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CCULTURAS € ARTES DO POS.HUMANO 8 que procurei levar em conta, mas também 0 impacto dessas mudangas no corpo humano. E nesse aspecto que os desenvolvi- ‘mentos tecnolégicos apontam para as possibilidades de formas de existéncia pés-humanas que, no scu visionarisme, Roy Ascott (20032) vem chamando de pés-biolégicas na emergéncia de uma ra timida (naist) que nascerd da jungio do ser humano molhado (uei) com o silicio seco (ary), especialmente a partit do desenvol. vimento das nanotecnologias que, bem abaixo da pele, passatio silenciosamente a ineeragit com as moléculas do corpo humano, Estou ciente de que o titulo do Livro ~ *Culeuras artes do 6e-humano” ~ € pectusbudor. Pode sugerit que o humano jé se ‘oi, petdeu-se no golpe dos acontecimentos. Insisto em manté-Io, apesar desses perigos interpretativos, porque pretend chamar 2 atengio para a necessidad de se repensar 0 humano até o limite ltimo de sua esséncia molecular, Parece que esse titulo nos faz chegat a esse limite O QUE E CULTURA uulcura, em todos os seus sentidos, social, intelectual ow ( areistico € uma metéfora derivada da palavra latina cultara, jque, n0 seu sentido original, significava 0 ato de cultivar 0 solo. Os sentidos conorativos de cultura ndo tardaram a aparecer. Cicero, por exemplo, ja usava a expresso cultura anima, culcura da alma, identificando-a com a filosofia ou a aprendizagem em geral. Que a analogia com o crescimento natural esteja no coragio do sig nificado de cultura no tem nada de arbierério, A culeura é como a vida. Sua tendéncia € ctescer, desenvolverse, proliferar, “porque & muito mais espessa a vida que se desdobra em mais vida, como uma fruca & mais espessa que sua flor” (Joéo Cabral) ‘Sao quatro 0s principios que governam a vida: ela tende a se expandic como um gas paca ocupar todo o espaco disponivel; ela se adapta is exigéncias do espago que se tornou disponivel; ela se desenvolve continuamente em niveis de maior complexidade; ‘quanto mais complexo o nivel de sua organizagio, mais rapida- mente a vida cresce. Esses mesmos principios se aplicam a culeura, Sua disposigio para 0 crescimento € natural. Também como a vida, ‘quando encontra condigées favordveis ao seu desenvolvimento, cultura se alastra, floresce, aparece, faz-se ostensivamence presente, CCULTURAS E ARTES DO Pos-HUMANO. (Que é cuLTURA 30 1. NA CULTURA, TUDO E MISTURA Oucra importante metifora para a compreensio da cultura, ‘menos biolgica do que a da vida, € a metafora da mistura. Sea mistura € 0 espirito, como dizia Paul Valéry, ¢ a cultura é a morada do espitito, entio cultura é miseura. Embora se apresente ‘como uma simples brincadeira silogistica, af est enunciada uma condisio fundamental para se entender 0 que esti acontecendo com 2 culeura nas sociedades pés-industriais, pés-modernas, sociedades globalizadas deste inicio do século, Nio é outra coisa seniio a ideia de mistuca que anima o livto Caltares bil idas votn gue Nestor Garcia Cancliai recebeu 0 prémio de melhor livro sobre América Latina no periodo 1990-1992. De lé para 4, a realidade no apenas vem confirmando, mas inteasificando os diagnésticos de Cancliai, 2. A PROLIFERACAO DOS SENTIDOS DE CULTURA Sem nenhuma pretensdo de exanstividade, proponho apresentat tum breve mapeamento do campo da culeuta que possa funciona como um tragado para 0 reconhecimento das complexidades da Grea. Minha hipétese é a de que uma cartografia analitica, quando suficientemence mével, em vez. de funcionar como uma camisa- de-forga que impede a apreensio da fluidez do tertitério, funciona, isto sim, como um sistema de alerta ¢ de sinalizacZo para as diff ‘culdades apresentadas pela evanescéncia dos caminhos. 2.1. Um termo elusive As definigBes da culeura so numerosas, Ha consenso sobre 0 faro de que culeura € aprendida, que ela permite a adaptagio humana ao seu ambiente natural, que ela é grandemente varidvel © que se manifesta em inscieuigées, padrées de pensamento ¢ objetos materiais. Um sindnimo de cultura € tradicdo, 0 oucto é Civilizagio, mas seus usos se diferenciaram ao longo da histéria. Uma definigéo breve e stil € a cultura € a parte do ambiente que € feita pelo homem. Implicito nisto esté 0 reconhecimento ‘le que a vida humana é vivida num contexto duplo, o habitat ‘nacural e seu ambiente social. A definigio também implica que a uileura é mais do que um fenémeno biolégico. Ela inclui todos vos elementos do legado humano maduro que foi adquirido atta vyés do seu grupo pela aprendizagem consciente, ou, num nivel \lgo diferente, por processos de condicionamento — técnicas de wirias espécies, sociais ou institucionais, crencas, modos padroni- uados de conduca. A culcura, enfim, pode ser contrastada com os materiais brutos, interiores ou exteriores, dos quais ela deriva. Recursos apresentados pelo mundo natural so formacados para vir ao encontro de necessicades existences. Um conceito popular de cultura € 0 de refinamento, impli- cando na habilidade que alguém possui de manipular cercos ispectos da nossa civilizagio que trazem prestigio. Pata o cientis- (a, entretanto, qualquer pessoa culta s6 é caper de manipular ilguns fragmentos especializados de nossa cultura, compactilhan- «lo muito mais do que se pode suspeitar com um fazendeiro, um pedreio ou qualquer tipo de profissional. A mais rude economia, © Fito religioso mais arrebatado, um simples conto popular sio todos igualmente partes da cultura (Herskovits 1952: 17-18) Barnard (1973: 613) nos informa que, embora tena ido sua origem no mundo lacino, a palavra culcura s6 foi se tornar cor= rente na Buropa na segunda metade do século XVIII, quando 0 termo comegou a ser aplicado as sociedades humanas. Aos signi- ficados herdados, logo se juntaram tantos outros que, antes da lilcima década do século XVIII, a proliferagao dos seus sencidos levou 0 filésofo alemio J. G. von Herder a afirmar que nada poderia ser mais indeterminado do que a palavra cultura. Dessa 6poca em diante, os sentidos se estenderam até ao ponto de levar _ © esctitor A. Lawrence Lowell a dizer, em 1934, que nada no mundo € mais elusivo do que a cultura, Uma tentativa de abran- _ger seu significado em palavras 6 como tentat agarrar 0 ar com as mis, quando descobrimos que ele esta em tudo exceto no que 31 CCULTURAS E ARTES DO POs-HUMMAN 32 se pode agarrar. Apesar da dificuldade, uma tencativa desse tipo foi feita, em 1952, quando os antropélogos A. L, Kroeber e Clyde Kluckhohn puseram em discussio nada menos do que 164 definigdes de cultura De todo esse recenseamento, os autores excrafram seis categoria 2) descritiva, com énfase nos caracteres gerais que definem a cultura; b) hiseérica, com énfase na tradigio; ©) normativa, enfatizando as regras € valores ©) psicolégica, enfatizando, por exemplo, o aprendizado ¢ 0 habito; €) estrutural, com énfase nos padres € 4) genécica, Esta tltima € a mais diversificada, incluindo definigdes com énfase na cultura como um produto ou artefato ou com énfase nas ideias € nos simbolos, ou ainda definigdes a partir de categorias residuais (Barnard e Spencer 1996: 140). Essas seis categorias poclem ser reduzidas a dois tipos de defi- nig®es principais: uma definigdo restriea, restritiva mesmo, que utiliza termo para a descrigio da organizacZo simbélica de um rupo, da transmissio dessa organizacZo e do conjunto de valores apoiandlo a representacio que 0 grupo se faz de si mesmo, de suas relagGes com outros grupos ¢ de sua relagfo com o universo natural, © um segundo tipo mais amplo de definicio que nfo contradiz ¢ Primeiro, de acordo com 0 qual a cultura se refere aos casrnmes, As crengas, a lingua, 3s ideias, aos gostos estéticos e ao conhec, ‘mento técnico, que dio subsfdios & organizagio do ambiente total humano, quer dizer, a culeura material, 0s utensilios, o habitat e, mais geralmente, todo o conjunto tecaolégico transmissivel, regulando a6 relagdes e os comportamentos de um grupo social com 0 ambiente (Martinon 1985: 873). 2.2. A concepgao humanista e a antropolégica No sen influente livro Culture and society: 1780-1950, Raymond Williams considera 0s conceitos de cultura ¢ civilizago como indnimos, atribuindo-Ihes quatro sentidos comuns. a) um estado geral ou hébito da mente tendo relagies proxi- mas com a ideia de perfeicio humana; b).um estado geral de desenvolvimento intelectual numa sociedade como um todo; 0 corpo geral das artes e do erabalho intelectual; d) um modo geral de vida, material, intelectual e espiritual. Os trés primeiros sentidos vieram se associar is chamadas concepsbes humanistas da cultura, enquanco 0 quarto € usual- mente associado com concepgdes antropolégicas. As concepcées humanistas so seletivas, separando certos segmentos das ativida- ‘5 humanas de outros ¢ concebendo-os como sendo culturais. As anttopolégicas so nio-scletivas pois aplicam o termo cultura 1 tn a doa burma, una dada cede, heaps social inteica € a qualquer coisa que possa ser adicionada a ela. !Aquanto os antropélogos evicam julgamencos de valor pelo temor de incorrer em etnocentrismos, os humaniscas defendem + possibilidade, ¢ mesmo a necessidade, de se avalias as diversas formas das atividades e objecivos bumanos & Inz de valores 1 vorsais que, eles insistem, sio passiveis de uma dererminagio objetiva (Barnard 1973: 615). Enquanto na concepgg0 soezop l6gica a cultura é, por natureza, plural e relativista, quer dizer, o huis eit civic teeares runes ned valiosa em si mesma, para os humaniseas, algumas pessoas cém mais cultura do que outras € alguns produtos humanos, tais, como artes visuais, misica, literatura, so mais culturais do que outros (Barnard ¢ Spencer 1996: 136). Embora haja uma con cordancia quanto a necessidade de se distinguir 0 culeutal do» biolégico na vida humana ¢ social, o fulcro das opinides sobre 0 OQue€ cuttuRR 33 CCULTURAS € ARTES DO POS-HUMANO, 34 que € crucial e problemstico difere muito nessas duas concepgdes Barnard 1973: 615). E dessas duas concepcées que derivam os sentidos de culeura ue se tornaram correntes: o sentido lato e 0 sentido estrito. Tal como é entendido nos estudos de historiadores, sociélogos € antropélogos, o sentido lato descreve todos os aspectos caracte- risticas de uma forma particular de vida humana, O sentido estrito € uma provincia das humanidades, cujo objetivo é inter- pretar ¢ transmitir as geragdes fucuras o sistema de valores em fangio dos quais os participantes em uma forma de vida encon- tram significado proposito, Em ambos os sentidos, a culeura pode ser pensada como um agente causal que afeta o processo evolutive acravés de meios exclusivamente humanos, na medida em que permite a avaliagdo autoconsciente das possibilidades humanas 4 luz de um sistema de valores que reflece as ideias Prevalescentes sobre 0 que a vida humana deveria ser, A culcura & assim, um recurso indispensével para 0 crescimento do con- trole humano sobre a direcio em que nossa espécie muda (Honderich 1995: 172). Na incerpretagio de Williams (1967: 274), a concepgio humanista apresenca uma énfase idealisea pois vé a cultura como lum processo € um estado de cultivo sob um prisma universalista, Este uso do conceico € ético e espiritual, expressando wm ideal de perfeicio humana. Pode, por isso mesmo, facilmente entrar em conflico com a énfase nas culturas particulates que acentua as diferencas 105 modos pelos quais o ser humano encontea signifi- cado e valor na sua vida e, até mesmo, concebe a perfeigio, Esta segunda énfase, que € prépria da moderna antropologia e socio- logia, € necessuiamence relativa e comparativa, enquanto a énfase idealista tende a ser absoluta, sendo muito comumente associada com a heranga clissica ¢ cristd europeia. Encee essas das énfases, coloca-se aquilo que provavelmente é 0 sentido mais comum de cultura, a saber, um corpo existente de erabalhos artisticos e inte- lectuais. Hi uma rensio ineviravel encre este significado e os dois anteriores. Um trabalho artfstico ou intelectual com frequéncia QUE E curTuRA ‘hiv se conforma a ideia de um estado mental perfeito jé associado \ valores € significados tradicionais conhecidos. Nesta posicio intermediria entre © sentido humanisea, universal, ¢ 0 sentido inccopoldgico, relativisea, torna-se necessério fazer distingdes were alta culeura, baixa cultura, culeura de massas, ou outros tnulos gue se cornarum comuns no século XX. Por outro lado, w 0 cultura € vista como um corpo de trabalho artistico e intelec- (wal a0 qual um grande ou até mesmo um supremo valor € con- (orido, € dificil, a partir desta posigao, aceitar 0s usos que a antro- pologia € a sociologia fazem da palavra “cultura”, pois esses usos iw) neuceos, referindo-se ao que as pessoas fazem ou pensam, sem. evar em consideragiio qualquer mérico artistico ou intelectual. Hisses usos imcluem elemencos da vida social € econdmica, espe- iulmente inscitucional, que nada tém a ver com o sentido artis {ico ¢ intelectual de culeura. 23, Cultura e civilizagao As distingdes entre cultura e civilizagio, ao longo da historia, forum abundantes. Enquanto cultura derivou do sentido de cres- ‘mento natural, a palavra civilizagio foi derivada de uma condi- vio social real, aquela do cidadio (civis, no lati). Essa palavea estava, assim, em contraste com “barbarismo’, outra condigio ‘ocial que significava originalmeate o modo de vida de um grupo estrangeito (Williams 1967: 273). De acotdo com Batnatd (1973: 617), para escricores como Kant, Coleridge ¢ Matthew Arnold, a cultura representa essencialmente « condigées morais do individuo, enquaneo a civilizagio significa 1s convengGes da sociedade. Invariavelmente, a primeira esté tam- bhém associada a valores espirituais, a segunda a valores ses Segundo Kane, a propriedade externa constitui meramente a civili- at eae ¢ idrin de morldade pettence & cultura verdadeira Bssa distingdo e, até certo ponco, o ceticismo sobre o valor da civi- lizagio, derivado de Diderot, Rousseau, Herder, e que iria atingie seu climax no inicio do sécalo XX com Spengler (Der Untergang 35 CCULTURAS & ARTES DO POS-HUMANO, (que & cuLTURA 36 ds Abendland, 1918-1923) tomou-se comum nos esctitos dos ingleses do século XIX, 0 que se deve grandemente A influéncia de Samuel Taylor Coleridge, um ardente discipulo de Kant. Em 1830, Coleridge fez a distingao entre o cultivo da humanidade em etal ea civilizagdo meramence exrerna através dla qual o progresso € calculado em Fungo de coisas ¢ no do homem em si mesmo, ‘A mesma distingiio foi feita por Thomas Carlyle e, mais tarde, Por Matthew Arnold, ao defender, em 1869, no seu livto Culture send Anarchy, a ideia de culeure como aucoperfeigdo moral. Pata ele, 4 cultura é, sobretudo, aperfeicoamento moral e niio metamente ppeindo ciemtfica pelo puro conhecimento, Toynbee, ao contritio, seralmente entendeu a civilizagio como o mais alco desenvolvimen, (0 das cultutas sociais a partis de suas origens primicivas. Queros, notavelmente Alfred Weber ¢ R. M. Maclver, em sintonia com a ttadigao, reservaram o conceito de culeura para a area dos valores ¢ significadas, reservando civilizagio para a drea da organizagio mate- tial. Weber considerava a civilizagio como um produto da ciéncia e tecnologia ¢ como universal ¢ acumulativa uma vez que ela se rela

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