nio resta dtivida de que a gradativa tematizacgao da linguagem enquanto poténcia histérico-social, embora j4 se manifestasse nos trabalhos de diver- sos autores ligados 4 “Revolugo conservadora”, ganha impulso decisivo com 0 advento do nacional-socialismo e suas iniciativas mais ou menos sistematicas de criar um vocabulirio proprio. £ compreensivel que, nessas condigées, a linguagem se tornasse um dos mais privilegiados campos de anilise histérico-social para a geracao de pesquisadores e intelectuais que viveu a ascensio e queda do nazismo. Sinal evidente disso é que tal movimento se estendeu inclusive aos criticos do regime nacional-socialista, entre ® CASSIRER, Emst. El mito del Estado, México: Fondo de Cultura Econémica, 1992, p. 335. ® KOSELLECK, Reinhart. Erfahrungswandel und Methodenwechsel. Eine historisch- anthropologische Skizze. In; Zeitschichten. Studien 2ur Historik, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2000, p. 32-35. 33 eles, os pioneiros da chamada critica da linguagem (Sprachkritik): Victor Klemperer, Dolf Stenberger, Eugen Seidel ¢ Ingeborg Seidel-Slotty, e cujas obras, por razdes Sbvias, s6 puderam ser publicadas depois de 1945. Os leitores de Koselleck sabem que para ele a histéria — nos dois sentidos do termo — se constréi numa dialética infinita de crise e continuidade. Aplicado a histéria da histéria dos conceitos, esse principio se deixa traduzir pela maxima Zukunft braucht Herkunft. Em que pese o uso de uma retérica anti-historicista em um ou outro de seus textos da década de 1960, Koselleck parece ter evoluido, em sua fase mais madura, para uma posigao francamente conciliatéria a esse respeito. Ele reivindicara para 0 léxico dos conceitos as rubricas de “historicismo sélido” e “historicismo reflexivo”.*° Dono de uma perspicdcia e de uma sensibilidade que ainda hoje nos surpreendem, Sérgio Buarque de Holanda foi, provavelmente, um dos primeiros a se dar conta disso. Nos dltimos parigrafos de seu grande ensaio sobre Leopold von Ranke, publicado em 1974 na Revista de His- téria, cle comenta 0 aparecimento dos dois primeiros volumes dos Geschichtliche Grundbegniffe e conclui que a “notavel vitalidade” ali manifestada era “uma demonstra¢do de como se pode remogar, sem traf-lo, o espirito da ‘escola’ hist6rica alema”’.°* KLEMPERER, Victor. LTT- A linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009; STERNBERGER, Dolf; STORZ, Gerhard; SUSKIND, Wilhelm. Aus dem Werterbuch des Unmenschen. Hamburg: Claassen, 1957; SEIDEL, Eugen; SEIDEL-SLOTTY, Ingeborg, Sprachwandel im Dritten Reich: eine kritische Untersuchung faschistischer Einflisse. Halle: Verlag Sprache und Literatur, 1961 “Wir befleissigen uns eines soliden Historismus”, “reflektierten Historismus”. Citado por DIPPER, Die ‘Geschichtliche Grundbegriffe’, op. cit., p. 290. % HOLANDA, Sérgio Buarque de, O atual eo inatual e Leopold von Ranke. In: HOLANDA, ‘Sérgio Buarque de (Org,) Ranke. So Paulo: Atica, 1979, p. 60. 34 © concerto be His 4 comunicagio sobre o acontecimento, se estendeu para a atividade de comunicar. E se for levado em considera¢do 0 fato de que desde 0 século XII 0 francés “geste” (“chanson de geste”), em alguns casos, passou para o objeto da cangio (“geste” = “familia”, “povo”, etc), entio também a identificagdo de “historia” deve ser incluida nessa plurali- zac4o, como parte importante do acontecimento a ser comunicado. Com certeza, nao constitui acaso o fato de que também desde o século XII novamente se passou a questionar com muito mais énfase o contetido de verdade da comunicacao. Os conceitos de “historia”, “ fabula”’, “vita”, “chronique”, “conte” ou “roman” podiam significar a mesma coisa, no sentido de um simples relato. Mas no século XIII, a expressao “geste” foi sendo desclassificada como relato com fins de entretenimento. A pretensao de apresentar afir- mages coerentes com a verdade foi se restringindo ao conceito “estoire” ou “histoire”, uma evolugdo que naturalmente s6 chegou a um desfecho depois do século XV. O retorno 4 restrigdo tipica da Antiguidade tardia do significado da palavra “historia” partiu, portanto, da escrita da Histéria em sentido mais restrito. 2. Aescrita da Histéria, sua classificagao eo horizonte em que ela é experimentada a) As “categorias”. O quadro das categorias da bibliografia historiografica que possuimos da Idade Média parece estabelecida de forma inabalavel. “Crénica”, “annales”, “vita”, “‘gesta”, “historia popular” e “poesia histérica” constituem hoje em dia conceitos bem definidos da ciéncia do ramo.”* A crénica, escrita por um tnico autor, em geral conhecido pelo nome, ¢ destinada a um pablico amplo, tentava abarcar uma matéria histérica abrangente, desde o inicio até o momento em que se escrevia, a partir de uma ideia mestra. Dentro desse quadro geral, existem possibilidades de diferenciagao. Eusébio (ca. 265 a % CE. 0 quadro geral de GRUNDMANN, Herbert. Geschichtsschreibung im Mittelalter. In STAMMLER, Wolfgang (Ed). Deutsche Philologie im Aufiiss (vol. 3). 2. Aufl., Berlim, 1962, p. 2221 e segs. (edi¢io revisada: Gottingen, 1965) 66 ‘Compreensio D0 cONCHTO Na InADE MEDIA 339) e Jerénimo (ca. 347 a 419/20) desenvolveram, dentro da crénica universal, o tipo da “series temporum”, que encarava como sua tarefa mais digna a de colocar todas as noticias numa relagio temporal. E de Orésio (falecido em 418) 0 estilo “mare historicum”, o qual, recorrendo ao maior volume possivel de matéria, parece ter tido como tinico objetivo o entretenimento. E 0 terceiro tipo é a “imago mundi”, desenvolvido por Isidoro de Sevilha, de forma consciente, que entendia a Histéria como apenas uma parte da realidade total; essa inten¢io fica muito clara na tripartigao de “speculum historiale”, “speculum naturale” e “speculum doctrinale”, que Vicente de Beauvais (1184/94 a ca. 1264) deu a sua obra.” Enquanto a perspectiva histérico-universal se estreitava, foi possivel que analogamente surgissem Crénicas de objetos parciais, como a de Cassiodoro (ca. 485 a depois de 580), com sua Histéria popular sobre os godos (origo gentis), a crdnica de cidades, de ordens teligiosas, etc. Sob alguns aspectos, como imagem invertida em relagio a isso, esté a annalistica. Em geral, redigida por varios autores nao conhecidos nem prevista para uma difusio mais ampla, a propria constru¢ao esquemitica, classificada por anos, registrava somente noticias contemporaneas e jamais recuava até as origens, faltando- Ihe necessariamente uma ideia mestra que a perpassasse. Nas teorias antigas, a biografia no est incluida na historio- grafia, mas independentemente disso foi se infiltrando nas formas de representagio da escrita da Histéria, desde Plutarco e Sueténio, sob a forma de uma sequéncia de biografias de governantes. A deficiente fundamentacao teérica e a exigéncia amplamente aceita do autor da Vita Sancti Martini, Sulpicio Severo (ca. 363 a ca. 420), de que somente a vida de um santo poderia ser descrita, porque somente seu exemplo direcionaria o olhar do leitor para o além,!” Vicente de Beauvais, citado por BRINKEN, Anna Dorothee von den. Die lateinische Weltchronistik. In: RANDA, Alexander (Ed). Mensch und Weligeschichte. Zur Geschichte der Universalgeschichtsschreibung. Salzburgo/Munique, 1969, p. 57; cf. BRINKEN, Anna Dorothee von den, Studien zur latenischen Weltchronisiebis in das Zeitalter Ottos von Freising. Diisseldorf, 1957. * SEVERUS, Sulpicius. Vite Sancti Martini, 1, 1; além disso, 0 extenso comentario de Jacques Fontaine, em sua edicio bilingue Sulpice Sévere, Vie de Saint Martin (t. 1). Paris, 1967, em especial p. 72 € segs. 67 © concerto ve Him impediu que na Idade Média ocorresse um desenvolvimento linear da abordagem corrente. Biografias de governantes sao impressionan- temente raras na Idade Média." E a rica bibliografia hagiografica nio visava em geral apresentar uma histéria pessoal no sentido de mostrar o desenrolar de ages ou de movimentos (por exemplo, porque essa forma de representagao fosse totalmente desconhecida) — ela procurava justamente mostrar, através de todas as agdes do santo, sua vocagio 4 santidade desde o principio. Mesmo assim, houve séries de minibiografias. Sua designacao de “esta” — derivada de “res gesta” ~ indica a intengao de registrar acontecimentos. As “agGes” relatadas concentram-se, porém, sobre pessoas que ocupam cargos, cuja sucessao, através de varias gera~ ges, mostra a interconexdo de instituicdes no longo prazo. Dois aspectos podem ser destacados: ou a enumeragio de determinadas caracteristicas da agio dos detentores de cargos — repetida como se fosse um catélogo — destaca os aspectos estaticos de uma instituicao juridicamente normatizada, o que muitas vezes se d4 através da insergao de documentos legais, em citagio verbal; ou entao, a massa de acontecimentos diferenciados destaca a eficacia das agdes desses detentores de cargos, cuja ago passa, assim, a corporificar a importancia da propria instituigéo. Ambos os casos nao excluem a possibilidade de que a descri¢ao fique cada vez mais detalhada, 4 medida que se aproxima da atualidade do autor, desembocando, no final, numa ampla biografia. © que ha de comum entre a postica de cangées populares, cuja perspectiva cronol6gica, tanto para ouvintes quanto para apresentadores, * Cf, BEUMANN, Helmut. Die Historiographie als Quelle fiir die Ideengeschichte des Kénigtums. Historische Zeitschrift, n. 180, 1955, p. 456 e segs. reimpresso em BEUMANN, Helmut. Ideengeschichliche Studien 2u Einkard und anderen Geschichtschreibem des fridheren ‘Mittelalters. 2. Aufl, Darmstadt, 1969, p. 47 e segs. Sua opiniio de que as biografias de _governantes influenciadas pela Histéria dos saxdes de Widukind von Corvey mostrariam no geral uma concepcio de Histéria profana latente, precisaria ser confrontada com a pergunta por que biografias de governantes s6 foram escritas quando as estruturas de dominagio se tornavam instiveis, ¢ se na visio, muitas vezes, conscientemente “profanada” nio estamos diante de uma adaptacio do autor 4 ainda pouco desenvolvida concepgao crist’ da nobreza, '™ Seria possivel pensar aqui em partes posteriores do Liber Pontfialis - cf. ENGELS, Odilo, Kardinal Boso als Geschichtsschreiber, In: Papst und Konzil. Festschrift fir Hermann Tiichle, Munique, 1975 ~ ou na Historia Compostellana. 68 (Coweneensio 00 cONcETO Na IDADE MEDIA se perdia nas profundezas do tempo, e a escrita latina da Historia € unicamente a rima; ela surgiu da necessidade de enriquecer as keituras escolares, dedicando-se preferencialmente a uma pessoa ou a um episédio, com tendéncias ao exagero panegirico, o qual podia ser utilizado para fins propagandisticos. As caracteristicas diferenciais dessas classificagdes em categorias se localizam em variados niveis e s6 foram descobertas pela pesquisa através da fenomenologia, no século XIX. Aquilo que se entende por “crénica” foi sendo estabelecido a partir da intengdo daquele que escreveu a Histéria e a partir do objeto; a “vita” sé é compreensivel a partir da pessoa descrita, enquanto a caracteristica mais destacada dos “annales” ¢ da “‘gesta” parece ser o principio classificatério que se orienta na sucesso anual ou na sucessio do cargo. Diante dos muitos espacos de transigao na realidade historiografica, essas caracteristicas estruturais, porém, parecem se referir apenas a tipificagdes estabeleci- das post festum. Ja naquilo que tange ao conceito dos “annales”, nao se pode ignorar o fato de que Semprénio Asélio, na sua caracteriza¢io, empregou critérios bem diferentes dos da linguagem cientifica atual. Por isso, é incontorndvel apresentar as afirmagGes dos préprios autores que escreveram Histéria na Idade Média. b) Critérios de classificagao na Idade Média. A antiga distincao entre historia como relato de acontecimentos contem- porineos e annales como a representa¢ao de acontecimentos mais distantes no passado foi rechagada por Isidoro de Sevilha — como j foi dito; mesmo assim, ele se viu obrigado a levar em consideracio © conceito de annales. E que as medidas de tempo em dias, meses € anos corresponderiam ephemerida, kalendaria e annales; o genus historiae apresentaria uma classificagdo tripla." Ele aceitava esse critério de diferenciagao orientado por um principio classificatorio formal, mas aparentemente nfo era fundamental para uma divisio em categorias. A baixa Idade Média seguiu esse padrio, na medida em que as muitas obras de annales, via de regra, nio sio classificadas com esse conceito nos titulos. % ISIDOR, Etymologize, 1, 44. Cf a respeito: FONTAINE, J. Isidore de Séville et la culture dlassique dans U Espagne wisigothique (t. 1). Paris, 1959, p. 180 e segs. 69 derdia wi wh, ‘© concer o€ HistORa Quando Isidoro diz que Salistio escreveu uma historia e que as obras de Livio, Eusébio e Jerénimo se constituiriam de historia e annales, isso nao representava mais que uma concessio a definigdes usuais. E que em outro lugar"™ ele cita a crénica; na traducio latina, ela se chamaria temporum series, a qual teria sido escrita por Eusébio, ¢ Jerénimo a teria traduzido para o latim. Juntar historia ¢ annales numa mesma obra era, portanto, algo novo, frente ao qual a carac- teristica diferenciadora representada pela proximidade cronol6gica em relacio ao autor perdia importncia e ia sendo substitufda pelo conceito de crénica. A distingao entre cronistica e annalistica, hoje usual, orientada pelo principio de classificagao, aqui, precisamente no era feita,""> portanto h4 bons motivos para que se possa designar a annalistica, que foi dominante até o final do século XI, como a forma de representagao da Crénica propriamente dita.'° Mesmo assim, a diferenga entre historia e annales nio se perdeu, ¢ isso numa outra perspectiva, que Isidoro nao levou em conside- racio. Cicero!” como uma forma menos pretensiosa de representacao, pelo fato de que se tratava predominantemente de um arrolamento de datas e de nomes. Cassiodoro ja identificava — sem dizé-lo de forma ex- pressa ~a Crénica com a obra dos annales, j4 que ele a define como “imagines historiarum brevissimaeque commemorationes temporum’”? A disting4o inclusive é encontravel na alta Idade Média. Assim, Ger- visio de Canterbury (éculo XIII) apresenta a seguinte polémica: “Cronicus autem annos et principium quae in ipsis eveniunt breviter edocet, e Quintiliano™ haviam caracterizado os annales eventus etiam, portenta vel miracula commemorat. Sunt autem plurimi, qui cronicas vel annales scribentes limites suos excedunt, nam philacteria sua ™ ISIDOR, Etymologiae, 5, 28. 5 LACROIX, Lhistoren au Moyen Age, p. 34 € segs. em contrapartida, mediante recurso aessascitagdes, tenta cristalizar historia, annalesecrénica como astrés categorias propriamente ditas da Idade Média, ‘mas se emaranha em dificuldades evidentes, ao tentar tragar os limites entre Cronica ¢ annales. 4% Encontra-se dessa forma em POOLE, Reginald L. Chronicles and Annals. A brief outline of their origin and growth. Oxford, 1926. \ CICERO, De orator, 2, 12 ‘ QUINTILIAN, 10, 2.7. ™ Cassiodoro. In: MYNORS, R. A. B. (Ed). Insttutiones divinarum et humanarum litteratum. Oxford, 1963, 1, 17, p. 70 (Cowmntesio 00 CONCETO Na lpaDe MEDA dilatare et fimbrias magnificare delectant. Dum enim cronicam compilare aupiunt, historici more incedunt et, quod breviter sermoneque humuli de modo scribendi dicere debuerant, verbis ampullosis aggravare conantur”."® ‘Ja que sio muitas— como escreve Gervisio —, se deveria pensar aqui num fendémeno de decadéncia, que tenderia a eliminar a forma de representagdo mais compactada ou a mais ampla como sendo as verdadeiras caracteristicas distintivas entre Crénica/annales ¢ historia. Naquilo que tange 4 massa da matéria e simplesmente por causa do espaco temporal abordado, Oto de Fresing (ca. 1112 a 1158) teve de fazer uma restrigdo maior na sua Crénica mundial que em sua Gesta Friderici Imperatoris, porém, em relagio ao estilo nao se observam diferencas significativas. Se, apesar disso, a Crénica mundial leva o titulo original “historia” e a Gesta o titulo “Cronica”,'"' isso aparentemente ocorre em razio das diferencas no espaco tempo- ral abrangido. A caracterizagio da abordagem mais ampla como historia permaneceu, mas se deslocou — e isso ndo apenas em Otao de Freising — de critérios internos para caracteristicas externas. O genus historiae triddico citado por Isidoro também nio era desconhecido na alta [dade Média. Roberto de Torigni (= de Mont-Saint-Michel, final do século XII) observa, no prélogo de sua crénica sobre Sigisberto de Gembloux, seu modelo: “de ducibus Normanorum nihil aut param dicit. Narn tamen hoc fecit negligenter, sed quia carebat his tribus historiis”."" Teria sido costume da época apresentar a Historia dos duques normandos conforme sua sucessio no cargo. A. partir da antiga teoria do principio de classifica¢io, aquilo que nés hoje costumamos designar com o conceito de “‘gesta” ainda no havia sido incorporado; por isso, Roberto desculpa a falha de seu modelo. Esse exemplo clareia duas coisas, tendo por base as observagdes precedentes. A teoria da Antiguidade nio foi adaptada as transfor- macées entrementes ocorridas, procurando-se, pelo contrario, com evidente esforco frustrado, enquadrar a realidade historiogrifica nas © Gervisio de Canterbury, na Chronica maior (Prologus). In: STUBBS, Williams (Ed.). The historical works (vol. 1), Londres, s. d. [1879]: reimpresso, sem indicagao de lugar, em 1965, p. 87 ¢ seg. Franz-Josef Schmale, em sua introdugio a Bischof Otto von Freising, und Rahewin, Die Taten Friedrichs, Darmstadt, 1965, p. 75 e seg. (traduzido por Adolf Schmidt) " Roberto de Torigni. In: DESLISLE, Léopold (Ed.). Chronica (Prologus) (t. 1). Rouen, 1872, p. 94. fa. ee i O concerto oe Hisiomu normas transmitidas, Isidoro ja tinha aplicado 0 conceito “annales” a. um elemento de classificagao e de categorizacio, sem sinaliz4-lo, e em Roberto de Torigni vemos os trés elementos basicos buscados numa medida de tempo (dia, més, ano) sumariamente designados por “historiae”. Naquilo que tange ao assunto, se fazia uma distingdo clara entre principios de classificacdo e de categoria, mas o mesmo niio se fazia na escolha das palavras, com que se teria achado outra expli- cagdo para a tentativa da moderna pesquisa hist6rica de determinar diferengas de categoria, ao menos em parte, a partir da classificagao. ©) Formas de experiéncia e capacidades de formatacao. Antes que se conclua, de forma apressada, que a continuidade pre- domina desde a Antiguidade tardia até a alta Idade Média, deve-se dar uma olhada na experiéncia da historiografia medieval] sob 0 aspecto de sua riqueza, naquilo que tange 4s suas formas histéricas, incluindo suas principais raizes. A escrita da Histéria pag da Antiguidade nao pensava de forma ciclica, mas sim linear;''> com isso, a introdug4o de um telos cristéo no significou nenhuma ruptura total com a historiografia anterior." Aquilo que a crénica mundial de Eusébio/Jerénimo, preocupada com estrutura ordenada de dados, ainda nao conseguiu fazer, Orésio, 0 discipulo de Agostinho, conseguiu.'> Nos sete livros de sua “‘Historiae adversus paganos”, desvinculou do rei assirio Ninus, 0 fundador de Ninive, 0 inicio de toda e qualquer histéria palpavel, que tinha sido descoberto a partir do grande império da Antiguidade tardia e, como primeiro, comegou sua representaco com 0 relato biblico da criagio. Mas ele nao conseguiu romper de todo com a visio de que o império romano constituiu o apice, e com a consequente irrepetibilidade do império mundial romano ou com a invertibilidade da orientac4o histérica que existiu até entao; ele simplesmente identificou a pax Augusta com uma pax christiana, +8 CE VITTINGHOFF, Zum geschichtlichen Selbstverstindnis... (ef, nota 49). 1 MOMIGLIANO, Arnaldo, Let del trapasso fra storiografia antica ¢ storiografia medievale (620-550). In: La storiografia altomedievate (vol. 1). Spoleto, 1970, p. 89 e segs. SCHONDORF, Kurt A. Die Geschichtstheologie des Orosius. Munique, 1952 (tese de doutorado); LACROIX, Benoit. Orose et ses idées. Montreal/Paris, 1965; MARROU, Henri Irénée, Saint Augustin, Orose et l’Augustinisme historique. In: Storiggrafia (vol. 1), p. 59 e segs fg. Coowentensio 00 CONCETO NA IDADE MED mantendo-se apegado a congruéncia de império e religiao, ja que aexpansio da salvacio, segundo o plano da providéncia divina, s6 poderia ser garantida pelo quarto grande império. Somente no imaginario de Isidoro de Sevilha, o império uni- versal romano encolheu a um regnum ao lado de outros regna, dando lugar 4 ecclesia como tinica unidade que abrangia todos os povos.'6 Como consequéncia, ele retomou — no lugar de uma sequéncia de quatro impérios mundiais — 0 principio classificatério que havia sido concebido por Agostinho com “aetafes”, entendendo-as no sentido de um amadurecimento do corpo da humanidade como etapas da idade do mundo.” Também ainda na Antiguidade tardia surgiram listas de pa- pas, em analogia aos antigos fasti consulares, que iam se ampliando com 0 acréscimo de dados biograficos, transformando-se no Liber pontificalis.* Da perspectiva das formas histéricas, esse protétipo da gesta possui a mesma raiz da annalistica antiga, naquilo que tange ao objeto, pois representou a continuidade das antigas biografias de im- peradores, mas, por causa da forma constante em relagio aos dados a serem registrados, se entendia como uma histéria institucional oficial. Com isso, todos os principios de classifica¢o adotados depois estavam configurados: a sucesso de quatro impérios ou monarquias mundiais ou de fases etarias do mundo, 0 esquema annalistico subjacente 4s eras do mundo e a lista de sucessio dos detentores de cargos. Mesmo assim, nem todos tiveram continuidade ébvia na Idade Média. Beda (672/73-735)"? conhecia as Crénicas de Jernimo e de Isidoro, e utilizou a divisio em fases da idade da terra. Mas nio ' ROMERO, José Luis. San Isidoro de Sevilla. Su pensamiento histérico-politico y sus elaciones con la historia visigoda. Cuademas de Historia de Espafta, n. 8, 1947, p. 51 e segs. 7 Mais do que na Crénica de Isidoro, esse sentido fica claro nas suas Etymologiae, como mostrou ‘Arno Borst em “Das Bild der Geschichte in der Enzyklopidie Isidors von Sevilla” (Deutsches Archiv, n, 22 1966, p. 21 e segs). ™ BERTOLINI, Ottorino. Il “Liber Pontificalis”, In: Storiografia, vol. 1, p. 387 © segs.: MELVILLE, Gert. “.. De gestis sive statutis romanorum pontificum...”. Rechtssitze in Papstgeschichtswerken. Archivum Historiae Pontifiiae, n. 9, 1971, p. 377 e segs, ™ Entre os melhores, continua estando LEVISON, Wilhelm. Bede as historian. In: THOMPSON, ‘A. Hamilton (ed). Bee his if, times and writings Essays in commemoration of the twelfth centenary of his death. Oxford, 1935, p. 111 e segs. (Reimpresso com ampliaydes em LEVISON, W. Aus theinischer und frinkischer Friihzeit. In: Ausgewihlte Aufatze. Disseldorf, 1948, p. 347 ¢ segs.). re (© concerto oe Histowa foi ela que teve influéncia duradoura no continente, mas sim seu cdlculo das datas da pdscoa, até o ano de 1063. A annalistica que predominou na escrita da Histéria carolingia se desenvolveu a partir de uma necessidade pratica: tabelas com as datas das pascoas ofereciam oportunidade para registrar, nas margens, acontecimentos importantes do ano corrente, um costume que foi se autonomi- zando e ampliando. Aqui a cronologia melhorada de Beda oferecia uma ajuda bem-vinda. Seria possivel argumentar que, com isso, a partir de Beda, também estava estabelecida uma ligagdo da anna- listica carolingia com Eusébio/Jerénimo. Na verdade, porém, essa ligagdo foi muito secundéria, pois, apesar de seu formato igual ao do antigo precursor, a annalistica medieval tinha suas proprias ra- izes. E nao se pode excluir a possibilidade de que Paulo Didcono (720/24-799?) tenha utilizado a lista de governantes langobardos que precede ao Edito de Rothari — mais uma vez, uma fonte nao buscada na Antiguidade tardia — como modelo para o esquema de classificag¢ao determinado pela sucessio nos cargos, para sua Gesta episcoporum Mettesium.2° De qualquer forma, a crescente soma de possibilidades de for- mulagio se reduziu aos dois principios classificatérios, o do registro anual ¢ o da lista de sucessio, os quais no inicio foram os tinicos a sobreviver; ¢ isso se deu as custas do horizonte histérico-mundial. A crénica de Orésio serviu de base tanto para a Historia Romana de Paulo Didcono quanto para a crénica mundial de Freculfo de Lisieux (aproximadamente 825-852/642). Mesmo assim, ambos os autores nao conseguiram fazer muito mais que um simples enfi- leiramento cronolégico de episddios individuais, e ambas as obras terminam com a apresentacio de Justiniano ou de Gregério o Gran- de, isto é, com o colapso total do Império Romano no ocidente. Na impossibilidade de prosseguir com a apresentagio da Historia mundial até a atualidade do autor, reflete-se a dependéncia dos historiadores em relagio a um contexto em que nao mais vigorava SESTAN, Ernesto, La storiografia dell'Italia langobarda: Paolo Diacono. Storiografa, vol. 1, p. 357 e segs. Comprovadamente, Paulo Discono também conhecia o Liber Pontifialis ea Histia eclesistica do povo inglés de Beda; por essa razi0, uma decisio a respeito fica em aberto. 74 ‘Cowentznsio 00 CONCETO NA loane MEDIA uma concep¢io de Histéria determinada pela romanidade. A cré- nica de Regino de Priim (aproximadamente 840-915) jé percebe 0 surgimento dos impérios germanos como uma ruptura decisiva.! Paulo Didcono e Freculfo, porém, também nao eram mais capazes de adotar 0 esquema classificatério de seu modelo ou de estabelecer outra classificagdo para o material histérico-mundial, que fosse mais adequada ao tema. A Vita Karoli Magni, de Einhard (aproximadamente 770-840), comprova que a razio para isso nao estava na perda demasiada de conhecimentos sobre a educagio antiga.'”? Chama a ateng3o que o tipo de vida de santo, muito realista, que os missiondrios anglo-saxdes haviam difundido no continente, pdde se manter ao lado da “vita”, que recorria ao postulado de Sulpicio Severo e tipologizada para fins litargicos'”, até que na alta Idade Média (com a excegio da Austria) também aquela annalistica que nao se misturara com outros elementos de classificagdo novamente desaparecesse. Nessa medida, est4 correto enxergar na escrita carolingia da Histéria uma nova abordagem, a qual evidentemente nfo evoluiu para uma configuracio mais ampla. Tanto a vita quanto a annalistica nao foram capazes de produzir, na alta Antiguidade, uma imagem realista da vida, ou algo mais que uma simples montagem de dados; mas eram exatamente elas que pareciam apropriadas para isso. Aqui parece ter se manifestado o efeito da forma desenvolvida de raiz propria, originalmente ima- ginada para o registro daquilo que tinha a ver com a atualidade. Somente a partir do final do século XI, se foi retornando gradativamente 4 redagao de crénicas mundiais mais elaboradas. Isso nao se devia apenas 4 leitura de autores antigos, mas também as novas experiéncias. No contexto da querela das investiduras, se "1 LOWE, Heinz, Regino von Priim und das historische Weltbild der Karolingerzeit. Rheinische Vierteljahresblatter, n, 17, 1952, p. 151 € segs, em especial p. 173 e segs. (Nova impressio in: LAMMERS, Walther [ed.]. Geschichtsdenken und Geschichtsbild im Mittelalter. Darmstadt, 1965, p. 91 e segs., em especial p. 125 e segs) "2 HELLMANN, Siegmund. Einhards literarische Stellung. Historische Vierteljahreschrft, n. 27, 1932, p. 40 e segs. (Nova impressio em BEUMANN, Helmut. Ausgewithlte Abhandlungen 2ur Historiographie des Mittelalters. Darmstadt, 1961, p. 159 e segs); BEUMANN, Helmut. Topos und Gedankengefiige bei Einhard. Archiv flr Kulturgeschchte, n. 33, 1951, p. 337 e segs. "> Cf. abibliografia em GRUNDMANN, Geschichtsschreibung, p. 2252, sobre o § 6 (nota 98). = © concerto be Histon reavivou a concep¢do das duas poténcias supremas, na forma da doutrina das duas irmas, construindo, assim, uma ponte em relago 4 Antiguidade tardia.4 Era sobretudo 0 ocidente que negava a fungdo histérico-mundial central de um império que se estende- ria da Antiguidade até a atualidade, como contrapolo legitimo ao sacerdotium, mas também ele encontrava no papado um referencial geral como sendo o apice integralmente realizado da ecclesia.'* Ao mesmo tempo, novos objetos que enriqueciam a visio dos histo- riadores movimentaram a escrita da Histéria, no século XII,!”* despertando a atengio do historiégrafo para novos temas, como cruzadas, familias nobres, territérios de principes ou cidade.”” O numero de classificagdes conhecidas no aumentou com isso; continuava-se a utilizar listas de sucessdo e registros anuais, mas agora numa mistura crescente, e também a sequéncia de monarquias mundiais teve nova aceitagio, através do estabelecimento de uma ponte com a Antiguidade. No final, o principio peculiar da gesta acabou dominando; na alta Idade Média, as Martinianas utilizadas pelos dominicanos — de acordo com o modelo de Martinho de Troppau — mantiveram uma classifica¢o dos materiais referentes 4 Histéria mundial, através de listas de sucesso sincronicamente enfileiradas de imperadores e papas, enquanto as Flores temporum, © império alemio aparece, pela primeira vez, de forma clara, como continuidade do império mundial romano em Frutolfo de Michelsberg. Uma ajuda muito importante que o orientow na redagio foi buscada na Crénica de Jerénimo, Mas o esquema annalistice se mostrou frigil, em pontos nodais; cf. SCHMALE, Franz-Josef, e SCHMALE-OTT, Irene. Fratolfs und Ekkehards Chroniken und die anonyme Kaiserchronik. Darmstadt, 1972, p. 8 e segs (introducao). Juntamente com Lamberto de Hersfeld, Frutolfo faz parte do periodo de transigao em que se procura substituir o principio annalistico em favor de interconexdes mais abrangentes. "5 Hugo de Fleury foi o primeiro a escrever uma Historia ecdesiastica, Joao de Salisbury foi 0 primeiro a identificar a hist6ria da igreja com a hist6ria dos papas; ef. ZIMMERMANN, Harald. Ecclesia als Objekt der Historiographie. Studien zur Kirchengeschichesschreibung im Mittelalter und in der frtihen Neuzeit. In: Sitzungsbericht der Ostereichischen Akademie der Wissenschaften, philosophisch-historsche Klasse, 235/4. Viena, 1960; JEDIN, Hubert. Handbuch der Kirchengeschichte (vol. 1). Freiburgo, 1963, p. 28 e seg. © SPORL, Johannes. Wandel des Welt- und Geschichtsbildesim 12, Jahrhundert? Zur Kennzeichnung der hochmittelaterlichen Historiographie. In: RUDINGER,, Catl (ed. Unser Geschichesbild (wo. 1). Munique, 1955, p. 99 segs. (reeditado em LAMMERS, Geschichsdenken..p. 278 e segs). © Cf, PATZE, Hans. Adel und Stifterchronik. Frithformen territorialer Geschichtsschreibung im hochmittelalterlichen Reich. Blatter fiir Deutsche Landesgeschichte, n. 100, 1964, p. 8 € segs.; ibid., n. 101, 1965, p. 67 € segs. 76 CConentensio 00 concETO NA IDADE MEDIA continuadas pelos franciscanos, se contentavam com a sequéncia €m que os papas exerceram seus cargos. d) Doutrina da representago. Sob a influéncia de uma pres- sao cada vez maior da experiéncia hist6rica, no decorrer do século XII, a discuss4o teérico-cientifica foi reavivada. Nao é necessdrio explicar que a teoria da Antiguidade tardia, desde o inicio, fez parte dessa discussio. A discussdo se concentrava sobretudo na pergunta a respeito de como o material com informacées histéricas deveria ser trabalhado em cada caso. Como parte da Retérica, a historia também era narratio de acontecimentos do passado,'* o historiographus exercia um officium narrationis, cujo produto era visto como um opus narrationis..? Tanto no século VII quanto no século XII, a historia, invocando seu altis- simo grau de veracidade, comecou a se distanciar da fabula (“neque verum neque verisimile”), do argumentum (“non verum sed verisimile”) € da poesia! Mas — € esse aspecto parece ter se transformado num problema de dificil solugao — “gesta ... temporum infinita pene sunt”, por isso uma selegdo do material a ser incluido na narratio se tornou incontorndvel.° Somente foi levado em consideragio aquilo que seria in “rebus magnis memoriaque dignis” Na visio de Hugo de Sao Vitor (falecido em 1141), ainda eram esquematicamente trés fatores: a pessoa que era dominante no acontecimento, o lugar do acontecimento, e 0 tempo que envolvia 0 acontecimento."** No século XIV, em contrapartida, j4 eram citadas sete famosa actionum ©" ISIDOR, Etymologiae, 1, 41; BEAUVAIS, Vinzenz von. Speculum docrinale, 3, 127, © LACROIX, Lhistorien an Moyen Age, p. 15 « seg. ™ ISIDOR, Etymologiae, 1, 44; cf. SALISBURY, Johannes von. Policraticus, 2, 19; Ranulf Higden. In: BABINGTON (Ed), Polychronicon, 2, 18. © Hugo de Sio Vitor. In: GREEN, William M. (ed,). De tribus maxims circunstantiis gestorum. Speculum, n. 18, 1943, p. 491 © Otio de Freising, na carta a Rainald von Dassel por ocasiio do envio de sua Crénica ao imperador Frederico I: “Scitis enim, quod omnis doctrina in duobus consstit, in fuga et electione, ipsa est, uae secundum suam disciplinam docet eligere ea, quae conveniunt proposito, ef fugere, quae impediunt propositum ... Sic et chronographorum facultas habet, quae purgando fugiat, quae instruendo cligat; fugit enim mendaca, eligit veritatem”. Chronik (ef. nota 90). In: Monumenta Germaniae ~ Seriptores rerum Germanicarum in usum scholarium (vol. 45). p. 4 e seg. Cf. também Wilhelm von Malmesbury. In: STUBBS (ed), Gesta regum Anglorum, 5, 445, © CICERO, De oratore, 2, 63. © CE nota 131 ae O concerto ne Hsiéna genera das respectivas figuras estamentais.** Enumeracées desse tipo'** decorriam da tentativa de corresponder entrementes 4 am- plitude crescente do material a ser utilizado e de sistematizar 0 instrumental do historiador. Poder-se-ia pensar que uma descricio estilisticamente des- pretensiosa teria sido suficiente para apresentar fatos do passado através de afirmagées nio falsificadas. Mas como parte da Retérica, a historia se sentia comprometida com a virtus bene scribendi; conse- quentemente, o historiégrafo deveria se esforcar para conquistar a benevoléncia do leitor em relagio 4 matéria, através da arte da fala. Por essa razao, ele costuma envolver 0 antincio da matéria em figuras de linguagem trdpicas; a metafora no titulo do livro ja deveria indicar aquilo que normalmente era explicado no exordio."” Também nesse ambito, o problema da escolha do material era leva- do em conta. De forma alguma, era nova a atividade de expressar metaforicamente a dedicacao que visava a juntar numa coroa de flores aquilo que originalmente estava disperso,'* e apresent4-lo como um todo novo," isto é, escolher elementos individuais de uma infinidade desordenada e, com a ajuda desse reducionismo, chegar a um quadro racionalmente construido; mas nao constitui acaso que isso aconteceu, pela primeira vez, na passagem para o ‘8 Ranulf Higden. In: BABINGTON (Ed), Polychronicon, 1, 4 (cf. nota 94); (vol. 1) p. 34): “.. nota quod septem leguntur personae, quorum gesta cebrus in histoiis momerantur, videlicet principis in regno, mils i bello iudics in foro, prasulis in cleo, politic in populo, oeconomici in domo, monastic in templo, A isso correspondem septem famosa actionuum genera, quae sunt constructiones urbium, devictiones sium, sanctionesiurium, corectiones criminum, composito rei populavis, dispostio re familars, adquisitio ‘merit salutars,et in his jugiterrelucent praemiationes proborums et punitiones perversorum”. CE a esse respeito a coletinea de comprovantes em LACROIX, L’historien au Moyen Age, p. 16 e segs. BRINKMANN, Henning. Der Prolog im Mittelalter als literarische Erscheinung. Bau und Aussage. Wirkendes Wort, n. 14, 1964, p. 1 e segs; of. em especial sobre a questio dos topoi: SIMON, Gertrud. Untersuchung zur Topik der Widmungsbriefe mittelalterlicher Geschichtsschreiber bis zum Ende des 12. Jahrhunderts. Archiv fr Diplomatit, n. 4, 1958, p. 52. segs. ibid., n. 5/6, 1959/60, p. 73 ¢ segs. * O rei Atalarico, numa carta de 535 a0 senado romano sobre a Hist6ria dos godos de Cassiodoro, formulada pelo proprio Cassiodoro: “Origine Gothicam historiam fecit esse Romana, colligens as in unanscoronam germen floridur, quod per librorum campos passim fuerat ante dispersum”. Variae, 9, 25, 5. In: Monumenta Germaniae histriae — Auctores antiqussimi (vol. 12), 1894, p. 292. §™ ISIDOR, Etymologiae, 1, 41, 2: “Series autem dicta per translationem a sertis florum invicem comprehensorum”. Cf. também BREMEN, Adam von. Gesta Hammaburgensis ecclesiae ontificum, (Prolog). In: Monumenta Germaniae~ Scriptores rerum Germanicarum in usumn solarium (vol. 2). 3 ed., 1917, p. 3: “fateor titi, quibus ex pratis defloravi hoc sertum” 78 ‘Comensensho 00 conceTo NA loADe Méou século XII, no titulo (Liber floridus) da coletanea de excertos de Lamberto de Sio Omer.’ A quantidade crescente desses novos ttulos de livros nio tem nada a ver com uma multiplicagao de categorias historiograficas, mas eles denotam uma reflexio mais imtensa sobre o proprio trabalho histérico.™! Daqui se pode estabelecer mais uma vez uma ponte para a historia vocabular. O século XII aparece como um momento de inflex4o em varios niveis. O campo histérico ampliado do historia- dor comegou a focar novamente, com mais atencio, o passado mais temoto, relativizando, assim, a proximidade em relacio 4 atuali- dade que predominava desde os séculos VII/IX. Os limites pouco dlaros existentes desde o século VIII entre “res gestae” e “historia” comecaram a se clarear; 0 destaque se deslocou do acontecimento num sentido pouco diferenciado para um relato com uma clara teivindicagio de ser verdadeiro. Para isso, se reservou a palavra “historia”, aquilo que no conseguia responder a essa exigéncia comecou a se separar sob outro nome. Os esforcos de, enquanto isso, conseguir estabelecer uma vinculagdo com a discussio teérica da alta Antiguidade fizeram com que fosse dada maior atengio 4 utilizacdo das matérias disponiveis. Foi retomada a ideia de redigir 0 relato de maneira artistica e atraente para 0 leitor. Naquilo que tange 4 classificacao da matéria e 4 divisio em categorias historio- graficas, a vinculagio nao foi bem-sucedida. E verdade que, sob a impressio da crescente multiplicidade de objetos a serem levados em consideracao, foram feitas reiteradas tentativas de diferenciagao e de sistematizag4o, mas aparentemente nio foi possivel compreender como constituindo algo novo os principios estruturais que ainda eram desconhecidos 4 Antiguidade tardia ou sobre as quais nao se refletira na época para inclui-los de forma profunda na discussio. “© MELVILLE, Gert. “Zur Flores-Metaphorik" in der mittelalterlichen Geschichtsschreibung, Ausdruck eines Formungsprinzips. Historisches Jahrbuch, n. 90, 1970, p. 65 ¢ segs, resumido em p. 77 e segs. "Os novos titulos de livros sio, por exemplo: Margarita Decreti (Martinho de Troppau), Flores historiarum (Rogério de Wendover), Eulogium historiarum (Annimo de Malmesbury), Gemma ccclesiastica (Giraldo Cambrensis), Compilatio de gests (século XV), etc. (citados por MELVILLE, Flores-Metaphorik, p. 65 ¢ seg., 73). 79 O concerto ve Hiroe Sabe-se que a historiografia da alta Idade Média ainda nio foi suficientemente estudada, para que se possam fazer afirmacdes seguras. Por isso, s6 se pode dizer que a impressfio que se tem é que a intensa reflexio que reiniciou na alta Idade Média ficou no meio do caminho, porque nao conseguiu se desvincular suficientemente da autoridade do modelo antigo. 3. Lugar e funsdo da Historie na rede do saber Dentro do antigo trivium, a historia era vista como campo au- xiliar tanto da gramatica quanto da retérica."” A gramatica ensina methodice escrever e falar correto, mas historice também comentar obras antes lidas. O aspecto hist6rico se referia aqui apenas 4 ocu- pa¢ao com a tradicio literéria no sentido mais amplo, néo a uma determinada forma de conhecimento; como o material literario provinha do passado, Agostinho podia chamar o grammaticus de custos historia. Em contrapartida, a retérica tentava avangar em diregao ao bene dicendi, a arte de falar, cuja forca de convencimento deveria ser ampliada. As species narrationis separavam a historia, como relato fiel 4 verdade, de acontecimentos do passado, do argumentum e da fabula. Mas, como 0 objetivo iiltimo da fala era 0 sucesso em termos de efeitos, todas as species narrationes podiam ser empre- gadas, dependendo das necessidades. Diante desse pressuposto, © conhecimento do passado nio ia além dos limites daquilo que era exemplarmente itil; como vitae magistra a Historie se colocou a servico de normas gerais de vida. Método e fungao dos antigos instrumentos educacionais nao se modificaram com a cristianiza¢do, mas a historia nao conseguiu ficar imune frente ao novo objetivo educacional. Se na convicgio de Agostinho era possivel avancar até a verdade eterna através das forcas sensoriais e espirituais de uma pessoa, ent’io também hie- rarquia e posi¢io da Historie deveriam mudar. Entre as doctrinae dos “© Cf, sobretudo, BOHM, Der wissenschafilliche Ort der Historia (cf. nota 94), p. 675 e segs. com abundante bibliografia, ibid, p. 692 e seg. AUGUSTINUS. De musica, 2,1 80 v A configuragéio do moderno conceito de Historia Reinhart Koselleck 1. O percurso histérico do termo Quando hoje se fala de “Historia”, estamos diante de uma ex- pressiio cujo significado e cujo contetido sé se consolidou no tiltimo terco do século XVIII. “A Histéria” é um conceito moderno que ~apesar de resultar da evolugdo continuada de antigos significados da palavra -, na pritica, corresponde a uma configuragio nova. Naquilo que tange 4 Histéria do termo, 0 conceito se cristaliza a partir de dois processos de longa durago, que no final vio confluir ¢, assim, desbravar um campo de experiéncia que antes ndo podia ser formulado. Por um lado, trata-se da criago do coletivo sin- gular, que retine a soma das histérias individuais em um conceito comum, Por outro lado, trata-se da fusio de “Histéria” (como conjunto de acontecimentos) e “Historie” (como conhecimento, narrativa e ciéncia histéricos). a) O surgimento do singular coletivo. A configuragio fe- minina no alemio antigo “gisciht” e no alemao medieval “geschiht” (ao lado de “sciht” ou “schiht”) deriva do alemio arcaico “‘scehan”, verbo que deu origem a “geschehen” [acontecer] e significa “acon- tecimento, acaso, processo”; no alemio medieval, significa ainda: “aquilo que faz parte de uma coisa, caracteristica, modo” [Weise], e, de forma mais geral: “esséncia [Wesen], coisa”; e ainda, sobretu- do no alem4o do inicio da Era Moderna: “acontecimento, coisa” [Sache], mas também “aquilo que acontece a partir de alguém, ato, obra”, além disso: “uma sequéncia de acontecimentos, acaso, 119 TT © concerto oe Histon, designio”; e, finalmente, no alemao do inicio da Era Moderna, como “‘historie”: “narrativa daquilo que aconteceu”. Com isso, foi se definindo gradativamente o Ambito humano do fazer e do padecer; a expressio podia substituir pragmata, res gestae, gesta, facta, accidens, casus, eventus, fortuna, e outros equivalentes. Em torno do ano 1300, veio se juntar 4 forma neutra “daz geschichte”, que foi se difundindo e ainda constitui a forma usual em Lutero, com os significados de: “acontecimento, classificag’o, ordem”2 A partir dai, “die Geschichte” ["‘a Historia”) (ao lado de “die Geschicht”, e, desde 0 século XV, “die Geschichten” [‘‘as Histérias”]) foi, até pleno século XVIII, uma forma plural, que designava a soma de histérias individuais. “A Hist6ria so” — lé-se em Jablonski,” em. 1748 — “um espelho das virtudes ¢ dos vicios através da qual se pode aprender, a partir da experiéncia alheia, aquilo que se pode fazer ou se deve deixar de fazer; elas sio um monumento tanto das mas agdes quanto das louvaveis”. Da mesma forma, Baumgarten define, em 1744, na velha tradi¢4o°”': “A Hist6ria sao, sem diivida, a parte mais educativa € titil, o mais engracado da erudicao”. E inclusive Herder utilizou, eventualmente, “a Hist6ria” no seu significado aditivo, plural.”” Do ponto de vista gramatical, a velha forma plural “a Historia” podia agora ser lida também como feminino singular. Mas do ponto de vista conceitual, é possivel reconhecer um ato consciente na migracio do vocabulo “a Historia” do plural para o singular. Essa migragio, porém, come¢ou apenas na segunda metade do século XVIII, a partir de um grande namero de escritos histérico-teéricos. E desde entio, é 0 coletivo singular que designa a soma das Histérias individuais como “esséncia de tudo aquilo que aconteceu no mundo” (Grimm).?? 2 GRIMM, vol. 4/1,2, 1897, p. 3857 e segs; of. BENECKE; MULLER; ZARNCKE (vol. 2/2), 1866, p. 115 e segs. = JABLONSKI, 2. ed., vol. 1, 1748, p. 386. 2. Aufl. »* Tradugao da Historie geral do mundo, em alemao por Siegmund Jacob Baumgarten (vol 1), Halle, 1744, p. 59 (Vorrede); ef. GEIGER, Paul E. Das Wort “Geschichte” und seine Zusammensetzung. Freiburg, 1908, p. 16 [tese de doutorado} HERDER. Uber die neuere Deutsche Literatur (1767/68). [n: Samtliche Werke (vol. 1). 1877, p. 262. 2 CE GEIGER, Das Wort “Geschichte”... 9; GRIMM, vol. 4/1,2, p. 3863 e seg; cf HENNIG, Johannes. Die Geschichte des Wortes “Geschichte”. Deutsche Vierteljahresschrift fur Lireraturwissenschaft und Geistesgeschchte, n. 16, 1938, p. SI ¢ segs. 120 ‘A.consGURACKO DO MODERNO CONCETO DE HisTORA Em 1775, Adelung registra os dois empregos paralelos: “A Hist6ria, plural} et nomfinativo] sing[ular]... Aquilo que aconte- ceu, uma coisa acontecida, tanto em sentido mais amplo, qualquer mudanga, tanto ativa quanto passiva, que acontece a uma coisa”. Em sentido “mais restrito e mais usual”, a palavra visa a “diversas mudangas interligadas, as quais, tomadas em conjunto, perfazem um todo... E exatamente nessa compreensio, ela se encontra, muitas vezes, de forma coletiva e sem plural, para varios episddios acon- tecidos, de uma mesma espécie”.” Quando Adelung se deu conta do novo coletivo singular, acabou definindo também sua fungio, qual seja, a de unificar um série de acontecimentos em um todo inter-relacionado. A “Historia” recebeu um significado que ultrapassava os diagnés- ticos e os fatos individuais, como a Historie iluminista gostava de destacar. Assim, em 1765, Carl Friedrich Flégel escreveu uma Geschichte des menschlichen Verstandes [Histéria da razio huma- na], na qual examinava as causas “que a levavam a evoluir e a se aperfeicoar”.””> Em termos modernos, se diria que se tratava de um. esboco antropolégico e social-histérico, que pretendia explicar o surgimento do homem racional. Que tais processos e sua andlise fossem chamados de “Histéria” soou estranho, no inicio. Ainda em 1778, um resenhista criticava: “A palavra ‘Histéria’, que esta na moda, constitui um abuso formal da linguagem, j4 que na obra (de Flégel), no maximo, aparecem narrativas nos exemplos”.2” O significado narrativo ou exemplar da palavra, que fora dominante até entio, e se referia a historias individuais, foi perdendo espaco. © novo slogan expresso pela palavra “Histéria” identificava um grau de abstragio mais clevado, que podia caracterizar unidades sobrepostas de movimento histérico. “A Hist6ria” tinha uma complexidade maior que aquela das hist6rias individuais com que se lidava até entao. O conceito subja~ cente 4 “palavra da moda” pretendia aprender essa complexidade ?" ADELUNG, vol. 2, 1775, p. 600 seg. 8 FLOGEL, Carl Friedrich. Geschichte des menschlichen Verstandes. Breslau, 1765 (Vorrede). 2 Resenha da 3* edicio (1776) da obra citada na nota 275. Allgemeine deutsche Bibliothek, n. 34, 178, p. 473. 121 eee tee teeta eee ieee cetera eee cere teen O concerto oe Histona como uma realidade genuina. Com isso, se explorava uma nova experiéncia de mundo — exatamente a da Histéria. Um indicio seguro para isso sio as varias formas de qualificagio: “Historia em sie para si” [Geschichte an und fiir sich], “Historia em si” [Geschichte an sich}, [a] “propria Historia” [Geschichte selbst], ou “Historia como tal” [Geschichte iiberhaupt]. Até entao, fora impossivel imaginar 0 termo sem um sujeito — “hist6ria” se referia a Carlos Magno, 4 Franga, etc. Nas palavras de Chaldenius: “Os acontecimentos, e, portanto, também a Histéria, sio mudangas. Eles, porém, pressu- pdem um sujeito, uma esséncia duradoura ou uma substancia”.””” Ou entio, uma histéria — como narrativa — visava a um objeto que fazia parte dela. Isso mudou tio logo os historiadores ilumi- nistas comegaram a tentar apreender a “Histéria em si”. A “his- téria em si e para si” podia ser pensada sem um sujeito que lhe fosse atribuido. Comparada com a facticidade das pessoas e dos acontecimentos, a “Histéria em si” constituia um metaconceito. E evidente que, no inicio, essa guinada se referia apenas ao Ambito dos acontecimentos, como Gundling o formulou, em 1734: “A Historie em si mesma, quatenus res gestas complectitur, ndo agu- diza 0 juizo” — 0 que incluiria a légica histérica.7”* Ou, como o expressou Haussen, com a palavra alema: “A Historia em e diante de si é uma série de acontecimentos, ela no possui principios ge- rais, e, por isso, no pode ser encarada como ciéncia”2” Mas nio se ficou imobilizado nessa contraposigao racional de um Ambito de acontecimentos, e 0 trabalho cientifico com eles. A genuina reivindicagdo de uma realidade por parte da Histéria cresceu tio logo ela passou a abranger mais que a soma de todos os fatos — uma acusacio reiterada dos iluministas contra seus antecessores fora a de que estes se haviam restringido 4 enumeragio dos fatos. CHLADENIUS, Johann Martin. Allgemeine Geschicheswissenschaft, worinmen der Grund 2u einer neuen Einsicht in allen Arten der Gelahriheit geleget wird. Leipzig, 1752, p. 11 »* GUNDLING, Nicolaus Hieronymus. Akademischer Discours iber des Freyherm Samuel von Pufendorffs Einleitung 2u der Historie der vornehmsten Reiche utd Staaten. Frankfurt, 1737, p. 2. ®* HAUSEN, Carl Renatus. Rede von der Theorie der Geschichte. In: Vermischte Schriften. Halle, 1766, p. 131 122 ‘A CONPGURAGAO DO MODERNO CONCETO DE HISTOMA “Uma série de acontecimentos é chamada uma Histéria”, define Chaldenius, em 1752.8° Mas “a palavra ‘série’ aqui nao sig- nifica ... apenas uma multiplicidade ou grande ntmero; mas mostra também as relagées entre eles, e mostra que eles formam um con- junto”. Essa visio de conjunto ~ que, em geral, era pragmaticamente interpretado como um emaranhado de causas e efeitos ~ colocou-se num nivel mais elevado que os simples acontecimentos e episddios. “£ a grande Historia” ~ como disse Planck, em 1781 — que, “como uma planta trepadeira, perpassa muitas histérias pequenas”.”*! Para a Histéria do conceito, foi decisivo que a questo dos efeitos nao foi interpretada apenas como uma construgdo racional — sobre isso que trata a proxima segio —, mas que ele tenha sido reconhecido como um campo auténomo, que, na sua complexidade, orienta toda a experiéncia humana. A Histéria sofreu uma alteragao linguistica, que a transformou no seu proprio objeto. Em 1767, Iselin perguntou se nfo teria sido melhor chamar sua Geschichte der Menschheit [Historia da humanidade] de Von dem Geiste der Geschichte [Sobre 0 espirito da Hist6ria]. Segundo ele, esse titulo “nao ficaria mal para expressar mais claramen- te a intengdo e o contetido da obra”.”* Assim, Thomas Abbt fala metaforicamente da “majestade da Histéria”, contra a qual nio se deveria pecar, aplicando-lhe uma interpretagdo. Ou en- tio ele pensa que “a Historia se desenrola continuamente, sem cessar, a partir do ponto de que partiu”, e que ela, como um corpo da natureza, possui causas e consequéncias ordenadas, possuindo, por isso, sua propria “velocidade”.*® Em analogia com 0 “teatro do mundo”, Hausen podia falar agora também do “teatro da Histéria”, que teria influéncia sobre os coragdes humanos.** E, quatro anos depois, em 1774, Herder, “em meio 2 CHLADENIUS, Allgemeine Geschichtswissenschaft...p. 7. 2" [PLANCK, Gottlieb Jakob]. Geschichte der Entstehung, der Verinderungen und der Bildung unseres ‘protestantischen Lehrbegrff (vol. 1). Leipzig, 1781, p. IV. 28 ISELIN, Isaak. Tagebuch [Didrio}, em 1° de marco de 1767, citado por HOF, Ultich Im. Isaak Iselin und die Deutsche Spataufklanung. Bern/Munique, 1967, p. 90. 2 ABBT, Thomas. Brief, die neuesteLitteratur beteffend, 12. 1762, p, 259, 196 (carta); ABBT, Thomas. ‘Vom Vortrag der Geschichte. In: Vermiscte Werke (vol 6). Frankfurt/Leipzig, 1783, p. 124 eseg. 2 HAUSEN, C. R. Von dem Einfluss der Geschichte auf das menschliche Herz, Halle, 1770, p. 8. 123 O concerto be Histonia a uma crise estranha do espirito humano” — na qual se estaria —, propés “procurar 0 sumo e o cerne de toda Histéria”.*° Uma vez descoberta a Histéria como auténoma e autoativa, ela passa a classificar sua propria representagio: “A classificacao é a propria Histéria que nos fornece”.®° Mais, ela habilita o historiador a esfriar “a Ansia por heroismo”, propria dos principes, “em especial quando a propria Hist6ria transforma os historiadores em fildsofos”.” Passo a passo, essa Histéria também vai aumentando sua pretensio 4 verdade, a partir de seu genuino e complexo contetido realista. “A propria Histéria, quando vista em geral, nos d4 a melhor indicagio das condigdes de todos os seres sensatos, morais € sociais”, escreve Wegelin, em 1783. O Direito Natural e o Direito Internacional Pablico se baseiam nela, liberdade e moralidade nio sao vidveis sem ela. “E dai que surge 0 conceito do mundo moral, ou da relag3o entre todos os seres pensantes e ativos. Esse conceito geral no é outra coisa que a expressio da Histéria como tal”. A fundamentagio do Iluminismo histérico em uma Histéria nao mais derivada, mas na “Histéria como tal”, tinha se definido como conceito. A Histéria se eleva a algo como uma Ultima instancia. Ela se transforma em agente do destino humano ou do progresso social. Nesse sentido, Adam Weishaupt — abstraindo conscientemente de acontecimentos individuais — escrevera sua Geschichte der Ver- vollkommnung des menschlichen Geschlechts [Historia do aperfeigoa~ mento do género humano]. “Esta foi uma Histéria sem ano nem nome”, registrou, com orgulho; “a Histéria do surgimento e do desenvolvimento de nossas paixdes e de nossos instintos”, que, de agora em diante, devem ser racionalmente controlados: “Que agora se apresentem os atores e representem eles mesmos”. Mas a “ propria Historia” [Geschichte selbsf] continuara a cuidar para que tudo 2 HERDER. Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit (1774). In: Samiliche Werke (vol. 5). 1891, p. 589. 2 MOSHEIM, Johann Lorenz v. Geschichte der Kirchenverbesserung im sechzehnten Jahrhundert Leipzig, 1773, p. 4 [editado por Johann August Christoph von Einem] 28 (VOGT, Nikolaus}. Anzeige, wie wir die Geschichte behandeln, benutzen und darsellen werden Mainz, 1783, p. 19. 2° WEGELIN, Jakob. Briefe iiber den Werth der Geschichte. Berlin, 1783, p. 24. 124 ‘A-CONFIGURAGKO DO MODERNO CONCEIO DE HISTORA desemboque na perfeicao, sem qualquer erro, pois “a Historia em todos os tempos conseguiu vencer os mais obstinados equivocos”.” Hi motivos para enxergar nessa nova conceitualizagio — que remete a Hist6ria, como agens, a si mesma —a velada ou modificada providéncia divina, o que — naquilo que tange aos efeitos histéri- cos — esta correto. No sentido de uma Histéria revelada por Deus, Agostinho, por exemplo, havia constatado que as representagdes histéricas tratam de instituigdes humanas, mas que a propria His- téria (“ipsa historia”) nao € uma instituigio humana. Pois aquilo que aconteceu e nio pode ser revertido, isso faz parte da sequéncia dos tempos (“‘in ordine temporum habenda sunt”), cujo fundador e administrador seria Deus.” Nio ha diivida de que a historicidade de Jesus como fonte empirica da revelacio contribuiu em muito para dar ao conceito de Histéria uma pretensio enfatica 4 verdade. “Pois o sacramento ou a Histéria, e as palavras, / quando se fala do sacramento, / sio duas coisas diferentes” (Lutero).?*! Hamann jé utiliza o singular coletivo, quando definiu “a Histéria, a natureza e a revelago” como as trés fontes de conhecimento sensato, ou ainda mais, quando confronta a Histéria com o acontecido: “Sem autoridade, a verdade da Histéria (desaparece) junto com 0 préprio acontecido”.” Foi, sobretudo, com Herder, e, no campo suabio, com os pietistas teolégico- -federais [fideraltheologische Pietisten]* que a moderna utilizagio 2 WEISHAUPT, Adam. Geschichte der Vervollkommnung des menschlichen Geschlechts (vol. 1) Frankfurt/Leipzig, 1788, p. 228. © AUGUSTIN, De doctrina christiana, 2, 28 (44), In: Compus drsianonum (vol. 32), p. 63 (cf. nota 22). *! LUTHER, Vom Abendmabl Christi, Bekenntnis (1528). In: Weimarer Ausgabe (vol. 26), 1909, p.410, “Denn das sacrament odder geschicht und die wort / so man vor sacrament redet/ sind =weyerley ™: HAMANN, Johann Georg, Briefe cines Vaters I (em torno de 1755). In: NADLER, Josef (Ed) Simtliche Werke (vol. 4). Viena, 1952, p. 217; Golgatha und Scheblemini (1784). Samtliche Werke (vol. 3), 1951, p. 304; cf. Samiliche Werke (vol. 1), 1949, p. 9, 53, 303; Siimtliche Werke (vol. 2), 1950, p. 64. 176, 386 (“Polemik gegen den scharfiinnigen Chladenius"—polémica contra © sagaz Chladenius); Samiliche Werke (vol. 3), p. 311, 382. © Pietismo foi um movimento religioso iniciado no século XVII, que pretendia fazer uma “Reforma da Reforma”, ao contrapor-se & ortodoxia reformistae aos seus excessos institucionais, recuperando a importincia da subjetividade e da vivéncia pessoal da religiosidade. A “Teologia federal” entendia a “Historia como a concretizario da graca” divina, Historia que transcorreria em cinco fases, a comegar na criago narrada no Velho Testamento, de forma que a “Hist6ria divina se transformaria em um drama com sentido unitério” JACOB, P. Foderaltheologie. In: Die Religion in Geschichte und Gegenwart [RG]. Tibingen: J.C. B, Mohr (Paul Siebeck), 1957, col. 1520 [N. T] 125 O concer be Histoaa da palavra foi levada avante. A efetividade da Historia recebe con- sagracao propria através da encarnacio de Cristo." Wizenmann escrevi “Finalmente, chegou a hora em que se comega a tratar a Histéria de Jesus no s6 como um livro com sentengas para a dogmiatica, mas como alta Histéria da humanidade. . Gostaria de confirmar muito mais a Filosofia a partir da Historia do que a Hist6ria a partir da Filosofia”. Um unico fato novo conseguiria derrubar sistemas inteiros. “Histéria é a fonte da qual deve ema- nar tudo”.?* O que caracterizou 0 novo conceito de uma “Histéria como tal” [Geschichte iiberhaupt] foi sua capacidade de abrir mio do re- curso a Deus. Paralelamente, ocorreu a revelagio de um tempo que é peculiar 4 Histéria. Ele abarca — como destaca Chladenius, em oposic4o ao linguajar usual — todas as trés dimensdes tempo- rais: “Coisas futuras fazem parte do historiar. [...]. Pois, mesmo que o conhecimento do futuro, em oposigao ao conhecimento do passado, seja muito limitado e breve, mesmo assim temos varias perspectivas de perscrutar o futuro, nao sé através da revelagao, mas também da astronomia e dos assuntos civis”, bem como da “arte médica”. “E por isso, na doutrina racional da Histéria, esse conceito deve ser tomado de forma tao ampla que inclua o futuro”. E, em contraposi¢ao 4 expectativa cristd, essa Histéria adquire, em Chladenius, um horizonte fundamentalmente ili- mitado, “pois a Historia em si e diante de si [Geschichte an und vor sich] nao tem fim”.?% Kant, mais tarde, polemiza de forma aberta contra a “fé mes- sidnica na Histéria”, a qual pretenderia interpreta e delimitar 0 transcurso dos acontecimentos segundo uma ordo temporum, como © teria feito Bengel, na sua interpretacao do apocalipse de Joao: 2 A respeito do entio novo conceito de Tatsache ou fato, cf. STATS, Reinhart. Der theologiegeschichtliche Hintergrund des Begriffs “Tatsache”. Zeitschrift fr Theologie und Kirche, 1, 70, 1973, p. 316 € segs. *« WIZEMANN, Thomas. Die Geschichte Jesu nach dem Matthaus als Selbstheweis ihrer Zuverlasigheit betrachtet. Leipzig, 1789, p. 67, 55 (editado por Johann Friedrich Kleuker) ** CHLADENIUS, Allgemeiene Geschichtswissenschaft..,p- 15. 2% Ihid,, p. 147 126 A.CONPGURAGAO 00 NODERNO CONCEITO DE HISTORIA “como se nao fosse a cronologia que deve guiar-se pela Histéria, mas, inversamente, a Histéria pela cronologia”.”” Com isso, Kant definira que a Historia é mais que a soma temporal de dados individuais, que, em ultima instancia, se ali- nham num tempo natural. A revelagdo de um tempo genuinamente historico no conceito de Histéria coincidiu com a experiéncia da “Era Moderna”. Desde entio, os historiadores estio obrigados a verificar relagdes que nio se orientam mais pela sucessio natural de geragdes de soberanos, pelas érbitas das estrelas ou pela mistica figural do simbolismo numérico dos cristaos. A Historia funda sua propria cronologia. Ja em 1767, Gatterer falava de “sistemas de acontecimentos”, pretendendo, com isso, descrever o resultado para 0 qual o novo conceito de Histéria ainda nao se havia institucionalizado: “E ver- dade que sistemas de acontecimentos possuem seu proprio percurso temporal, mas ele nao se orienta pela divisio civil do tempo” Através de reflexdes como aquela a respeito do tempo histérico, o conceito de Histéria incorporou o contetido complexo de reali- dade que acabou garantindo & “propria Historia” [Geschichte selbst] uma pretensio de verdade especial. A desclassificagio aristotélica da Historie, que lhe atribuira uma simples adigio de fatos cronolégicos, foi, assim, abandonada.”” Com isso, através da constituicio de um. conceito, se abrira um novo espaco de experiéncia, que marcaria o periodo seguinte. Para resumir, vamos citar trés critérios. A Histéria no coletivo singular definiu as condigées para as possiveis Historias individuais. Todas as Historias individuais passa- ram, desde entio, a se localizar numa relagdo complexa, cujo efeito € peculiar e aut6nomo. “Acima das Histérias esta a Histéria” — assim. Droysen resumiu, em 1858, o novo mundo vivido da Histéria.*°° Esse mundo da experiéncia tinha sua pretensio imanente de verdade. Aquilo que interessava nao era mais 0 antigo topos que > KANT. Der Streit der Fakultiten (1798). In: Akademie-Ausgabe (vol. 7), 1907, p. 62: KANT, Anthropologie (1798). In: ibid. p. 195. ™* Gatterer, Vom historischen Plan... (ef. nota 223), p. 81 >” ARISTOTELES, Poetik, 1451 b. > DROYSEN, Historik (cf. nota 236), p. 354, 127 Oconceno ve Histo costumava ser passado adiante, no sentido de que Historia s6 poderia escrever aquele que a tivesse visto ou participado dela. Histéria, pelo contrario, se transformou, agora, no espaco de vivéncia pro- priamente dito, e ele, por sua vez, permite fazer juizos histéricos. “A respeito de Historia ninguém pode julgar a nao ser aquele que vivenciou Histéria em si mesmo”, constatou Goethe.*”" Finalmente, para caracterizar a autorreferenciagio da His- téria a si mesma, como Ultima instancia, se recorrera 4 expressio “Histéria como tal” [Geschichte tiberhaupt], e a algumas formulas correspondentes. Mas, dentro de pouco tempo, o sentido pretendido se incorporou na simples palavra “Historia”. Essa Historia como sujeito de si mesma se transformou num agens autoativo, de forma que Hegel, mais tarde, pde falar do “trabalho da Historia”. Nas décadas das simplificagdes e das singularizacées, quando, a partir das liberdades, surgiu “a liberdade”, e das revolugées surgiu “a revolugdo”, a Histéria subordinou a si as histérias individuais. Esse € 0 conceito que na economia linguistica historico-politica dos alemies parece ocupar aquele lugar que “revolugio” ocupa no francés. A “Historia” jA aparece como conceito antes da Revolugio Francesa, os contextos revolucionirios transformarao aquilo que era surpreendentemente tinico nessa nova Histéria numa proposi¢io axiomatica de vida. b) A fusao de “Historie” e “Geschichte [Histéria]”. A Historia, cuja ampliagao de sentido foi explicitada até aqui, nio foi apenas um novo conceito de realidade, mas também um novo conceito de reflexio. Depois de 1780, Herder pdde empregar o coletivo singular para os dois niveis, numa mesma frase: “O fato é o fundamento de tudo aquilo que é divino na religiio, e esta s6 pode ser apresentada na Histéria, a religido mesma precisa se tornar constantemente Histéria viva. A Histéria constitui, portanto, o fandamento da Biblia”.> Ago- ra se pretende comprovar aquilo que as citagdes até entao apresentadas 3°! GORTHE. Maximen und Reflexionen, n. 217. In: Hamburger Ausgabe (vol. 12), 1953, p. 395, © HEGEL, Die Vernunft... (cf. nota 236), p. 182. ™ HERDER, Briefe das Studium der Theologie betreffend (1780-85). In: Samtliche Werke (vol. 10), 1879, p. 257 e seg. A respeito, cf. STAATS, Der theologiegeschichtliche Hintergrund des Begriffs “Tatsachen”, p. 327, 128 A. CONFIGURACKO DO MODERN CONCETO DE HISTORIA apenas deixavam transparecer: que © novo espago de vivéncia da Hist6ria s6 foi explorado porque a reflex4o sobre ela correu paralela ao conceito. Na histéria do termo, isso se evidencia no fato de que no Ultimo tergo do século XVIII 0 contetido do significado de “His- torie” — mediante gradativa exclusio dessa palavra — acabou sendo totalmente absorvido por “Geschichte” [Historia]. Desde a germanizagio da palavra latina “historia”, no século XI, “Geschicht()” e “Historie” tinham mantido significados claramente distintos, como ja acontece em Conrado de Megen- berg: “... aquilo que as Historien dizem, isso sio os escritos das geschichten nos paises € nos tempos”.2° Em 1542 Burkart faz uma rima: “quando tais Geschichten tiveram lugar, / como em Historien se pode observar”.*** O campo “objetivo” dos acontecimentos e da ag4o bem como o conhecimento “subjetivo”, a narrativa, ou — mais tarde — a ciéncia a respeito, puderam, até o século XVIII, ser de- signados com terminologia separada. Assim, Ié-se no preficio a um diciondrio geogrifico de 1705: “Historie ou ciéncia da Historia”. & evidente que essa contraposi¢4o raramente foi observada com tanto rigor quanto em definicdes. O significado de uma influenciava da outra, ainda que com intensidade varidvel. A sobreposi¢ao dos dois campos semanticos pode ser constata~ da nos vocabularios do século XV: “historia” € traduzida por “um acontecimento, uma coisa que aconteceu, geschicht, um discurso escrito que conta como aconteceu” e “historie (history)".*°* Tanto “coisa acontecida” quanto “historie” constam como “historia”, que € definida como “res facta” e como “relato de uma histéria sobre 2 RUPP, Heinz; KOHLER, Oskar. Historia ~ Geschichte, Saeculum, n. 2, 1951, p. 632. *® MEGENBERG, Konrad von. Buck der Natur (cerca de 1350) (editado por Franz Pfeiffer, em Stuttgart, 1861; reimpresso em Hildesheim, 1971), p. 358. “sam die historien sagent, daz sind die geschrift von den geschichten in den landen und in den zeiten” 2 WALDIS, Burkart. Stritgedicht (1542) (editado por Friedrich Koldewey em Halle, 1883, p. 33). “Wan solch geschichte sein geschehen, / Wie in historien ist zusehen' 2 Citado por GEIGER, Das Wort “Geschichte”... p. 15 com plural tipico, ainda que também com a nova forma plural “Geschichten”, ° DIEFENBACH, Lorenz. Glossarium Latin-Germanicum mediae et infimae aetatis. Frankfurt, 1857, p. 279, “eyn geschchen, eyn ding dz geschen ist, geschicht, ein gescriben red der getad as.es gescach' e “historie (history) es O concerto be HstOma uma coisa acontecida”, tudo ao mesmo tempo.” Essa expansio da “Historie” para os préprios acontecimentos ou seu transcurso se mantém ininterrupta, no nivel dos diciondrios.™"° Em contraposicio, na bibliografia histérica, comega a se impor, por afinidade com a lingua latina culta, a definigao que tem sua origem em Cicero: “A Historie — diz Hederich, em 1711 — é uma narrativa verdadeira de 2 Vocabularium incipiens Teutonicum ante Latinum (Nirnberg, 1482), p. 47". 62"; Vocabularius gemma _gemmarum (Strassburgo, 1508), p. 8"; DASY PODIUS, Petrus. Dicionarium Latino-Germanicum atim/alemio) (Strassburgo, 1536; reimpresso em Hildesheim, 1974), p. 93°, “ein geschicht- cerzclung einer geschehenen sach”, °° Vocabularius incipiens Teutonicum ante Latinum, p. 47": “Geschehen ding. historia. unde historiographus cin schreber der gescicht;ibid., p. 62% “Historie. historia, vulgare geschehen ding" Vocabularius gemma _gemmarum, p. 58": “Historia est res facta: ein geschehen ding oder history. Historigraphus est sriptor historiaram: ein historien schryber"; DASYPODIUS, Dictionarium, p. 93: “Historia, Ein geschicht/ erzelung einer geschehenen sch. Historicus, et Historiographus, ein geschictschreiber cf. ibid, p. 3: "Acta, Handlungen geschichten"; ibid., p. 67 “Factum, Ein geschicht oder that ibid, alernao-latimn, p. 332° “Geschehen, Fier. ordentlich Geschicht/da alle umbstend gemeldet werden. Historia Geschichthuch auf] lich leufffoder rein jarbuch, Annales"; cf ibid., p. 437: “Thaat/geschicht, Pactum*; SCHOPPER, Jacob. ‘Synonima, Dortmund, 1550 (reimpressio editada por Karl Schulte-Kemminghausen, Dortmund, 1927), p. 29: “Das ist / Mancherley gattungen Deutscher worter/so im Grund einerley bedeutung haben; ““Facinus: That / geschicht / handel"; MAALER,, 1561 (cf-nota 314); FRISIUS, Johannes. Dictionarium Latinggermanicum (editado em Zurique, 1574), p. 630: “Historia. Ein history / Ein geschicht / Ein ordenliche erzllung und erklarung waarhaffer/ grundticherunn geschachner dingen; HENISCH, Georg, ‘Teutsche Sprach und Weissheit. In: Thesaurus linguae et sapientiae Germanicae (vol. 1). Augsburg, 1616, p. 1530. seg, 1534: “Geschehen / sich =u tragen / begeben / bggegnen / fier, evenire, cadere,incidere, accdere, contingere, venie, evenire usu, ger, confore. Der ivatioum) Geschcht / es geschicht / event, acidit Geschcht / eventus, acta, actum, gestum, historia. Geschehen ding / gesta, rs atae, res gestae. Geschicht / ces geschcht/ acidit,contingit, Sichegeschehen. Geschicht / (di) historia, Geschicht / eines thun und lassen / actus hujus actus. Der(ivatium) Geschicht / that / acta gesta historia .... Geschichten und Handlungen / «acta; DHUEZ, Nathanael (Ed) Ditionairefangois-llemand-latin. Leyden, 1642, p. 149: “Geschicht / That / Ade, Ges, Facta. Histori | Histoire, Historia, Historie, Ein Geschicht / und Geschichibuch / Historia"; Dicionaire Frangois-allemand-latia (1675), p. 617: “histoire, naré, eine Erzehlung / Geschicht / Historia, narato, enaratio, Histoire digerée, par suite d’années, Ein Geschichtbuch nach Ordnung der Zeit eingrichtet/ Gestarum rerum annaes,historier,descrie, Bescreiben / in einer Geschichtverassen / Descibere*; STIELER (1691), p. 1746: “Geschicht / die / factum, historia, actu, res gestae. Geschicht erzehlen / historia narrare, commemorare. Geschichte schreiben / srbere res gestas, monument facorum componere"; POMEY, Le Grand Ditionaire Royal (1715) (t. 1), p. 485: “Histoire, haec historia, hace narratio, eine Geschcht / Geschichts-Erzahlung"; ibid. (2), p. 144: “Historia, histoire, rapport des choses veritables, eine Historic, eine wahrhaftige Erzahlung geschehener Dinge’s ibid. (. 3), p. 129: “Geschicht / Tat / act, histoire, gesta, facta"; STEINBACH, Christoph Ernst. Volstandiges Deutsches Weorter- Buch (vol. 2). Breslau, 1734; reimpresso em Hildesheim, 1973, p. 395: “Geschichte di) fectum, rs {gesta, historia"; FRISCH, Deutsch-lateinisches Worterbuch (vol. 2), 1741, p. 176: “Schiht, Geschichte, ist veralet, und Geschichte von geschehen, geblichen (...)factum, historia, she Historie"; ibid.,p. 168: “Schehen, Geschehen, fier, evenire, acidere; ibid, (vol. 1), p. 456: “Historie, vom latenischen historia, Geschicht- Beschreibung oder Erzdhilung dessen, was bei etwas natg ist... Eine Historie vo etwas schreiben, historia aliguid mandare eines Dings Historie schreiben, hstoriam seribere, res gesta sorbere™ 130 ‘A.CONAGURAGKO DO MODERNO CONCETO De HISTOR coisas acontecidas”.*"" Uma versio que tivesse em vista a relacio dos objetos em si— como aparece uma vez em Leibniz — foi extre- mamente rara: “... que‘nenhum eleitor e principe faga mais entre o publico, e, portanto, participa mais da Historia Universal [Universal Histori] dessa época que o eleitor de Brandenburgo”.*? Enquanto “Historie” se manteve relativamente imune a uma contaminagio por parte de “Geschichte”, a transferéncia do signi- ficado de “Historie” para “Geschichte” se realizou de forma muito mais rapida e profunda. Lutero ja utiliza “Geschicht(e)” em ambos os sentidos de “acontecimento” e “narrativa”, em certa oportu- nidade, até numa mesma frase: “Mas a Histéria do rei Davi, as primeiras e as dltimas, veja que esto escritas entre as Histérias de Samuel”.* Josua Maaler registrou, em 1561, para “Geschichte”: “narrativa ordenada e explicagao de coisas verdadeiras, fundamen- tais e acontecidas”, e, ao lado: “Histérias e agdes, Acta”.*"* Nos titulos dos livros do século XVII, sao utilizadas, com frequéncia, formas duplas, como: “Historie e/ou Geschichte de ...”>°, com que se pretendia expressar a distin¢4o, mas a0 mesmo tempo também ja a convergéncia de contexto de acontecimentos com narrativa. No final, nao foi a expressdo “Historie”, mas sim “Geschichte” que fundiu os dois campos semanticos. O famoso titulo do livro de Johann Joachim Winckelmann Geschichte der Kunst des Altertums {Histéria da arte da Antiguidade], de 1764, reduziu ambos os sig- nificados a um denominador tio comum*® que nio se consegue mais derivar da palavra se o destaque recai sobre 0 objeto narrado ou sobre a representago. Desde meados do século, o titulo “Ges- chichte” vai expulsando, gradativamente “Historie” das capas dos 8 HEDERICH, Benjamin, Anleitung 2u dew flirmehmsten historischen Wissenschaften. 2* ed., ‘Wittenberg, 1711, p. 186. ®” LEIBNIZ. In: KLOPP, Arno (Ed). Werke (I* série, vol. 10). Hannover, 1877, p. 33. 2° LUTHER, 1. Chronik 30, 29 [Zerbster Handschrift, 1523; contagem moderna: 29, 29}. In: Weimarer Ausgabe, Deutsche Bibel (Vol. 1), 1906, p. 281 € seg. “Die geschicht aber des koniges Dawid heyde die ersten und letzten sihe die sind geschrichen unter den geschichten Samuel" “ MAALER, 1561, 195 b. “Ein ordenliche Breellung und erkldrung waarhafter, grundtlcker und _gesthichner dingen'; "Geschichten und handlungen. Acta. 8 CE GEIGER, Das Wort “Geschichte”... p. 14 2” WINCKELMANN, J. J. Geschichte der Kunst des Altertums. In: EISELEIN, Joseph (Ed.). Similiche Werke (vol. 3). Donaueschingen, 1825. 131 © concerto be Hisrow livros histéricos*”; os poucos titulos com “Historie” correspondem numericamente Aqueles com o plural “Geschichten” 2! Winckelmann explicou 0 conceito, que ele entendia como novo, apontando em especial para as intengées sistematicas que estariam por tras dele: “A Histéria da arte da Antiguidade que eu resolvi escrever nio constitui um simples relato da sequéncia de tempo das transformacées da mesma, pois eu adoto a palavra His- toria em seu sentido mais amplo, sentido que ela possui na lingua grega, e minha intengao é apresentar uma estrutura doutrinaria [Lehrgebaude}”.>” Com isso, Winckelmann citara a segunda fonte de que se alimentava o moderno coletivo singular. O fato de imaginar uma “Histéria” que fosse além da narrativa de transformagées represen- tava criatividade teérica. Ela fazia com que a realidade da Histéria desembocasse num “Lehrgebdude”, numa “estrutura doutrinaria”, sem a qual a histéria dos acontecimentos nem poderia ser reco- nhecida. Somente através da reflex4o sobre as hist6rias individuais & que “a Histéria” poderia ser desvendada. Naquilo que tange 4 Histéria dos vocdbulos, a “Historie” deu sua contribuigdo, tal qual ela, desde o Humanismo, foi pensada e definida, nos muitos manuais sobre arte e metodologia escritos por historiadores. A “Historie” como doutrina ou como disciplina cientifica, desde sempre, pdde ser utilizada de forma reflexiva € sem objeto. A partir de Cicero, o conhecimento reunido sobre as histérias individuais fora subsumido, coletivamente, no termo “historia”: “Historia magistra vitae” Quero citar um comprovante historicamente importante das inmeras variantes que destacam a fungio pedagégica dessa historia: “Porro ~ disse Melanchton — non alia pars literarum plus aut voluptatis aut utilitatis adfert studiosis, quam 3” CE HEINSIUS, Wilhelm. Allgemeines Bicher-Lexicon oder vollstandiges Alphabetisches Verzeichniss der von 1700 bis zum Ende 1810 erschienenen Biicher (2 vols). 2. ed., Leipzig, 1812, p. 82 € segs., 391 e seg. “" KAISER, Christian Gottlob. Index locupletissimus librorum. Vollstindiges Biicher-Lexikon, enthaltend alle von 1750 bis zu Ende des Jahres 1832 in Deutschland und in den angrenzenden Lindern gedrackten Biicher (vol. 2). Leipzig, 1834, p. 355 e segs., 368; (vol. 3) 1835, p. 155. %” WINCKELMANN, Geschichte der Kunst... p. 9 (Vorrede). ™ CE. KOSELLECK, Historia magistra vitae (cf. nota 224), p. 196 e segs. 132 ‘A.CONHGURACAO DO MODERND CONCETO DE HsTORA historia”! Puffendorf, provavelmente, foi o primeiro que, em 1682, chamou de ciéncia o conhecimento criticamente verificado das Historias a serem ensinadas. “A Historie (seria) a ciéncia mais graciosa e itil”? Esse significado aparentemente passou sem constrangimento para “a Historia”. Pomey, em 1715, ainda precisou traduzir “Histo- tia” por “Geschichts-Beschreibung [descrigio da Histéria]”, ao registrar 08 fopoi ciceronianos: “A descri¢do da Histéria é um testemunho do tempo, uma luz da verdade, uma mestra da vida, e uma narradora de todas as coisas que aconteceram antes de nés”.”° O tradutor Rollins, em 1748, j4 péde colocar ali o coletivo singular alemio: “A Geschichte [Historia] é, com justia, a testemunha do tempo”.*** Desde entio, se tornou dificil distinguir entre a “verdadeira” Histéria e a Historia ativamente refletida. Frederico, o Grande, ainda ficou desnorteado quando o bibliotecdrio Johann Erich Biester Ihe disse que “se dedicava preferencialmente 4 Geschichte [Histéria]”. O rei perguntou “se isso significava a mesma coisa que Historie, pois { nao conhecia a palavra alema”. Ele tera conhecido a palavra, mas | nio seu sentido reflexivo contido no novo coletivo singular.* Em i 1777 jé se diz de forma bem natural que Iselin pretendeu “estudar a Historia” ¢ tornar-se “professor de Historia”. Em 1775 Adelung, finalmente, registrou a vitéria da “Histé- ria”. A expresso possuiria trés significados equivalentes, que nao se perderam, desde entdo: “1. Aquilo que aconteceu, uma coisa acontecida... 2, A narrativa de tal Histéria ou de episédios acon- tecidos; a Historie... 3. O conhecimento dos episédios acontecidos, © estudo da Histéria (Geschichtskunde], sem plural. A Histéria é a | mais confiavel mestra da moral” — como diré ao explicar 0 dltimo 1 Melanchton, em carta a Christoph Stalberg de 1526. In: Corpus reformatorum (vo. 1), 1834, p. 837, %2 PUFENDORF, Samuel. Binleitung 2u der Historie der Vornehmsten Reiche und Staaten, Frankfurt, 1682, p. 1" (Vorrede) © POMEY, Le Grand Dictionaire Royal (t. 1), 1715, p. 485. 5% ROLLIN, Charles. Historie alter Zeiten und Volcker (vol. 12). Dresden/Leipzig, 1748, p. 221 %® BOTTIGER, Hofrat. Brinnerungen an das literarische Berlin im August 1796. In: EBERT, Friedrich Adolph. Uberlicferungen zur Geschichte, Literatur und Kunst der Vor- und Mitwelt (vol 2/1). Dresden, 1827, p. 42. 2 ISELIN, Isaak (Ed.). Ephemeriden der Menschheit (11? parte). 1777, p. 122 ¢ seg., nota 133 ee ee CO conceno ve Histon ponto. No breve verbete sobre “a Histéria”, aparecem as mesmas definigdes, ¢ Adelung acrescenta: “Para todos esses sentidos, pode- se utilizar agora — ao menos numa escrita elegante — a palavra alema Geschichte”."7 Claro, seria possivel interpretar essa constatagdo — que Ade- lung certamente também registrou por razGes linguistico-politicas — de forma puramente onomasiolégica, no sentido de que o espago semAntico de uma palavra (“Historie”) simplesmente foi assumido por outra palavra (“Geschichte”). Mas a historia vocabular mos- trou que tais convergéncias foram possiveis e corriqueiras, desde o final da Idade Média. Também nio é decisivo que “Historie” agora podia ser usada, sem restrigdes, no sentido de “Geschichte”, coisa que a Deutsche Encyclopedic [Enciclopédia alema] — apesar de eruditas diferenciagdes — confirma. O que é decisivo é que, no tiltimo tergo do século XVIII, foi transposto um patamar. Os trés niveis (situacdo objetiva, a representagio dela, e a ciéncia a respeito) foram reunidos num nico conceito: “Geschichte”. Levando-se em consideragio o emprego das palavras na época, trata-se da fusio do novo conceito de realidade expresso em “Historia como tal” [Geschichte tiberhaupt], com as reflexdes que ensinam a entender essa realidade. Numa formulagio talvez um pouco exagerada, pode-se dizer que “Geschichte” foi um tipo de categoria transcendental que visava as condigdes de possibilidade de Geschichten/Histérias. Quando Hegel escreveu: “Geschichte retine, em nossa lingua, tanto o lado objetivo quanto o subjetivo, e significa tanto a histo- riam rerum gestaram quanto as proprias res gestas”, nio considerou essa constatagéo como uma “casualidade externa”. As “agdes € os acontecimentos propriamente histéricos”, que se localizam além do espago pré-histérico de acontecimentos naturais, s6 teriam surgido 7 ADELUNG (vol. 2), 1775, p. 600 € seg., 1210 e seg. © KOSTER, Heinrich Martin. Verbete “Geschichte”. In: Deutsche Encyclopadie (vol. 12), 1787, p. 67; KOSTER, Heinrich Martin. Verbete “Philosophie/Philosophie der Historie". In: ibid. (vol. 15), 1799, p. 649. Além disso, ef. o excurso hist6rico-vocabular de HERTZBERG, Gustav. Verbete “Geschichte, In: ERSCH/GRUBER (t" seo) (vol, 62), 1856, p. 343, nota 2, o qual se refere a Wilhelm Wachsmuth (Entwuaf einer Theorie der Geschichte, Halle, 1820, p. 2 e segs.), cujas distingdes reaparecem, neste texto, daqui para frente 134 ‘A CONAGURACHO DO MODEENO CONCETO DE HisTORA mediante sua elaboracio por meio da narrativa historica.°? Uma coisa remete a outra, € vice-versa. Ou como, mais tarde, Droysen ligou a forma de ser da Histéria 4 consciéncia sobre ela: “O co- nhecimento a seu respeito ela mesma”. Com isso, 0 novo conceito de realidade e 0 novo conceito de reflexdo se haviam sobreposto. No campo tedrico-cientifico, essa convergéncia levou a indmeras imprecisées e dividas. Niebuhr —e muitos outros, depois dele — procuraram diferenciar novamente a utilizagio das palavras.>' O fracasso desses esforcos indica que a “Histéria” como conceito social e politico cumpriu [uma tare- fa] menor ou maior, em todo caso, [uma tarefa] diferente: ele se transformou num conceito abrangente, supracientifico, que pre- cisa incluir a experiéncia moderna de uma Histéria auténoma na reflexdo dos seres humanos que a realizam ou sao produto dela. 2. “A Historia” como Filosofia da Histéria A importancia que teve o fato de a nova realidade da “Histéria como tal” [Geschichte iiberhaupt] ter conseguido evoluir para o status de um conceito através da reflexdo esta indicada pelo surgi- mento da palavra paralela “Filosofia da Hist6ria”. O desvendamento da “Histéria como tal” coincidiu com o surgimento da Filosofia da Histéria. Quem utiliza a nova “expressio: Filosofia da Histéria” — escreveu Késter, em 1790, na Deutsche Encyclopidie®? [Enciclo- pédia Alemi] — sé deveria “estar atento para o fato de que ela nio constitui nenhuma ciéncia propriamente dita e especial, como se poderia ser facilmente levado a acreditar, ao primeiro contato com essa expresso. Pois, mesmo que grande parte da Historie ou toda uma ciéncia histérica sejam tratadas assim, nao é outra coisa do que Historie em si mesma”. J4 a escrita pragmitica da Histéria, que tiraria conclusdes de experiéncias proprias e alheias, mereceria esse nome, da mesma forma que a “critica histérica”, que ensinaria a & HEGEL, Die Vernunfi.. (ef. nota 236), p. 164. 2 DROYSEN, Historik (cf. nota 236), p. 331; além disso: ibid., p. 325, 387. > CE nota 361 © KOSTER, Verbete “Historie’, p. 666 distinguir verdade de plausibilidade, podendo, por isso, ser chamada de “légica da Geschichte [Historia] ou teoria da Historie”. Com 0 registro linguistico, Késter resumiu a nova constatacao. Foi gracas a Filosofia iluminista que a Historie como ciéncia se separou da Retérica e da Filosofia moral, e se livrou da Teologia e da Jurisprudéncia, a quem estivera subordinada. Nio era ébvio que a Historie, que, até entio, lidara com o in- dividual, com o peculiar e com o casual, tivesse capacidade para ser “Filosofia”. Enquanto os métodos histérico-filolégicos e as ciéncias auxiliares ja se haviam independizado desde o Humanismo, a His- torie s6 se tornou uma ciéncia propria, quando — na “Historia como tal” — conquistou um novo espaco de experiéncia. Desde entio, ela também péde definir publicamente o “campo de seu objeto”. A configuragio da Filosofia da Historia indica esse processo. Trés etapas levaram até ele: a reflexdo estética, a moralizagio das Histérias ea formulagao de hipéteses, que tentava superar uma interpretagio teolégica da Histéria através do recurso a uma Histéria “natural”. a) A reflexao estética. No contexto do surgimento da Filoso- fia da Historia, Historik e Literatura sofreram uma nova ordenagio reciproca, cuja relacdo constituia tema antigo, sempre retomado, desde 0 Humanismo. De forma esquemitica, a relagdo entre His- torie e producio literaria pode ser caracterizada por duas posigdes extremas, que permitem construir uma escalada gradativa, para agrega-las.* Ou se classifica 0 contetdo de verdade da Historie em nivel mais elevado que a producio literaria, pois quem se dedica as res factae precisaria mostrar a verdade, enquanto as res fictae levariam 4 mentira. Historiadores que defendiam essa posi¢do gostavam de recorrer 4 metafora do espelho, que circulava desde Luciano, para definir sua tarefa de descrever a “verdade nua”. A Historie mostraria uma “nudité si noble et si majesteuse”, escreveu Fénelon, em 1714, de forma que nio necessitaria de qualquer enfeite poético.>* “Dizer “8 HEITMANN, Klaus. Das Verhiltnis von Dichtung und Geschichtsschreibung in aleerer Theorie. Archiv flr Kulturgeschichte, n. 52, 1970, p. 244 e segs 2 FENELON, Francais de. Letire & M, Dacier sur les occupations de VAcademie, In: Oeuores compltes(, 6). Pais, 1850, p. 639 136 ‘A.CONGURAGEO D0 MODERNO CONCEO DE HISTORA a verdade nua significa narrar os eventos que aconteceram sem qualquer maquiagem” — é como Gottsched confirma essa tarefa dos historiadores.°°> Contra a indiferenga tedrico-epistemolégica contida nessas frases, a outra posi¢io recorria a Aristételes.> Aristételes desvalori- zara Historie frente a poesia, porque ela se orientaria exclusivamente pelo transcurso do tempo, no qual muita coisa aconteceria ao acaso. Ela relataria “aquilo que aconteceu”, enquanto a poesia relataria “aquilo que poderia acontecer”. A poesia visaria ao possivel e a0 geral, motivo pelo qual seria mais “filoséfica” e mais “importante” que a Historie. Lessing — 0 aristotélico do século XVIII — expressou sua opiniio da seguinte maneira: “Verdades hist6ricas casuais nunca podem transformar-se em verdades racionais necessarias”"”, motivo pelo qual “a plausibilidade interna” da poesia teria muito mais peso que a verdade histérica, que, muitas vezes, é questiondvel.8 Ao contririo do historiador, “o poeta [é] ... senhor sobre a Histéria; e ele pode aproximar os acontecimentos tanto quanto queira”*? — como Lessing 0 expressa de forma mais moderna. Em fungio de suas reservas aristotélicas contra o conhecimento histérico, nio admira que Lessing, ali onde, em 1784, aparecia como filésofo da Histéria — em sua Erziehung des Menschengeschlechts [Educagio do género humano] -, acabou abrindo mio da expressio “Geschichte” [Histéria]. Isso mostra — da perspectiva negativa — quio vagarosa~ mente 0 novo termo “Geschichte”, impregnado pela Filosofia, havia conseguido impor-se. 8 GOTTSCHED, Johann Christoph. Versuch einer Critschen Dichthunst. 3. Aufl, Leipzig, 1742, p. 354; cf. WINTERLING, Fritz. Das Bild der Geschichte in Drama und Dramentheorie Gottscheds und Bodmers, Frankfurt, 1955, p. 15 (tese de doutorado). A respeito de tudo isso, cf, REICHARDT, Rolf. Historik und Poetik in der deutschen und franzésischen Aufklarung, Heidelberg, 1966 (monografia de curso); a respeito da metifora da verdade nua dentro de suas transformagdes histéricas: BLUMENBERG, Hans. Paradigmen ciner Metaphorologie. Archiv _fir Begriffigeschichte, n. 6, 1960, p. 47 e segs. 8% ARISTOTELES, Poetik, 1451 b; 1459 a. 2 LESSING. Uber den Beweis des Geistes und der Kraft (1777). In: Sémitlche Schriften (vol. 13), 1897, p. 5. 2 LESSING, Abhandlungen iiber die Fabel (1757). In: Samtliche Schriften (vol. 7), 1891, p. 446 » LESSING. Briefe, die neueste Literatur betreffend, Nr. 63. In: Samtliche Schriften (vol. 8), 1892, p. 168. 137, (O concerto ne Histoan O fato de a Histéria da Filosofia ter-se tornado vidvel nao se deveu, de forma alguma, A vitéria de um ou de outro desses dois campos, aqui apresentados de maneira esquematicamente reduzida. Nem os representantes da “verdade nua”, isto é, os defensores da “propria Historia” [Geschichte selbst], conseguiram se impor, nem os defensores da Poesia — considerada superior ~, que submetiam sua representagao as regras de uma possibilidade imanente, 0 con- seguiram. Pelo contrario, ambos os campos fizeram uma fusio, na qual a Historie se aproveitou da verdade mais geral da Poesia, de sua plausibilidade interna, enquanto, inversamente, a Poesia tentou incorporar cada vez mais as exigéncias da realidade histérica. O resultado acaba sendo sinalizado pela Filosofia da Histéria. Bodin — ao contrario de Bacon — havia valorizado significa- tivamente a Historie. Sem suas sagradas leis (“‘sacra historiae leges”), ninguém se acharia na vida, e mesmo a filosofia fracassaria sem os dicta, facta, consilia histéricos: gracas a ela, seria possivel preparar-se para o futuro. Seria exatamente o reino da probabilidade que — ao contrario da verdade matematica ou religiosa — caracterizaria a Historie humana, e seria justamente de suas incertezas e de suas trapalhadas que os philosophistorici obteriam seus conhecimentos.*" E dessa modéstia que derivava, no longo prazo, o ganho, pois, no confronto seguinte com a critica cartesiana e pirronista da incerteza e da inconfiabilidade das afirmag6es histéricas, se abriu aquele campo das “verités de faits” cujo oposto — em acordo com Leibniz — podia ser pensado, cuja factibilidade, no entanto, 6 podia ser cientificamente investigada segundo graus de probabilidade.*” “Ainda que, na Historie, ndo se consiga chegar a uma certeza perfeita” — assim Zedler resume, em 1735, a vitdria contra o pirro- nismo —, “a probabilidade, que também é um tipo de verdade, esta ali”. Quem quiser avaliar uma Historie deve perguntar pela “propria +” BODIN. Methodus ad facilem cognitionem historiarum (1572). In: MESNARD, Pierre (Fd) Ocuores philosophique. Paris, 1951, 112 a. %* Ibid, 114.eseg, 138, A respeito da historia conceitual da plausibilidade, cf. BLUMENBERG, Paradigmen..., p. 88 ¢ segs. “LEIBNIZ, Monadologie, § 33. In: GERHARDT, ©. J. (Ed): Philosophische Schrifien (vol. 6). Berlim, 1885, p. 612; LEIBNIZ. Theodizee, §§ 36 e segs. In: ibid., p. 123 segs.; LEIBNIZ. Discours de métaphysique. In: Philosophische Schriften (vol. 4), 1880, p. 427 e segs. 138 ‘A-cONRGURAGKO 00 MCDERNO CONCETO D€ HISTORIA Histéria [Geschichte selbst], e em que medida ela é possivel ou nao”. Com isso, a Historie havia galgado um patamar, no ambito da hie- rarquiza¢io aristotélica, que a aproximava da poesia. Nao se per- guntava pela realidade, mas, em primeiro lugar, pelas condi¢des de sua possibilidade. Mas a Poesia tinha a mesma obrigacio. Uma vez submetida a uma exigéncia racional comum, também sua utilidade podia ser definida em comum: “Le but principal de ’Histoire, aussi bien que de la poésic, doit étre d’enseigner la prudence et la vertu par des exemples, et puis de monster le vice d’une maniére qui em donne de Vaver- sion, et qui prote ou serve a l’eviter”.*** No Ambito da produgio literdria, foi a nova categoria do romance burgués que agora se achava submetida ao postulado da fidelidade histérica aos fatos. Como em dois vasos comunicantes, Historie e romance foram mutuamente adaptados. A credibilidade e a capacidade de convencimento do romance cresciam na medida em que ele se aproximava de uma “Historie verdadeira”. Representativa desse processo, a0 qual aparentemente correspondeu uma expecta- tiva dos leitores no sentido de apresentar uma correspondéncia com a realidade, é a mudanca rapida de titulos, na primeira metade do século XVIIL* Para satisfazer a presungio de realismo, o romance francés costumava ser chamado de “Histoire” ou “mémoires”. A ten- tativa de Charles Sorel em manter a antiga divisio entre romance “Il ne faut ass se persuader que quelque roman que ce soit puisse jamais valoir une vraie histoire, ni que Von doive approuver que histoire tienne em quelque sorte du roman” > Com o entrecruzamento de Poética e Historik, foi liberado © novo e complexo conceito de Geschichte/Histéria, 0 qual esta- beleceu uma religaco da verdade superior de filosofia e poesia com a facticidade historica. Dessa forma, Diderot recorreu as e Historie nao conseguiu impor-s 2° ZEDLER. Verbete “Historie” (vol. 13), 1735, p. 283. % LEIBNIZ. Theodizce, § 148. In: Philosophische Schriften (vol. 6), p. 198. & JONES, P.S. A list rom French prose fiction from 1700 to 1750. New York: Columbia University, 1939, introdugio (tese de doutorado); a esse respeito: FURET, Frangois (Ed). Livre et société dans la France du XVIIF siécle, Paris/Den Haag, 1970. ™® SOREL, Charles. Dela connaissance de bons livres ou Examen de plusieurs autheurs (1671). Citado por DULONG, Gustave. Liatbé de Saint-Réal. Etude sur les rapports de l'histoire et du roman au 17° siécle (t. 1). Paris, 1921, p. 69, 139 O concerto ve HistOaa categorias aristotélicas do verdadeiro, do provavel e do possivel para realizar a comparacao entre “histoire” e “poésie”. “Lart pottique serait donc bien avancé, si le traité de la certitude historique était fait” >” E seu loge de Richardson [Elogio a Richardson], de 1762, mostra como, na mio de Diderot, 0 conceito de Histéria é libertado de suas peias aristotélicas. A Historie, muitas vezes, estaria repleta de mentiras, mostrando apenas recortes ¢ episédios temporalmente limitados — ainda se pode ler, em sentido convencional. Algo di- ferente aconteceria com o romance de Richardson, que trataria da sociedade e de seus costumes, ¢ sua verdade abrangeria todos 08 espagos e todos os tempos do género humano, “’oserai dire que souvent l'histoire est un mauvais roman; et que le roman comme tu Vas fait, est une bonne histoire” 3° Na Alemanha ocorreu uma valorizacao parecida. Em 1664, Johann Wilhelm von Stubenberg cunhou a expressio Geschicht- Gedicht [Histéria-Poesia] para o romance, a fim de caracterizar sua religacdo com a verdade. Como dizia, os irmaos Scudéry tratariam, em sua Clélie, de “historias todas acreditadas como verdadeiras em sie para si mesmas [vor und an sich selbst], / para as quais, porém, inventam e acrescentam acasos / possiveis, / provaveis, / razoaveis, / que lhes dio oportunidade e razio / para apresentar suas doutrinas de moral e virtude”. Birken, em sua Poética, ainda acrescentou a ~Histéria [Gedicht-Geschicht],*"” a fim de distinguir a epopeia do romance. Desde entio, “os limites da criagdo poética ¢ [da criagao] provavel [aparecem] ... como os limites do mundo historicamente imaginavel”.**” E desde mais ou menos 1700, a expressio “Geschichte” deslocou 0 “romance”, e ainda mais a “His- 351 expresso Poesi torie”, dos titulos dos romances alemies. 2" DIDEROT, Denis. De la poésie dramatique (1758). In: ASSEZAT, J. (ed). Oeuvres complites (€. 7). Paris, 1875, p. 335, cf. p. 327 e seg. 8 DIDEROT, Denis. Eloge de Ricardson (1761). In: Oeuvres (. 5). 1875, p. 221, ef. p.215, 218, “ SCUDERY, Madeleine et Georges de. Clelia: Eine rimische Geschichte (vol. 1). Niirnberg, 1664 (Zuschrift), (versio alema de Johann Wilhelm Freiherr von Studenberger) citado por VOSSKAMP, Wilhelm. Romantheorie in Deutschland. Von Martin Opitz bis Friedrich von Blanckenburg, Stuttgart, 1973, p. 11 seg., once também se encontram andlises mais detalhadas. 8 VOSSK AMP, Romantheorie... p. 13. 38 SINGER, Herbert. Der deutsche Roman zwischen Barrock und Rokoko. Colénia/Graz, 1963 (Bibliographic), p. 182. segs. 140 ‘A.cONsIGURAGAO DO MODERNO CONCETO be STOMA, Portanto, muito antes que historiadores migrassem do titulo “Historie” para “Geschichte”, os poetas j4 haviam passado a utilizar © titulo mais atraente, que prometia um contetido de realidade su- perior. Em 1741 Bodmer reivindicou que o contexto narrado fosse vinculado a coisas conhecidas. “Com isso, a poesia e 0 romance vio adquirindo gradativamente a dignidade da Historie, a qual consiste no mais alto e no mais extremo grau de probabilidade; j4 que a louvada verdade histérica nao é outra coisa que probabilidade, que é comprovada através de testemunhos coincidentes e unificadores”.>? Enquanto a arte do romance foi se comprometendo com a realidade histérica, a Historie, inversamente, foi submetida ao mandamento poetoldgico de criar unidades de sentido. Passou-se a exigir-lhe uma maior arte de representagdo, em vez de narrar séries cronolégicas, ela deveria desvendar motivos secretos, e tentar descobrir uma ordem interna em meio aos acontecimentos casuais. Dessa forma, através de um tipo de osmose reciproca, ambas as categorias levaram 4 descoberta de uma realidade histérica a que 86 se poderia chegar através da reflexio. Em 1714, Fénelon havia formulado, diante da Academia, 0 seguinte programa: “La principale perfection d’une histoire consiste dans Vordre e dans Varrangement. Pour parvenir d ce bel ordre, Vhistorien doit embrasser et poséder toute son histoire; il doit la voir tout entire comme d’une seule vue... Il faut en montrer l’'unité, et tirer, pour ainsi dire, d’une seule source tous les principaux événemns qui en dependent”. Com isso, 0 leitor teria proveito e divertimento ao mesmo tempo." Somente através do trabalho subjetivo do historiador, feito a partir de um ponto de vista, desvenda-se a unidade da Historia, que, a partir de entio, seria cada vez mais evidenciada na propria realidade histérica. Quem contribuiu para concretizar essa tarefa foi a perspectiva teolégica de uma Historia Universal vivenciada pelos cristaos. Bossuet insistia que todas as Histérias estavam inter- relacionadas, de forma que se poderia apreender “comme d’un coup ° BODMER, Johann Jacob. Critsche Betrachtungen iber die Poetischen Gemalde der Dichter. Mit einer Vorrede von Johann Jacob Breitinger. Zurique, 1741, p. 548, citado por VOSSKAMP, Romantheorie.. p. 156. 9 FENELON, Lettre 4 M. Dacier... (¢f. nota 334), p. 639. 141 © concerto ve Histomn deeil, tout Vordre des temps”. “La vraie science de Vhistoire est de remar- quer dans chaque temps ces secretes dispositions qui ont prépraré les grands chargements, et les conjonctures importantes qui les ont fait arriver”.>°* Leibniz ja recorria 4 muito discutida metafora do romance para descrever a unidade interna da melhor Historia possivel dos homens: “Ce roman de la vie humaine, que fait Vhistoire universelle du genere humain, s’est trouvé tout invente dans l’entendement divin avec une infinité d’autres”. Mas Deus decidiu concretizar somente a sequéncia efetiva dos acontecimentos (‘cette suite d’evenemens’’), pois eles se inserem de modo perfeito em tudo 0 mais. Em que medida evidentemente a certeza teolégica da provi- déncia divina recuou para garantir a unidade da Historia, em termos cientificos, isso se pode verificar no caso de Gatterer, quando, em 1767, falava do “plano histérico” e da “decorrente unificacio das narrativas”. Gatterer se envolveu, de maneira consciente, na discus- sao poetologica para fundamentar a tarefa unificadora da Historie, que se via desafiada pelo caos de fontes teimosas. A Historie, que até entao se encontrava na sombra da arte poética, “enxerga agora, entre nés, uma carreira aberta pelos poetas”. Tudo dependeria do plano e das categorias através das quais a Historia deve ser conhecida € representada. A forma mais “natural” de proceder seria aquela na qual “os acontecimentos sao alinhados de forma sistémica... Acontecimentos que no fazem parte do sistema ..., por assim dizer, nao sio acontecimentos, para o historiador”. Somente com sua intervencio sistematizadora prévia, as relagdes pragmiticas sao desvendadas. Se o historiador é “filésofo — ¢ isso ele precisa ser, se quer manter-se pragmitico —, entio ele estabelece maximas gerais, de como os acontecimentos costumam ocorrer”. Ele reflete sobre as condicdes da Histéria possivel, e, com isso, 0 plano histérico é revinculado 4 propria Histéria. A transicdo é gradativa: o historia~ dor fundamenta, compara, atenta para o cardter e as motivagées, “e ousa derivar dai um sistema de acontecimentos, uma forga propul- sora”, que ele ou confirma através de fontes contemporaneas “ou 38 BOSSUET. Discours sur Phistoire univercelle (1681). Paris, 1966, p. 40, 354 (editado por Jacques Trucher) *8 LEIBNIZ. Theodizee, § 149. In: Philosophische Schriften (vol. 6), p. 198. 142

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