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FORUM SOCIOLOGICO, a 516 (2 Sei pp 1535. A MORAL DA REDE? CRITICAS E JUSTIFICAGOES NAS RECENTES EVOLUGOES DO CAPITALISMO Luc Boltanski* Um dos principais objectivos do trabalho que temos vindo a desenvolver, nos tiltimos quinze anos no ambito do Grupo de sociologia politica e moral! é reins- crever a questéo da moral no seio da sociologia. Pensamos, efectivamente, que subjacente a uma sétie de falsas oposig&es e de conflitos superficiais (como por exem- plo entre economia e sociologia ou ainda entre abordagens “holistas” “individua- listas, etc...) se encontra um problema central dentro das Ciéncias Sociais que ¢ 0 da relagio entre, por um lado, as construgées que afastam do seu sistema de inter- pretacio os motivos morais invocados pelas pessoas e, por outro lado, as constru- es que, pelo contrério, os tomam em consideragéo ¢ tentam incorpori-los nas andlises que propSem, tendo em conta a maneira como as pessoas se justificam face as outras (¢ também, muitas vezes, face a si préprias) ou, ao invés, se dedicam & critica. 1. Que fazer dos motivos morais? A revelagéo de uma necessidade que poderia escapar 4 consciéncia e mesmo & acco voluntéria das pessoas, que se faria mais ou menos de acordo com as suas proprias leis, e que seria, como tal, orientada para uma finalidade sem que esta seja patente, é algo muito tentador para as Ciéncias Sociais, porque dé a impressao de seguir 0 caminho da unificacéo das Ciéncias Sociais ¢ das ditas Ciéncias da Nature~ za. Mas, nao é a propria natureza por vezes compreendida — como se pode distin- tamente ver na actual discussio do construtivismo — como sendo, precisamente, © conjunto 20 qual pertencem os seres que séo indiferentes maneira como os seres humanos os concebem, indiferentes as suas ideias, aos seus ideais, aos seus valores, aos seus princ{pios de classificacéo, etc.*... Se a sociedade obedece a leis, se tem como base estruturas, se € movida por forcas susceptiveis de estarem em confronto, em * Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris. 14 Luc Boltanski “relagoes de forca” (termo que é, alids bastante problemético, tendo em conta que, para falar de relaggo, h4 que supor alguém capaz de por em relagio, de fazer uma aproximagao), entao, nada de fundamental distingue as Ciéncias Sociais das Ciénci- as da Natureza, e as primeiras podem ser concebidas como tio cientificas quanto as segundas e pretender os mesmos privilégios. No fundo, pouco importa que tal necessidade seja estabelecida por um jogo de entidades ou de estruturas supra-individuais, ou resulte de um proceso cego de agregaco. Como jé foi inimeras vezes constatado, uma concepsio hegeliana da historia € absolutamente compativel com o modelo da mio invisivel que teve, alids, um papel na sua elaboragio que nao se pode esquecer’. No entanto, mantém-se diferengas acerca da instancia sobre a qual se baseia a exigéncia de necessidade ¢, correlativamente, quanto ao destino a dar ao tempo. Enquanto as abordagens estruturais tomam facilmente a forma paradoxal de uma histéria sem acontecimentos, sendo a necessidade realizada pelo desdobramento das estruturas ao longo do tempo, as abordagens que partem de comportamentos indi- viduais agregados de maneira quase instantanea (ou, pelo menos, nao temporizada), sao estabil izadas por uma antropologia subjacente, que faz do interesse 0 motivo das acces individuais, cuja composigao realizaré a ordem necesséria. ‘As abordagens que acabamos de descrever de uma forma generalizada seriam perfeitamente satisfatérias se ndo entrassem em confronto com a questo posta pela existéncia dos motivos morais que as pessoas invocam para justificar as suas aces ou criticar as dos outros. Tendo as ciéncias do homem como objecto seres humanos de carne € oss0, torna-se bastante complicado nao ter em consideracéo esses moti- vos. Mas entio, que fazer deles? As sociologias que se preocupam principalmente com o alargamento de uma necessidade subjacente sio obrigadas a fazer uma antropologia dissociada. Quando procuram explicar as acgées individuais (0 que néo acontece sempre), fazem-no re- correndo a. um modelo disposicional da accai cessétia (e, portanto, previsivel) porque interiorizaram modelos de comportamento (disposigées) que, enraizando-se na sua pertenga as estruturas, podem, por sua vez reproduzir. E assim seguidamente. Mas, 0 que acontece, num esquema deste género, aos motivos morais, aos ideais que as pessoas dizem professar? (Nesta concepgdo, as pessoas nao sio mais que os agentes ou portadores da estrutura.) Apresentam-se duas possibilidades igualmente pouco satisfatérias. De acordo com a primeira, estes motivos morais so apenas a transfigurasio de interesses estruturais ficeis de desvendar. De acordo com a segun- da, a acco (interessada) determinada pela pertenca estrutural, nao se poderia reali zar segundo os seus préprios fins a nio ser dissimulada por motivos de outra natureza, sem raizes na realidade. Nesta antropologia da acco desdobrada, a mao direita ignora © que faz a esquerda. O real realiza-se na inconsciéncia e a consciéncia € iluséria. Um esquema desta natureza, que apresentou o interesse de tornar possfvel uma certa unificagao das Ciéncias Sociais em torno da nogio de inconsciente (0 incons- as pessoas agem de uma forma ne- A moral da rede? Criticas¢ justficagbes nas recentes evolugées do capitalismo 15 ciente da psicandlise, 0 cardcter nio consciente das estravaras linguisticas, 0 perfo- do longo em histéria, a genealogia, sem falar da mao invisivel que realiza o que ninguém quis), embate todavia numa questo nao resolvida (e, sem dtivida irresohivel com os meios oferecidos por este esquema), que € a questi do papel desempenha- do na vida social por esta enorme massa de criticas e justificages, de referencia a ideais e & moral, que uma observagio, mesmo superficial, nao deixaré jamais de notar. Entio, porqué tanto esforco para criticar e justificar se, em ultima anilise, forcas incenscientes fazem esse trabalho? Contra as tentativas de redugéo das justificagdes fornecidas pelos actores a ideologias que dissimulam interesses € relagies de forca, tomamos o partido de le- var a sétio as exigéncias normativas que as pessoas se fazem a si préprias, as suas justificagées. Tal deciso supunha romper com um determinado ntimero de pressu- postos da sociologia critica, muito activa em Franga nos anos de 1970, mas nao acarretava necessariamente da nossa parte o esquecimento ou a rejeigao da critica. Pelo contrétio, colocmos a critica no centro das nossas indagagées, mas conside- tando que a critica, longe de set apanagio do intelectual ou do socidlogo ilumina- do, € uma prética corrente das pessoas ditas “vulgares”. Considerdmos entao que a actividade critica das pessoas constitufa um dos objectos privilegiados da sociologia. Substituimos 0 programa de sociologia critica pelo projecto de constituir uma soci- ologia da critica. Quando se estuda a actividade critica desenvolvida na vide quotidiana, cons- tata-se que a critica, tal como a justificagéo, necessita de pontos de apoio robustos. O objecto privilegiado das nossas investigagoes é, desde entio, constituido por se- quéncias de criticas de justificagdes tais como podem ser observadas no decorrer de disputas em situagdes concretas. Na auséncia de critica, a justificagao € imitil. A justificagao € uma resposta & critica. Mas é também na medida em que a justificagao pode parecer insuficiente que existe a possibilidade de uma renovacio da critica. 2. “Cités” ¢ regimes de justificagao Em De la justification, publicado em 19914 (em colaboragao com Laurent ‘Thévenot), acentuamos a necessidade de ter como apoio regimes de justificagio ligados a prinefpios cuja validade intrinseca seja reconhecida em situagées onde o julgamento é, real ou virtualmente, submetido a uma critica em situago publica (por exemplo, no decorrer de uma reuniéo de empresa que reuna sindicalistas e gestores). Tais julgamen- tos podem ser concebidos como legitimos ¢ tornar possivel um acordo entre diferentes pessoas, porque os referidos julgamentos sao considerados como nao dependentes das propriedades daqueles que os exprimem ¢, particularmente, do seu poder. Tendo estes regimes uma validade generalizada sio susceptiveis de servir de apoio tanto aos argu- mentos enunciados de modo critico, como as justificagoes desenvolvidas pelas pessoas que foram postas em causa 20 responder a essas criticas. 16 Luc Boltanski Recusando a habitual oposiao entre uma sociologia do consenso € uma soci ologia critica, pensamos que estas ordens legitimas sustentam tanto 0 acordo como a critica. Nés designdmo-las por Cités tendo como referéncia as filosofias cléssicas que atribuem como objecto a possibilidade de esbocar uma ordem legitima que repousa sobre um principio de justica. Mas, em divergéncia com essas filosofias politicas, que procuram habitualmente fazer assentar a ordem social num principio Uinico - © que é utépico -, considerémos que, nas sociedades modernas complexas, coexistem varios sistemas de justificasio num mesmo espaco social, sendo sempre mais ou menos pertinentes de acordo com as caracterfsticas da situagio em que sio invocados (isto é, mais concretamente, de acordo com a natureza dos objectos ma- tetiais ou simbdlicos incluidos na situacio). Enfim, por oposigao & “viragem linguistica” e para escapar ao idealismo de uma construgo que apenas conheceria os argumentos utilizados verbalmente, considera- mos que as pretenses das pessoas devem ser confrontadas com a realidade segundo procedimentos mais ou menos estandardizados aos quais damos 0 nome de provas. Esta € a razao pela qual, a cada regime de justificagio, esto associados repertérios de abjectos pertinentes na ordem considerada, em que a sua jun¢éo esboga os contornos de um mundo. A presenga destes objectos nas situag6es consideradas ¢ a sua activa- 40 pelas pessoas empenhadas permite o agenciamento ordenado das provas. E fi- nalmente o resultado dessas provas que confere ao julgamento a sua forca e torna dificil pd-lo em causa. Identificamos seis regimes de justificagao (seis cités): a cité inspirada, a cité doméstica, a cité do renome, a cité cfvica, a cité mercantil e a cité industrial. A iden- tificagao e a modelagio destas cités foram realizadas confrontando-se as filosofias politicas cléssicas, em que cada um destes principios era apresentado sob uma for- ma paradigmitica (por exemplo, para a cité doméstica foi utilizada A politica... de Bossuet’) em exemplificagdes contemporineas extra(das de guias destinadas a em- presas e de enunciados recolhidos no decurso do trabalho de campo. Na cité inspirada, a grandeza é a do santo que atinge um estado de graga ou a do artista que recebe inspiracéo. Revela-se no corpo puro, preparado pelo ascetismo, cujas manifestagies (santidade, criatividade, sentido artistico, autenticidade. situem a forma privilegiada de expressio. Na cité domestica, a grandeza das pessoas depende da sua posigio hierdrquica numa cadeia de dependéncias pessoais. Numa férmula de subordinacio estabelecida segundo um modelo doméstico, 0 laco politico entre os seres € concebido como uma generalizagao do lago da geragio conjugando a tradicéo ¢ a proximidade. O “gran- de” € 0 mais velho, o antepassado, o pai, aquele a quem se deve respeito e fidelida- de e quem concede proteccio ¢ apoio. Na cité do renome, a grandeza depende exclusivamente da opiniéo dos outros, isto é, do ntimero de pessoas que concedem a seu valor e estima. © “grande” da cité civica é 0 representante de um colectivo que exprime a von- tade geral, cons- ‘A moral da rede? Criticas e justficag6es nas recentes evolugdes do capitalismo 7 Na cité mercantil, o “grande” & aquele que enriquece apresentando mercadori- as muito cobigadas num mercado concorrencial, nao desperdigando ali as oportuni: dades. . E, por diltimo, na cité industrial, a grandeza baseia-se na eficécia e determina uma escala de capacidades profissionais. Cada um destes regimes de justificag4o assenta num principio diferente de avaliagao que, ao encarar os seres sob uma determinada relagao (exchuindo outros tipos de qualificacao), permite estabelecer entre eles uma dada ordem. Este princi- pio é designado principio de equivaléncia, porque supée a referéncia a uma forma de equivaléncia geral (segundo um padrdo de medida) sem a qual a aproximagio dos setes seria imposs{vel. Podemos entéo dizer: sob uma tal relagéo (por exemplo a efi- cécia numa cité industrial) as pessoas postas 2 prova revelaram-se como tendo mais ou menos valor. Chamamos grandeza ao valor atribuido as pessoas deintro de deter- minada relagdo, quando tal atribuicao resulta de um procedimento legitimo. Um regime de justificagao, para fornecer ao julgamento um fundamento legitimo, deve ser construido de forma a tornar compativeis duas exigéncias contraditérias. A primeira € a exigéncia de humanidade comum: consiste em reconhecer uma igual digni dade a todos os seres humanos. A segunda é uma exigéncia de ordenamento (hierarquizagio): consiste em ordenar os setes humanos segundo o seu grau de grande- za. Sem desenvolver completamente o modelo, indicamos apenas dois constrangimen- tos que permite reduzir a tensdo entre estas exigéncias contraditérias. O primeiro constrangimento existe porque o estado de grandeza nao deve es- tar ligado de uma vez para sempre as pessoas que podem, sob determinadas condi: Ges, requerer que lhes seja permitido confrontar de novo uma prova que lhes foi desfavoravel (é a razio pela qual as formas de hierarquizagao que se apoiam sob um substrato de cardcter biolégico, racistas ou eugenistas, nio podem ser consideradas como legitimas). O segundo constrangimento existe porque 0 nivel de satisfagio que desfrutam aqueles que foram reconhecidos os maiores beneficia a todos, isto é, tam- bém beneficia os mais pequenos. A grandeza dos grandes sé € legitima se estiver a0 servigo do bem comum. Estes regimes desenvolvem-se segundo uma gramética suméria que especifica, nomeadamente: a) 0 principio de equivaléncia, segundo o qual sio julgados os actos, as coisas € as pessoas no interior de uma determinada cité; b) 0 estado de grande, 0 grande sendo aquele que encarna intensamente os valores da cité assim como 0 esta- do de pequeno definido por defeito em relagao 2 qualidade de grande; c) a definigio daquilo que é considerado em cada um dos mundos baseia-se, entre outras coisas, em categorias de coisas (0 repertério de objectos ¢ os dispositivos), em categorias de seres humanos (0 repertério dos sujeitos) e em verbos (relagoes naturais entre os seres), designando modos de relacionamento préprios segundo uma dada grandeza; d) a relacao de grandeza precisa a natureza das relagdes entre grandes ¢ pequenos, preci- sando particularmente a forma como os grandes, ao contribuir para o bem comum, sao titeis aos pequenos; e) a formula de investimento é uma condigao superior de 18 Luc Boltanski equilibrio da cité, visto que associa o sactificio a0 acesso ao estado de grande, fazen- do com que haja um equilibtio entre os proveitos ¢ os cargos de responsabilidades £) a prova modelo designa, em cada um dos regimes de justificagio, 0 tipo de prova mais indicada para revelar a grandeza das pessoas; g) por outro lado, a gramatica deve especificar a capacidade, presente em todos os homens, que torne possivel a sua elevagio a estados superiores (a dignidade das pessoas); h) finalmente, a figura harmoniosa da ordem natural mostra os ideais-tipo correspondente a um mundo no qual os estados de grandeza sio distribuidos de forma equitativa. Cada uma das cités anteriormente descritas sumariamente pode servir tanto de apoio as justificages como as criticas. Neste contexto 2 critica consiste em denunciar © agenciamento de uma situaéo mais ou menos coerente dentro da Igica de uma cité em nome de argumentos pertinentes na légica de uma outra cité. Denunciar a estandardizagao (cité industrial) enquanto tal, por exemplo, nao permite a expressio da criatividade (cité da inspiracdo). © enquadramento regula também a possibilidade de compromiso entre regimes de justificagio diferentes, em que a inscrigio nos dispositivos faz aumentar a estabilidade. Assim, podemos descrever o direito de trabalho francés como um compromisso entre uma légica industrial e uma légica civica. © quadro de anilise cujas grandes linhas acabo agora de recordar foi utilizado em muitas investigagSes empiticas, em particular na anilise de situagSes de disputa nas quais 0 desacordo tinha por objecto a avaliagio de pessoas. Deste modo estudé- mos comissdes de professores destinados a avaliar os alunos, os processos de selecgao pata admissio nas empresas, casos de erros profissionais, conselhos municipais que tinham de atribuir recursos a departamentos em concorréncia, os procedimentos relativos a atribuigéo de prémios literdtios, etc. 3. Da estdtica A dinamica Os seis regimes de justificagio que identificamos em De la justification nao si0 apresentados como seres transcendentais que seriam inerentes & natureza humana na sua dimensao social, mas como seres histéricos que produzem compromissos varidveis de acordo com as sociedades politicas em que esto inseridos. Enquanto seres histéricos, os regimes de justificag4o s4o também submetidos & mudanga atra- vés do tempo, segundo modalidades relativamente contingentes resultantes do en- contro de séties causais independentes. Em De la justification, afirmamos claramente que estes regimes aparecem ¢ desaparecem ao longo da histéria, mas sem fornecer grande exactidio, O modelo apresentado nesta obra tem caracteristicas estéticas. Os regimes de justificasao ligados a filosofias politicas de épocas muito distantes sio apresentados numa simultaneidade relativamente as suas aplicagSes contemporaneas. © problema da historicidade dos pontos de apoio normativos ¢ uma das questées abordadas por Eve Chiapello, professora no HEC, e por mim, numa obra recente, Le nowvel esprit du capitalisme’, que tem um alcance mais geral. Voltémos es- ‘A moral da rede? Criticas ¢ justificagdes nas recentes evolugdes do capitalismo 19 pecificamente ao modelo das cités, mas tendo desta vez como objecto a forma como os regimes de justificagao se formam ou, ao invés, desaparecem. Por outras palavras, pro- curdmos desenvolver de uma forma dinémica 0 modelo estitico apresentado em De la “justification. O livro apresenta uma comparagio sistemdtica de dois corpus compostos de extractos das principais obras de gestio publicados em francés (embora alguns deles sejam traduzidos do inglés), referentes a duas épocas diferentes: uma referente década de 60 a outra referente 4 década de 90. Ao todo, aproximadamente 150 textos, foram numerados ¢ tratados através de uma nova légica de anélise de discur- so®. Le nouvel esprit du capitalisme tem por objecto as mudangas globais que afecta- ram nos tiltimos trinta anos aquilo que, seguindo Max Weber, designamos 0 espirito do capitalismo. Mas hoje referirei desta obra volumosa apenas os aspectos que dizem directamente respeito 4 mudanga das formas de justificagio. A comparagio entre os discursos de gestio dos anos 60 ¢ as dos anos 90 re- vela mudangas to importantes que néo podem apenas ser descritas come resultado da variago do peso relativo dos diferentes regimes de justificagao ou de um nevo arranjo dos principais compromissos que associam os diferentes regimes entre si. Pareceu-nos que nao podfamos apresenté-los sem mencionar o aparecimento de um novo regime de justificagao, de uma nova cité, & qual chamamos a cité por projecto. A literatura de gestio contém uma forte 0s dispositivos de organizagio ¢ a modificar as disposigdes gerais dos actores da empresa e, particularmente, os quadros ~ 0 seu ethos sécio-econémico -, ela é muitas vezes construfda segundo uma retérica do antes e do agora: antes fazfamos assim pata ter éxito face & concorréncia, agora temos de fazer de outra forma. Assim, a literatura de gestéo dos anos 90 comporta muitas criticas As normas de gestéo em vigor nos anos 60, ¢, muitas vezes, a primeira é construida por oposi¢ao & segunda, como por exemplo, quando opie & antiga exigéncia de planificagio uma exigéncia de flexibilidade fazendo apelo ao uso da intuigao. Mas a procura de novos caminhos de lucro nao é 0 tinico objective da litera- tura de gestéo. Ela tem também uma dimensio moral, no sentido em que acentua jimensio critica. Destinada a mudar as maneira de obter lucto compativeis com uma exigéncia de justiga, em primeiro lugar relativamente aos empregados da empresa, mas também, de um modo mais geral, em selagio a0 bem comum. Assim, critica também, embora muitas vezes de forma implicita, os modos injustos e brutais de procurar © lucto pelo lucro. A lite- ratura de gestdo tem assim uma dimenso ideoldgica na medida em que fornece aos actores da empresa, no apenas directivas para atingir os objectives econémicos, mas também boas razées que justificam 0 compromisso na procura do lucro. Faculta- Ihes, assim, argumentos para responder as criticas de que poderao ser alvo. E por apresentar esta dimensio ideolégica que a literatura de gestdo constitui um materi al adequado para documentar a descrigéo dos regimes de justificagao. Uma das tarefas da literatura de gestio que se desenvolveu na segunda meta- de dos anos 80 € nos anos 90 foi a de coordenar as mudangas ocorridas nas empre- 20 Luc Boltanski sas a partir de meados dos anos 70. Foi por isso que se esforsou por recolher reconfigurar miiltiplas mudangas dispares, locais, e muitas vezes, pelo menos a pri- meira vista, de fraca amplitude, com a finalidade de as organizar e de formular uma representagio coerente do mundo da producéo e da troca. E ao fazer uma ampla utilizagio da metéfora da rede ¢ a0 importar vocabulério do paradigma reticular que a literatura de gestéo conseguiré finalmente atribuir um sentido — quer dizer, dar um significado geral e uma orientaggo — a0 mundo caético resultante de miltiplas movimentagées experimentadas nas empresas, para sait daquilo que descreverei da- qui a pouco como a crise de legitimidade do capitalismo que marca o final dos anos 60 € 0 inicio dos anos 70. 4, Um novo regime de justificacao: a cité por projecto A literatura de gestao dos anos 90 parece fazer referéncia a um novo tipo de grandeza, pertinente num novo regime de justificago ao qual chamdmos a cité por projecto. E claro que os textos dos anos 90 estéo longe de conter apenas a retérica do projecto. Encontramos neles a referéncia — embora em graus muito diferentes — a outras Idgicas de acgio, como sejam, por exemplo, as Iégicas mercantis, industri- ais ou orientadas para a reputagio. Mas, de acordo com 0 método de ideal-tipo, esforgémo-nos por extrair dos textos de gestio mais recentes aquilo que neles assina- lava a singularidade, sem insistir em tracos mais familiares € sempre presentes, como por exemplo, todos aqueles que remetem para uma légica industrial. O tetmo cité por projecto foi transposto de uma denominacéo frequente na lite- ratura de gestio: a organizagao por projectos. Esta invoca uma empresa em que a propria estrutura é constitu(da por uma multiplicidade de projectos que associa varias pessoas algumas das quais participam em diferentes projectos. A prépria natureza deste tipo de projectos, que é a de apresentar um infcio e um fim, os projectos sucedem-se e substituem-se, recompondo, ao sabor das prioridades e das necessida- des, os grupos ou as equipas de trabalho. Por analogia, podemos falar de uma estru- tura social por projectos ou de uma organizagao geral da sociedade por projectos. A cité por projectos apresenta-se assim como uma sistema de constrangimentos que pesa num mundo em rede (um mundo de conexes) incitando em sé criar ligagSes e em estender ramificages que respeitem as méximas de acco justificavel referentes aos préprios projectos. O termo que codifica as formas pelas quais se deve adequar a justica a um mundo reticular no podia contentar-se com o facto de fazer directamente referéncia & rede. Com efeito, um determinado niimero de constrangimentos devem pesar no fuaci- onamento da rede para que esta possa ser qualificada de justa, no sentido em que as grandezas relativas atribufdas aos seres aparecam naquele contexto como fundadas e legitimas. A equidade na distribuiggo das grandezas supde, em funcio das contri- buigdes ¢ num determinado momento, um fechamento da lista que diz respeito aos ‘A moral da rede? Criticas e justificagbes nas recentes evolusées do capitalismo 21 seres humanos. Ora num mundo em rede nao € possivel qualquer fechamento. A rede alarga-se € modifica-se sem parar, apesar de no existir qualquer princ{pio su- ficientemente pertinente para fazer parar num determinado momento a lista da- queles entre os quais uma justica equilibrada possa ser estabelecida. E esta a razio pela qual a rede nao pode constituit, por si sé, 0 suporte de uma cité. No tépico da rede, a propria nogio de bem comum é problemdtica porque, a elevada indeterminagao de pertencer ou nao 4 rede, faz com que nao se saiba entre quem possa ser partilhado em «comum» um bem e também, por isso mesmo, entre quem possa ser estabelecida uma justiga equilibrada. De facto, uma exigéncia de justiga nao € capaz de transpor inteiramente unidades conhecidas na base de uma metéfo- ra espacial (de unidades representéveis), no interior das quais possa ser avaliada a pretensio de as pessoas acederem aos bens materiais ou simbélicos em fungio do seu valor relativo. A nogio de “projecto”, no sentido em que a entendemos aqui, pode ser com- preendida como uma formacio de compromissos entre exigéncias que se apresen- tem 2 priori como antagonistas: as que resultam da representagio em rede e as que so inerentes a0 designio de proporcionar uma constituicéo que Ihes permita fazer julgamentos e regenerar ordens justificadas. Sobre 0 tecido sem costuras da rede, os projectos configuram de facto uma multiplicidade de mini-espagos de célculo, no interior dos quais as ordens podem ser produzidas e justificadas. A cité por projecto faz assentar sobre a rede um constrangimento para a submeter a uma forma de jus- tiga que salvaguarde apesar disso 0 procedimento e valorize as qualidades do artifice das redes, 0 que nenhuma das cités j4 estabelecidas estava habilitada ou em condi- 6es para o fazer. Esta cité apoia-se na actividade do mediador que langa as maos na formacio das redes, de forma a dotar-lhe de um valor préprio, independentemente dos objectivos procurados e das propriedades fundamentais das entidades entre as quais_mediagio se realiza. Nesta perspectiva, a mediagio € um valor em si mesmo, ou melhor uma gran- deza especifica da qual qualquer actor se pode fazer valer quando «poe em relacao», «estabelece lagos» e contribui por seu intermédio para «tecer as redes». Mas, formular a hipétese de que assistimos & formagio de uma nova cité para as quais as provas que importam estariam relacionadas com a produgio de lagos nao significa, evidentemente, que 0 estabelecimento dessas redes constituiria uma novi- dade radical, como o sugerem, por vezes, os escritos que lhes sio dedicadas. A nossa posigio é diferente. A formagao de redes, mais ou menos extensas, néo € mais uma realidade nova tal como nio era a actividade mercantil na época em que Adam Smith escreve A Riqueza das Nagées. Mas tudo se passa como se tivéssemos que esperar pelo ultimo tergo do século XX para que a actividade de mediador, a arte de tecer ¢ de utilizar os mais variados ¢ longinquos lacos, se encontre autonomizada, identificada e valorizada por ela prépria, separada de outras formas de actividades que até af a encobriam. E este processo que nos parece constituir uma novidade digna de atengio, Luc Boltanski Retomando a gramstica da exposicdo das cités que evoquei hi bocado vou ago- ra apresentar as grandes linhas deste novo regime de justificagio que parece estar actualmente para emergir. 1) Superior comum: Numa cité por projectos, 0 equivalente geral, relativamen- te ao qual se mede a grandeza das pessoas e das coisas, é a activida- de, Mas, em discrepincia com 0 que se vetifica na cité industrial, onde a actividade se confunde com o trabalho € onde os activos so, por excelén- cia os que tém um trabalho assalariado, estavel e produtivo, a actividade, na cité por projectos, esta a cima das oposigées do trabalho ¢ do ndo-traba- Iho, do estdvel € do instavel, do assalariado e do nao-assalariado, do inte- resse e da benevoléncia, do que é avalidvel em termos de produtividade e do que, nao sendo mensurdvel, escapa a toda e qualquer avaliagio contabilistica. A actividade tem como finalidade gerar projectos ou integrar-se em pro- jectos iniciados por outros. Mas o projecto, que nao € uma instituigzo preestabelecida, nao tendo existéncia no exterior do encontro, a actividade por exceléncia consiste em inserir-se nas redes e em exploré-las, para rom- per o seu isolamento ¢ possibilitar encontros com pessoas ou estar proxi- mo de coisas de modo a produzir um projecto. A actividade manifesta-se na multiplicidade de projectos de todas as ordens que podem ser acompa- nhados conjuntamente ou ser desenvolvidos sucessivamente, constituindo 9 projecto, nesta Iégica, um dispositive transitério. A vida é concebida como uma sucessio de projectos, tanto mais vélidos quanto maior for a diferenca existente entre elas. A qualificagio destes projectos segundo ca- tegorias pertinentes noutras cités (tais como familiares, afectivos, educati- vos, artisticos, religiosos, politicos, caritativos...) e sobretudo a sua classificago de acordo com a distingo entre aquilo que releva do lazer ¢ aquilo que tem relagdo com 0 trabalho nao é, na légica desta cité, aquilo que importa reter, a nao ser de forma muito secundéria. O que importa ¢ desenvolver uma actividade, quer dizer, nunca ter falta de projectos, falta de ideias, ter sempre algo em vista, em preparagao, com outras pessoas com vontade de fazer qualquer coisa que as leve a encontrar-se. Cada um sabe, no momento em que se empenha num projecto, que 0 empreendimento para 0 qual vai contribuir esta destinado a ter um tem- po de vida limitado e que ele no apenas pode mas deve efectivamente terminar. A perspectiva de um fim inevitdvel e desejével acompanha o em- penhamento sem afectar 0 entusiasmo. E justamente porque 0 projecto é uma forma transitéria que se ajusta a um mundo em rede: a sucessio de projectos, ao multiplicar as conexdes e ao fazer proliferar as ligagdes, tem como efeito 0 alargamento das redes. ‘A moral da rede? Criticas e justificagSes nas recentes evolugées do capitalism 23 2) Relagées naturais: Num mundo conexionista, os seres tém como preocu- pagio natural 0 desejo de estar ligados uns aos outros, de entrar em liga- Ses, de criar lagos para nio estarem isolados. Para terem éxito, devem confiar ¢ dar confianca, devem saber comunicar ¢ também de ser capazes de se ajustar aos outros ¢ as situagdes de acordo com o que estas exigem aqueles, sem serem travados pela timidez, a rigidez ou a desconfianga. 3) Estado de «grande»: O «grander da cité por projecto adapta-se com facili- dade ¢ ¢ flexivel. Pode passar de uma determinada situagio para outra muito diferente ¢ ajustar-se a ela. Ele é polivalente, capaz de mudar de activida- de ou de ferramenta. Por isso, é empregavel, isto é, no universo da empre- sa, € capaz de se inserir num novo projecto. O grande desta cité é também activo ¢ auténomo. Sabe correr riscos para fazer novos contactos, ricos em possibilidades e descobrir as boas fontes de informacio afim de evitar os lagos redundantes. © «grande» da cité por projecto nao € 0 homem em parte nenhuma. A vontade por todo o lado em que se encontra, também sabe ser local. De facto, nao tendo a rede uma representagao de desvio, as ac- ‘goes encontram-se sempre encastradas na contingéncia da situagdo presente. Sabe valorizar a sua presenga nas relagdes pessoais face a face. O «grande» torna manifesto ( sem que isso possa ser considerado fruto de uma estra- tégia ou de um célculo) aquilo nao é redutivel as propriedades estatutérias que o definem no seu curriculo, Em presenga, € uma verdadeira pessoa, no sentido em que, longe de realizar mecanicamente o seu papel social, sabe guardar a distancia e fazer do afastamento em relagao ao papel aquilo que o torna sedutor. Mas estas qualidades nao sao suficientes para definir 0 estado de «gran- de», porque elas podem ser accionadas de forma oportunista, numa estra- tégia puramente individual para atingir 0 sucesso. Mas o «grande», na légica da cité, é também aquele que poe as suas qualidades especificas ao servigo do bem comum. O «grande» da cité por projecto é, por conseguinte, aque- le que é capaz de fazer com que os outros se empenhem, porque inspira confianga, porque a sua visio produz entusiasmo. Tem qualidades para animar uma equipa que nao dirige de forma autoritéria como chefe hie- rarquico, mas escutando os outros de forma tolerante e respeitando as diferengas. A equipa confia nele na medida em que ele redistribui as co- nexdes que soube fazer ao explorar as suas redes. O chefe de projecto de- senvolve assim a empregabilidade dos seus colaboradores. 4) Repertério dos sujeitos: Os seres exemplares da cité por projecto sie todos aqueles que tém um papel activo na expansio ¢ na animagio das redes que agem como mediadores, como strategic brokers. Sio os chefes de pro- jecto agora designados em Franca com o termo de manager para os distin- 24 5) 6) 7) 8) Lue Boltanski guir dos antigos «quadros», desacreditados e desvalorizados. Sao os inov: dores, que tém como medelo os sdbios e, sobretudo, os artistas. Tém como principal qualidade a intuigéo ¢ o faro (por oposigao ao antigo «quadro» calculador e planificador). Repertério dos objectos: Num mundo em que a principal operacéo é 0 estabelecimento de conexées, € normal encontrar uma forte presenga das novas tecnologias informdticas de comunicacio. Os dispositivos que carac- terizam a empresa posmoderna, posfordiana, em rede, ete. sio também frequentemente mencionados (especializagao flexivel, externalizacéo, uni- dades auténomas, franchises, Te...)- Estado de «pequeno»: Numa cité por projecto, 0 «pequeno» & aquele que nao sabe comprometer-se, porque nio sabe dar confianga, ou ainda aquele que nao sabe comunicar porque é fechado, porque tem ideias paradas ou € autoritdrio intolerante. A rigidez, que é 0 contedtio da flexibilidade, constitui, neste mundo, o principal defeito dos «pequenos». Tudo o que diminui a mobilidade é um factor de rigidez, como pot exemplo, a liga- so a uma profisséo ou 0 enraizamento a uma regido. O «pequeno» nio explora as redes. Por isso, esté ameagado de exclusio, isto é num ui reticular, de morte social. Atelacéo de grandeza: A relagao entre os «grandes» e os «pequenos» é justa quando em troca da confianga que os «pequenos» depositam nos «gran- des» e do seu zelo no empenho em projectos, os grandes valorizam os P Proj 8 pequenos afim de aumentar a sua empregabilidade, isto é, a sua capacida- de, uma vez terminado 0 projecto, de se inserirem num outro projecto. Proj Proj erso Férmula de investimento: Numa cité por projecto, o acesso ao estado de «grande» supde o sacrificio de tudo 0 que pode constituir um entrave & disponibilidade. © «grande» renuncia a ter um projecto que dure toda a vida (uma vocagio, uma profissio, um casamento, etc...). Ele é mével. Nada deve impedir as suas movimentagées. E um némada. Os sacrificios feitos tém como efeito aumentar a ligeireza dos seres, quer sejam pessoas ou empresas (lean production). A exigéncia de ligeireza supde a rentincia 3 estabilidade, a0 enraizamento, & dedicagéo as pessoas € as coisas. Em rela- io & propriedade que o torna pesado, o homem da cité por projecto prefe- re outras férmulas, tais como o aluguer que também lhe possibilica desfrutar dos objectos. Pelas mesmas razées, 0 «grande» desta cité recusa as respon- sabilidades institucionais, que séo um entrave & mobilidade, porque pre- fere a autonomia a seguranga. O «grande» da cité por projecto também & ligeiro no sentido em que esté livre do peso das suas proprias paixdes ‘A moral da rede? Criticas ¢ justificages nas recentes evolugées do capitalismo 25 valores. Nao existe nenhum «valor» a0 qual esteja definitivamente ligado, a nao ser a tolerancia relativamente a todos os valores. O homem ligeiro jé 86 pode, entio, criar raizes em si proprio, a nica instdncia permanente num mundo complexo, incerto ¢ mével. Mas cada um sé é ele préprio. porque é os lagos que 0 constituem. 9) prova modelo: A prova modelo é a passagem de um projecto a outro. Se é verdade que a prova por exceléncia é a passagem de um projecto para outro, o mundo ¢, na légica de uma cité por projecto, tanto mais justo ¢ competitive quanto mais 0s projectos forem curtos, numerosos e mutaveis. 10) Configuraco harmoniosa: A forma natural do mundo é a rede. Ela im- poe-se a todos os seres, quer sejam humanos ou nio-humanos, ¢ tudo isto mesmo sem o conhecimento dos actores. Entrémos no dispositivo interpretativo das graméticas dos seis mundos indica- dos anteriormente (mundos da inspiragdo, doméstico, da reputasio, civico, indus- trial ¢ mercantil) como no da gtamética da cité por projecto. As gramiticas sto representadas, na sua forma informatizada, por agrupamentos ou categorias de pa- lavras associadas a um mundo ou a outro. De seguida, é possivel comparar os dois corpus de gestio, 0 dos anos 60 ¢ o dos anos 90 sob 0 aspecto da presenga ou da auséncia das diferentes categorias. A presenga de uma cité ser4 aqui medida pela soma de todas as ocorréncias num dado corpus, dos membros da categoria criada para a representar. A légica industrial € dominante nas duas épocas, o que nao é surpreendente visto que os dois corpus tém por objecto a melhoria da organizacao do trabalho. Mas esta proeminéncia € quase absoluta nos anos 60, enquanto que nos anos 90 € mais relativa devido ao lugar ocupado pelos seres da cité por projecto. Por outro lado, nos anos 60, a segunda légica, por ordem de importincia, é a Iégica doméstica. Nos anos 90 é a légica da rede que ocupa esta posi¢ao, o que contribuiria para verificar a hipétese de uma substituigéo, ou melhor, de uma absorgéo da Iégica doméstica pela ordem conexionista. Por fim, a manutengio da Iégica mercantil em terceiro lugar sugere que as mudangas que afectaram 0 mundo do trabalho de hé trinta anos a esta parte se aparentam menos com uma subida do poder dos dispositivos mercantis do que de uma reorganizagéo que se auto-descteve numa légica de redes. Devemos por fim notar 0 apagamento do mundo civico nos anos 90 (cuja importincia nos anos 60 exprimia uma forte implicagao do estado na economia ) ¢, por outro lado, um forte aumento do mundo da inspiragio nos anos 90, que pode ser relacionado com a importancia dada & inovagao, ao risco ¢ as qualidades pessoais (como a intuigao) dos actores da empresa. 26 Luc Boltanski A cité por projecto, tal como a acabei de esbocar, refere-se sobretudo a0 mun- do da empresa. Mas, se tomarmos em consideracao trabalhos recentes sobre, por exemplo, as mudangas actuais da representagao da familia ou sobre sinopses de fil- mes de ficgdo apresentados na televisio, poderemos notar que € realmente uma re- presentagio geral que se esté a impor num grande ntimero de dreas. Diferentes indicios (demasiado longos para que possam ser aqui descritos em detalhe) sugerem que a metéfora da rede tende progressivamente a ser adoptada com uma nova re- presentagio geral das sociedades. E assim que a problematica do laco, da relagio, do encontro, da ruptura, da perda, do isolamento, da separagio enquanto preltidio da instauragio de novas ligag6es, da formacao de novos projectos, se encontra no centro das mudangas da vida pessoal, amigével ¢ sobretudo familiar. Estes universos so, por isso, tal como 0 mundo do trabalho, marcados por um crescimento da tensao entre a exigéncia de autonomia ¢ o desejo de seguranga. 5. A dinamica da mudanga normativa: categorizagio ¢ deslocagées Uma grande parte de Le nouvel esprit du capitalisme & consagrada & andlise histérica dos processos que levaram & formagao desta representagao em rede do mundo social. Sem retomar estas andlises em detalhe, vou tentar, para terminar, descrever as grandes linhas do projecto que Eve Chiapello e eu préprio elaborimos, para dar conta dessas mudangas. Este projecto tem como particularidade evidenciar as formas de mudanga (um pouco como 0 modelo elaborado por Kuhn para dar conta das revolugées cientificas) sem procurar discernir uma orientagéo final nem estabelecer as «leis da histéria», fossem elas tendenciais. Do mesmo modo, nao pro- curamos determinar as causas da mudanca, considerada, como teria sido 0 caso se, por exemplo, nos tivéssemos empenhado em explicar a reticularizacio do mundo através do desenvolvimento dos instrumentos de comunicasao, da expansio das fer- ramentas informéticas ou do aumento de trocas e da mundializagao. Darei, em primeiro lugar, algumas indicagées gerais sobre a forma como con- cebemos a formagio destes apoios normativos a que chamémos cités, depois, nos pardgrafos seguintes, darei informasio precisa sobre a forma como podemos enten- der 0 estabelecimento da cité particular, que € a cité por projecto na sua relagio com. a dinamica capitalista ¢, particularmente, com os seus recentes desenvolvimentos. A mudanga dos regimes de justificagzo parece ligada, de forma muito geral, & formagio de grupos de actores que tomam a iniciativa de se libertar dos entraves que se opdem a perpetuagao das vantagens de que beneficiam, ou 4 sua extensio, procurando novos caminhos de sucesso ¢ de reconhecimento sem passar pelas provas de seleccio legitimas naquele momento. Tentam, entio, contornar as provas instituidas, experimen- tando deslocagées ousadas, locais e muitas vezes de fraca amplitude. Estas deslocagdes, quando bem sucedidas, tendem a modificar o sistema de provas, substituindo as antigas provas, instituidas, visiveis, muitas vezes, regulamen- ‘A moral da rede? Criticas ¢ justificagbes nas recentes evolugées do capitalismo 7 tadas pelo direito e muito expostas a critica devido & sua visibilidade, por novas provas, pouco formalizadas ¢ pouco reconhecidas. Estas deslocagées permitem por essa via aumentar o peso telativo das relagées de forga, por oposicéo as formas de relagies reguladas e reconhecidas como legitimas. Distinguimos efectivamente, dois regimes de provas: um regime de provas de ‘forga e um regime de provas legitimas. Qualquer prova supée o empenho de forsas. ‘Mas, as provas sio consideradas legitimas quando a inscriggo da forga esta submeti- da aos constrangimentos do modelo de cité e, particularmente, quando é especificada a natureza da prova que pode set posta em ac¢io e quando © dispositive da prova permite separar 0 recurso aos outros recursos de outras forcas. A prova legitima é, portanto, em primeito lugar, um teste de alguma coisa: por exemplo, da capacida- de industrial, do oportunismo mercantil, do respeito dos deveres domésticos ou ainda — para dar o cémodo exemplo dos testes de seleccio escolar ~ de latim, de sociolo- gia, ete, No caso da prova legitima a forca em acco é julgada aceitével quando foi objecto de um trabalho de qualificagio ¢ de categorizacao. Por oposigio, pode-se definir a prova de forca pelo facto que ela constitui uma prova na qual qualquer forsa se pode comprometer sem ser especificada, Tudo é bom quando assegura 0 sucesso. A estes dois tipos de provas correspondem a dois regimes diferentes de accio. - Chamamos ao primeiro regime de categorizacdo, porque a acco afronta o jul- gamento num espaco piiblico. O julgamento apoia-se ali em principios de equivaléncia explicitos, reconhecidos, e, muitas vezes, inscritos no direito. Este regime supde entéo a referencia a convengoes dotadas de validade geral ¢ de uma exterioridade (isto ¢, se se quiser de uma forma de transcendéncia) que podem, como tal, ser encaradas independentemente das situagdes onde elas séo executadas. - Designamos 0 segundo com 0 termo regime de deslocagdo, porque a orienta- sao da acco € das forcas empenhadas na accéo se modificam ao sabor das, circunstancias e das resisténcias que encontram. A prova é, neste caso, uma prova de forcas. A deslocacao faz a economia do julgamento. Por oposigéo & categorizacao passa-se da referéncia as convengGes € nao se supde nem a exterioridade nem a generalidade. A deslocacio é, por isso, sempre local, ocasional, circunstancial. Confunde-se facilmente com o acaso ¢ contenta-se com uma reflexividade limitada. A deslocagao pode ser descrita tendo em conta um tinico plano. Como tal, escapa ao constrangimento da justificasao que supe a referencia a um segundo nivel, aquele em que se situa precisamente a convengio de equivaléncia, quando se passa para uma légica da categorizacio, Uma nova cité tem oportunidades de se estabelecer quando duas condigées se encontram reunidas. Por um lado, quando aqueles que realizam os referidos deslo- camentos vém 0 seu poder a consolidar-se, de tal forma que se sentem em posicéo 28 Lue Boltanski de reivindicar um reconhecimento préprio ¢ de se vangloriar de terem dado uma contribuicao especifica a0 bem comum. Por outro lado, quando as deslocagées que operaram, assumidas até af pelos outros como individuais, circunstanciais ou mar- ginais, comegam a ser encaradas ‘na sua eficdcia de natureza geral. Sao, entao, & partida, confrontados com a critica, que reconhece nos dispositivos originados das suas deslocagdes como novas provas ainda nao identificadas como tais nem categorizadas. Os actores a quem estas deslocagées foram favordveis podem entio procurar claborar para si préprios ¢ fazer reconhecer pelos outros um valor, uma grandeza, que definem a forma especifica como eles influenciam 0 mundo e lhe confere uma dimensao moral auténoma, de modo a tornar justificével as novas provas originadas das deslocagées que foram desenvolvidas. E sé entéo que se realiza 0 trabalho de teorizagéo (dependente outrora da filosofia moral e politica e hoje, numa larga medida, dependente das ciéncias sociais), tornando possivel 0 alargamento da vali- dade das priticas e dos valores assim resgatados e de preparar 0 fundamento de uma nova forma de bem comum. Este trabalho de legitimacéo defronta-se com o estabelecimento de normas (e, muitas vezes, com uma regulamentacao de tipo juridico) de forma a distinguir as maneiras moralmente aceitéveis ¢ as maneiras imorais e abusivas (puramente egots- tas) de utilizar os novos recursos. A cité aparece-nos, entio, vista sobre este angulo, como um dispositivo critico autoreferencial, interno, imanente a um mundo em construgio ¢ que cuja duragao deve set limitada. ‘Assim, por exemplo, as actividades mercantis, que possuem um cardcter uni- versal, precedem a emergéncia de justificagées legftimas que repousam sobre © mer- cado. Para que o mercado possa servir de medida a uma forma de bem comum, é necessério que a actividade comercial seja considerada pelo seu valor préprio € nao s6 pela contribuigéo que pode fornecer a grandeza de outros mundos (a poténcia do Principe, a grandeza da Igreja, etc.). Mas a sua propria legitimagao, ou a legitimagao enquanto tal, supd< nesse momento o estabelecimento de regras (no- meadamente, regtas que assegurem a transparéncia do mercado ¢ uma concorréncia equitével) que sejam do mesmo modo constrangimentos que limitem a realizacio do lucro. Uma tal autonomizagio torna-se favorével se aparecem, em grande ntime- 10, pessoas cuja actividade é suficientemente especializada e equipada de dispositi- vos ¢ de objectos especificos, as relagées bastante densas ¢ 0 papel social bastante importante para que a sua forma de vida seja objecto de um trabalho colectivo de estilizagao e de justificagao. Resumiremos agora o seguinte argumento: as transformagées do capitalismo a0 longo dos iiltimos trinta anos favoreceram o alargamento de um mundo que podemos chamar conexionista (que se auto-descreve na metéfora da rede), ¢ a mul- tiplicagao de pessoas que encontram a sua justificagéo numa actividade de media- dores. Nesta dptica, a formulagio da cité por project aparece-nos orientada para a Legitimagao de um tal mundo em conexio e para a limitapdo das préticas que podem ‘A moral da rede? Criticase justificagBes nas recentes evolugées do capitalsmo 29 ali ser realizadas de maneira a que seja respeitada um constrangimento de justifica- a0 tendo como teferéncia um bem comum. 6. As transformagées do capitalismo ¢ a formagio da cité por projecto © modelo de mudanga normativa em curso associa a formagio de uma repre- sentagio do mundo em rede ¢ da cité por projecto 4s mudangas que afectaram 0 ca- pitalismo nos iltimos trinta anos. Esta apresenta um suporte de cenografia que comporta trés actuantes: 0 capitalismo, o espirito do capitalismo e a erltica. 1) Q capitalismo: é caracterizado a) por uma férmula minima assente sobre uma exigéncia de acumulacio ilimitada por meios formalmente pacificos. O capital esta separado das formas materiais de riqueza e s6 pode aumentar se for constantemente reinvestido e circulante, o que lhe confere um cardc- ter realmente abstracto que vai contribuir para tornar perpétuo o proceso de acumulacao; b) pela concorréncia: cada entidade capitalista é constante- mente ameagada pelas acgées provenientes das entidades concorrentes. Esta dindmica cria uma inquietagio permanente ¢ oferece ao capitalista um motivo muito poderoso de auto preservaséo para continuar, sem fim a vista, 0 pro- cesso de acumulacio; c) pelo salariado: uma parte da populagao que tem pouco ou nenhum capital obtém os seus rendimentos da venda do seu tra- balho ¢ nao da venda dos produtos do seu trabalho. Esta populagio no dispoe de meios de produgio e depende das decisdes daqueles que os de- tém para trabalhas. 2) O espirito do capitalismo: O capitalismo €, em muitos aspectos, um siste- ma absurdo: os assalariados perdem a propriedade dos resultados do seu trabalho e a possibilidade de levar uma vida activa fora do Ambito da su- bordinagao. Quanto aos capitalistas, encontram-se acorrentados a um pro- termindvel ¢ insacidvel. Para estes dois géneros de protagonistas, a insergéo no processo capitalista tem uma particular falta de justificagées. Ora a acumulagio de capital exige a mobilizagio de um grande niimero pessoas que tém fracas oportunidades de lucro. Portanto, pelo menos uma boa parte destas pessoas nao estd particularmente motivada em empenhar-se em praticas capitalists, quando nao Ihes séo hostis. Este problema é particu- larmente espinhoso nas economias modernas que exigem, particularmente dos quadros, um alto nivel de empenho. A qualidade do empenho que podemos esperar nao depende unicamente dos estimulos materiais, mas também da pos- sibilidade de fazer valer as vantagens colectivas que © capitalismo proporciona. Chamamos espérito do capitalismo 4 ideologia que justifica o empenho no capi- talismo e que torna esse empenho desejével. cesso 30 Luc Boltanski 3) A critica: A critica do capitalismo € tio antiga quanto o proprio capitalis- mo. E porque é objecto de criticas que © capitalismo € levado a ser justifi- cado. Na auséncia de criticas, a justificagao ¢ intitil. Mas, o capitalismo nao pode procurar essas justificages em si préprio porque, definido pela ex géncia de acumulacao, ele é amplamente auténomo relativamente as just ficages morais ¢ politicas. As justificagdes do capitalismo apoiam-se, entao, em construgées normativas muito gerais a que designdmos por cités. Distinguimos dois tipos de criticas 20 capitalismo, em curso desde o século XIX. A primeira é a critica social: ela coloca 9 acento sobre as desigualdades, a miséria, 2 exploracio, ¢ 0 egofsmo de um mundo que estimula o individualismo por oposi- sao a solidariedade. O seu principal vector foi o movimento operdrio. A segunda forma de critica (a qual Eve Chiapello consagrou a sua obra anterior, Artistes versus managers), chamamos critica artista. Desenvolveu-se em primeira instancia em pe- quenos circulos de artistas ¢ intelectuais e coloca 0 acento sobre outros tragos do capitalismo: critica a opressio num mundo capitalista (a dominagéo do mercado, a disciplina da fébrica), a uniformizagéo na sociedade de massas ¢ a mercantilizacio de tudo, e valoriza um ideal de libertacao ¢ de autonomia individual, a singularida- de e a autenticidade. © espirito do capitalismo compreende um niicleo estével em volta do qual se estendem as variantes histéricas. A base relativamente estével € composta de frag- mentos forjados principalmente pela teoria econémica. Estes argumentos sio essen- cialmente de trés tipos: colocam 0 acento a) no progresso indissociavelmente tecnolégico e econémico b) na eficécia e na eficiéncia de uma producéo estimulada pela concorréncia ¢) no facto de o capitalismo set um regime favordvel as liberdades individuais ¢ particularmente as liberdades politicas. Portanto, as justificagées fornecidas pela ciéncia econémica tém um cardeter demasiado geral e demasiado estével no tempo para atrair as pessoas vulgares nas circunsténcias concretas da vida, particularmente da vida no trabalho, ¢ para Ihes proporcionar os recursos de argumentagio que Ihes permitem fazer face as deniinci- as em situagio e as criticas que lhes podem ser pessoalmente ditigidas. As justifica- Bes susceptiveis de alimentar 0 espitito do capitalismo devem ter um cardcter mais concreto, de modo a sensibilizar as pessoas as quais se dirigem ¢ de propor-lhes modelos de accéo que estas possam aprender. O discurso de gestio constitui, hoje em dia, a forma por exceléncia na qual espitito do capitalismo se encontra incor- porado e a disposigao de ser partilhado. ‘Trés dimensdes tam um papel particularmente importante nas expresses cor cretas do espirito do capitalismo. a) A primeira dé-nos indicagao de como 0 empe- nho no capitalismo é “excitante”, Dito de outra maneira, de que forma o capitalismo ¢ fonte de realizacio pessoal e de que forma pode suscitar o entusiasmo. Esta di mensio “excitante” estd, na maioria dos casos, ligada as diferentes formas de “liber- A moral da rede? Criticas ¢ justficagées nas recentes evolugdes do capitalismo 31 tagio” proporcionadas pelo capitalismos b) Um segundo conjunto de argumentos, valotiza as formas de seguranga proporcionadas aos que se empenham, por si pré- prios e pelos seus filhos; c) Finalmente, um terceio conjunto de argumentos, par- ticularmente importantes para a nossa demonstragio, faz referencia & justiga: refere de que forma o capitalismo serve 0 bem comum em conformidade com o sentido da justiga. Assim concebido, 0 espitito do capitalismo esta sujeito a mudangas histéricas em fangio: a) Das formas assumidas pela acumulagio num determinado momento (organizagao da producao, mercados, fontes de lucro, possibilidades tecnolégicas, etc...) € b) Do género de criticas enderecadas 20 capitalismo que o obrigam a justi- ficar-se ¢ a tornar-se desejével. De um exame da literatura sobre a evolugio do capitalismo podemos extrair 0 esboco de trés espiritos que se sucederam desde 0 século XIX. a) O primeiro, do qual encontramos a descrigo em Sombart, por exemplo, corresponde a um capita- lismo de dominante doméstica. O burgués empreendedor é ali a figura dominante A dimensio excitante € fornecida pelo espitito de iniciativa. Enfim, os dispositivos de justica_ so sobretudo da ordem da caridade e da ajuda individual; b) O segun- do espftito, que encontramos, por exemplo, descrito entre os anos 30 ¢ os anos 60 do século XX (por exemplo em Galbraith), é centrado na grande empresa integra- da, Ali a figura dominante é 0 director assalariado. A seguranga é assegurada por mecanismos como a carreira ¢ pela associagao do capitalismo privado ao desenvolvi- mento do Estado Providéncia. Por fim, a justica apresenta formas fortemente meritocraticas apoiadas pela crédito conferido as competéncias certificadas em di- plomas. O segundo espitito do capitalismo chama muitas vezes a si justificagées baseadas no compromisso entre a cité industrial e a cité ctvica; c) Uma terceira forma do espirito do capitalismo aparece na década de 80. Esta é uma nova férmula que se apoia na cité por projecto, da qual jé indiquei os tragos mais marcantes. preciso especificar que o espirito do capitalismo, longe de ocupar simples- mente um lugar de “suplemento de alma” ou de uma “superestrutura” (como 0 suporia uma abordagem marxista das ideologias), desempenha um papel central no processo capitalista em que simultaneamente o serve e 0 constrange. Na verdade, as justificagdes que permitem mobilizar as partes interessadas constituem um entrave & acumulagao. Se levarmos a sério as justificages avangadas, nem todo o lucro legitimo, nem codo o enriquecimento € justo, nem toda a acumulagao importante ¢ répida € licita. A interiorizagao pelos actores de um certo espirito do capitalismo faz incidir sobre 0 processo de acumulagao determinados constrangimentos que nao apresentam uma forma pura. O espirito do capitalismo fornece assim ao mesmo tempo uma justificagao do capitalismo (ao invés de 0 pér radicalmente em causa) e um ponto de apoio critico que permite denunciar a distancia entre as formas con- cretas de acumulagio e as concepgées normativas da ordem social. 32 Luc Boltanski 7. Da critica dos anos 1960-70 as mudangas dos anos 1980-90 Como se processou a passagem do segundo espitito do capitalismo, ainda muito presente no nosso corpus de gestio dos anos 60, ao terceiro espirito em que a litera- tura de gestéo dos anos 90 é uma clara ilustragao? Procuramos compreender esta passagem sem a basear completamente nas determinagées que exercem um efeito mecinico e, de certa forma fatal, como é muitas vezes 0 caso quando apenas se acentua a mundializagio e 0 desenvolvimento dos mercados ou ainda as mudangas tecnolégicas. A nossa narrativa refere o exemplo francés, mas pensamos que, fazen- do especificagdes em fungao das particularidades das diferentes sociedades ociden- tais, ela poderia apresentar uma validade mais abrangente. Propomos um processo que faz agit dinamicamente os trés actuantes de que falei & pouco: 0 capitalismo, o espirito do capitalismo e a critica. Aqui esto, suma- riamente apresentadas, as etapas desse processo. Os anos 1965-75 sio marcados por uma forte elevago do nivel da critica de que foi objecto 0 capitalismo que culmina em 1968 nos anos seguintes. Estas criticas fa- zem pender sobre o capitalismo a ameaga de uma importante crise, Elas esto longe de set apenas verbais, sio acompanhadas por greves e violéncias, e tém como efeito uma desorganizacio da produgao que faz baixar a qualidade dos produtos industriais e que, segundo algumas estimativas, faz redobrar os custos salariais. Estas criticas tm como alvo quase todas as provas instituidas sobre as quais repousava a legitimidade da ordem social. Assim, sao criticadas: a) as provas de que dependem as relagdes entre salétio € lucro e a divisio do valor acrescentado; b) as provas que legitimam as assimetrias em termos de poder e as relagdes hierdrquicas (no trabalho mas também na familia), ¢) as provas sobre as quais repousa a seleccio social: escolares, as provas de recrutamento profissional, aquelas sobre as quais repousa 0 avango na carreira, etc. A critica revela 0 que, nessas provas, infringe a justica. Essa revelagdo consiste particularmente em descobrir as forsas escondidas que chegam a parasitar a prova € em desmascarar as vantagens imerecidas que beneficiam certos protagonistas. Este clevado nivel de critica alarma os responséveis das instituigoes do capita- lismo, e, em primeiro lugar, 0 patronato, que se preocupa muito com esta «crise de autoridade» ¢ com a «recusa do trabalho na empresa», sobretudo entre os jovens. Uma particularidade importante da crise, em que os acontecimentos de Maio de 68 so 0 centro é que as duas criticas, a crftica social € a critica artista desempe- nham naquele contexto um papel mais ou menos equivalente, enquanto que, nas anteriores crises sociais, a critica artista s6 se manifestava em circulos restritos de intelectuais. Pode-se atribuir esta mudanga ao crescimento notavel do mimero de estudantes nos anos 60 ¢ também & importancia igualmente crescente do papel desempenhado no proceso de producio pelos quadros, engenheiros e técnicos de- tentores de capital social. No mundo da empresa, a critica artista manifesta-se sobretudo nas reivindica- Ses auto-gestionérias (presentes sobretudo no sindicato CEDT) que exigem a par- A moral da rede? Criticas e justficagées nas recentes evolugées do capitalismo 33 ticipagao dos assalariados no controlo da empresa ¢ assinalam o lugar central atti- bufdo & autonomia individual ¢ a criatividade. Estas reivindicagées sao sobretudo manifestadas por técnicos, engenheiros ¢ quadros. Ao contririo, as reivindicagées tra- dicionais da critica social (aumento de saldrios, diminuigao de desigualdades, etc...) sio sobretudo manifestadas pelo sindicato maioritério, a CGT, préximo do partido comunista ¢ dominado por operitios. Em Franca, as organizacées patronais procurardéo por duas vias muito diferen- tes, mas sucessivamente, um meio de sair desta crise: ‘14 via: uma primeira via consistiré em rejeitar, nos anos 1968-73, as reivindica- ‘s6es da critica artista, mas ouvir as reivindicagdes da critica social, Isto conduz as orga- hizages patronais a procurar chegar a um acordo com os sindicatos, convergindo para provas instituidas desde os anos 50 (negociagSes no Ambito das convengies colectivas, negociagées a nivel nacional sob controle do Estado, etc...). Os sindicatos, muitas vezes desorientados por movimentos sociais nem sempre iniciados por eles, consentem 0 jogo. Estas negociagSes tm como efeito, nomeadamente, um aumento dos saldrios mais baixos, uma diminuigao das disparidades sociais e a assinatura de intimeros acordos a nivel nacional, que reforcam a seguranca dos assalariados. No caso das provas de que depen- dem a selecgdo das pessoas e o exercicio da autoridade, a critica tem como efeito tornd- las mais justas ¢ mais conformes a um ideal meritocrdtico, procedendo & modificagao dos seus dispositivos, de forma a tornar mais dificil o recurso a forgas que nao estéo includas na definigao oficial da referida prova. A critica tem enti como efeito aumen- tar aquilo que nés chamamos a tensdo das provas. A tensio crescente das provas penaliza actores até af privilegiados uma vez que dispunham de diversos recursos que lhes davam uma vantagem em situagdes de prova muito diversas. 28 via: o endurecimento das provas e as medidas favordveis aos assalariados, que tém um clevado custo econdmico e simbélico, tém como efeito nao conseguir parar a crise. O nivel da critica e da desorganizacao da produgio continua elevado. Mais ‘ou menos a partir de 1975, apoiando-se no primeira choque petrolifero que cor- roeu 0s lucros, as organizagdes patronais vio adoptar uma segunda estratégia. Esta consistird em abandonar o terreno das provas institufdas, onde se exprime a critica social, para comegar a escutar as novas reivindicagées provenientes da critica artista. Esta mudanga vai sobretudo manifestar-se no dominio da organizagao do tra- balho. Um grande ntimero de empresas importantes vio desenvolver inovagies ¢ experiéncias no ambito daquilo que vai ser chamado « melhoramento das condi- ges de trabalho», palavra de ordem do patronato a partir de 1975. Estas mudan- as tealizadas primeiro de forma dispersa, serio mais ou menos coordenadas posteriormente pelas organizacées patronais que sob a influéncia, nomeadamente, dos socidlogos do trabalho e dt novos consultores saidos do movimento de Maio de 68, adoptaram uma nova interpretacio da crise, encarando-a como uma revolta contra as condigoes de trabalho e as formas tradicionais de autoridade. Estas mudangas consistem, em larga medida, no reconhecimento da validade da exigéncia de autonomia ¢ em aplicar a0 conjunto do pessoal modos de gestéo até 34 Luc Boltanski ai reservados aos quadros (equipas auténomas, horarios flexiveis, bénus, salirio de cficiéncia, etc.), Ao nivel do aparelho de producio, as mudancas acompankam uma série de transformagées que fazem demolir a grande empresa integrada para a subs- tituir por dependéncias reunidas em pequenas unidades ligadas por redes de con- tratos (organizagéo do trabalho tempordrio, subcontratacio, externalizagao das fungées, que nao correspondem a actividade principal da empresa, etc...). Esta segunda via consiste, para resumir, em abandonar os locais de prova até af institufdos para comecar uma série de deslocagées. Estas deslocagées introduzem novas provas (por exemplo novas exigéncias para os operérios, para os quais a capacidade de comunicagao se torna um critério de seleccéo importante). Mas estas novas pro vas sio dificeis de identificar por aqueles que se encontram ali submetidos porque clas nao foram objecto de um trabalho, nomeadamente juridico, de categorizasio ¢ de regulamentagio. Nos anos 80, 0 trabalho de gestio consistird em coordenar as mudangas ¢ a conferir-lhes sentido, em particular, interpretando-as numa linguagem das redes, emprestada das Ciéncias Sociais. A segunda via seré bem sucedida onde a primeira falhou. Estas mudangas per- mitiram tornar a tomar em mios a forsa de trabalho € voltar a desenvolver 0 capi- talismo. Este novo desenvolvimento encontra diante dele um campo liberto porque as mudangas ocorridas conseguiram calar a critica, e de duas formas diferentes. A critica social, feita pelos grandes sindicatos, viu-se quase sempre desarmada face a estas mudangas que nao soube interpretar. Perante a grande empresa integrada, construida em isomorfia com o seu adversitio, a eritica social perde, com o decorret deste processo, 0s apoios que Ihe permitia até af inflectir, com alguma eficécia, as decisées do patronaro. Quanto & critica artista, perde 0 seu carécter mordaz por uma razdo muito diferente. Uma grande parte daqueles que se assumiram como porta-vores, nos anos que circundam Maio de 1968, ficaram satisfeitos com as mudangas ocorridas na organizagao do trabalho, mais geralmente, na sociedade, quando nio estéo eles préprios integrados nos novos dispositivos de poder, gracas 4 governagio socialista. © novo desenvolvimento do capitalismo nos anos 80 esté, por conseguinte, ligado a sua capacidade em considerar ¢ a tornar obsoletos os constrangimentos que eram pertinentes no contexto do segundo espirito do capitalismo. A deslocagao das provas durante este perfodo ¢ o siléncio de uma critica desnosteada permitem uma nova expansao de um capitalismo liberto da maioria dos constrangimentos que ti- nha até af de respeitar. Um dos resultados desta expansio ¢ ter desequilibrado, num sentido favoré- vel ao patronato, a partilha lucro/saldtios. Mas isto & custa de um crescimento das desigualdade, da precariedade ¢ de um empobrecimento de camadas importantes dos assalariados. Estas degradagées da condigao salarial desencadeiam, nos anos 90, © retorno da critica testemunhado, nomeadamente, pelas grandes greves do Outo- no de 1995. Este renovamento da critica, que se manifesta actualmente sobretudo ‘A moral da rede? Criticas e justificagdes nas recentes evolugées do capitalismo 35 na terreno da critica social (permanecendo a critica artista muito silenciosa ou roti- neira) caminha sobretudo no sentido de uma reflexio levando a regulamentar as novas Provas ¢ a enraizar em novos dispositivos de justica o terceiro espirito do capitalis- mo. E assim que um grande ntimero de dispositivos actualmente em estudo em Franga podem ser considerados como visando a enraizar a cité por projecto nos dispo- sitivos dotados de uma existéncia juridica. E 0 caso, por exemplo, do contrato de actividade que se iria juntar a0 contrato de trabalho e que daria possibilidade aos assalariados que a sua empresa nio pode ou nao quer conservar, de fazer uma for- magio ou de ser empregados por organizagées nao lucrativas. Resumirei, para finalizar, algumas das grandes linhas do modelo de mudanga que acabei de exemplificar. Este modelo tem como caracterfsticas a) dar énfase as acgbes das pessoas em situagGes de incerteza ou de conflito, em vez de fazer assentar a mudanga em forgas impessoais que exercem um efeico fatal; b) estar centrado na nogio de prova, com alternincia de dois regimes de provas. O primeiro - regime de categorizacao - caracteriza as provas reconhecidas como tais, instituidas e regulamen- tadas sobre as quais a critica pode ter influéncia.. © segundo - regime de desloca- do -, a0 ser marcado por séries de afastamentos selativamemte as provas instituidas torna possivel modificar os processos de selecg4o ¢ os caminhos das vantagens, fa- zendo a partir daqui a economia de um elevado nivel de reflexividade ¢ de categorizaso 0 que permite acompanhar 0 movimento da critica; c) Por iltimo, este modelo no esté finalizado. Ele nao assenta sobre uma seta temporal orientada para um horizonte messianico, quer seja 0 desenvolvimento € progresso, quer seja 0 da . © trabalho da critica nunca esté acabado. Esté sem- revolusio ou o fim da histér pre a refazer-se. Notas " Bcole des Hautes Erudes en Sciences Sociales ec Centre National de la Recherche Scientifique (Pars) 2 Vi. Hacking, The construction of What? > Lerry,.. © sistema das filosofias da Histéria. « Lue Boltanski, Laurent Thévenot, De la justification. Les écomomies dela grandeur, Patis, Gallimard, 1991 5 J. B. Bossuet, Politique tirée des propres paroles de L'Bcritute Sainte, Genve, Doz, 1967 (IP edigio: 1709) Ecole des Hautes Erudes Comerciales (Paris, Jouy En Josas) 7 Luc Boltanski, Eve Chiapell, Le nouvel sprit du capitalisme, Pats, Gallimard, 1999. * Trata-se do logicia Prospero, desenvolvido por F. Chateaurayaud ¢ J.-P. Charriaud na EHESS

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