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ARQUEOLOGIA DE GENERO: TEORIA E FATO ARQUEOLOGICO Anne-Marie Pessis Resumo © tema tratado é a origem da organizagio social baseada na desigualdade de género, desde uma abordagem arqueolégica. As explicagdes que, desde o século XIX, utilizam argumentos de cunho bioldgico, serio gradativamente sustiuidas por outras, justificadas como construgoes sociais. As fontes histéricas ¢ proto-historicas que fornecem informages sobre perfodos pretéritos utilizam também esses esquemas explicativos baseados na desigualdade de género. Os vestigios arquel6gicos, como fatos descontextualizados, sio explicados no comexto das teorias dominantes. Os vestigios arqueoldgicos podem ser contextualizados, também, dentro de quadros tedricos diferentes ¢ com outras abordagens tedricas, Requerem que as explicagdes de fatos ¢ mitos sejam segregadas das idcologias dominantes nos tempos em que foram registradas na meméria social. Abstract The focused themeis the origin of social organization based on gender inequality from an archacological approach. Explanations that since the Nineteenth Century have used biological based arguments will gradually be replaced by others, justified as being social creations. Historical and protohistorical sources furnishing information of ancient periods use these explanatory schemes based on gender inequality. Archaeological remains, like out of context facts, are explained within the context of dominant theories. Archaeological remains could also be contextualized within different theoretical contexts and with other theoretical approaches, These require that the explanation of facts and myths be unmoored from the dominant ideologies of the times they were engraved in social memory. Sto numerosas.as pesquisas que, se multiplicaram nas ultimas décadas, procurando explicar as origens da desigualdade de género na sociedade humana. A dominagio masculina, explicada, inicialmeme, desde 0 século XIX, com argumentos analégicos de cunho bioldgico, experimentou mudangas que acompanharam as transformages das mentalidades na sociedade ocidental. Atualmente, as explicagdes propostas para a desigualdade entre os géneros estio mais claramente apresentadas como uma construgio social. Os argumentos sustentados estio mais proximos da organizagio social do poder, do que do determinismo biologico, originado no dimorfismo sexual ¢ nas especificidades de género da fungio reprodutive As fontes histéricas e proto-histéricas que fornecem as informagdes com as quais se constroem explicagdes sobre as diferentes formas de organizagio social da espécie humana estio baseadas em relagdes de desigualdades de género. As explicagdes e os fundamentos dessa desigualdade, se transfarmario no devenir do tempo, em funcdo das necessidades de cada comunidade. Escassez ou abundancia de recursos alimentares é um pariimetro que incidiré na natureza dos valores partilhados pela sociedade e do grau de permissividade ou restrictividade dos comportamentos sociais. A arqueologia histérica, a0 estudar esses perfodos, evidencia vestigios materiais ¢ imateriais, que podem ser indicadores da desigualdade de género. Isso acontece porque os contetidos da histéria ¢ da proto-histéria sio a referéncia contextual de valores na qual esses vestigios serio explicados. Mas os vestigios arqueoldgicos sic fatos, independentemente do quadro explicativo em que sio inseridos, Fatos descontextualizados culturalmente, daf que sua confiabilidade explicativa dependa, em parte, do grau de sustentabilidade ¢ confiabilidade do quadro tedrico em que (0 utilizados, Existem também outras explicagdes, passiveis de vestigios arqueolégicos, mostrando que, 0 esquema da desigualdade de género_nio é uma matriz. de comportamento humano de cariter universal. Segundo o tipo de abordagem e fundamentagio tedrica adotada pela pesquisa, os vestigios arqueolégicos podem ser inseridos em quadros explicativos, como elementos que confirmam ou rejeitam um tipo de explicagéo. A diversidade cultural se traduzir em diferentes formas de organizagio social em fungao das solugées mais adequadas para a sobrevivéncia das comunidades humanas, Ela é funcional & sobrevivencia da espécie humana por ser multiplicadora de solugdes diferentes e por fazer melhor aproveitamento das capacidades dos membros da comunidade. Mitos ¢ esctitos se referem a esta diversidade de valores em face & desigualdade de género, mas se acham acompanhados de comentarios que indicam sua funcionalidade aos valores do momento histérico em que aconteceu seu registro. Os mitos biblicos do genesis podem ilustrar essa circunstincia. Existem duas versdes sobre a criacio da mulher? Uma primeira, em que a criagio de ambos dois sexos teria sido um acontecimento simmultineo. No sexto dia do géncsis, teriam sido criados, simultaneamente, Adio ¢ Lilith, com a mesma matéria: aterra. Mas Lilith exigira de seu parceiro a manutengo de uma relagio de igualdade, provocando uma resisténcia que a levari a abandonarhe ¢ nunca mais setornar, Na segunda versio, propria da cultura mediterranea judew-crista, Eva teria sido criada num segundo momento, a partir de uma costela de Adio. Ela teria sido criada para ser dependente dele, escrava e reprodutora. No contexto dessa versio, que seri dominante no universo monoteista, a figura de Lilith ficar’ como um simbolo demonfaco, entanto que a reputacéo de Eva no seri muito melhor. Tornar-se-a osimbolo da culpa e da culpabilidade de toda a husmanidade. Incitadora de transgressées religiosas, sedutora, estimulando possiveis fraquez s masculinas, Eva deverd ser controlada, freada nas suas iniciativas e privada de conhecimento que possa lhe permitir adotar ages inadequadas, como conseqiiéncia de suas limitagées mentais e emocionsais. Para garantir a continuidade da desigualdade, como substrato dessa construcio social, seria preciso que esta fosse aceita a partir de um consenso, através da imposigio de certos comportamentos de controle, marcadores ideoldgicos de forte impacto social. A ideologia viabilizaria a continuidade do modelo de desigualdade de género, que deveria ser regularmente atualizada por mecantismos repressivos. A ortodoxia religiosa sob todas suas formas é um exemplo desse proceder manipulador. Independentemente das modalidades que toma o exercicio da desigualdade, o problema que persiste é achar explicagdes ds razdes que levam a espécie humana 4 implantacio da regra da desigualdade de enero, como regra Um recurso as ve! 2es wtilizado pela etnoarqueologia tem sido levantar hipdteses a partir do conhecimento histérico e proto-histérico sobre populagdes tecnicamente pouco desenvolvidas. Anne-Marie Pessis Este é um recurso que restringe a anilise apenas a perfodos de cultura escrita. Tanto a documentagio histérica quanto as menges sobre a tradigZo oral, fornecerio registros de fatos apresentados como indicadores dadependéncia da mulher do poder masculino. Dominincia que se traduz, também, como poder gerenciador da mulher em tanto que componente do proceso de reprodugio ¢ acasalamento. ‘A desigualdade de género, em termos operacionais, parece estruturar-se principalmente em torno da aplicagio de dois procedimentos, mecanismos de controle que condicionario, ideologicamente, essa forma de organizagio social da espécie humana. Sio estes os controles da informacio técnica, do conhecimentoe a solidariedade masculina na apropriagio e gestio dessa informagao teleonémica.* Pittendrigh, Colin. Perspectives in the study of biological Clocks in, Perspectives in Marine Biology. La Jolla, Scripps Institution of Oceanography, 1958 Pesquisas sobre a evolugio do género Homo integram dados obtidos de diversas areas disciplinares, que convergem em explicagdes cada vez. mais fundamentadas, Nas tiltimas décadas, foram realizadas descobertas esclarecedoras no estudo do comportamento de espécies geneticamente muito préximas Aespécie humana. No proceso de hominizagio, as diferentes mutagdes acontecem sempre no seio de uma espécie de origem. Nio sendo uma excegio, o Homo sapiens se originou a partir de uma espécie antecessora na qual se teria produzido a mutagio, Em conseqiiéncia, a nova espécie se inicia a partir de uma bagagem bioldgica e cultural herdada dessa espécie ancestral. ‘As pesquisas etolgicas evidenciam a primazia sexual do macho dominante, sem coersio fisica por género, manifesta na preferéncia que as fémeas, Ihe outorgam no processo de reprodugio. Existem evidéncias de que, no interior de cada espécie, acham-se diferengas de organizagio social em fungio de fatores ambientais. Fatores que pesam na sobrevivéncia dos grupos. As condigdes de acesso aos alimentos vio ter influéncia no grau de restrigio ou permissividade da organizagio de comunidade®. Nio se observam indicadores de discriminagio no acesso & informagio social nem exclustio de genero. Os membros da comunidade partilham a informagio que lhes permite _sobreviver individualmente, Esse acesso a informagio é teleondmica para o grupo, Maas junto ao acesso igualitario & informagio se constata que, no aprendizado, os grupos de primatas estimulam a ctiatividade desde 0 inicio da socializagio. Pace ao perigo externo, cada um participa da defesa segundo sua capacidade, sua asticia e sua forca. Com o aparecimento de Homo sapiens, esses comportamentos igualitarios sofreriio modificagSes. Entre os atributos da espécie humana a produgio de modificagées técnicas na matéria prima ocupa um lugar essencial, Esses instrumentos compensario as caréncias bioldgicas de uma nova espécie fragilizada. A falta de garras e dentes de carnivoro e sem recursos de fuga eficiente os coloca em condigdes de inferioridade em relagio ao seu entorno. Os instrumentos de defesa ¢ agressio, assim como técnicas ¢ estratégias de utilizag3o das armas, viabilizar’o sua sobrevivéncia. Go Quando as possibilidades de sobrevivéncia de um grupo sio preckrias, as capacidades. de seus membros se conjugam para resolver esses problemas, A informagio é essencial para todos, j4 que precisam poder identificar os perigos, conhecer técnicas de sobrevivéncia e defesa, ¢ ser capazes de enfrentar face a situagdes limite. A vida de cada um é importante para a existéncia de todos. ‘Nas sociedades de hoje, que se mantém tecnicamente pouco desenvolvidas, como 0 caso dos Krahé, no Brasil, 0 acesso ao conhecimento para sobreviver na floresta é igual para todos. Sem diferenciago de género. A arqueologia préhistérica fornece informagées sobre os padres comportamentais das primeiras populagdes humanas. O escasso desenvolvimento téenico € o instrumental rudimentar disponivel para sua defesa, determinaram a necessidade de conservar um alto grau de coesio ¢ solidariedade grupal. Quanto mais o grupo participava da informagio, maiores eram as possibilidades de vida da comunidade, © grupo precisava se comportar como uma gestalt para sobreviver ¢ manter um equilfbrio social adequado & situago. Nesse contexto qualquer regra de desigualdade arbitréria que nfo respondesse a uma funcionalidade grupal, redundaria em prejuizo para 0 grupo. 15 Anne-Marie Pessis A pesquisa arqueoldgica permite evidenciar que em esta primeira etapa da organizagio social, os grupos humanos préhistoricos eram pequenos grupos. Os vestigios da cultura material esto dispostos emestruturas espaciais que sugerem grupos de uns cingtienta individuos. Comunidades desse porte tinham condigdes de reagir rapidamente frente ao perigo. A procura de novos nichos ecoldgicos com melhores possibilidades de recursos alimentares deve ter condicionado a cadéncia de deslocamentos. Mas esses périplos envolviam consideriveis riscos. O encontro com outros grupos humanosecom espécies carnivoras de grande porte, podia acarretar riscos frente deficiéncia limitada dos instrumentos defensivos. A forca fisica era importante, mas 0 era ainda mais a asticia das estratégias de defesa, Como nas outras espécies de primatas nto humanos, os individuos mais fortes, homens e mulheres, rodeavam aos que fisicamente eram mais frégeis, e se articulavam segundo as orjentagdes do mais forte ¢ apto para garantir a sobrevivéncia. A lideranga devia necessariamente ser assumida pelo individuo mais apto para uma defesa bem sucedida em cada circunstncia Descobertas arqueoldgicas ¢ etno-arqueoldgicas sugerem que o comportamento agressivo é inerente Aespécie humana. Agressividade e violéncia eram necessarias para uma subsisténcia bem sucedida.$ Nas pinturas rupestres pré-histéric s sio numerosos os exemplos de figuras humanas cagando com armas, propulsores ¢ arcos, representagdes de combates coletivos e modalidades de agressio entre duas figuras humanas, Yas escavaces foram achados, corpos que tinkam sido mutilados ea presenga de ossos humanos fraturados entre os restos de alimentos que sugere a pritica do canibalismo/ No entanto, desde os primérdios da existéncia da espécie humana, a primeira wap Dia éada maior fragilidade. © Homo sapiens nasce desprovido de iniciativa para contribuir a sua propria sobrevivéncia, As outras espécies de primatas, desde seu nascimento se aferram com mis e pés aos pelos da mie. A crianga humana, apenas nos primeiro dias, reage com um reflexo preensor, quando se estimula a planta de seu pe, mas essa reacio, totalmente normal nos primatas, desaparece rapidamente. Em face & fragilidade da crianga humana ao nascer, 0 grupo dever dar um maior suporte e cuidado para favorecer a sobrevivéncia, © aleitamento exigir’ da mulher uma solicitagao especializada, mas nfo excludente de outras atividades como 0 aptendizado dos procedimentos técnicos da comunidade, incluindo a defesa e o ataque. As pesquisas sobre comportamento dos primatas indicam que nio existem evidéncias de especializacio por género, nas tarefas da procura de alimento. Os dados arqueolégicos e etnogrificos indicam que a alimentacio, nos inicios da sociedade humana, estava baseada na coleta e na caga de insetos e espécies de pequeno porte. ‘A partir de uma modalidade inicial de vida estruturada em tomo de périplos semi-némades, vinculados com a caga ¢ a coleta sazonal, ocorrerio transformagées das comunidades humanas com uma diversidade gerada por as presses contextuais ¢ as construgSes culturais e vécnicas, Essas mudangas irio no sentido de incrememtar as possibilidades de sobrevivencia. A violencia exdgena ser mais controlada pelas comunidades, através da planilicagio das defesas. O incremento da populagio dos tempos de permanéncia em territérios levar’ a novas formas de organizagio social ede produgio agricola. A sedentarizagio criara novos valores ¢ interesses, além da simples sobrevivéncia, O uso dos territérios passar4 a ser defendido e as técnicas de conservagio de alimentos permitirio sua acumulagio, Armazenar alimento é acumular possibilidades de sobrevivencia e de poder. A violencia sera, portanto orientada a preservar territ6rios e bens. Dessa transformagio surgira a necessidade de mio de obra geradora de riqueza, mio de obra humana, mio de obra como bem de troca e venda. O trabalho escravo se tomara um produto da violéncia, de enfrentamentos e de derrotas. oO ‘Nesse contexto, na nova organizacio social estruturada em torno do trabalho, ambos os géneros trabalharSo, mas a mulher acumulara as responsabilidades da maternidade produtora de filhos como riqueza c as do trabalho agricola junto com os homens. Nesse processo, a inovacio técnica ira formando um acervo de conhecimentos especializados destinados aos homens, a0 qual as mulheres n3o terfo acesso. A apropriagio masculina do conhecimento ser solidariamente defendida por eles. Esse estereétipo de exclusio feminina do conhecimento, constisuir’ uma estrutura conservadora em torno da qual se organizar4 a maior parte das sociedades historicas, Existir’ trabalho de homem e tarefas de mulher. Para elas, as tarefas de carter agricola ou doméstico, pela simplicidade dos procedimentos, nio vio requerer maior informagio técnica. Assim, especializagio de atividades entre os géneros dar4 origem a desigualdade ese abrird uma profunda brecha informativa entre ambos, Fica evidente que na histéria dos géneros, em todas as classes sociais as mulheres sero exclufdas da informagio técnica. 17 ‘Anne-Marie Pessis A origem dessa desigualdade responde a formas de organizacio teleondmicas que, originalmente, na histéria evolutiva de nossa espécie, permitia a sobrevivéncia do grupo. Quando essa funcionalidade é superada, quando a divisio do trabalho por género j4 nio responde a uma necessidade real, a ideologia masculina seré dominantemente imposta para garantir a continuidade das estruturas de poder. Este esquema explicativo sustentado em elementos histéticos e proto-histéricos, particularmente ilustrado nas sociedades neoliticas mediterraneas, n3o é, como foi indicado, necessariamente valido na sociedade humana de épocas préhistéricas. Os pesquisadores tém uma tendéncia a utilizar esse esquema como referéncia explicativa, projetada a um tempo muito distante, de aquele das primeiras referéncias historicas. Na arqueologia pré-histdrica, para segregar indicadores vinculados ao problema da desigualdade de género, & preciso tornar operacional alguns dos conceitos formulados. Assim, os indicadores da desigualdade estreitamente ligados ao conceito de poder, deverio ser formulados em um contexto diferente. A desigualdade que implica 0 poder em face aos outros precisa ser considerada, em termos teleondmicos, em relagio ao fendmeno da sobrevivéncia. A acumulagio de possibilidades de sobrevivéncia se traduz em possibilidade de usufruir da energia dos outros, do trabalho e da vida dos outros, sob ameaga de despossuir-os dela ou de exercer sobre eles a violéncia da dor ¢ da yortura. A desigualdade, também, se manifesta no plano da apresentagio. As desigualdades de género aparecem quando as diferengas de apresentagio encontram-se associadas, explicitamente, ao sexo. Entre outras espécies, o macho dominante apresenta seus atributos € cores naturais para simbolizar sua supremacia, A cores fortes € 0s ornamentos naturais de maior porte sio a promessa de uma prole que tera maiores possibilidades de sobreviver. As fémeas que escolhem seus parceiros, procurario os mais confiéveis, os que apresentam maior congruéncia entre os indicadores de supremacia, As fémeas nfo precisam desses atributos simbélicos de ornamentagio, por serem elas as que escolhem os parceiros. Existe, entre os machos, a necessidade de apresentar sua forga, sua superioridade teleonémica para serem escolhidos. Ser mais forte é também ser mais apto para viver. Socialmente gera um contrato de intercimbio de bens, de deixar os outros viver, de lideri-los em troca da entrega de suas vidas, das suas energias e do seu trabalho. A espécie humana, para sobreviver, copiara das ovtras ¢ melhoraré seus produtos, Utilizaré instrumentos para potencializar sua forca fisica, utilizar meios para se ornar a partir da pintura corporal, da vestimenta e do direito de usar de objetos tinicos, elementos que se tornario simbolos de diferenca ede identidade. Quando esses elementos se distribuem desigualmente por sexo, aparecem indicadores de desigualdades. A ornamentagio corporal, a vestimenta ¢ os objetos tinicos, produto de tecnologia capaz de produzir a obra mestra, podem ser indicadores a serem considerados na anilise de vestigios arqueologicos. Esses elementos aparecerfio em acontecimentos tais como a morte ¢ 0s registros rupestres, pintados ou gravados (marcadores mnemotécnicos da historia oral), que permitem passar de geracio em geracio os testemunhos das hierarquias, das diferencas ou das desigualdades. Nos registros graficos dos sitios arqueoldgicos do Parque Nacional Serra da Capivara, no Brasil, os pesquisadores dispem de um numeroso corpus de figuras. As pinturas que fazem parte da tradigio Nordeste foram reali: adas durante milénios, foram, portanto objeto de transformagées, embora conservando as caracteristicas basicas da classe inicial. Utilizando apenas os parimetros basicos dessa tradigio, é possivel fazer algumas observacdes, sobre a inexisténcia de desigualdade de género. Esses indicadores so simbolos que se manifestam por diferengas de apresentagio. Diferencas que podem ser simples ou complexas, Entende-se por simples, aquela diferenca que se contrasta num conjunto de figuras homogéneas: todas as figuras sio iguais excetuando uma que é portadora de turago diferente. No caso da diferenga complexa, nao sio necessirias figuras homogeneas para salientar as diferengas. Cada figura possui seus tragos diferenciadores configurando conjuntos de figuras diferemes ‘Anne Marie Pessis No Sitio do Salitre, localizado na area de entorno do Parque Nacional Serra da Capivara pode-se observar a existéncia de um friso policrémico de figuras humanas dispestas mantendo um espago de separagio constante entre elas. (foto 01) Todas as figuras sic diferentes, seja nas cores, na ornamentagio e nos detalhes que sio salientados. Tratase de um caso tipico de diferenciagio complexa. Foto 01 - Toca do Salitre Observando as identidades, é possivel observar-se que, no corpus grifico considerado, existe uma identidade sexual com caracteristicas tipicas. Hi trés tipos de tragos identificagio: a) figuras portadoras da representagio do falo; b) figuras portadoras da representagao da vagina exteriorizada ¢ finalmente,as figuras que nio apresentam qualquer indicador de género e que sio 0 tipo dominante no conjunto da tradigio Nordeste de pinturas rupestres,(Poto 02) Esses tipos devem ser considerados no contexto de um sistema de comunicacio grifica em que, cada um dos componentes do sistema, cumpre uma funcio especifica na transmissio da mensagem, A inexisténcia da desigualdade de género se manifestaria no fato de que, as figuras sem indicador sexual, aparecem em todas as temiiticas, sejam de guerra, Nidicas, ou de caga ou naquelas composicdes em que esto representadas figuras adultas associadas a criangas. As figuras sem representagio de sexo sio apenas figuras humanas em que o diferenciador sexual no agrega informagio. Q sexo feminino aparece apenas presente na copula ou associado ao processo de gravidez. Oo Foto 02- Toca do Nilson do Boqueirio da Pedra Solta Nas cenas de luta grupais ou de caga, atividades associadas aos homens nas comunidades organizadas, na base da desigualdade de sexo, aparecem numerosas figuras sem diferenciador sexual. Sio elementos que podem sugerir sociedades em que nfo existe a divisio sexual do trabalho. Homense mulheres participariam de todas as atividades segundo suas capacidades ¢ suas aptidées, Assim nas cenas de luta,”elas vestiriam os mesmos atributos culturais que as figuras masculinas ¢ participariam ativamente da caga maior e da luta armada , da mesma mancira que os homens.”! Isto nao exclui que existam atividades rituais diferenciadas por sexo. O rito de iniciagio é uma delas. Na tradicdo Nordeste existem representacdes de cenas em torno de arvores, as vezes identificadas como a jurema, da familia Pithecolobium torvum, em que todas as figuras que participam do tito sio representadas com seu falo, as vezes, portando um tapa-sexo ritual, (foto 03). Uma das figuras, representada com uma gestualidade diferente ao conjunto de dez figuras com sexo masculino, aparece sem diferenciagio sexual, Referéncias etnogrificas do Nordeste do Brasil mencionam esse rito e salientam que apenas os iniciados participam dele. A cexclusividade ritual é também propria das jovens mulheres que devem ser também submetidas a ritos de iniciagio. Os homens sio igualmente excluidos desses eventos, A exclustio é igual paca homens e para mulheres, mas no supée uma desigualdade de género. Considerando a ornamentagio na vestimenta, nas pinturas da tradigio Nordeste é possivel constatar que nos perfodos mais arcaicos da ‘Tradigio, as figuras diferenciadas pela vestirenta sio principalmente Anne-Matie Pes de dois tipos, aquele em a figura est4 totalmente coberta por uma mascara ornada de um cocar, ¢ iquele em que a figura antropomiérfica leva somente um cocar, Em ambos os casos aparecem figuras com a diferenciacdo sexual masculina e sem diferenciagio sexual. (fotos 04) ° Foto 03 - Toca da Extrema I Em face ao fendmeno da morte, as escavagbes arqueoldgicas realizadas na regito Nordeste do pais, permitiram descobrir que existe uma importante diversidade no tratamento outorgado ao corpo depois da morte®, Em enterramentos de periodos anteriores hi 7.000 anos observa-se a utilizagio diversos procedimentos, primirios e secundarios, A presenga de corantes, fogueiras, adornos e pedras associadas ¢ uma constante. Mas 0s enterramentos primirios sio 0s mais antigos achados no Parque nacional Serra da Capivara e na area arqueologica do Seridé. No sitio da ‘Toca dos Coqueiros, localizado no Parque Nacional Serta da Capivara se registra um enterramento primétio individual realizado em cova que foi datado em 9.870 anos BP. © esqueleto Foto 04 - Toca da Entradz do Baixio da Vaca colocado em posigio fetal, deoibito lateral, estava recoberto de uma espessa camada de cinza e duas pontas de flecha. Os ossos largos apresentavam um tamanho superior & media 0 que associados Apresenca das pontas de flecha como parte do enxoval mortudrio, levou os pesquisadores a levantar a hipdtese de que se trataria de um individuo de sexo masculino, Qs estudos e andlises posteriores confirmaram que se tratava de um individuo do sexo feminino.! Esse acontecimento ilustra a influéncia de certos a priori, de carater ideoldgico na formulagao das hipdteses. A radicalizagao de opostos, forte e armado versus fragile desprotegido, sio esteredtipos que levam a buscar a confirmagio de hipéteses, condicionadas pela persisténcia de explicacdes validas em periodos historicos e proto-histéricos. Sio esquemas explicativos, em face dos quais ¢ preciso que as pesquisas sejam vigilantes e criticas, Hierarquia e poder sio dois conceitos que para os perfodos recuados da pré-histéria devem ser reformulados em termos teleondmicos. As exigencias da sobrevivencia nio permitem 0s eros que pode acarretar uma ideologia da hierarquia ¢ do poder, que nio corresponda as expectativas do grupo. Sobrevivencia significa a sobrevivencia do grupo. Os simbolos de hierarquia e poder sio atributo dos mais preparados para garantir a continuidade do grupo. Nio sio simbolos ideolégicos, sio os simbolos de um compromisso social. O herdi da pré-historia esta mais exposto que o herdi grego, suas chances de sobrevivéncia so inferiores, Se sua lideranga nfo corresponde as expectativas nfo é apenas ele que terd morte prematura, mas o grupo como um todo. Sem grupo nao tem hierarquia, nem poder, nem desigualdade. mee Anne-Marie Pessis | = Anne-Marie Pessis, Coordenadora do Programa de Pés-graduacio em Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco, Recife. E-mail: pessis@terra.com.br Bibliografia ALPHABET DE BEN SIRAHA, texto andnimo do século XI. 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