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306 (© Seaawanto, Livno 2 © que podemos dizer que sejam espontineas. Num meio adequado, em que reina uma preocupagio muito iatensa com os fatos psicol6- zicos, um sujeito, na condigéo que tenha, no entanto, certa propensio ara isto, pode chegar a envolver-se em problemas que so sem divida alguma ficticios, mas aos quais dé consisténcia, ¢ isto numa linguagem preparadinha — a da psicanélise, que esté dando sopa por ai. Um delirio crénico demora em geral muito tempo para se constituir, € preciso que 0 sujeito faga um bruto esforgo — em geral, ele leva nisto 0 tergo de sua vida. Devo dizer que a literatura an: tica constitui, de uma certa maneira, um delirio ready-made, € nao € raro ver sujeitos trajados com isto, de confeccdo. O estilo, se que posso falar assim, representado por essas pessoas td apegadas, de bico calado, a0 mistério inefével da experiéncia analitica, € uma forma atenuada disso, porém seu assento € homogéneo ao que acabo de denominar parandia. 3 Gostaria de propor-lhes hoje um pequeno esquema para ilustrar os problemas levantados pelo eu e 0 outro, pela linguagem e a fala, Este esquema no seria um esquema se apresentasse uma solu- do. Nao € nem sequer um modelo. E apenas uma maneira de fixar as idéias, que uma enfermidade de nosso espirito discursivo reclama. Nio voltei a evocar 0 que distingue 0 imaginério do simbélico, Porque penso que vocés jé estio suficientemente’familiarizados com ac ‘Com respeito ao eu, 0 que sabemos? Seré que o eu € real, seré que é uma lua ou bem uma construgéo imaginéria? Estamos partindo a idéia, com que, tal um bordio, hé muito tempo, os venho ataza- nando, de que ndo hé meio de apreender 0 que quer que seja da dialética analitica se nio assentarmos que o eu é uma construgio imagindria, O fato de ele ser imagingrio, isto ndo retira nada a este pobre cu — diria até que € 0 que ele tem de bom. Se cle nio fosse imaginirio, ndo seriamos homens, seriamos luas. O que nio quer dizer que basta que tenhamos este eu imaginério para sermos ho- mens. Podemos ser ainda esta coisa intermediéria que se chama Jouco. Louco é justamente aquele que adere a este imaginério, pura © simplesmente. Do PEQUEN Ao GRANDE OUTRO 307 Trata-se do seguin S € a letra S, mas é também 0 sujeito, 0 sujeito analitico, ow seja, nfo é 0 sujeito em sua totalidade. Passam o tempo a encher- nos 0 saco dizendo que o tomam em sua totalidade. Por que seria ele total? Disto, nada sabemos. Jé encontraram, vocés, seres totais? Talver seja um ideal. Eu nunca vi nenhum. Eu no sou total, nao, Nem vocés. Se se fosse total, estaria cada um no seu canto, total, no estarfamos aqui juntos, tentando organizar-nos, como se diz. E © sujeito, nio em sua totalidade, porém em sua abertura. Como de costume, ele ndo sabe 0 que diz. Se ele soubesse 0 que diz nao estaria ai. Ele estaria ali, embaixo, & dircita. Claro que nao € ai que ele se vé — isto nunca ocorre — nem mesmo no fim da anélise, Ele se vé em a, € € por isto que ele tem um eu, Pode acreditar que este eu seja ele, estd todo mundo nesta, © nao hé meio de sair. © que a anilise nos ensina, por outro lado, é que 0 cu é uma forma absolutamente fundamental para a constituigio dos objetos. Em particular, é sob a forma do outro especular que ele vé aquele que, por razdes que sio estruturais, chamamos de seu semelhante. Esta forma do outro tem a mais estreita relagéo com o seu eu, ela Ihe pode ser superposta, © nds a eserevemos a’. Existem pois, 0 plano do espelho e 0 mundo simétrico dos ego-ais®® e dos outros homogéneos. Carece distinguir, deste af, um outro plano, que vamos chamar de muro da linguagem. E a partir da ordem definida pelo muro da linguagem que o imaginério toma sua falsa realidade, que é contudo, uma realidade verificada. O eu, tal como o entendemos, o outro, o semelhante, estes imaginérios todos, sao objetos. E verdade que eles nao slo ho- mogéneos as luas — e, a cada instante, corremos o risco de esquecer 08 © SeMiwinto, Liveo 2 isto. Porém so, efetivamente, objetos por serem assim denomina- dos num sistema organizado que é o do muro da linguagem. Quando 0 sujeito fala com seus semelhantes, fala na lingua- gem comum, que considera os eus imagindrios como coisas mio uni- camente ex-sistentes, porém reais. Por no poder saber 0 que se icha no campo em que 0 didlogo conereto se dé, ele lida com um certo nimero de personagens, a’, a”. Na medida em que 0 sujeito os pée em relagéo com sua prépria imagem, aqueles com quem fala sio também aqueles com quem se identifica. Isto dito, no se deve omitir 0 pressuposto de base, que é 0 nosso, dos analistas — acreditamos que haja outros sujeitos que no ngs, que haja relagdes autenticamente intersubjetivas. Nao terfamos razio alguma de pensé-lo se ndo tivéssemos 0 testemunho daquilo que caracteriza a intersubjetividade, isto é, que 0 sujeito pode men- tir-nos. Ea prova decisiva, Nao digo que seja 0 tnico fundamento da realidade do outro sujeito, € a prova, Em outros termos, nés nos enderegamos de fato aos Ay, As, que é aquilo que no conhecemos. verdadeiros Outros, verdadeiros sujeitos. Eles esto do outro lado do muro da linguagem, 1é onde, em principio, jamais os alcango. Sao eles que fundamentalmente, viso cada vez que pronuncio uma fala verdadeira, mas sempre alcango @’, a”, por reflexdo. Viso sempre os sujeitos verdadeiros, ¢ tenho de me contentar com as sombras. O sujeito esté separado dos Outros. os verdadeiros, pelo muro da linguagem. Se a fala se fundamenta na existéncia do Outro, 0 verdadeiro, ‘8 linguagem é feita para remetermos de volta a0 outro objetivado, a0 outro com o qual podemos fazer tudo 0 que quisermos, inclusive pensar que é um objeto, ou seja, que ele nao sabe o que diz. Quan- do fazemos uso da linguagem, nossa relagdo com o outro funciona (© tempo todo nesta ambigiiidade, Em outros termos, a linguagem serve tanto para nos fundamentar no Outro como para nos impedir radicalmente de entendé-lo, E é justamente disto que se trata na experiéncia analitica sujeito ndo sabe o que diz, ¢ pelas mais vilidas razes, por- que no sabe o que é Mas ele se vé. Ele se vé do outro lado, de maneira imperfeita como vocés sabem, devido ao caréter fundamen- talmente inacabado da Urbild especular, que é, ndo apenas imagi- néria, mas também iluséria, E neste fato que se fundamenta a in- flexio pervertida que, de uns tempos para cé, vem tomando a técni- Do PEQUENO 40 GRANDE OUTRO 309 ca analitica. Nesta perspectiva, gostar-se-ia que 0 sujeito agregasse si todas as formas mais ou menos despedacadas, despedagadoras, daquilo em que ele se desconhece. Gostar-se-ia que ele juntasse tudo © que, efetivamente, viveu no estédio pré-genital, seus membros es- parsos, suas pulsdes parciais, a sucessdo dos objetos parciais — pensem no Sao Jorge do Carpaccio enfiando 0 dragio , em derre- dor, cabecinhas decapitadas, bragos, etc. Gostar-se-ia de dar 0 ense- jo a este eu de recobrar forgas, de se realizar, de se integrar — 0 queridinho. Se este fim continuar sendo buscado, de mancira direta, se a gente se regular pelo imaginério © pelo pré-genital, vai-se ne- cessariamente dar neste tipo de anélise em que a consumi¢ao dos objetos parciais se faz por intermédio da imagem do outro, Sem saber por que, os autores que enveredam por este caminho chegam todos & mesma conclusio, — 0 eu s6 pode ir juntar-se a si mesmo © recompor-se por intermédio do semelhante que o sujeito tem dian- te de si — ou atrés, 0 resultado é o mesmo. © sujeito reconcentra o seu préprio eu imaginério essencial- mente na forma do eu do analista. Alids, este eu nao permanece simplesmente imaginério, pois a intervengéo falada do analista é cexpressamente concebida como um encontro do eu com o eu, como uma projesdo pelo analista de objetos especificos. A anélise, nesta perspectiva, sempre é representada ¢ planificada no plano da obje- tividade. Trata-se, como tém escrito, de fazer 0 sujeito passar de ‘uma realidade psiquica a uma realidade verdadeira, ow seja, a uma lua recomposta no imaginario, e muito exatamente, como tampouco se tem dissimulado, conforme 0 modelo do eu do analista. Sio su- ficientemente coerentes para darem-se conta de que nao se trata de doutrinar, nem de representar o que se deve fazer no mundo. £ jus- tamente no plano do imaginério que operam. Bis porque a nada dardo mais aprego do que Aquilo que situam para além do que é considerado como ilusio, ¢ nijo como muro, da linguagem — a vi- véncia inefével. Entre 0s exemplos clinicos trazidos, hé um que é bonitinho, 0 da paciente aterrorizada com a idéia de 0 analista saber 0 que cla tem dentro da mala, Ela, a0 mesmo tempo, sabe ¢ no sabe. Tudo (© que ela pode dizer & negligenciado pelo analista diante desta pre- ocupagio imaginéria. E, de repente, apreende-se que ai esté a nica coisa importante — ela teme que o analista tire tudo 0 que ela 310 © SsawAnio, Livno 2 tem na barriga, ou seja, 0 conteddo da mala, que simboliza seu objeto parcial ‘A nogdo: de assuncdo imaginéria dos objetos parciais, por in- termédio da figura do analista, leva a uma espécie de Comulgatorio, para empregar 0 titulo que Baltasar Gracién deu a um Tratado da santa eucaristia, leva a uma consumicdo imaginéria do analista. Es- tranha comunhio — na montra do acougue, a cabega com a salsi nha no nariz, ou ainda 0 pedago talhado na imaminha * e como dizia Apollinaire em les Mamelles de Tirésias, Coma os pés do teu analis- 1a a0 mesmo motho, esta € a teoria fundamental da anélise. Seri que néo hé uma outra concepgdo da anélise, que permita concluir que ela € algo diferente da reconstituigéo de uma parcelari- ‘zagdo fundamental imagindria do sujeito? Esta parcelarizagdo existe efetivamente. E uma das dimensdes que permite ao analista operar por identificagao a0 dar a0 sujeito 0 seu préprio ev. Poupo-lhes os detalhes, mas certamente 0 analista pode, por intermédio de determinada interpretagao das resisténcias, através de determinada reducéo da experiéncia total da andlise aos seus elementos unicamente imaginérios, chegar a projetar no pacien- te as diferentes caracteristicas do seu eu de analista — ¢ s6 Deus sabe como elas podem diferir, e de um jeito que se reencontra no fim das andlises. O que Freud nos ensinou € muito exatamente 0 posto. Se se formam analistas é para que haja sujeitos tais que neles 0 cu esteja ausente. E 0 ideal da anélise, que, € claro, permanece vir- tual. Nao existe nunca sujeito sem um eu, sujeito plenamente reali- zado, porém é justamente 0 que sempre se deve visar a obter do sujeito em anilise. ‘A anélise deve visar & passagem de uma fala verdadeira, que junte 0 sujeito a um outro sujeito do outro lado do muro da lin- guage. E a relagdo derradeira de um sujeito a um Outro verdadei- To, ao Outro que dé resposta que nao se espera, que define 0 ponto terminal da anélise. Durante toda a duragdo da anilise, mas unicamente com a condi¢do de 0 eu do analista aceitar nao estar af, unicamente com a condigao de o analista nao ser um espelho vivo, porém espelho vazio, © que se passa, passa-se entre o eu do sujeito — € sempre o eu do sujeito quem fala, aparentemente — € os outros. O progresso todo da anilise consiste no deslocamento progressivo desta relagio, que Do PEQUENO 40 GRANDE Ov7RO au © sujeito, a todo momento, pode apreender, para além do muro da linguagem, como sendo a transferéncia, que € dele ¢ onde cle ndo se reconhece. Nao se trata de reduzir esta relagdo, como se tem es- crito, trata-se de 0 sujeito assumi-la em seu lugar. A andlise consiste tem faz@-lo tomar consciéncia de suas relagdes néo para com 0 eu do analista, mas para com todos estes Outros, que séo seus verda- deiros fiadores, que respondem por ele, ¢ que ele nao reconheceu Trata-se de 0 sujeito descobrir progressivamente a que Outro cle verdadeiramente se enderega, apesar de no sabé-Io, ¢ de cle assumir rogressivamente as relagdes de transferéncia no lugar onde esté, © onde, de inicio, nio sabia que estava. Hi dois sentidos a dar & frase de Freud — Wo Es war, soll Ich werden, Este Es, tomem-no como sendo a letra 5. Ele esta ai, cle esta sempre ai. E 0 sujeito. Ele se conhece ou néo se conhece. Isto nem sequer é 0 mais importante — ele esté ou nao esti com a pala- vra, No fim da andlise, é ele quem deve estar com a palavra, ¢ entrar em rclago com os verdadciros Outros. Ali onde o S estava, li tem de estar 0 Ich. E ali que © sujeito reintegra autenticamente scus membros dis- juntos, ¢ reconhece, reagrega sua experiencia. Pode haver, no decurso de uma andlisc, algo que se forme como um objeto, Mas este objeto, longe de ser aquilo de que se trata, & apenas uma forma fundamentalmente alicnada dele. B 0 eu imagi- nario que Ihe fornece scu centro ¢ seu grupo, c cle & perfeitamente identificivel a uma forma de alienagdo, parente da parandia, Que © sujeito acabe acreditando no eu é, como tal, uma loucura, Gragas a Deus, é raro que a anilise tenha éxito nisto, mas empurra-se neste sentido ai, disto temos mil. provas. Vai ser nosso programa para 0 ano que vem — o que quer dizer paranéia? O que quer dizer esquizofrenia? A parandia, no que difere da esquizofrenia, esté sempre emi relagio com a alienagéo imagindria do cu. 25 De Malo pe 1955

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