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Capitulo primeiro CELEBRAR £ PRECISO fone Buyst Neste exato momento, em algum lugar do mundo, ha gente reunida para celebrar sua f6. Seja em uma linda catedral ou em um pequeno barraco numa periferia de cidade, numa capela rural ou ao ar livre... Seja com muita ou pouca gente: as celebragées littirgicas acontecem por toda parte. Ha celebragdes que s&o esperadas com alegre expectativa e muitos prepa- rativos; ha outras que mais parecem uma obrigacdo, pesada e enfadonha. Por que celebramos, afinal? O que caracteriza uma celebragdo crista? CelebragGes cristas sao iguais no mundo inteiro, em todas as realidades? Para ser um(a) praticante cristao(&), basta ir 4s celebragdes? E néo pode haver cristéos que praticam sua fé apenas numa pratica social ou politica, sem ter de participar da liturgia? E o que as celebragées litiirgicas tam a ver com teologia, com pastoral, com espiritualidade? Estas sao algumas das quest6es que abordaremos neste capitulo introdutério. As palavras-chave (indicando categorias basicas) so estas: celebrar, celebracao; simbolo, ago simbdlica; mito, rito, ritualidade; liturgia crista, celebracao da fé crista; inculturagao; teologia liturgica, pastoral liturgica, espiritualidade liturgica. 1, CELEBRACOES EXISTENTES NAS COMUNIDADES Propomos que neste inicio de estudo vocés fagam uma lista das celebragées conhecidas pelo grupo. Nem sempre nos damos conta da variedade das celebracées liturgicas: celebragdo eucaristica (missa); batismo; confirmagao (crisma); reconcilia- Go; ungdo dos enfermos; ordenagao (diaconal, presbiteral e episcopal); matrim6nio; consagragao de virgens; profissdo religiosa; dedicagéo de igreja e altar; béngaos; exéquias; celebrag&o da palavra de Deus; liturgia das horas (oficio divino); celebragdes catecumenais; celebragdes com doentes e idosos; distribuig&o da sagrada comunhdo fora da missa; hora santa; liturgias domésticas; celebragdes em circunstancias variadas... 11 As celebragdes acompanham determinados tempos do dia, da semana e do ano: oficio da manha e da tarde; oficio de vigilias; celebracdo do domingo, dia do Senhor; ciclo do natal (advento, natal, epifania), ciclo da pascoa (quaresma, triduo pascal, tempo pascal), tempo comum, festas do Senhor, de Maria e dos outros santos e santas; acontecimentos marcantes da vida pessoal e da vida de um povo... Além dessas celebragées consideradas “oficiais”,’ ha praticas cele- brativas do chamado “catolicismo popular”, muitas vezes de cunho re- gional, e que 0 povo foi criando ao longo do tempo porque nao se situava nas praticas oficiais realizadas em latim e para poder expressar sua devo- gao. Assim encontramos novenas, tergos e rosarios, vias-sacras, senti- nelas, congadas, folias, “inceléncias” etc. Ha celebrag6es acompanhando as atividades de varias pastorais: da crianga, da juventude, dos idosos, da satide, da terra, de rua..., retiros, cursos de formagao teolégica, escolas de fé e politica... Nas Ultimas décadas, nas comunidades eclesiais de base foram nascendo outros tipos de celebragées, relacionadas com fatos ou reivin- dicagées de cunho social e politico, vividas na fé: ocupagées de terras ¢ casas; luta por agua, esgoto, luz elétrica; martirio de membros da comuni- dade; procissées, vigilias em pragas ptiblicas pela paz e contra a violén- cia... E, de uma maneira mais profunda, ha uma preocupag4o em se viver todas as celebragées liturgicas sob o Angulo do compromisso social e politico, inerente a fé crista. Atualmente, na América Latina, esté crescendo o interesse pelas praticas rituais dos povos indigenas que conseguiram sobreviver aos 500 anos de colonizagao e pelas tradigées religiosas guardadas vivas pelos afro-descendentes, até bem pouco tempo proibidas e reprimidas. Na sociedade pluralista em que vivemos, é importante interessar-nos por conhecer e apreciar as praticas celebrativas de outras igrejas cristas (igrejas orientais, igreja Anglicana, igrejas protestantes e evangélicas...), assim como de outras tradigdes filosdficas e religiosas (judaismo, islamismo, hinduismo, budismo, etc.), principalmente as que estado Ppresentes em nossa regiao. Confrontem a lista que fizeram com 0 texto acima: Quais as coincidéncias? Quais as diferengas? O que foi esquecido? O que é desconhecido ou nao existe em sua realidade? * Entendemos por praticas littirgicas oficiais as que séio promulgadas pela hierarquia da Igreja e que geralmente constam nos livros litdrgicos, como por exemplo o missal, o3 rituais dos sacramentos e sacramentais, o livro da liturgia das horas. 12 2. CELEBRAR? POR QUE? Constatamos que ha uma rica variedade de celebragées; fazem parte de nossa vida. Nao somente de nossa vida religiosa, mas de nossa vida como um todo. Celebragées, mitos e ritos séo um dado antropoldégico. O ser humano, em qualquer cultura, parece nao poder viver sem eles. Pensem num casamento, nas festas de aniversario nas familias, num velério ou num. enterro... Pensem nos festejos do aniversario de uma cidade, de um clube, da independéncia da nagao... Pensem no carnaval, na comemoragao da vitéria de um time esportivo, na abertura dos jogos olimpicos... “Celebrar” é uma agiio comunitéria, festiva, que tem a ver com “tornar célebre”, solenizar, destacar do cotidiano, colocar em destaque pessoas ou fatos e realgar 0 significado que tém para um determinado grupo de pessoas. Aj surge a pergunta: por qué? Por que celebramos? Por que é preciso celebrar? Em primeiro lugar, o ser humano parece ter necessidade de buscar, expressar e aprofundar o sentido da existéncia, dos aconteci- mentos, da vida e da morte... E, como esse sentido ultrapassa nossa capa- cidade racional, necessitamos de simbolos, de mitos e ritos, de festa. Celebrar, simbolizar e ritualizar a existéncia é tao indispensavel ao ser hu- mano quanto comer e beber. Alias, é 0 que distingue os humanos de outros seres vivos sobre a face da Terra. Nos simbolos ou agées simbdlicas, um sinal sensivel vem carregado de uma realidade n&o-sensivel, néo-palpavel (0 divino, por exemplo, o trans- cendente), e permite nossa identificagao e comunh&o com essa realidade, bem como nossa participagao nela. Os mitos sao narrativas que expressam de forma simbélica as crencas e convicgdes de um povo. Ritos tem como caracteristica a repeti¢ao de determinadas palavras, gestos e agdes sim- bdlicas, possibilitando a expressao comunitaria, a transmissdo, conser- vagao e o aprofundamento do sentido da vida. Cada grupo humano tem sua maneira propria de ver a vida. Cada grupo humano tem sua maneira de ritualizar o sentido da existéncia. Seus simbolos, mitos e ritos, suas festas sdo expressdo de sua identidade. E da conservagao de seus simbolos, mitos, ritos e festas depende a con- servagao de sua identidade, a integragao dos membros no grupo e seu sentido de pertenga. Quando o sentido expresso pelo grupo se refere a uma realidade “divina”, “transcendente”, falamos de simbolos, mitos, ritos e festas reli- giosos. Temos a convic¢ao de que Alguém nos acompanha, nos ouve, nos vé; conversamos com esse Alguém com palavras e gestos (ritos), “cur- timos” sua companhia. Quando estamos sofrendo, na dor, na miséria, na incompreensdo, na persegui¢ao, na soliddo, gritamos para esse Alguém ou imploramos ajuda, seu consolo. Quando estamos felizes, alegres, vivendo em paz, sentimos necessidade de expressar a esse Alguém nossa gratidao. 13 Nés, cristéos, como todos os outros grupos humanos, temos nossas festas, nossos simbolos, “mitos” e ritos que possibilitam expressar e viven- ciar nossa identidade, nossas convicgées, nossa fé. Trata-se de uma ne- cessidade inerente do fato de sermos “humanos”. Sem simbolos, sem ritos, sem celebragées, nao é possivel ser “gente” plenamente. E mediante esses elementos rituais que expressamos nossa relagéo com Alguém, que para nds é o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Além da necessidade antropolégica de ritualizar nossa fé, temos o mandamento expresso de Jesus, dado no contexto da Ultima Ceia, referido por Paulo e Lucas: Fagam isto em memoria de mim... (1Cor 11,23-26; Le 22,19-20). 3, LITURGIA CRISTA Quando falamos em “liturgia crist&” estamos nos referindo a um conjunto de celebragdes que foi nascendo nas comunidades cristas ao longo da historia e que expressam a fé, as conviccées, a maneira de com- preender a vida, a maneira de os discipulos de Jesus se relacionarem com o transcendente, o divino. O adjetivo “crista” indica a centralidade cristologica (ou melhor, cristica) dessas celebragées. Todas se referem a Jesus, 0 Cristo, o Ressuscitado, e expressam 0 sentido profundo (0 mistério) de sua pessoa, sua vida, sua missdo, sua morte e ressurreigdo, sua segunda vinda, como chave de com- preensao de nossa prépria vida. Possibilitam que nos reconhegamos nele, nos identifiquemos com ele e participemos em seu mistério. Toda a liturgia crista € feita em memoria de Jesus, conforme as palavras ja citadas: Fagam isto em meméria de mim... A liturgia crista tem suas raizes na liturgia judaica: parte de fatos. Faz meméria das intervengées libertadoras de Deus na histéria, a favor de seu Povo, com o qual estabeleceu uma alianga. Festas da natureza, como a Pascoa e Pentecostes, recebem novo significado a partir de fatos his- téricos, lidos desde a fé no Deus Unico, o Eterno, e da alianga com ele. O fato principal, exemplar para o povo judeu, 6 a libertagao do povo da es- cravid&o no Egito, o chamado 6xodo (saida), situado por volta de 1200 a.C. Compreendem que foi Deus quem chamou e preparou Moisés como lideranga do povo, que foi Deus quem endureceu 0 coragao do faraé do Egito, que foi Deus quem fez 0 povo hebreu passar a pé enxuto pelo Mar Vermelho e que afogou os egipcios no mar, possibilitando a fuga dos hebreus e a caminhada pelo deserto, até A tomada de posse da Terra Pro- metida. Ao longo da histéria, novos fatos sao interpretados, tendo como referéncia a meméria do éxodo, celebrada anualmente na festa da Pascoa. As Sagradas Escrituras, lidas, meditadas e interpretadas nas assembléias liturgicas, num contexto de didlogo com o Senhor, mantém viva a fé ea 14

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