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LUIS GRAEÑA
Saramago.
2 • P2 • Sábado 26 Junho 2010
Poema de José
Participaram neste P2:
José Saramago
no Verão de
Adelino Gomes 1941. Arquivo
Saramago inédito
Fundação José
Saramago
Ana Saramago Matos
em Portugal
António Júlio Duarte
Baptista-Bastos
sobre a morte
Gonçalves
Mendes
que irá ser
apresentado
de José Saramago
no DocLisboa,
em Outubro
A coragem de denunciar
o corpo. Nunca o vi encostado a nada nem a ninguém.
Nem sequer às comezinhas conveniências que nos
suavizam a existência. Alguns, que se encostam às
circunstâncias para “singrar na vida” (como eles
a violência
dizem), olhavam-no com olhos oblíquos (porque
tinham a coluna torta do encosto) e viam-no arrogante.
São aqueles, não poucos, que nunca leram o livro de
Gonçalo M. Tavares que nos adverte: “O homem que se
encosta à sua circunstância corre o risco de cair.” Pois
a L’Osservatore Romano, o diário vaticano que é Já no final dos anos 60, Saramago tinha tomado eu nunca o vi encostado a nada, nem a Pilar (aliás, ela
expressão directa da cúria romana, apenas dois posições muito duras em relação a Cuba. Não se não deixaria), e só via elegância, por fora e por dentro.
dias depois da morte de José Saramago, atacou sentia levado a apoiar, cívica e moralmente, o regime Sereno, também, que é a outra face da elegância.
brutalmente o escritor português, Prémio Nobel da de Castro que levava para a prisão não quaisquer Fazia parte do grupo daqueles que nunca quiseram
Literatura. Este ataque denuncia uma hipocrisia bem opositores, mas comunistas que não estavam de nada para si e que por isso, com o trabalho honesto
reconhecível, de marca clerical. Mas, sobretudo, acordo com a sua política. de cada dia, dia após dia, página após página, livro
uma ignorância sobre quem seja este homem e Mas, ainda, já desde as primeiras notícias sobre o após livro, justificaram a sua existência e obtiveram
o seu compromisso moral e cívico durante toda gulag e o destino dos dissidentes, tinha escrito vários tudo. Ainda como dizia Sophia, não deu homem por
uma vida. Como se houvesse necessidade de dizer, ensaios sobre o que considerava a destruição do si, não ficou em casa a cozinhar intrigas, não usou
a todo o custo, algo que negasse a sua clareza, comunismo originário. de manobra ou de calúnia, não recuou nunca. E a
transparência, honestidade e coerência política. O que Naturalmente, o jornal da cúria finge estar serenidade brota daqui.
se concretiza numa afirmação deturpada: “Cala-te, distraído. Não se preocupa sequer em informar-se a E seguro de si. Em carta a José Rodrigues Miguéis
não podes acusar a Igreja secular pelas suas violências este propósito. Dá por adquirido que um comunista recentemente publicada, dando conta de uma
criminosas, pois estiveste calado perante as violências não tenha a dignidade e a coragem de denunciar a “safadeza” que repeliu despedindo-se do emprego,
igualmente criminosas dos comunistas soviéticos, dos violência muitas vezes criminosa de um grupo político dizia: “Começo o ano da estaca zero, completamente
quais eras um apoiante.” ao qual pertence. desprovido. Mas continuo a ter uma grande
Eis a mentira! Tive ocasião, mais de uma vez, de Esta atitude, tendente a mascarar, cobrir, ignorar, consideração por mim mesmo.” O emprego, o
falar sobre a questão com José. Eu contava-lhe como pode ser considerada como historicamente aceitável, ordenado no fim do mês, foram-se. Mas não o respeito
a União Soviética, de há 30 anos para cá, nunca mais só por quem faça parte do mundo católico apostólico por si próprio, que é o que nos dá segurança na vida.
colocara em cena um trabalho meu de sátira política romano. E isto é um deixa-andar que dura talvez Elegante, sereno, seguro de si, foi assim que o vi pela
sobre a cultura capitalista. Antes, tinha censurado desde há séculos, desde o início do movimento última vez, no Salão Nobre da Câmara Municipal de
a possibilidade de montar qualquer espectáculo. A denominado cristão: a partir mesmo do momento em Lisboa. E no entanto era já cadáver. “Nunca mais a tua
razão, evidente, é que aqueles ataques sarcásticos que bispos e altas autoridades da Igreja colocaram à face….” E no entanto ficam os livros. Está lá tudo.
tocavam profundamente também a concepção de disposição do Império Romano do Oriente e Ocidente E no entanto…
poder em toda a União Soviética e arredores. as suas pessoas e toda a cúria. Está…
Por sua vez, Saramago recordava-me a censura O tempo, para certas formas de alta hipocrisia, não Estava…
sofrida pelos seus escritos, também da parte da passa nunca. Já não está.
liderança do partido na URSS [União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas]. Prémio Nobel da Literatura 1997 24 de Junho de 2010
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O início
pura verdade. É certo que José jamais teve passaporte
brasileiro nem vendeu mais livros que Paulo Coelho,
por exemplo. No entanto, desafio qualquer pessoa
a me indicar um escritor brasileiro que despertasse
tamanha paixão em seus compatriotas como fez
do mundo
José, seja andando pelas ruas da pequena cidade de
Tiradentes, em Minas Gerais; assistindo a festa de
aniversário de Santo Amaro de Purificação, na Bahia;
caminhando pela praia de Copacabana; falando
aos trabalhadores sem-terra com Chico Buarque e
Sebastião Salgado; ou nas inúmeras vezes em que teve
seus livros lidos, em eventos, por atores de peso como
Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove Fernanda Montenegro, Raul Cortez, Marieta Severo.
Em toda a minha vida de editor, não conheci provas
sobre a cidade pálida, as águas do rio correm de amor mais enfáticas do que as que José recebia
turvas de barro, há cheia nas lezírias. ao vir para meu país, onde era considerado um Entre as várias viagens pelo Brasil, a mais memorável
O Ano da Morte de Ricardo Reis, José conterrâneo, um amigo, um ídolo e ao mesmo tempo talvez tenha sido a que fizemos para a Bahia. Pilar e
Saramago um igual. Não há repartição diplomática ou carimbo de José vieram para a entrega do Prêmio Camões, que
passaporte que resista às provas que posso arrolar em lhe foi concedido pelo então Presidente Fernando
favor da minha tese, comprovadas em nossas andanças Henrique Cardoso, no ano de 1996, no Palácio do
a No princípio, no início do mundo – ou mesmo antes por essas bandas tropicais. Itamaraty, em Brasília. Lá estavam, entre outros, Jorge
do início do mundo – o elefante ocupava a sala. Não se No lançamento de A Jangada de Pedra, o primeiro e Zélia Amado, que nos ciceroniaram em Salvador,
conseguia entrar nem sair. A sala inteira ocupada por que realizámos juntos, tivemos o prenúncio das após as formalidades do cerimonial. Fomos recebidos
um elefante. Abria-se a porta e ali estava: o corpo do imensas filas que acompanhariam José e seus livros em inúmeras casas, onde as melhores cozinheiras
elefante, a pele cinzenta. no Brasil, e também o sinal dos excessos afetivos dos da Bahia faziam a sua arte, muito apreciada por
Há sempre quem queira estragar o início do mundo leitores e leitoras brasileiros, que justificam tão bem José, em refeições organizadas por Zélia e Jorge. O
e, neste caso, quem estava a estragar a festa era um a minha afirmação inicial. Foi lá que José, após uma primeiro almoço ocorreu na casa de Caetano, de
elefante. saraivada de beijos e abraços de uma fã ardorosa, onde assistimos à festa da entrega dos presentes para
No fundo, ali estava muito clara a catástrofe humana recebeu um colar de búzios, que usou até o fim do Yemanjá, quando os pescadores levam seus barcos
na sua situação mais simples: não havia espaço para evento, quando exclamou: “Luiz, essa gente quer me coloridos para o alto mar e jogam suas oferendas para
começar. matar de amor.” Em Santo Amaro, Caetano cantava a vaidosa rainha dos mares. O cardápio foi composto
De qualquer maneira, quem estava de fora não com sua mãe, Dona Canô, sentada no palco ao seu de uma suculenta feijoada bahiana, diferente da que se
desistiu. Tratava-se de iniciar o mundo, apesar de tudo lado, e o público virava os olhos para um senhor alto e come em outras partes do país. Devidamente trajado
uma tarefa inadiável. Se não começas pelo começo, o calvo perdido no meio da multidão, dizendo, “olha lá, de um par de shorts azuis, de minha propriedade
que fazes depois? Eis um dilema. é o Saramago, não é?”. — nunca mais vi José vestido em nada parecido —,
Foi pois necessário isto: procurar outra sala. Mas É claro que, enquanto adquiria sua nacionalidade Saramago e Lili passaram a tarde e a noite dividindo
rapidamente se percebeu que não havia. Estamos a honoris causa, alguns momentos de estranhamento o livro de memórias do compositor bahiano, pois
começar, alguém disse – por enquanto só há uma sala, aconteceram. Nesse mesmo lançamento, José Caetano, naquela ocasião um neófito no uso dos
e está ocupada pelo elefante. A cabeça do elefante perguntava o nome de seus leitores e estes insistiam computadores, guardava toda sua vida em um só
tocava no tecto, os dentes numa das paredes, a cauda em responder-lhe com o apelido. Ele reclamava, documento, que poderia evaporar-se na virtualidade
noutra. Entalado como se o compartimento fosse uma “mas eu pedi seu nome, não o apelido, pá”. José em questão de segundos.
roupa de tamanho menor que o corpo. falava português, nós respondíamos em brasileiro. Os passeios pelo pelourinho, sempre com Jorge
Estava tão apertado entre as paredes, o tecto e o Aqui nome é apelido, sobrenome é nome, e apelido é Amado, geraram frisson entre os meninos de rua,
solo, que se temia que uma inspiração mais profunda Zezinho, Sarará, Zeca… entre as bahianas dos acarajés e os demais passantes
fizesse rebentar a sala – e o mundo em vez de começar que, acostumados com o autor bahiano, excitavam-se
terminaria logo ali, no primeiro dia. No entanto, o sobremaneira com a presença dos dois amigos juntos.
elefante era prudente; enorme, sim, mas respirava Numa visita ao atelier de Carybé, artista argentino
devagar para não partir nada logo na inauguração. que também era mais brasileiro do que qualquer
E como aquele era o primeiro dia do mundo, a outro, compramos, escondido, uma aquarela para
questão principal era: como podem as pessoas entrar José e Pilar, que faziam a mesma surpresa para nós.
lá para dentro? E se não entram, ficam cá fora? E se O artista pediu aos dois casais presenteiros um favor:
ficam cá fora, como começam? Ninguém começa nada que deixássemos as aquarelas com ele, para figurar
estando do lado de fora, isso é óbvio. numa exposição que ocorreria em breve, em Sevilha.
(Claro que a responsabilidade não era do elefante, “Em Sevilha, sim, claro”, concordamos com alegria,
mas de quem ali o tinha colocado.) respeitando as origens da Pilar. Nunca recebemos,
Dois problemas, portanto: a sala não tinha espaço no entanto, os tais presentes trocados, as surpresas
para uma única alma – muito menos para um corpo – e gêmeas, que celebravam com coincidências amorosas
o próprio mastodonte protestava pelo aperto. a continuidade de uma longuíssima amizade.
Porém, a certa altura, alguém gritou, chamando a Desde então, José hospedou-se sempre em minha
atenção para o que era óbvio: entre as quatro patas, casa, recusava-se a ir para hotéis em São Paulo.
lá em baixo, há espaço. Entre as duas patas da frente, Mais uma prova da brasilidade desse queridíssimo
espaço. Entre as duas de trás, espaço. E, olhando com escritor. Muito mais do que um cidadão português ou
atenção, entre as duas patas da frente e as duas de trás: brasileiro, José Saramago era um escritor dos homens
há ainda muito espaço, um espaço enorme. e das mulheres que o leram e lerão no mundo inteiro,
Pois ali se encontrara, então, o sítio para a coisa contrariando os limites nacionais, que a literatura
começar. Os homens entraram aos magotes e, pouco desconhece e despreza.
a pouco, foram percebendo que, desde que o elefante
não inspirasse profundamente, podiam andar, correr,
procriar e até saltar – havia espaço para tudo. Assim
começou o mundo e, até ver, a coisa vai que é um
espanto.
Helder Macedo
Escritor e ensaísta
O visionário da
tangibilidade
Mia Couto
Escritor moçambicano
Abraço, José
me no mesmo dia perguntando ao telefone, no seu
habitual tom seco:
– Diz-me apenas o que tenho que fazer.
No instante seguinte, tinha transferido 25 mil dólares
para uma conta que passaria a ser auditada por uma
agência financeira internacional. Outros escritores
lhe seguiram o exemplo. No final, havia dinheiro para
erguer um centro de saúde em Chivonguene, nas
margens do rio Limpopo.
Já em Maputo, meses depois, Saramago foi recebido
a A morte só existe se há ausência. Para uns, como por Helder Muteia, o então ministro da Agricultura. O
Saramago, não haverá nunca ausência. O escritor governante pretendia expressar a Saramago a gratidão
semeou-se tanto e por tantos outros que ele apenas dos moçambicanos. Muteia é poeta. Organizou o
mudou de presença. Não falo da escrita. Mas dos encontro com um carinho que superava as obrigações
momentos em que ele se distribuiu, pessoa entre protocolares. Escapou-lhe, por isso, a secura do
pessoas. Em mim, essa permanência faz-se de escritor português durante todo o encontro. Ao
indeléveis momentos. Relembro aqui alguns desses lado de Saramago eu adivinhei-lhe a pressa: queria
episódios: fugir aos agradecimentos. Para ele havia um dever
de solidariedade que se explicaria melhor junto dos
Primeiro episódio camponeses que beneficiaram do seu apoio. Já no final,
Maputo, finais de Novembro de 2000 em plenas despedidas, Saramago perguntou: “E que
nome deram ao centro de saúde?” Imitando o tom seco
José Saramago vem a Maputo lançar A Caverna. Uma do visitante, o ministro respondeu, quase displicente:
semana antes da sua chegada, o jornalista Carlos “Chama-se Levantado do Chão.” Saramago parou,
Cardoso tinha sido assassinado. Para Saramago, a fulminado pela emoção. Gaguejou, baralhando letras
razão da sua viagem a Maputo já não é ele ou a sua e palavras. Por fim, confessa, em suspiro: “Caramba,
obra. Horas depois de ter aterrado, a sua agenda homem, você comoveu-me!”
é totalmente alterada. Sentado na varanda do seu
hotel, José dá instruções sobre o que pretende. Horas Terceiro episódio
depois visita a redacção do Metical, o jornal de que Universidade de Évora, 1999
era director Carlos Cardoso. “Acima de tudo não
podemos deixar que nos convençam que isto que O abraço estava mal distribuído. Ele abraçou-me.
aconteceu é episódico e acidental, como se houvesse Eu fui abraçado. A razão dessa troca desigual não
um grupo descontrolado que, por uma qualquer razão, era apenas de ordem física. Eu estava preso pela
resolvesse cometer um crime”, disse Saramago na timidez, vivendo um momento inusual, num território
ocasião. estranho. A pergunta de Zeferino Coelho, no dia
Depois, segue com um batalhão de jornalistas para o anterior, ainda ecoava confusamente dentro de mim:
local onde Cardoso tinha sido abatido a tiro. Ali mesmo – Você importa-se que José Saramago, depois da
fala para a imprensa, exalta a coragem e a lucidez entrega do seu prémio, faça um debate público
como armas para preservarmos a humanidade. Visita consigo?
a viúva de Cardoso, dá entrevistas, fala com escritores O editor da Caminho conhecia antecipadamente a
e artistas. minha resposta: ter Saramago na cerimónia de entrega
No dia seguinte, pede-me a mim para organizar de um prémio era a impossível cereja por cima de um
encontros com membros do governo. Quer pressionar improvável bolo. Embalsamado num fato escuro, fui
as autoridades para que encontrem os autores subindo a escadaria do edifício da universidade. E lá
materiais e morais de ambos os crimes. Organizo um estava ele, no último degrau, com seu porte nobre,
encontro com o primeiro-ministro de quem eu era abraçando-me logo à chegada como se fosse ele o
amigo. Confesso-lhe os meus receios. O discurso de patrono do prémio. Para mim, aquele abraço era uma
um estrangeiro, com exigências sobre a celeridade recompensa maior.
da justiça, não agradaria a dirigentes orgulhosos na O programa era breve e, num instante, se iniciou
recente conquista da Independência. a anunciada conversa entre mim e ele. O anfiteatro
Confirmando os meus receios, na audiência, José estava cheio, no pódio estava o Presidente da
Saramago não usa de panos quentes. As suas palavras República de Portugal. A um certo momento, em tom
são ásperas, certeiras, sem diplomacia. Pascoal paternal mas ríspido, Saramago admoestou-me: eu
Mocumbi, o primeiro-ministro, é um homem alto, tão que deixasse essa “coisa” da biologia e me dedicasse
alto como Saramago. Enfrenta-o, olhos nos olhos. Após apenas à escrita. Lembro-me do seu tom, peremptório:
um momento de silêncio, Mocumbi confessa: “Eu já “Já te disse, a escrita pede tudo, não aceita partilhas.”
o conhecia, já gostava de si. Agora gosto mais ainda.” Mas eu sabia que, também para ele, essa entrega à
Começa então uma conversa franca que dissolve literatura não o ocupava com exclusividade. Saramago
distâncias. Saramago e Mocumbi trocam confidências, foi um cidadão do mundo, entregue a causas e debates,
como velhos amigos. No final, está acertado um outro desdobrando-se em viagens e semeando presenças.
momento para continuarem a amena cavaqueira: em Recordo ver uma fotografia sua, já doente e antevendo
Lanzarote, em casa de José e Pilar. o fim, acarinhando Aminatou Haidar, activista pela
independência do Sara Ocidental. Em greve de fome,
Segundo episódio Aminatou está frágil, quase desfalecida. Não menos
Cheias em Moçambique, 2000 frágil está José Saramago. Mas as mãos de José e de
Aminatou amparando-se mutuamente geram a força
As inundações de 2000 foram as piores nos últimos de um infinito abraço.
cem anos. Impotente, perante o drama que vivíamos,
redigi um apelo para que as vítimas das cheias
recebessem apoio internacional. Saramago respondeu-
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Biógrafo espanhol
testículo adicional que o empurrou para as esquinas e as redomas
para as ilhas a bordo da sua jangada da exclusão. Porque há que dizer
de pedra e de consciência. Assim “não” ao poder para se poder vigiá-
era ele e assim continuará a ser lo e limitar a sua tendência para
Uma consciência
nos seus livros e nas inumeráveis extravasar, advertia Saramago. E,
palavras que ressoam em quem assim, disse “não” a Cavaco Silva e
as escute enquanto suporta com ao seu subsecretário de Estado da
irritação o desvario e as injustiças Cultura, ou seja, a quem lhe tinha
do poder e as afrontas sem censurado O Evangelho, escolhido
justificação do mundo: um escritor para representar Portugal no
irritada e
titânico, uma consciência irritada Prémio Literário Europeu.
e compassiva, própria de quem Chegou à ilha pela mão de Pilar
nasceu com um testículo a mais. Foi del Río, seu alter ego, a casa da
o próprio Saramago que o escreveu, sua respiração, Pilar, o seu pilar,
a 11 de Novembro de 1971, numa o seu amparo, e, de frente para o
carta que enviou ao seu amigo Atlântico, ao pé de um punhado
compassiva
Nataniel Costa, como justificação de vulcões, assentou para explorar
da sua difícil saída da editora um novo ciclo da sua obra literária,
Estúdios Cor, onde havia trabalhado depois de encerrar a etapa de
durante doze anos, dando vida diálogo com a História, um
aos livros dos outros e escrevendo momento brilhante da literatura
cartas inteligentes aos seus colegas portuguesa, aberto com Levantado
escritores: “Desgraçadamente do Chão, em 1980, e concluído com
para eles, nasci com um testículo História do Cerco de Lisboa ou, se se
suplementar, e fui-me embora.” preferir, com a refutação do mito no
O Barco # 1 Parecia uma declaração de próprio O Evangelho segundo Jesus
a #4, para O princípios. E foi. Cristo. Saramago acudiu à História
Conto da Ilha À vida, mas também a Lanzarote, movido por uma “imperiosa
Desconhecida, trouxe-o esse testículo a mais que necessidade de a apreender” e
Pavilhão de tanto bem trouxe ao mundo e à de mostrar que era “parcial e
Portugal- dignidade do ser humano por que parcelar”, o que, no seu sistema,
Expo’98, José tanto lutou, à sua maneira: queria dizer que não respeitava a
Artista plástico Caldas) Porque a insubmissão, na sua voz, da sua escrita incómoda, oral,
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barroca, helicoidal, empenhada ligeiro que sempre foi, deixando as suas limitações. Mágoa, por fim, desgostoso com a incapacidade imediato, longe da utopia, que
em mudar de ponto de vista, em suas pegadas em cinzas e bermas. pela irracionalidade do ser humano, da esquerda, ancilosada, vazia detestava. Num determinado
ver de outro modo, em desestimar A partir de então, em Lanzarote, desamparado de referentes morais de ideias para renovar os seus momento declarou, com o seu
o discurso oficial, levando as vidas viajando sem cessar pelo mundo, laicos, encurralado na sua própria estrategos e métodos na hora de habitual sentido de lucidez, que o
não tidas em conta, as margens do esperando que o Nobel viesse desaparição. pensar o nosso tempo. Depois de seu retrato fiel era o que foi deixado
esquecimento. ao Sul deste grande transibérico Por isso, das Canárias saía José, Lanzarote esteve em Lisboa e esteve escrito por Gramsci: “Pessimista
E viu Mafra de outra maneira, português, começou a explorar a com o seu testículo adicional, na América Latina e esteve na pela razão, optimista pela vontade.”
a partir de baixo e da vontade desviada condição do ser humano envolto em palavras vigorosas, Europa e deixou de viajar para os Algo que bate muito certo com
de liberdade, a partir de uma contemporâneo, em romances palavras como espadas ou como Estados Unidos. alguém que nunca se contentou
passarola e de uma Blimunda que os seus leitores receberam lábios ou como chamas, e, viajante O narrador que fixou o seu com o que lhe diziam, passeando
em carne viva que fizeram como cotoveladas no estômago da do mundo, consciência crítica círculo de afinidades no padre pelas ruas de Lisboa ou seguindo a
empalidecer o grande relato dos consciência. Entre alísios e cinzas, reconhecida, amparo de outros António Vieira, Almeida Garrett, lava de Lanzarote, austera como a
reis e do clero, aproximando coroando cumes erodidos pela desassossegos, expressava o Kafka, Montaigne, Cervantes, sua conduta e a sua energia, porque
as pedras do excesso divino idade e o mal-estar que aquele seu mal-estar face ao desprezo Pessoa e Borges, abasteceu-se, “nunca nos devemos contentar
da bela ferida dos peões e dos menino nascido em Azinhaga, nas sistemático pelos direitos humanos, uma e outra vez, na sua declaração com o que nos dizem. Devemos
fugitivos. Disse-lhe o seu admirado margens do Almonda das suas como fez no discurso pronunciado de princípios de que aonde averiguar se é verdade. Saber se
Pessoa, na figura de Ricardo memórias infinitas, feito homem de durante o banquete celebrado a ia o escritor ia o cidadão. E o é a única verdade e cotejá-la com
Reis, cujas odes o fascinaram fortes valores, denúncias vigorosas propósito da entrega do Prémio cidadão acudia ali para que nem a verdade dos outros. Há que
na adolescência, que não podia e polémicas extremadas, acumulava Nobel, no dia 10 de Dezembro de o escritor nem o cidadão alguma procurá-la sempre em todo o lado”.
ser sábio quem se contentava em cada dia de uma época 1998. vez envergonhassem o menino Sem Deus, como indicou, a sua
com o espectáculo do mundo dolorosa. Dolorosa pela indiferença Em Lanzarote, aonde chegou, que um e outro tinham sido, mas, obra ficaria incompleta, de facto,
entre as guerras. E de passagem, que ele detestava e que combateu segundo as suas palavras, “quando sobretudo, para ajudar, para ajudar mas também assim seria se a
quando já ninguém o esperava do com desassossego. Dolorosa pelas mais necessitava de um lugar muito, repetindo, infatigável, desprovêssemos da musculatura
escritor maduro, Ricardo Reis e renúncias éticas. Dolorosa pela assim”, nunca esqueceu Portugal que “a nossa grande tarefa é central da sua energia moral, da
Blimunda também removeram os sua maquinaria de igualdades e e, na ilha, sentia a necessidade procurar ser mais humanos”, que coragem e da coerência que não
alicerces da literatura portuguesa, de silêncios. Dolorosa porque via de escutar a sua língua enquanto a grande revolução pendente é a se desprenderam dos seus passos
desencaixando o panorama o governo dos seus dias na mãos escrevia, a língua mais bonita da bondade. Saramago decidiu e que reforçou com um Prémio
nacional, avisando o mundo. de um capitalismo autoritário do mundo, como disse quando não se ocultar por trás do narrador Nobel que lhe serviu “para ser
E assim chegou a Lanzarote, que convertia a democracia num apresentámos em Lisboa a porque era ele o autor e, portanto, mais eu”. Essa compleição robusta
com a sua militância comunista sistema formal e subsidiário, exposição que a Fundação César o responsável por contar o que se e terna que hoje choramos,
– “comunista libertário”, assim gravemente deteriorado pela acção Manrique lhe dedicou e que tive a contava, a matéria dos livros, onde resumiu-a desembaraçadamente
se sentia no final dos seus dias, de um poder não eleito e que é o honra de comissariar, A Consistência sempre aguardava dentro uma numa norma de conduta que hoje
heterodoxo e matizado, sempre – e que realmente toma as decisões dos Sonhos. Daqui, exerceu a pessoa com a qual o leitor desejava soa como um apelo à consciência:
com a História que quis arrastar de fundo. E já o comprovámos cidadania local e universal, a e deseja encontrar-se: o autor. “Não nos resignemos, indignemo-
para o proveito do presente debaixo nesta crise que nos tem aflitos sua implicação no pulsar do Mais um gesto do seu humanismo nos.” Difícil? Coisa de um testículo
do braço, para escrever Ensaio e desorientados enquanto nos mundo, a sua intervenção civil. radical, modulado pela ironia adicional? Viria a ser luminoso,
sobre a Cegueira, entre vulcões a oferece a imagem de dirigentes Tanto censurava o caciquismo e a voltairiana e o cepticismo, tocado inteligente, ético, coerente, livre.
que ascendia com uma indizível europeus sem capacidade de corrupção insular como defendia a por um pessimismo ilustrado que
sensação de vitória, os ventos liderança, sem ideias desprovidas necessidade da decência pública ou nunca o conduziu ao niilismo, Texto inédito em Portugal
alísios revolvendo-lhe as guedelhas, de mofo, postos fora de combate a cultura dos limites urbanísticos e mas apenas ao desejo social de publicado na edição de 19 de
renovando o passo do caminhante pela sua própria perplexidade e as do meio ambiente ou se mostrava se envolver na transformação do Junho do jornal El País.
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José Tolentino
Mendonça
Padre e poeta
O poema
de Deus
Tiago
Que aquele é momento único. Mesmo que se disfarce Gente que além da escrita apurada e comprometida
há uma emoção e um sobe e desce no peito que não – aí estão as palavras de justificação do Comité Nobel
deixam mentir. E passam-nos pela cabeça coisas – é, muito mais que um escritor, um pensador (um
estranhas, despropositadas mesmo – lembro-me, por filósofo, como diz o neto).
Saramago
exemplo, de, no justo momento em que o prémio era Gente que se empenha em mostrar ao mundo que
entregue, ter pensado Este já ninguém lho tira! se se quiser, e para se poder, criar coisas melhores
Desde então por diversas vezes li as imensas é preciso ver, reparar, conclamar as vontades
lições de ética, de sentimento, de cidadania e de (blimundar, como diz a neta).
Matos
verticalidade que são os discursos da Academia e do Gente que todos os dias nos surpreende com um
jantar de celebração. comentário, um olhar, um lado do problema em que
Seria estranho que, depois de tudo, fosse de ainda não tínhamos pensado.
esperar um descanso à sombra dos louros, ainda que Gente que sabe ser um exemplo de coerência e
Neto
alguns o pudessem entender como legítimo e outros lucidez.
o pudessem desejar com ansiedade, para poderem Gente de quem eu gosto profundamente; mesmo
continuar a dar descanso a consciências caladas ou por quando pouco falo, que as palavras faltam porque os
vezes, e quando muito, pouco mais que ligeiramente sentimentos ocupam o seu espaço.
preocupadas. Gente que, entre muitas coisas, me ensinou que
Foi-se
Dez anos depois, as expectativas de então tornaram- nada substitui a coerência e que é enorme importância
se um pálido reflexo da realidade. Para todos. Os livros de olhar para o espelho e não sentir vergonha do que
sucederam-se. As intervenções políticas e cidadãs se é.
embora
aumentaram. O reconhecimento e o afecto também, Gente.
vindos de muitos milhares de pessoas. Os adversários Beijos. Por todos os dias.
e os inimigos atiçaram-se. É a consequência de não ser Funchal, Outubro de 2008
o homem,
cinzento.
Porque há gente diferente. Foi uma carta de há um ano e meio, mas podia ser de
Gente que continua, ainda mais de pé. hoje. É de hoje. Ficam por acrescentar algumas palavras
fica a sua
Gente que não cede nos seus princípios e valores, – dor, tristeza, vazio.
que chama as coisas pelos nomes. Um crime é um Tudo se irá arrumar. Mas a seu tempo.
crime; não é só uma malandrice. Beijo.
marca
Gente que pensa sobre os fenómenos e as realidades Funchal, Junho de 2010
Baptista-Bastos Escritor
A recusa da servidão
a José Saramago tinha uma relação a seguir, envergonhado e tocado contidos no formidável espólio Convento entendeu o seu ofício virtude interior que permitiria
de sangue com a língua portuguesa por escrúpulos infantis. Pigarreava, que deixou. Este homem grave como um acto de devoção e de sair de situações embaraçosas.
e a paixão por um povo que ele olhava-nos, sorria embaraçado escusou-se, sempre e sempre, a amor. Um ofício intimidante, É um desafio poderoso, uma
desejava adulto e livre. Todas as com o que talvez pensasse ser uma desdenhar do trabalho dos seus que implicava riscos e perigos demonstração de liberdade,
relações daquele género e todas fraqueza de espírito, e voltava camaradas. A inveja e o despeito extraordinários. Nunca cedeu à um apelo à resistência e uma
as paixões assim configuradas a ferrar a face. Percebi, com o não o consumiram. Ao contrário violência dos ataques, à sordidez insistência dramática na repulsa da
são sempre problemáticas. decorrer dos anos e de convivência, de muitos outros, e não só António dos despeitos, às manobras da resignação.
Torga, Sena, Miguéis, outros que Saramago não gostava de expor Lobo Antunes, cuja ciumeira política. Foi comunista, mas Tudo isto envolvido numa prosa
mais pertencem a essa natureza, a natureza dos seus alvoroços, de chegava a ser doentia, e o levou a não um servo das opiniões com majestosa, inventiva, pessoalíssima.
por vezes estigmatizante, e submeter à observação dos outros tratar Saramago por “aquele pobre as quais não concordava. A sua E no reconhecimento do carácter
sempre perturbadora. Uma vez, a reserva do que lhe pertencia, homem”. obra é um manual de empenho sagrado de um povo, cuja força
em Lanzarote, por uma tarde em sistema de exclusividade. O autor de Memorial do na acção presente, não é uma heróica nunca deixou de exaltar.
embatente de vento, falávamos Conheci, assim, Carlos de Oliveira,
sobre as incertezas e os sarcasmos habitado, como ele, por uma
co-autor do projecto da
para quem a ama, e quem a ama fez um elogio comovente, quando
está inextrincavelmente ligado ao se seguiu ao enorme poeta de
conflito.” Finisterra, no Prémio Cidade de
A minha experiência pessoal Lisboa.
Nuno Júdice,
Escritor e poeta MNAC – MUSEU DO CHIADO
22 JUN. - 3 OUT. 2010
Uma leitura
de Caim
José Saramago
em Frankfurt,
anos 80.
Arquivo
Fundação José
Saramago
RETROSPECTIVA
vários momentos em que Caim se
a Se toda a literatura provém do identifica a si próprio como Abel,
mito (história sagrada), Caim não é ou seja, aquilo que Caim matou
uma excepção. Saramago apercebe não foi, de facto um ser real, Abel
esta distinção entre leitura religiosa – e por isso o seu castigo também
e leitura histórica, que tem por trás é mais simbólico do que real, não
o conflito entre profano e sagrado, sendo sujeito à pena de talião
quando inicia o livro: “Quando mas a uma errância permanente
o senhor, também conhecido –, mas uma parte de si próprio, o
como deus…” Ao adoptar a dupla Eu obediente e submisso a deus,
designação senhor e deus, coloca- aquele que reprime as pulsões
se uma ambiguidade entre a figura negativas:
tutelar de um ser superior no plano “É simples, matei abel porque
social – o senhor – e a natureza não podia matar-te a ti, pela
divina que não tem equivalente intenção estás morto. Compreendo
no plano real. É esta ambiguidade o que queres dizer, mas a morte
que vai permitir ao narrador trazer está vedada aos deuses, Sim,
frequentemente a figura de deus ao quando deus se irritou por ver embora devessem carregar com
nível do homem, emprestando-lhe que Adão e Eva não dispunham todos os crimes cometidos em seu
características que “apagam” essa de fala, ao contrário dos animais nome ou por sua causa.” (p. 38)
natureza divina, como quando deus que se exprimiam “uns por meio A morte de Abel liberta Caim
não reconhece Caim, que esconde de mugidos e rugidos, outros desse lado auto-repressivo e
o sinal, o que é absurdo quando por roncos, chilreios, assobios transforma-o num homem. Já
conhecemos a omnisciência divina: e cacarejos” (p. 11), reagiu com o facto de ser um agricultor
“Não foi dito na altura própria brutalidade: o distingue de Abel, o pastor;
que Caim, antes de entrar na tenda, “Num acesso de ira, e o fascínio que, em criança,
havia feito descer para os olhos surpreendente em quem tudo manifestava pelo crescimento das
a fímbria do turbante a fim de poderia ter solucionado com outro plantas (a mãe Eva encontrara-o a
esconder a marca à curiosidade dos rápido fiat, correu para o casal e, olhar “para uma pequena árvore
presentes, sobretudo do senhor um após outro, sem contemplações, recém-plantada, à espera de vê- MNAC – MUSEU DO CHIADO
que imediatamente a reconheceria, sem meias-medidas, enfiou-lhes a la crescer”, p. 41) associa Caim Rua Serpa Pinto, 4
por isso, quando o senhor lhe língua pela garganta abaixo.” (p. 11). ao ciclo natural, de que a morte 1200-444 Lisboa
perguntou se o seu nome era Caim, O gesto divino de dar ao homem faz parte. Esta relação de Caim Tel.: + 351 213 432 148 / Fax: + 351 213 432 151
respondeu, Caim sou, na verdade, a palavra é descrito à imagem de com a terra, paradoxalmente, E-mail: mnac-museudochiado@imc-ip.pt
mas não esse.” (pp. 95-96) um comportamento próprio na humaniza-o; e se ele mata Abel é Website: www.mnac-museudochiado.imc-ip.pt
Saramago vê-se confrontado com relação autoritária adulto-criança (a também porque este, ao manter
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HORÁRIO
dois movimentos que nascem da mãe ou o pai que metem o remédio uma relação privilegiada com Deus,
leitura bíblica e que se orientam na boca da criança “garganta transporta ainda o sinal do paraíso Terça-Feira a Domingo:10h00-18h00
nas direcções do presente (“dar um abaixo”), e marca imediatamente de que os pais foram expulsos. A Encerrado à Segunda-Feira
sentido às palavras que lemos”) e um modo de tratamento que vai morte de Abel é, então, o primeiro
do passado (“vamos procurar na desencadear um reflexo edipiano instante em que a condição
nossa memória as significações em relação a esse pai autoritário. mortal do homem é revelada – e
convencionais dessas palavras, Num plano inconsciente, então, a cabe a Caim essa verificação ao
quando são utilizadas no mundo da relação do homem para com deus materializar o crime.
linguagem fora da obra lida”). Em vai estar sujeita a essa pulsão de No fundo, a função do cânone
Caim, num primeiro momento, a morte que, não podendo exercer- bíblico em Caim é dizer ao leitor:
Bíblia é lida no sentido próprio – o se contra deus, que, por definição, aqui está a história que ouviste
texto tal como as suas palavras o é imortal, se vai manifestar no contar contada do modo em que,
dizem – e depois surge uma leitura comportamento dos homens hoje, a deves ouvir, tal como ela é, e
que nasce dessa primeira versão para com os outros homens e vai não como foi apresentada na Bíblia.
“significante” mas não vai buscar encontrar em Caim o paradigma E é isto, finalmente, o que toda a
um significado fora desse espaço primeiro quando ele, não podendo literatura faz: actualizar a memória, apoios:
literal, procurando contextualizá- exercer a sua cólera contra o Pai, a humanizar o mito. Saramago tinha
lo num plano que reconduz a uma vai projectar sobre o irmão, Abel, esse dom, e usou-o com o engenho
realidade possível. É o que sucede matando-o quando este se revela da sua voz e da sua escrita.
na imagem do Génesis em que, ser o escolhido de Deus que aceita o
14 • P2 • Sábado 26 Junho 2010
José Sucena
Administrador
da Fundação
O porquê
da Fundação
José
Saramago
Fernando Meirelles
Realizador brasileiro
Uma verdade rara
no cinema
a Não li todos os livros de José Saramago mas li muitos da expressão quase sempre séria deste homem, sua
deles. Mesmo assim, por ser apenas um leitor comum, generosidade, sua ternura e também seu afiadíssimo
não me sinto preparado para fazer considerações senso de humor.
sobre sua obra, me restando apenas escrever José & Pilar é uma comovente história de amor entre
brevemente sobre o homem que conheci e admiro. uma mulher mais jovem e um homem de oitenta
Tive a felicidade de conviver um pouco com o José e cinco anos que sabe que a porta de saída está se
e com sua extraordinária mulher, Pilar, em função aproximando e tem pena de morrer. Em muitos
da adaptação que fiz para o cinema de seu Ensaio momentos, Saramago reflete sobre o dia em que não
Sobre a Cegueira. Em encontros em Lisboa, Madrid mais estaria aqui, fala sobre isso com certa tristeza
ou São Paulo, tivemos um contacto rápido mas muito mas com tranquilidade. Ele combatia as religiões e
afetuoso. Apesar disso, acho que realmente só vim não via nenhuma possibilidade de outras vidas além
a conhecê-lo mesmo ao assistir o documentário José desta que chegava ao fim. Por esta postura poderia
& Pilar, que o documentarista Miguel Mendes está ter-se tornado um cínico, mas pelo contrário, sem os
terminando de montar e do qual tenho o orgulho de filtros da fé enxergava a vida de forma objetiva e lúcida
ser um dos co-produtores. e esta postura deu-lhe a dimensão exata do valor da
O Miguel acompanhou o casal em suas casas de vida. Impressiona ver como ele se agarra a seu trabalho
Lanzarote e de Lisboa e em suas viagens pelo mundo. como se imaginasse que através de cada leitor pudesse
Como foram três anos de gravações, conforme contou estender um pouco sua permanência aqui. Mas isso ele
o próprio José, num momento a câmera deixou de ser não faz por vaidade, é com tranquilidade que ele nos
uma intromissão e passou a fazer parte de suas vidas lembra que um dia toda a sua obra será esquecida, e
e o Miguel se tornou uma pessoa da família. Por causa completa, Os Lusíadas também desaparecerão, assim
desta transparência adquirida, esta câmera foi capaz como a humanidade e qualquer rastro de memória de
de revelar uma intimidade e uma verdade rara no que houve um dia este pequeno planeta perdido no
cinema nos permitindo ver um lado escondido atrás universo.
A vara
Quando com a vara de negrilho Joana Carda riscou
o chão, Ricardo Reis tomou para si a compaixão
que um casal de velhos dedicava aos marinheiros
revoltosos e desamparado resolveu morrer,
de negrilho
na luz da tarde que sem remédio arrefecia.
Luísa Ferreira
Fotógrafa
20 • P2 • Sábado 26 Junho 2010
Harold Bloom
Não é vingança o tema desta
Crítico literário americano
“A literatura vai sentir sua falta”
fábula; é, sim, muito simplesmente,
redenção. E como podem pedra
e História, terror e desamparo e
ferida, redimirem-se, se tudo entra
na carne e já não sai? Pois podem,
se os tocar a mão de um homem.
Pois podem, se os olharem os a Eu conheci José Saramago há dez anos, quando se sujeitar a um respeito obrigatório. Aqui, Saramago
seus olhos. Assim se fez. E aquilo estivemos juntos na Universidade de Coimbra e conseguiu, assim como D. H. Lawrence e, em menor
que esmagava, o pedestal que iniciamos uma troca de correspondência. Naquela grau, Norman Mailer. Creio que, entre os premiados
suportava a igreja e a monarquia, época, eu já escrevera alguns ensaios entusiasmados com o Nobel de Literatura nos últimos anos, ele foi
a ditadura e o exército, abateu. sobre sua obra e o considerava um homem notável. quem realmente mereceu. (...)
Transformaram-se, o peso e a Claro que houve o controverso período da ditadura de
espessura, e transformou-se a António Salazar, quando ele foi acusado de se manter Ele se tornou um homem iluminado ao se mudar
própria duração. Continuamente distante dos horrores daquele momento político. Na para as Canárias. Saramago foi infeliz em seu primeiro
vemos o trabalho que levanta do verdade, isso não me interessa – prefiro vê-lo como casamento, assunto do qual pouco conversamos.
chão aquele Convento, e vemos os o escritor que deixou ao menos oito romances de Mas reencontrou a felicidade com Pilar, uma mulher
amantes, os que voam. Como um grande qualidade. Trata-se de um feito raro. Em meu mais jovem, bonita, interessada em seu trabalho.
livro – que mede pouco mais do que país, creio que Philip Roth tem, por enquanto, duas Isso influenciou seu trabalho. Como em A História do
um palmo – cobriu um gigantesco obras incomparáveis, assim como outros nomes Cerco de Lisboa, em outros romances, houve maior
monumento é a questão que nos talentosos: Thomas Pynchon também tem dois exaltação do amor heterossexual. Lembro-me de
devemos pôr de maneira a ficarmos livros memoráveis, enquanto Don DeLillo e Cormac poucos livros do século 20 e mesmo do início do século
optimistas. Se o Convento ganhou McCarthy despontam com apenas um cada. Volto a 21 que trataram a paixão de forma tão charmosa. Outro
o nosso afecto graças àquilo que dizer, isso é notável. Saramago também era autor de romance que me surpreendeu foi As Intermitências da
nunca aconteceu a não ser nas textos bem-humorados, ao contrário do que atacavam Morte, cujos personagens têm sua rotina modificada
palavras de um escritor, é porque a seus críticos. (...) tanto pela Morte, que entra em greve, como por um
humanidade se comove mais com o violoncelista que gosta da Suite Nº 6 para Violoncelo de
sonho criador do que com reis. Para mim, Saramago tanto escrevia comédias Bach. Trata-se de uma memorável forma de se utilizar
deliciosas como romances tenebrosos e melancólicos. a imaginação.
Mas ainda estou convencido de que seu melhor
romance continua sendo O Evangelho segundo Jesus Excertos de uma entrevista que Harold Bloom deu
Cristo: corajoso, polêmico contra o cristianismo em no dia da morte de José Saramago ao jornalista
particular mas contra as religiões em geral. Há poucos Ubiratan Brasil e que foi publicada no jornal O
livros que conseguem tratar Cristo e o catolicismo sem Estado de São Paulo a 19 de Junho de 2010
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24 • P2 • Sábado 26 Junho 2010
Sábado, 3 de Julho
1.º Livro P-IQ
Por apenas
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na compra do
PÚBLICO
Seis tipos diferentes de desafios para as suas férias
Memória
É a capacidade que nos permite
registar no cérebro as experiências
e a informação que acumulamos ao
longo da nossa vida. Os conteúdos
são criados na memória a partir de
um processo de aprendizagem, do
qual podem fazer parte estratégias
mnemónicas. A finalidade é praticar
diferentes processos e técnicas
de memorização para aumentar o
rendimento da memória.
Enigmas
A mente funciona de uma forma global
e os enigmas são parte essencial
desta proposta. Incluímos enigmas
tradicionais de origem grega, bíblicos
ou populares; enigmas visuais, em que
a ilustração que acompanha o enigma
é parte fundamental da incógnita;
enigmas matemáticos, para os quais
se requer a utilização de operações
de cálculo elementares; e enigmas
actuais, que foram especialmente
concebidos para esta colecção.
Percepção / Espaço
A visão é o sentido através do qual
recebemos mais estímulos do exterior.
Por este motivo, a observação e a
percepção desempenham um papel
fundamental nos programas de
aprendizagem e desenvolvimento
mental. Igualmente importante
é a capacidade que se refere à
organização do espaço. Esta aptidão
está relacionada com a capacidade de
compreensão e de desenvolvimento
no espaço. A inteligência espacial
desempenha um papel essencial
nas tarefas artísticas, mecânicas e
científicas.
Linguagem
É a linguagem que permite ao ser
humano comunicar. Esta ferramenta
também permite compreender
e processar a informação que
recebemos do exterior. É, por isso,
uma capacidade básica para o
conhecimento. A comunicação verbal
diz respeito tanto à capacidade de
compreender as mensagens como de
produzi-las. Ainda que a linguagem
seja, por si só, um processo mental
complexo, é uma das competências
que se desenvolve com maior
facilidade.
Cálculo
O objectivo desta secção é exercitar
a lógica matemática, isto é, os
mecanismos utilizados na resolução
dos problemas matemáticos.
Basicamente, trata-se de fomentar o
sentido prático da matemática que
possa ser aproveitado no quotidiano.
Por esta razão, não será necessário
aplicar fórmulas matemáticas
complicadas para encontrar a solução
dos jogos. Basta utilizar de forma
adequada as operações matemáticas
básicas.
Raciocínio
É o mecanismo fundamental da
inteligência, já que está presente em
praticamente todas as actividades
mentais. O raciocínio é um processo
mental que serve para descobrir as
regras, as relações ou os princípios
que nos ajudam a compreender algo
ou a resolver um enigma, por exemplo.
Baseia-se nas regras da lógica, que
consistem em estabelecer premissas,
expor deduções e chegar a uma
conclusão.
Raciocínio Cálculo Linguagem Percepção/Espaço Enigma Memória
Soluções
Mente sã… em corpo bronzeado
A Geralmente é lá pelos finais de a forma física – de preferência ao P-IQ - Passatempos de Verão (IQ jogos de inteligência revitalizam incógnita ou de um desafio que
Março, com a chegada da Primavera longo de todo o ano – ,cuidar da é a sigla, em inglês, de Quociente o cérebro e ajudam a melhorar põem à prova a nossa inteligência.
e dos primeiros dias de Sol, que nossa mente é igualmente essencial. de Inteligência). Ao todo são dez capacidades como a memória, Aproveite a tranquilidade das
começam a surgir as preocupações Por isso, porque não aproveitar a livros que apresentam cerca de a dedução, a agilidade e a férias, escolha o sítio e o momento
com a boa forma dos corpos. Se há tranquilidade das férias para “puxar 600 desafios com diferentes graus concentração. A realização dos ideal, muna-se de um lápis e uma
quem aposte nas dietas, há também pela cabeça” e assegurar-se de que de dificuldade e que procuram exercícios propostos implica borracha, de alguma paciência
quem corra para os ginásios ou fica pronto para regressa ao trabalho estimular diferentes competências a utilização em conjunto das e de muita perspicácia e comece
até quem opte por soluções mais da melhor maneira possível? intelectuais. Sem sair da cadeira faculdades de observação e a resolver os jogos que lhe são
extremas… Tudo para que quando Com o objectivo de o ajudar de praia, do sofá ou da rede, pode interpretação, pensamento indutivo propostos pelo PÚBLICO. Vai ver
pise a areia da praia o faça de modo exercitar a sua mente de forma treinar a sua a mente e aumentar o e dedutivo. Todas as competências que treinar a mente pode ser muito
mais confiante possível. descontraída e divertida, o PÚBLICO seu rendimento cognitivo. cognitivas são convocadas para a divertido.
Se é importante não descurar edita agora a colecção Colecção Ao estimular a curiosidade, os resolução de um problema, de uma