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VOLTAIRE CARTAS INGLESAS OU CARTAS FILOSOFICAS Tradugio de MARILENA DE Souza CHAU! BERLINCK Quinta CARTA Sobre a Religiio Anglicana a & 0 pais das seitas. Um inglés, como homem livre, vai para o céu pelo caminho que lhe agradar. Entretanto, embora cada um Possa servir a Deus & sua moda, sua verdadeira religiao, onde faz fortuna, é a seita dos episco, pais, chamada Igreja Anglicana ou Igreja por exceléncia. Nao se pode ter um emprego, tanto na Inglaterra como na Irlanda, sem se estar no néimmero dos fiéis anglicanos, Esta raziio, excelente prova, converteu tantos nfo-conformistas, que hoje em dia s6 a VieEsima parte da nagio esté fora do regaco da igreja dominante, O clero anglicano manteve muitas ceriménias catblicas, sobretudo a de receber os dizimos com uma atengio bem escrupulosa. Também tém a piedosa ambigdo de serem senhores. Ademais, tanto quanto podem, fomentam em suas ovelhas um ‘santo zelo contra os ndo-con- fomistas. Zelo muito vivo sob o governo dos toris, nos éitimos anos da Rainha Ana, mas nio indo além da quebra das vidragas das capelas dos hereges, porquanto a raiva das seitas terminou na Inglaterra com as guerras civis, sob a Rainha Ana reduzia-se a rufdos surdos de um mar ainda bastante agitado muito tempo depois da tempestade. Quando os Whigs e os t6ris dilaceraram seu Pai Como outrora os guelfos e os gibelinos, foi preciso que a religiio entrasse nos partidos. Os tris eram pelo episcopado; os Whigs queriam aboli-lo, mas contentaram-se em rebaixé-lo quan- do foram os senhores, No tempo em que o Conde Harley de Oxford e Lorde Bolingbroke bebiam a sade dos t6ris, a Igreja Anglicana encarava-os como defensores dos santos privilégios. A assembléia do baixo clero, espécie de Camara dos Comuns composta de eclesiasticos, tinha entéo algum crédito. RMOS DATE! 9.610/1998 E 40.698/20¢ earaine 16 Soraya VOLTAIRE ™ar, ge ry eS, da liberdade de reunir-se, de raciocinar sobre controvérsias e de fazer quei Dane tempos, alguns livros impios, isto é, escritos contra ela. O Ministério, hoje nhaatias, esto reat {ais Senhores mantenham sequer sua assembléia. Na obscuridade de suas iam de Teduzidos ao triste emprego de rogar a Deus pelo governo que niio se envergo- dog Whigs Perturbar. Quanto aos bispos, vinte e seis a0 todo, retinem-se na Camara Alta, apesar tanto . Porque subsiste ainda o velho Preconceito de tomé-los como bardes. Entretanto, tem juraments i Camara quanto os duques ¢ pares no Parlamento de Paris. Ha uma cldusula no a Stado ao Estado que exercita bastante a paciéncia crista desses senhores Aeediagg Promete-se pertencer a Igreja tal como é estabelecida pela lei. Nao bispo, dedo ou Obrigadgg 4M "80 se julgue de direito divin. Ora, é uma grande mortificagao para eles serem v tdimitir que devem tudo a uma lei miserdvel, feita por leigos profanos. Um religioso ig, na, Pare” Bao. © Pray, 2Nelicanas ‘Surayet) escreveu hd pouco um livro para provar a validade e a sucesso das ordens - Essa obra foi Proscrita na Franga, mas acreditais que tenha agradado ao ministério da Da modo algum. Os malditos Whigs pouco ligam se a sucessio episcopal foi ou nio Duma igre; £m seu pais, ou se 0 Bispo Parker foi consagrado num botequim (como se diz) ou hercanie {Fem que 0s bispos tenham autoridade outorgada pelo Parlamento a que a te titanos a os apéstolos. Lorde B.? considera que a idéia do direito divino sé serve para fazer Con a © sobrepeliz, enquanto a lei faz cidadios. todos os eg ago aos Sostumes,lo clero anglicano & mais regrado do que o da Franca, Causa: TUpgzo dq sttsticos so educados na Universidade de Oxford ou na de Cambridge, longe da cor- Paixses hye Pilal- Sto chamados as dignidades da Igreja s6 muito tarde e numa idade em que as Qui sig (antAS Se reduzem A avareza, quando falta alimento para sua ambigio. Os empregos 268 sain, ‘oar Por longos servios na Igreja ou no exército, de modo que nio se véem rapa- Os maus a © colégio como bispos ou coronéis, Além disso, quase todos os Padres sao casados. Hlamente }odos contraidos na universidade e 0 pouco contato com as mulheres obrigam ordina ©.US0 thee” PisPO a contentar-se com a sua. Algumas vezes os padres vio aos botequins, porque ‘Agupetmite, Embebedam-se com seriedade e sem escindalo. slcle ser indefinido, nem eclesidstico nem secular, em suma, aquilo que se chama abade, é Pretenders -o°Sconhecida na Inglaterra, Aqui, todos os eclesifisticos sio reservados e quase todos Sabendo nyt" Pedagogos eruditos. Agradecem a Deus por serem protestantes, quando ficam Que na Franga os rapazes, conhecidos por seus deboches e educados para a prelazia por dn femininas, fazem amor publicamente, divertem-se compondo ternas cangGes, oferecem ‘mente ceias longas e delicadas, indo depois implorar as luzes do Santo Espirito, ¢ ousada- mente nomei; ‘am-se sucessores dos apéstolos. Mas um protestante é um vil herege, a ser queimado Para 0 diabo, como diz mestre Frangois Rabelais — por isso nio me meto em seus negécios. SEXTA CARTA Sobre os Presbiterianos A teligiio angli -se apenas pela Inglaterra e pela Irlanda, Na Escécia, a religifio dominate é eae aa Feo tal enfvo latfalado ul. Paton « sibilant nebra, Como os padres desta seita vivem de pagas muito mediocres, nao podendo gozar os. Mesmos Iuxos que os bispos, decidiram naturalmente clamar contra as honras que nio podem aleangar. Imaginai Diégenes pisoteando o orgulho de Platio: os presbiterianos escoceses asseme- ase muito aqueleracocinador orgulhoso ¢ vehaco. Tataram o Rei Carlos If com menos Consideraco do que Didgenes tratou Alexandre, pois quando tomaram armas por ele contra » Bolingbroke, a despeito de suas idéias conservadoras.(N. do A.) CARTAS INGLESAS 17 Cromwell, que 05 enganara, faziam o pobre rei agiientar quatro sermBes por dia, Proibiam que Jogasse; exigiam que penitenciasse, a tal ponto que Carlos II cansou-se de ser rei desses mestves enfatuados ¢ fugiu de suas mos como um estudante escapole do colégio. Diante de um jovem e vivo bacharel (francés), de manhi a’berrar nas escolas de teologia e de noite a cantar com as damas, um teblogo anglicano é um Cato. Mas quio galante ao lado de um presbiteriano da Esobcia! Este simula afetadamente um andar grave, enorme chapéu, um longo manto sobre 0 casaco curto, prega pelo nariz e chama de prostituta da Babildnia toda igreja cujos eclesidsticos estio bem contentes por terem cingiienta mil libras de renda, e cujo povo é muito bom por suporté-los ¢ ainda chamé-los de Monsenhor, Vossa Grande. za, Vossa Eminéncia. Possuidores de algumas igrejas na Inglaterra, esses senhores introduziram na regitio a moda do ar grave e severo. Deve-se a eles a santificagio do domingo nos trés reinos: nesse dia é proi- bido trabalhar e divertir-se, portanto a severidade é dupla comparada a da Igreja Catélica. Nada de 6pera, nem de comédia, nem de concertos aos domingos em Londres. Até mesmo 0 baralho expressamente proibido, ¢ s6 as pessoas de qualidade — chamadas gente honesta — jogam nesse dia. O resto da nagio vai ao sermio, ao botequim e ao bordel. Embora a scita episcopal ¢ a presbiteriana sejam dominantes na Gra-Bretanha, todas as ou- tras também so bem-vindas e convivem muito bem, enquanto a maioria dos seus pregadores se detesta reciprocamente, quase com a mesma cordialidade com que uin jansenista atormenta um Jesuita. ae ental na Bolsa de Londres, praga mais respeitavel do que muitas cortes. Ai vereis reunidos, para a utilidade dos homens, deputados de todas as nagdes. O judeu, o maometano e 0 cristio negociam reciprocamente como se pertencessem todos a mesma religiao. Sé é infiel quem vai A bancarrota. O presbiteriano confia no anabatista, e o anglicano, na promessa do quacre. Ao sair dessas assembléias livres ¢ pacificas, uns vao a sinagoga, outros vio beber. Um vai ser batizado ‘numa grande cuba de agua, em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo. Outro leva o filho para que Ihe cortem o prepticio € despejem sobre sua cabega resmungos hebraicos incompreensiveis. Outros vio a sua igreja e, enchapelados, esperam a inspiragao de Deus. E todos esto contentes. Se houvesse uma tinica religido na Inglaterra, o despotismo seria temivel; se houvesse duas, uma degolaria a outra; mas como hé trinta, vivem felizes e em paz. um ar zangado, traz um OD A hem Orrava CarTA Sobre o Parlamento Sempre 08 ane. que pod 8 ant igos romano m, 0S membros do Parlamento da Inglaterra gostam muito de comparar-se 0 faz mui ie ie Seguintes Palais © Sr. Shipping, na Camara dos Comuns, comegou seu discurso om PPESSHO Provocoy nm ne eestade do povo inglés seria ferida... etc.”. A singularidade da Palavras com ar fi uu uma £xplosio de riso. Entretanto, sem desconcertar-se, repetiu as mesmas do povo inglés ¢ Cas © ninguém riu mais. Confesso que nada vejo em comum entre a majestade 10 © alguns de seus rere omano> € menos ainda entre seus governos. Hé em Londres um sena- Ocasionalmente suas membros sio Suspeitados, embora erradamente, sem divida, de venderem es parecem-me intone come, 8 fazia em Roma: eis toda a semelhanga. Ademais, as duas cura des gree inteiramente diferentes, tanto no bem quanto no mal. Entre os romanos, a lou- tos, Pregadores a le religizio sempre foi desconhecida; essa abominagiio estava reservada a devo- Ree ue humildade e da paciéncia. Mério e Sila, Pompeu e César, Antdnio e Augusto aed feram para saber se o flamine deveria usar a camisa por cima do hbito, ou este por ‘aquela, ¢ se os frangos sagrados deveriam comer e beber, ou apenas comer, para que se tor- teria dito Rainha Ana: “O Sr. Clarke € 0 mais aa Teria perdido o posto porque alguém que o deseja ser cristo”. (N. do A.) Sabio ¢ 0 mais honesto'dos ‘homens; $6 Ihe falta uma coisa: LEI 10.695/200 /BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NO 0 \y ss CARTAS INGLESAS Poder dos reis resistindo-thes, e que de esforgo era epcit 80Verno sibbio, onde 0 principe, todo-pederoso Para fazer senhores so grandes sem insoléncia e sem Camara dos Comuns sao os Arbitros da Nagao. O rei, o super-dr: alanga dos romanos: em Roma, os grandes eo» ovo estavam sempre di sem um poder intermediario que os pusesse de acordo. O Senado de Roma, cheio de um Orgulho injusto e punivel, nada querendo dividir com os Plebeus, 36 conhecia um segredo para rangeiras. Encarava 0 POVo como a uma besta feroz que deveria ser atigada contra os vizinhos, com medo de que devorasse seus senhores. “0s conquistadores. Por serem infelizes na ses os escravizaram, © governo da Inglaterra nio foi feito para um brilho tao grande, nem para um fim tao funes- to. Sua finalidade no é a brilhante loucura das conquistas, mas impedir que sejam feitas Por seus Vizinhos. Seu povo zela no apenas por sua propria liberdade, mas também pela dos outros. Os ingleses encarnigaram-se contra Luis XIV unicamente por acredité-lo muito ambicioso, comba- ‘endo-o com alegria de coragio e seguramente sem interesse algum, Sem divida, custou caro estabelecer a liberdade na Inglaterra, Nos mares o sangue afogou © idolo do poder despético, mas os ingleses nao julgam ter pago um prego muito alto por boas leis, Outras nagées nao tiver si hem verteram menos sangue; e, ‘no entanto, o sangue que espalharam it 1as cimentou sua escravidao. mar due @ cera — & verdade. Mas somente quando o rei comega a tempestade, querendo apode._ rar-se do navio, onde é apenas 0 primeiro piloto. As guerras civis da Franga foram mais longas, mais cruéis, mais fecundas em crimes do que as da Inglaterra, e, no entanto, em nenhuma das} guerras francesas o objetivo foi a sabia liberdade, : Nos tempos detestaveis de Carlos IX e de Henrique III, tratava-se somente de saber se serfa- mos ou nio escravos dos Guise. A tiltima guerra de Paris s6 merece vaias. Parece-me estar vendo estudantes amotinados contra um diretor de colégio ¢ acabando chicoteados. oO cardeal de Retz tinha muito esprto e muita coragem mal empregados. Rebelde sem motivo, faccioso sem props. sito, chefe de partido sem exército, conchavando por conchavar, parece fazer a guerra sila Para seu prazer. O Parlamento no sabia o que o cardeal queria ou deixava de querer; spendin, tropas com um decreto, cassando-as; ameagava, pedia perdio, punha a prémio a cabo poe deal Mazarino e depois vinha cumprimenté-lo tama cerimdnia, Nosss gueras cvs sob Ca \éis; as da Liga, abomindveis, e a da Fronda foi ridicul la. a Se oque male a reprova nos ingleses é ° suplio de Carlos I, tratado por seus ven- mo ele préprio os tera tratado setivesse sido bem sucedido. = fan hate wee olhai Carls J, vencido numa batalha planejada, prisioneio, inlgado © condenado em Westminster, ¢ de outro lado, Henrique VIL, aprisionado por seu SE aie comunhio, Henrique HT assassinado por um monge, minisro da cblera de um par iba trintaassassinatos premeditados contra Henrique IV, varios deles executados otltimo privando, enfim, a Franga de um grande rei. Pesai esses atentados e julgai. VOLTAIRE NOoNA CARTA Sobre o Governo Nem sempre subsistiu essa feliz mistura no governo da Inglaterra, esse acordo entre a Cama ,ra.dos.Comuns, a dos Lordes ¢ 0 rei..Durante muito tempo a Inglaterra foi escrava: romanos, saxdes, dinamarqueses, franceses a escravizaram. Guilherme, 0 Conquistador, governou-a com cetro de ferro, dispondo dos bens e da vida de seus novos siditos como um monarca do Oriente. Proibiu, sob pena de morte, que algum inglés ousasse ter um fogo ou uma luz em casa depois das oito horas da noite. Tentava impedir assim suas assembléias noturnas? Ou quis, com uma proibi- go tio esquisita, experimentar até onde vai o poder de um homem sobre os outros? E verdade que antes de Guilherme, 0 Conquistador, os ingleses tiverai parlamentos. Vangloriam-se disso, como se essas assembléias, chamadas entio parlamento, compostas de tira» nos eclesidsticos ¢ de saqueadores chamados barées, tivessem sido guardids da liberdade e da feli- cidade piblicas, ‘ Os barbaros, que, partindo das margens do mar Baltico, se estabeleciam no resto da Europa, trouxeram consigo o costume desses estados ou parlamentos, a cujo.respeito tem sido feito muito estardalhago € que sio tio pouco conhecidos. Nessa época, os reis nio eram déspotas, é verdade, mas os povos gemiam ainda mais numa servidao miseravel. Os chefes desses selvagens, devasta- dores da Franga, da Italia, da Espanha ¢ da Inglaterra, fizeram-se monarcas, Seus capities parti- Iharam entre si as terras dos vencidos, dando origem aos margraves, aos lordes, aos barées, subti- Fanos que freqiientemente disputam com seu rei os despojos dos povos. Eram aves de rapina, combatendo contra uma guia para sugar o sangue das pombas, Cada povo tinha cem tiranos no lugar de um senhor. Logo os padres entraram no jogo. Em todos os tempos, a sina dos gauleses, dos germanos, dos insulares da Inglaterra submeteu-os ao governo dos druidas ¢ dos chefes de suas aldeias, antiga espécie de bardes, mas menos tirdnicos do que seus sucessores. Os druidas diziam-se mediadores entre a divindade e os homens; faziam leis, excomungavam e condenavam 4 morte. Os bispos os sucederam pouco a pouco na autoridade temporal do governo gético e van- dalo. Os papas os encabegaram ¢ com enciclicas, bulas ¢ monges fizeram os reis tremer, depon- do-0s, assassinando-os e roubando todo o dinheiro da Europa. O imbecil Inis, um dos tiranos da heptarquia da Inglaterra, numa peregrinago a Roma, foi o primeiro a submeter-se ao pagamento da “esmola de Sao Pedro” (mais ou menos equivalente a um escudo da moeda francesa) por cada casa de seu territ6rio. Logo toda a ilha seguiu esse exemplo, Pouep a pouco a Inglaterra tornou-se uma provincia do papa. O santo padre enviava periodicamente legados que recolhiam impostos exorbitantes. Jofio sem Terra acabou fazendo uma cessio de seu reino a Sua Santidade, que o excomungara. Os bardes, que nada receberam, expulsaram o miserdvel rei, colocando em seu lugar Luis VIII, pai de Sao Lufs, rei da Franga. Mas desgostaram-se logo com o recém-chegado, fazendo-o cruzar novamente o mar, Enquanto bardes, bispos e papas dilaceravam a Inglaterra, todos querendo dirigir 0 povo, uma parte dos homens, mais numerosa, mais virtuosa e, conseqiientemente, mais respeitavel, com- posta de homens estudiosos das ciéncias e das leis, de negociantes e artesios, enfim, todos os que nao eram tiranos, em suma, 0 povo, eta encarada pelos primeiros como animais superiores a0 homem. Foi preciso, portanto que os Comuns também tomassem parte do governo. Eram vildes, cujo trabalho ¢ cujo sangue pertenciam aos seus senhores, chamados nobres. A maioria dos ho- mens era na Europa aquilo que muitos ainda so em certos lugares do norte: servos de um senhor, espécie de gado que se compra e se vende com a terra, Foram precisos muitos séculos para prati- car-se justica pela humanidade, para sentir-se como era horrivel que a maioria semeasse ¢ a mino- CARTAS INGLESAS 21 ria colhesse. Nao é uma felicidade para o género humano que a autoridade desses bandidos tenha sido extinta na Franga pela poténcia legitima do rei, e na Inglaterra, pela do rei e do povo? Felizmente, as sacudidas que as querelas entre os reis ¢ os grandes davam nos impérios afrouxaram os ferros das nagdes. Na Inglaterra, a liberdade nasceu das querelas entre os tiranos, Os bardes forgaram Joao sem Terra e Henrique III a promulgar essa famosa carta, cujo fim prin. cipal era, na verdade, colocar os reis sob a dependéncia dos lordes, mas que favorecia boa parte da nagao a fim de que esta se pusesse ao lado de seus pretensos protetores. Essa Magna Carta, vista. como origem sagrada das liberdades inglesas, mostra bem quio pouco a liberdade era conhecida. S6 o titulo ja prova que o rei acreditava-se absoluto de direito, e que os bardes ¢ 0 clero $6 0 forgaram a afrouxar esse direito porque eram mais fortes do que ele. Eis 0 inicio da Magna Carta: “Por nossa livre vontade atribuimos os seguintes privilégios aos arcebispos, bispos, abudes, priores ¢ bardes de nosso reino, etc.”. : Nos artigos da Carta no hé uma palavra referente & Camara dos Comuns, prova de que ainda nao existia, ou de que existia sem poder. Sao especificados os homens livres da Inglaterra: triste demonstragao de que havia aqueles que ndo o eram. Vé-se pelo artigo 32 que esses supostos homens livres deviam servigos aos seus senhores. A liberdade conservava muito da escravidao. Pelo artigo 21, 0 rei ordena que seus oficiais no poderao dai em diante tomar a forga cava- los ¢ carrogas dos homens livres, a menos que paguem. Para o povo, esse regulamento pareceu uma verdadeira liberdade porque afastava uma tirania maior. Henrique VI, usurpador feliz ¢ grande politico, que fingia apreciar os bardes, mas que os odiava ¢ temia, lembrou-se de promover a alienagio de suas terras. Com isto, os vildes, que em seguida adquiriram bens com seu trabalho, compraram os castelos dos ilustres pares, arruinados Por suas loucuras. Pouco a pouco todas as terras mudaram de dono, A Camara dos Comuns foi-se tornando cada vez mais forte. As familias dos antigos pares extinguiram-se com o tempo, e como na Inglaterra s6 os pares so nobres, segundo o rigor da lei, nao haveria mais nobreza no pais se os reis nao tivessem criado novos bardes de vez em quando, © conservado a ordem dos pares, muito temidos antes, para opé-los A dos comuns, muito temiveis agora. 5 : Todos os novos pares compdem a Camara Alta, recebem seu titulo do rei, e mais nada, Quase nenhum possui a terra cujo nome carrega. Um é duque de Dorset, mas nao tem um palmo de terra em Dorsetshire; outro é conde de uma aldeia que mal sabe onde esta situada, Tém poder no Parlamento e nao alhures, Aqui no ouvireis falar em alta, média ¢ baixa justiga, nem do direito de cagar nas terras de um cidadao, que nfo pode dar um tiro sequer em seu préprio campo, Porque nobre ou padre, um homem no est isento de pagar certas.taxas. Todos os impostos so regulamentados pela Camara dos Comuns, segunda por seu grau, mas primeira por seu critério. Os senhores ¢ os bispos podem rejeitar 0 projeto de lei dos Comuns no tocante as taxas, mas nao podem alteré-lo.em nada — devem aprovi-lo ou rejeiti-lo sem restrigo. Quando 0 projeto de lei é confirmado pelos lordes e aprovado pelo rei, entio todo mundo paga. ‘Cada um da, nao seguntlo sua qualidade (0 que seria absurdo), mas segundo sua renda. Nao hé tarifa ou imposto Per capita, mas uma taxa real sobre as terras. Foram todas “avaliadas” sob Guilherme III pos- tas abaixo de seu prego. A taxa permanece sempre a mesma, embora as rendas fundiérias tenham aumentado; desse modo ninguém é pisoteado nem se queixa. O camponés nao tem os pés feridos pelos tamancos, come pio branco, veste-se bem. no teme aumentar sua criagio nem cobrir seu teto com telhas ‘com medo que Ihe aumentem os impostos um ano depois. Ha aqui muitos camponeses com dois mil francos em bens e que nfo desdenham continuar cultivando a terra que os enriqueceu ¢ onde vivem livres, VOLTAIRE DeEcmma CARTA Sobre 0 Comércio Na yep srcio contribuiu para torné-los mais liv coms & rt 03 cidados ingles, 0 Some ona v0 coM0 CONC sc Atuaime Stabelecen, ampliou o Se cd 's navais, tornando os ingleses senhores dy. ry. a0 Uma inne Postuem pane a pouco a pera posteridade saberd, talvez COM SUDrgses, : " 1a, dated zentos navios dB Tobre, de estanhio, de Ma grosscira ¢ de Agila p tdurar os tess de um pou ‘ou-se, gragas ao comeércio, tao potent? que Py Sear eS ee a t iddades do mundo — uma a Sips al simultaneamente trés frotas ais trés extrem\™ ibral a © conservada por suas armas; outra a Porto Belo, arrancando do rei da Bog ahh to eee oe Potinciacae’ tesouros das Indias; e a terceira ao mar Baltico, para impeir @ BUEF. eneret Norte, ' Pronct2*do Luis XIV faz a lia tremer, suas armas ji senhoras da Sabéia c do Piemorn, ¢ i Uha ens P88 tomar Turim, fol preciso que o Principe Eugénio marchasse dos Contin a duque d i wido de dinheiro, sem o qual uma ci . Tren ee Sabin, oeeFanes ingleses. Em meia hora foram EMPestadogs so S com os quais libertou Turim, derrotou 0s franceses ¢ escreveu aos que Ihe ena: Pres. Soma: ‘Senhores, recebi vosso dinheiro © gabo-me de t@10 uusado para Vossa SAtista sign, ° Me inglés, levando-0 a comparar-st, ousadaMenee, nepsefe 2'8uma razio, com um eidadio romano. O cagula de um par do reino nao desealts 10 ex Milorde Townshend, ministro de Estado, tem um irmio que se satisfaz COMO Repocritnee Cante em <2 Sidade. Na época em que Milorde Oxford governa Inglaterra, seu cacula era fay dirge pagel?» donde nao quis sair e onde morrev. Esse costurtey que entretanto comes a acta. poder; t**ante, parece monstruoso aos alemies, obstinados com suas drvores seneal6ticas. Key pe ae Conceber que o fitho de um par da Inglaterra fosse um mero burgués rico ¢ Potente, tma sisi? 8 Alemanka tudo & principe e se vam trntaaltzas do mesmo nome c¥}0S bens fon. Ne aelusivamente em armadurase orgulho. a provi FFanga é marqués quem quer e qualquer um que chegue a Paris vindo dos confins de Ymna cia, com muito dinheiro para gastar € um nome em “ac” ou em “ille”, pode dizer Yum Como eu” ou “um homem de minha qualidade”, e desprezar soberanamente um sitgo. de tanto ouvir falar com desprezo de sua profissao, acaba sendo bastante tole fara *r-8e. Contuda, no sei.o que-é mais.dtil-a-um Estado: um senhor empoado Que sabe a mar; se levanta e se deita, com ares de grandeza fazendo papel de escravo ha aystrog- ata de um ministro ou um negociante que eniquece seu pals, dé ordens a Surata© 20 Cairo sem | de seu gabinete, ¢ contribui para a felicidade do mundo. LA NOS 8 DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003 DEciMa TERCEIRA CARTA Sobre o Sr. Locke aie ogg ea tenha havido espiito mais sensato, mais met6dico, um ligico mais exato do CAleulog nee Bé® era, contudo, um grande matemético, Nunca pode submeter-se & fadiga dos tpirto. Aen A secura das verdades mateméticas, que de inicio nio apresentam algo sensivel ao da geo uinsuém provou melhor do que ele que se poderia ter 0 espirito geométrico sem 0 apoio Beometria, Antes dele, grandes filésofos haviam decidido positivamente o que é a alma do Mas como nada None iam sobre ela, era muito justo que todos tivessem opinides diferentes. se degen ote*ia, bergo das artes e dos erros, onde a grandeza e a tolice do espirito humano tanto “O yolveram, raciocinava-se sobre a alma como nbs 0 fazemos, O divino Anaxagoras, a quem foi erguido um altar por ter ensinado aos homens que o Sol era maior do que ior © Peloponeso, que a neve era negra ¢ os eéus, de pedra, afirmou que a alma era ‘UM espirito aéreo, mas imortal. Diégenes (no aquele que se tornou cinico depois de ter sido falsiio) assegurava que alma “ra uma porgio da prépria substancia de Deus. Esta idéia era brilhante, pelo menos. .. Epicuro compunha-a de Partes, como 0 corpo. Aristételes, explicado de mil modos, porque ‘ninteligivel, acreditava, a fiar-se em alguns de seus discipulos, que o entendimento de todos os ho- ‘mens era uma s6 ¢ mesma substincia. O divino Platio, mestre do divino Aristteles, ¢ 0 divino Séerates, mestre do divino Platio, diziam a alma corpérea e eterna. O deménio de Sécrates certamente Ihe ensinava que assim era. CARTAS INGLESAS 2 Na verdade, hé muita gente que acha que um homem que se gabava de ter um génio familiar era indubitavelmente um_ louco ou um velhaco, mas essa gente é muito dificil, Quanto aos nossos Padres da Igreja} nos primeiros seculos muitos acreditaram que a alma humana, os anjos e Deus, eram corpéreos. © mundo sempre se refina, Sao Bernardo, segundo o Padre Mabillon, ensinou que apbs a morte a alma nao vé Deus, mas conversa somente com a humanidade de Jesus Cristo. Dessa vez niio foi acreditado sob palavra: a aventura das Cruzadas havia desacreditado um pouco seus ora- culos. Mil escolasticos vieram em seguida, como 0 Doutor irrefragavel, o Doutor sutil, o Doutor angélico, 0 Doutor serifico, o Doutor queribica, todos bem seguros de conhecer a alma muito ] claramente, mas sem deixar de falar nela como se quisessem que ninguém entendesse coisa alguma. ‘Nosso Descartes, nascido para descobrir os erros da Antiguidade, a fim de substituf-los pelos seus proprios, ¢ arrastado’ pelo espirto sistemético que cega os maiores homens, imaginoa ter demonstrado que a alma era a mesma coisa que o pensamento, como, segundo ele, a matéria é 4 mesma coisa que a extensio, Assegurou que se pensa sempre ¢ que a alma vem ao corpo jé provi, da de todas as nogGes metafisicas, conhecendo Deus, 0 espago infinito, tendo todas as idéias abs. tratas, cheia de belos conhecimentos que, infelizmente, esquece ao sair do ventre da mae. © Sr. Malebranche, do Oratério, em suas sublimes iusSes nfo somente admitiu as idéias ina- tas, como também nfo duvidou de que vissemos tudo em Deus, e que este, por assim dizer, fosse etn va-icinatlones tudo eotiave topsance) da alma, veio enfim um sébio que modesta- mente esereveu sua histria, Locke desenvolveu a razio humana para o homem, como um exce- lente anatomistaexplica as molas do corpo humano, Apéia-se no archote da fisica;algumas vezes ‘buss falar afirmativamente, mas também ousa duvidar. Em vez de definir dum s6 golpe aquilo que nio conhecemos, examina por graus aquilo que queremos conhecer. Toma uma crianga no momento de seu nascimento; segue pass0 a pass0 os progressos de seu entendimento; vé 0 que possui em comum com os animais ¢ 0 que possui acima deles; consulta seu proprio testemunho, or] senci: pensamento. ea a eS ca epaas que sabem mais do que eu se nossa alma existe antes ou depois vv czacke do nosso corpo. Mas confesso que, na partilha, calhou:me uma alma grosseira da organizagse ampre,e tenho até a inflicidade de no conceber que seja mais necessério alma pensarsempredo que ao corpo estar sempreem movimento”, mim, gabo-me de ser tao estipido quanto Locke nesse ponto. Ninguém ha de me Rea nn appre, Endo estou mais disposto do que ele a imaginar que algumas sema. fazer creed Pe evcepgdi fosse uma alma muito sapiente, sabendo mil coisas que esqueci ao nas- = aN nomlio wetn inutilmente, no Gtero, conhecimentos que me escaparam assim que pre- ers ‘ender direito depois. cisei deles ¢ que nunca Cyapeiyy inatas, apés renunciar A vaidade de crer que se pensa sempre, Locke, aps arruina tas idéias nos vém pelos sentidos, examina nossas idéias simples e as estabelece que todas #5 NOOrs ito humano em todas as suas operagGes, mostra como as linguas compostas, acompania ¢ vo abusamos das palavras a todo momento. faladas sio imperfeitas ¢ Pe enso, ou melhor, o nada dos conhecimentos humanos. Nesse capi- a Fa i gestament® ‘as seguintes palavras: “Talvez nunca sejamos capazes de conhe- tulo ousa pro! eaegaart oe ete Pa para mais de um te6logo como uma declaragdo escandalosa de Esse discur que. alma é material € Mortal ia, deram 0 alarma. Numa sociedade, os supersticioso: Alguns ingleses, devote i tém e provocam terrores pinicos. Gritou-se que Locke dese. siio como os poltrdes Aum =" avia nada religioso no caso. Tratava-se de uma questio pura. java ee a ve dependent da fé e da revelagio, Bastava examinar sem acriménia se ha mente filos6fica, = i (o & matéria. Mag iloséfica, multe atria pens’, ¢ se Deus pode coriunicar o pensamento &n contradigio em dizer: A Tr ntemente dizendo que Deus foi ultrajado, desde que nio se tena a 0s tedlogos comegam le = VOLTAIRE \ ™Mesma opinidio que eles. Assemelhavam-se bastante aos maus poetas, acusando Despréaux de ifamar o rei porque zombava deles. : © Dr. Stillingflect adquiriu uma reputagao de te6logo moderado por ter injuriado Locke. En a liga, mas foi vencido porque raciocinava como doutor ¢ Locke, como filésofo, cdnscio da Taquezi e da forga do espirito humano. batendo-se com armas cuja tempera conhecia. Se oitsasse falar dum assunto tao delicado aps 0 Sr. Locke, diria: os homens discutem de longa data sobre a natureza e sobre a imortalidade da alma. Quanto a sua mortalidade, a demons- 'ragdo & impossivel visto que ainda se discute quanto sua natureza, e seguramente preciso Conhecer a fundo um ser criado para saber se é ou nio imortal, A razo humana € tao incapaz de demonstrar por si.mesma a imortalidade da alma, que a religido viu-se forgada a revela-la para ‘bem comum de todos os homens pede que se creia a alma imortal; a {¢ 0 ordena. Nao é Preciso mais. A coisa esta decidida. O mesmo nao ocorre com sua natureza, pouco importando a ‘eligizo qual seja a substincia da alma; o importante é que seja virtuosa, 6 um rel6gio que nos foi Para que 0 governemos, mas 0 obreiro nao nos disse do que era composta sua corda. _, SOU corpo e penso — é tudo que sei. Irei atribuir a uma causa desconhecida aquilo que posso Atribuir facilmente apenas & causa segunda que conhego? Neste ponto todos os filésofos da Esco- me interrompem, argumentando: “No corpo hé apenas a extensio e a solidez, s6 pode ter mor Mento ¢ figura, Nenhum destes elementos pode produzir um pensamento; portanto, a alma nio © ser matéria”, Esse grande raciocinio, tantas vezes repetido, reduz-se ao seguinte: “Nao matéria; adivinho imperfeitamente algumas de suas propriedades; ora, ignoro total- mente se estas podem estar unidas a pensamento; portanto, como nada sei, asseguro positiva pane que a matéria no pode pensar”, Eis, posta claramente, a maneira da Escola raciocinar. . om simplicidade, Locke diria a tais senhores: “Confessai, pelo menos, que sois tao ignorantes : Aanto eu, Nem vossa imaginagio nem a minha podem conceber como um corpo tem idéias; mO. entio, compreendeis melhor que uma substancia. seja qual for. tenha idéias? Nao conce. beis a matéria nem o espiritos como, entio, ousais assegurar alguma coisa? Por sua vez, o supersticioso também aparece dizendo que é preciso queimar, para o bem de Suas almas, aqueles que suspeitam ser possivel pensar apenas com a ajuda do corpo. Mas que Se ele proprio fosse culpado de irreligiio? Com efeito, que homem ousara assegurar, sem impiedade absurda, que seja impossivel ao Criador dar sentimento e pensamento a matéria? mei Pego-vos, em que embarago vos meteis ao limitardes assim a poténcia do Criador! Os ani. ats Possuem os mesmos Srgios que nbs, os mesmos sentimentos, as mesmas percepsSes; si0 dotados de meméria, combinam algumas idéias. Se Deus nio pode animar a matéria e darthe Sentimento, entao, de duas, uma: ou os animais so puras maquinas, ou tém uma alma espiritual, ee quase demonstrado que os animais nfo podem ser simples maquinas. Aqui est nio einer Deus fez exatamente os mesmos Srgios de sentimento neles eem nés. Portanto, se Vio. Porn, Deus fez uma obra initil. Ora, segundo vossa propria confissio, Deus nada faz em >. Portanto, no fabricou tantos érgios de sentimento para que nao sentissem, Portanto, os ani ‘mais nao sao puras méquinas. _ Segundo vossa opiniio, os anit obrigados, apesar de vos préprios, trou Umma ii Vede, ais no podem ter uma alma espiritual. Assim sendo, sois eee de a dizer que Deus deu aos érgios dos animais (que sio matéria) ade de sentir e de perceber. faculdade que neles chamais de instinto. a, Ora, o que pode impedir Deus de comunicar aos nossos érgios, mais penetrantes, essa facul- wake 3 Sentir, de perceber e de pensar que chamamos raziio humana? Para qualquer lado que vos ; Tevoltelg. is Prigados a admitir vossa ignorancia ¢ a poténcia imensa do Criador. Nao vos narviniie entio, contra a sibia © modesta filosofia de Locke. Longe de contrariar a religiio, ie e-ia de Prova, se precisasse. Pois, que filosofia poderia ser mais religiosa do que aqucla ANF concebe ¢ admite sua fraqueza dizendo set preciso recorrer a Deus quando se examinam os Primeiros prineipios? \ am (i“emais, nunca se deve temer que algum sentimento filosofico possa prejudicar a reli \ um pais. Por mais \Feverenciados pelos ue nossos mistérios contrariem suas demonstragdes, nunca deixam de ser filosofos cristios, pois sabem que os objetos da religido e da filosofia sio de An CARTAS INGLESAS 29 natureza diferente, Nunca os fildsofos far’o uma seita religiosa. Por qué? Porque nfo escrevem para 0 povo e porque nio sio entusiastas. Dividi o género humano em vinte partes: dezenove trabalham manualmente e nem sabem que Locke existe. Na vigésima, quao poucos os que Iéem! E entre estes, vinte Iéem os romances, enquanto apenas um estuda filosofia. O nimero dos que pensam é excessivamente pequeno e nio tém a lembranga de perturbar o mundo. Nem Montaigne, nem Locke, nem Bayle, nem Spinoza, nem Hobbes, nem Shaftesbury, nem Collins, nem Toland carregaram a tocha da discérdia em sua pitria. Foram os teblogos que a trouxeram, comegando com a ambigao de chefiar seitas e logo passandé a ambicionar aches de Partidos. Que digo! Todos os livros dos fil6sofos modernos, ajuntados, nunca fardo tanto barulho como fez outrora a simples disputa dos franciscanos sobre o formato de sua manga ¢ de seu | capuz. CRSIBIBLIC ECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS: DA LE1’3.610/1998 E LE! 10.695/200 aa] PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/19 Ateu, Ateismo I Noutros tempos, qualquer pessoa que fosse detentora de um segredo numa arte, corria logo Petigo de ser tomada por feiticeiro; qualquer seita nova era logo acusada de imolar criancinhas ' SeUs sacrificios e atos de Culto; € 0 filésofo que se afastasse da terminologia da escola era acu- ateismo pelos fandticos ¢ pelos velhacos, e condenado pelos idiotas, Anaxagoras atreve-se a afirmar que o Sol nao era 885 chamam-the ateu e é obtigado a dar s de vila-diogo. - Arist6teles & acusado de atelsmo por um sacerdote; ee ‘se para Calcis, guiado por Apolo montado numa quadri- como nio pode mandar punir 0 acusa- ‘Mas a morte de Sécrates € decerto ainda o caso mais odioso da historia cena tist6fanes (esse homem que os comentadore: esquecer-se de que Sécrates era grego tambér ‘ienses a considerarem Sécrates um ateu. Esse poeta cémico, que no é cémico nem Poeta, entre nbs nao Ihe teriam consentido que fzesse representar as suas farsas farsalhonas ne fire de Sin Lourengo; a mim se me afigura ainda mais vil'e mais desprezivel do que o descreve Plutarco. Eis o que diz o sabio Plutarco deste tudo: «4 linguagem de Arist6fanes tresanda ao seu miseravel charlatanismo: nunca se ouviram Bracolas tio baixas e tio Tepugnantes; nem a propria ralé lhe acha graga c torna-se verdadeira- pent® insuportivel para as pessoas dé senso e honra; a sua arrogancia nie ne pode tolerar e as Pessoas de bem detestam a sua evidente malevoléncia”, Eis ai, diga-se de passagem, o Tabarin que a Sra. Dacier, admiradora de Socrates, ousa rar: este o homem que preparou antecipadamsnte o veneno com que os infames juizes fize- Tam morrer o homem mais virtuoso da Gréci Os tintureiros, os sapateiros ¢ as costureiras de Atenas aplaudiram uma farsa em que Sécra- te, tbareeia, suspenso no ar dentro dum eesto, proclamando que Dew axe existe e gabando-se de t#t Foubado uma ténica quando ensinava filosofia. Um povo inteiro, cujo governo corrupto auto- civ# to infames licengas, merecia com toda a justiga 0 que the aconteceu depois: tornar-se *scravo dos romanos e sé-lo hoje ainda dos turcos. Passemos em branco o periodo que medeia entre-a repiblica romana ¢ nbs. Muito mais sensatos que os gregos, © mesmo nfo aconteceu com o: 's tanto admiram s6 porque era grego, pare- im), Arist6fanes foi o primeiro que levou os ate- Os romanos, ‘nunca perseguiram nenhum filésofo por causa das suas idéias, J 8 povos birbaros que sucederam ao império romano. Mal 0 auurtador Frederico II tem querelas com os papas, logo o acusam de ser ateae tanlron de anc do livro dos Trés Impostores, de parceria com 0 seu chanceler de Vinéis, O nosso grande chanceler de L’Hospital afirma-se contrario as Perseguigées: imediatamente € acusado de ateismo, “Homo doctus sede verus atheus”,” ‘Um jesuita, tio abaixo de Aristéfanes como Aristéfanes esta abaixo de Homero, um pobre pateta cujo nome se torou ridiculo até entre °8 prOprios fandticos, o jesuita Garasse, para falar sem papas na lingua, em todo o lado descobre atetstas; pois & assim que apelida todos quantos sio alvo do seu deseabelats furor. Chama ateista 4 Théodore de Béze; foi ele, também, que induziu o pablico em erro a Tespeito de Vanin O desgragado fim de Vanini nao nos impressiona nem indigna tanto como o de Sécrates, ” Commentarium rerum Gallicarum, Liv. XVII (N. do A) A tradugfio da frase citada é; “Homem sibio mas verdadeiro ateu”. (N. do E.) E LEI 10.695/2003 DICIONARIO FILOSOFICO 109 Porque Vanini no passava de um pedante estrangeiro sem mérito nenhum; mas Vanini nao era nada um ateu, como se tentou fazer crer; era justamente 0 oposto disso. Era um pobre padre napolitano, pregador e teblogo de seu oficio, discutindo até o absurdo sobre as esséncias ¢ sobre os universais, “et utrum chimaera bombinans in vacuo possit comedere secundas intentiones”.® De resto, nfo tinha a menor queda para o ateismo. A sua nogao de Deus & teologia da mais si mais acatada, “Deus é seu principio e seu fim, pai de um e de outro e no tendo necessidade nem dum nem doutro; eterno sem estar no tempo, em toda a parte presente sem estar em parte alguma, O passado eo futuro niio contam para ele; est em todo o lado ¢ fora de tudo, governando tudo e tendo criado tudo, imutavel, infinito, sem partes; o seu poder é a sua von- tade, etc.” Vanini entusiasmava-se ao rubro em renovar aquela bela idéia de Platio, perfilhada por Averrois, de que Deus criara uma cadeia de seres, desde o mais pequeno ao maior, cujo iiltimo elo esta ligado ao seu trono eternal; idéia, com efeito, mais sublime que verdadeira, mas que esta tio distante do atefsmo como o ser do nada. Viajou muito, para fazer fortuna ¢ para polemicar: infelizmente, a polémica esté no caminho ‘posto ao da fortuna; criam-se tantos inimigos irreconcilidveis como se encontram sabios ou pedantes com quem disputar. E nao foi a origem da infeliz sorte de Vanini; o feitio impetuoso e a sua grosseria nas controvérsias valeram-lhe o édio de alguns tedlogos; ¢ porque tivesse tido uma querela contra um tal Francon, ou Franconi, esse Francon, amigo dos inimigos dele, nao tardou em acusé-lo de ser ateu de propagar o atefsmo. ; Esse Francon ou Franconi, auxiliado por varias testemunhas, teve a ferocidade de, numa acareagao com Vanini, sustentar 0 que anteriormente afirmara. No banco dos réus, Vanini, inter- rogado sobre o que pensava da existéncia de Deus, respondeu que adorava como a Igreja um ‘Deus em trés pessoas. E tendo apanhado uma palha do chao, acrescentou: “Basta esta simples palhinha para nos provar que ha um criador”. Entio embrenhou-se numa formosa discursata, acerca da vegetagiio e do movimento, ¢ ainda sobre a necessidade de um ser supremo sem o qual no haveria movimento nem vegetagio. O presidente Grammont, que nessa altura estava em Tolosa, transcreve essa arenga na sua Histéria de Franga, hoje tio esquecida; ¢ é 0 dito Grammont quem, por um preconceito dispara- tado, pretende que Vanini dizia tudo aquilo mais por vaidade ou medo do que por fntima convicgao, Em que base podera fundar-se este juizo temerario ¢ cruel do presidente Grammont? Pelas espostas que deu, € evidente que Vanini devia ser absolvido da acusagio de atefsmo. Qu - deu, entio? O desditoso padre estrangeiro era também um curioso por assuntos de medicina e foi dar em casa dele um grande sapo, que conservava vivo num vaso cheio de Agua; foi suficiente para o acusarem de feitigaria. Afirmou-se que o sapo era o deus que ele adorava; atribufram um sentido impio a varios passos dos seus livros, o que é coisa muito facil e muito comum, tomando as objegdes como respostas, interpretando malevolamente alguma frase mais ambigua, envene- nando uma expresso. Finalmente, a facg&o que o atacava conseguiu arrancar dos juizes a sen- tenga que condenou A morte o infeliz. ‘i Para justificarem essa morte, acusaram o desgragado de tudo quanto ha de mais horroroso. O minimo ¢ menos que minimo®, o insignificantissimo Mersenne, levou 0 despautério a imprimir que Vanini safra de Népoles com doze dos seus apdstolos para converter todos os povos ao atefs- ‘mo. Que lastima! Como podia um miserando padre manter ao seu servigo doze homens ¢ pagar- Ihes de sua bolsa? Como teria conseguido convencer doze napolitanos a viajarem com grandes despesas, para propagar por toda a parte, em risco das proprias vidas, aquela abominavel ¢ revol- tante doutrina? Um rei seria suficientemente poderoso para pagar a doze pregadores do ateismo? Ninguém, antes do padre Mersenne, ousara aventar atoarda tdo absurda, Mas, depois, muitos a repetiram, uma e mais vezes; encheram com ela os jornais, os dicionérios hist6ricos; 0 vulgo, que * “Se uma quimera sussurrando no vitcuo pode comer segundas intengSes.”(N.doE.) * Trocadilho entre minimo; frade da Ordem de Sio Francisco de Paula, ¢ 0 adjetivo minimo, forma irregu- lar do superlativo absoluto simples de pequeno, (N. dos.) PUCRSIBIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA EI 10.695/2003. 110 VOLTAIRE aprecia as coisas extravagantes, acreditou sem mais delongas, sem pensar um s6 momento naque- EB EE nos Pensamentos Diversos, fala de Vanini como se este fora um ateu: serve-se do seii exemplo para sustentar 0 paradoxo de que uma sociedade de ateus pode subsiti; garante que Vanini era um homem de costumes muito morigerados e que foi um mértir das suas idéias filosbficas. Engana-se redondamente nos dois pontos. E o padre Vanini em pessoa quem nos clucida, nos seus Didlogos, feitos & maneira dos de Erasmo, que tivera uma amante chamada Isabelle. Era uma criatura tio livre no que escrevia como na sua conduta; mas néo era um ateu. ‘Um século depois da sua morte, 0 sabio La Croze ¢ aquele que tomou 0 nome de Philaléte quiseram reabilité-lo, prestando-Ihe justiga; mas, como ninguém se interessa com a meméria de um infeliz napolitano, péssimo autor ainda por cima, quase ninguém Iétais apologias. O jesuita Hardouin, mais sabichéo que Garasse, mas nio menos atrevido ¢ impudente, no livro intitulado Athei Detecti, acusa de ateismo os Descartes, os Arnauld, os Pascal, os Nicole, os Malebranche: felizmente nenhum deles sofreu o destino de Vanini. De todos estes fatos passo para o problema de moral levantado por Bayle, a saber: se pode- ria subsistir uma soctedade de ateus. A propésito deste artigo, anotemos, para comegar, como os homens se contradizem no ardor da polémica: os que protestaram com mais furor contra a opi- nifo de Bayle, aqueles que Ihe negaram da mais injuriosa maneira a possibilidade de existir uma sociedade de ateus, foram precisamente os mesmos que a seguir afirmaram, e com igual intrepi- dez, que o ateismo é a religido do governo da China. Enganaram-se por certo bem enganados acerca do governo chinés; bastava que lessem os éditos dos imperadores desse vasto pais, logo teriam percebido que tais éditos sio sermdes ¢ que constantemente ali se faz referéncia ao Ser Supremo, que tudo governa, tudo castiga e premia. Mas, ao mesmo tempo, ndo menos se enganaram acerca de uma sociedade de ateus; e nio percebo como Bayle péde esquecer um exemplo assim to frisante que teria podido dar a vitéria sua causa. Por que razao sera imposs{vel uma sociedade de ateus? Porque se considera que homens sem freio nunca poderiam fazer vida coletiva — viver junto’; que as leis nada podem contra os crimes secretos — ocultos; que faz falta um Deus justiceiro que castigue, neste mundo ou no outro, os malvados que conseguiram ludibriar a justia humana. E certo que as leis de Moisés nao falavam de uma vida futura, nao ameagavam com castigos depois da morte, em nada inculcavam aos primeiros primitivos judeus a crenga na imortalidade da alma; mas os judeus, longe de serem ateus, longe de acreditarem que podiam esquivar-se a vin- ganga divina, eram os mais religiosos de todos os homens, Nao somente criam na existéncia de um Deus eterno como acreditavam que estava sempre presente entre eles; tremiam perante a hip6- tese de serem punidos nas suas pessoas, ou nas pessoas das mulheres, dos filhos, de em toda a sua posteridade até a quarta geragao: ora, esse era jé um freio muito poderoso. Mas entre os gentios varias seitas nao tinham freio algum: os céticos duvidavam de tudo; os académicos'® adiavam o seu jutzo a respeito de tudo; os epicuristas estavam persuadidos de que a Divindade nao podia ingerir-se nos assuntos dos homens e bem no intimo nao admitiam nenhu- ma divindade, Estavam conyencidos de que a alma nao é uma substancia, mas sim uma faculdade que nasce e morre com o corpo; por conseguinte, no conheciam outro jugo que no fosse o da moral ¢ da honra, Os senadores ¢ os cavaleiros romanos eram auténticos ateus, porque os deuses nao existiam para homens que deles jé nada receavam nem desejavam. No tempo de César e de Cicero, o Senado romano era, na realidade, uma assembiéia de ateus. O grande orador, na sua alocugao a favor de Cluentius, declarou perante o Senado: “Que mal the faz a morte? Rejeitamos todas essas lendas ineptas que falam nos infernos: portanto, 0 que é que a morte lhe roubou? Nada, exceto o sentimento das dores”. César, o amigo de Catilina, querendo salvar a vida deste contra o dito Cicero, alega as seguintes objegdes: que de modo algum se castiga um criminoso condenando-o A morte; que a morte ndo & nada, que é, simplesmente, 0 termo dos nossos males e que é um momento mais feliz '° Académicos, sectirios da escola de Plato. (N. dos T.) DICIONARIO FILOSOFICO Mt que fatal. E Cicero ¢ com ele 0 Senado inteiro nao se rendem a estas razées? E certo que os vence- dores os legisladores do universo conhecido de entio formavam visivelmente uma sociedade de homens que em nada se arreceavam dos deuses, que eram auténticos ateus. Bayle em seguida examina se a idolatria mais perigosa que o ateismo; se ser maior crime ndo acreditar na Divindade ou ter a respeito dela opinides indignas: neste ponto esta de acordo com Plutarco; acho que mais vale nao ter opiniéio nenhuma a ter uma opiniao mé; mas, apesar do que afirma Plutarco, é ébvio que valia infinitamente mais para os gregos temerem a Ceres, Netu- no ou Japiter, que niio terem medo de nada. Torna-se claro como Agua que é indispensdvel a santi- dade dos juramentos e que de preferéncia devemos fiar-nos naqueles que pensam que um falso juramento serd castigado, nfio naqueles que pensam que o podem fazer impunemente, E indubi- tavel que numa cidade civilizada é infinitamente mais ttil haver uma religido, por mA que seja, a nao hayer nenhuma, Parece, portanto, que Bayle devia primeiro examinar qual era mais perigoso, se 0 fanatismo ou 0 ateismo. O fanatismo é, decerto, mil vezes mais funesto; porque o atefsmo nunca inspira pai x6es sanguindrias, mas o fanatismo sim; o ateismo nao se opSe aos crimes, mas o fanatismo leva” a praticé-los. Suponhamos, como o autor do Commentarium Rerum Gallicarum, que o chanceler de L’Hospital fosse ateu; mas s6 lhe devemos leis sensatas e prudentes e s6 0 vimos recomendar a moderagio ¢ a concérdia; ora, os fandticos cometeram os massacres da noite de Sio Bartolo- meu. Hobbes foi tido por ateu; viveu vida trangiila e inocente; mas os fandticos do seu tempo inundaram de sangue a Inglaterra, a Escécia ¢ a Irlanda. Spinoza nao s6 de certeza era ateu mas até pregou o atefsmo: 0 que também é.garantido é que néo participou no assassinato juridico de Bameveldt; nem foi ele que esquartejou os dois irmios de Vitt e que os comeu assados na grelha. Na sua maioria os ateus sio sabios audaciosos e desgarrados que raciocinam erradamente € que, néo podendo compreender a criagio, a origem do mal e outras dificuldades, fecorreram hipbtese da eternidade das coisas e da necessidade. Os ambiciosos, os voluptuosos nem sequer tém tempo de raciocinar e perfilhar um mau siste- ‘ma; tém mais que fazer que comparar Lucrécio a Sécrates. Entre nds, é 0 que se verifica. ‘Mas jé assim nao era no Senado de Roma, quase todo constituido por ateus, ateus na teoria € na pratica, isto @, que nfo acreditavam na Providéncia nem numa vida futura; esse Senado era uma assembléia de fildsofos, de voluptuosos ¢ ambiciosos, muito perigosos todos e tanto assim que acabaram por dar com a RepSiblica em pantanas. O epicurismo subsistiu sob o jugo dos impe- adores, ¢ os ateus do Senado, que tinham sido uns facciosos e indomaveis nos tempos de Sila ¢ de César, sob Augusto e Tibério foram ateus escravos. Nao desejaria mesmo nada ter uma demanda com um principe ateu, que julgasse ser de seu interesse mandar-me pisar num almofariz: estou convencido que o faria e eu ficaria esmagado, Nao desejaria, se fosse en 0 soberano, ter que- silias com cortesbes ateus, cujo interesse fosse envenenarem-me: ver-me-ia obrigado a beber anti- dotos ao acaso todos os dias. £ pois em absoluto necessArio, para os governantes como para os povos, que esteja profundamente gravada nos espiritos a idéia de um Ser supremo, criador, que premia e castiga. Ha povos ateus, diz Bayle, nos Pensamentos sobre os Cometas. Os caftes, os hotentotes, 0§ topinambus e muitos outros povos pequenos no conhecem Deus: nem o negam nem o afirmam; nunca ouviram falar nisso. Se thes disserem que hé um Deus, facilmente acreditam; digam-Ihes que tudo se faz pela’natureza das coisas, ¢ acreditam-vos também, Pretender que so ateus vale ‘© mesmo que dizer que so anticartesianos; ora, nfo so a favor ou contra Descartes. Sao autén- ticas criancas; e uma crianga nio é ateu nem deista, nao é nada. "* Que conclusio devemos tirar de tudo isto? Que o ateismo é coisa monstruosa ¢ mui perni- ciosa naqueles que governam; que também o é nos homens da corte (ainda que levem uma vida inocente), porque dos seus gabinetes e altos postos podem furar até os que detém o mando e influencié-los; que, embora nio to funesto como o fanatismo, é quase sempre fatal para a virtu- de, Acrescente-se, principalmente, que hé hoje menos ateus do que nunea, desde que os filésofos * Parece que as criangas sio politestas ¢ fetichistas. Nenhum dos psioblogos que as estudaram (Prayer, Binet, Wallon) admitiria que em matéria religiosa a crianga no é nada, (Nota de Jullien Benda.) iB 112 VOLTAIRE nfo existe nenhum ser vegetando sem germe, nenhum germe sem uma finali- io provém da podridao. "Alguns gedmetras que nfo eram fl6s0f0s rejeitaram as ticos admitem-nas; e, como disse um autor ‘conhecido, um ¢ Newton demonstra a sua existéncia 208 sdbios. reconheceram qu dade, etc.,¢ que o trigo na ‘causas finais, mas OS fildsofos autén- Jatequista anuncia Deus as criangas ¢ *Consciéncia SECAO PRIMEIRA Tocke demonstrou (se for permitido usar este termo em moral ¢ metafisica) que nao temos idéias inatas, fem principios inatos, E foi obrigado a demonstré-lo longamente, porque nessa Poca o erro contrétio era universal. inc Segue-se evidentemente precisarmos muito que nos ponh: Principios, desde que poss: amos usar a faculdade do entendimento. Tocke mostra o exemplo dos selvagens que matam ¢ eoqem seu proximo sem nenhum Temorso na consciéncia, e soldados cristéos bem educados, que, niima cidade tomada de assalto, Pitham, esganam, violam, néo somente sem remoreo, x ‘mas com um prazer encantador, com honra. € gloria, com aplausos de todos os seus companheiros. Seguramente, nos massacres da noite de Sio Bartolomen, ¢ nos auto-de-fé, nos santos atos- fee da Inquisigéo, a consciéncia de nenhum assassin jamais se reprovou ter massacrado homens, mulheres, criangas; ter feito gritar, desmaiar, morrer nas torturas os infelizes que tinham Como Ginico crime celebrar a Péscoa de modo diferente do dos inquisidores, —* Resulta disso tu ido que s6 temos a consciéncia que nos ¢ inspirada pelo tempo, pelo exemplo, Por nosso temperamento, por nossas reflexdes, eng Hasceu sem principio algum, mas com a faculdade de receber todos. Seu teripera cma jp,tOrné-lo-& mais inclinado a erueldade ou a dogura; seu entendimenta fi-Jo-4 compreender To nait dt © quadrado de doze & cento e quarenta e quatro, que nio se deve fara ave ‘outros aqui- lo que nao se quer que Ihe Seja feito, porém niio compreendera por si mesmo estaé verdades na sua infncia; nfo entenderé a primeira ¢ nfo sentiré a segunda. e 1 Pequeno selvagem tendo fome e a quem seu pai tera dado Para comer um pedago de um Outro selvagem, pedir o mesmo fo dia Seguinte, sem imaginar que se deve tratar o proximo do mesmo modo que nés préprios quererfamos ser tratados. Faz maquinalmente, insensivelmente, Sxatamente o contrério do que ensina essa verdade eterna,” 1 ome2t Preveniui contra esse horror dando ao homem a disposigéo para a piedade € 0 Poder de compreender a verdade, Esses dois Presentes de Déus so o fundamento da sociedade civil: Por isso sempre houve Poucos antropéfagos e a vida tornou-se um Ppouco tolervel entre as nagoes civilizadas, Pais e mies dio a seus filhos uma educagio que logo os torna socidveis ¢ Conscientes, e am na cabega boas idéias e bons Uma religiio ¢ uma moral puras, ‘convenientemente inspiradas, modelam de tal forma a 6 GBTE LEI 10.695/200: PUCRSIBIBLIOTECA CENTRAL - COPIA N RM —_ PUCRSIBIBLIO VOLTAIRE ure ualga humana, que maig ou menos dos sete aos dezesseis ou dezessete anos nio se pratica LUE mé ago sem que a consciéncia deixe de reprové-la, Em seguids, vim as paixiesviolen- hop OMbatendo a consciéncia e conseguindo, algumas vezes, sufocd-la. Durante 0 conflito, os Suag ‘NS, atormentados pela borrasca, consultam em algumas ocasiGes outros homens, como em Feau¥as consultam aqueles que tém a aparéncia sadia. Maire! i8t© que produziu os casuistas, isto € pessoas que decidem casos de consciéncia, Um dos ha ‘88 Sbios casuistas foi Cicero, que no seu livro Oficios, isto é, os deveres do homem, exami- Pontos mais delicados. Entretanto, muito antes dele, Zoroastro pareceu regulamentar a 8 COnge:, abareeteit com o mais belo presto: Na diva quanto a bondade ou A maldade de una agi, te, Seco SEGUNDA Se um Juiz Deve Julgar Segundo sua Consciéneia ou Segundo as Provas Tomés de Aquino, sois um grande santo, um grande tedlogo, ¢ néo hé dominicano algum Fiegt*TA por vés mais veneragio do que eu. Entretanto, haveis decidido em vossa'Suma Teolb- Cuja ne lum juiz deve dar sua voz segundo as alegagdes ¢ as pretensas provas contra um acusado Pox Sean lhe é perfeitamente conhecida. Pretendeis que as deposigdes das testemunhas, sé Sobran Ser falsas, as provas resultantes do processo so impertinentes, e, no entanto, devem segue T-Se ao testemunho de seus proprios olhos. Viu o crime ser cometido por um outro, e, inna v6s, deve conscientemente condenar 0 acusado quando sua consciéncia Ihe diz que é amps ti® Preiso, enti, segundo wés, que, seo proprio juz ivesse cometido o crime de que tr- ‘0S, sua consciéncia o obrigaria a condenar o homem falsamente acusado desse crime. ree si consciéncia, grande santo, creio' que vos enganastes da maneira mais absurda e mais naturale ena que, possuindo tio bem o direito candnico, tenhais conhecido tio mal o direito provia © Primeiro dever de um magistrado é ser justo antes de ser formalista. Se, em virtude das me que somente so probabilidades, condenasse um homem cuja inocéncia me fosse demons- » Crer-me-ia um tolo e um assassino. Fei todos os tribunais do universo tém um pensamento diverso do vosso. Nio sei se £0, Ypul € Grillandus so de vossa opinio. Seja lt como for, se alguma ver encontrardes Cice- Perey Piano, Triboniano, Dumolin, o chanceler de Hospital, o chanceler de Aquesseau, pedi-hes ‘40 pelo erro em que cafstes, que SeGAO TERCERA Da Consciéncia Enganadora © que talvez melhor se tenha dito sobre essa importante questo encontra-se no livro cémico Trstam Sandhy, escrito por um cura chamado Sterne, o segundo Rabelais da Inglaterra. Parece- Com os pequenos sétiros da antiguidade, que encerravam esséncias preciosas. Dois velhos capitis a meia-paga, auxiliados pelo dr. Slop, fazem perguntas muito ridiculas. Nélas os tedlogos franceses nio sio poupados. Insistem particularmente sobre uma Meméria, apresentada & Sorbona por um cirurgio que pede permissfio para batizar as criangas no ventre das mies, por meio de uma cénula que se introduziria convenientemente no fiteo, sem erir a mae nem a crianga. Enfim, fazem com que um cabo leia um antigo sermio sobre a consciéncia, composto pelo proprio cura Sterne. ENTRAL -C 19.610/1 ANOS DICIONARIO FILOSOFICO 133 ‘Numa pintura superior a muitas de Rembrandt € a0 crayon de Callot, pinta um mundano. homem-honesto, passando seus dias nos prazeres da mesa. do jogo e do deboche. nao fazendo nada que a boa companhia pudesse reprovar-Ihe e, por conseguinte, néo se reprovando de nada. Sua consciéncia e sua honra o acompanham aos espeticulos, a0 jogo, e sobretudo quando paga liberalmente & jovem que o entretém. Quando encarregado, pune severamente os pequenos furtos do povinho; vive alegremente ¢ morre sem o menor remorso. O dr, Slope interrompe o leitor para dizer que isso € impossivel na Igreja anglicana, s6 podendo acontecer entre os papistas. Finalmente, o cura Sterne cita o exemplo de Davi, que tem, diz ele, ora uma consciéncia deli- cada e esclarecida, ora muito dura e tenebrosa. Quando poderia matar seu rei numa caverna, contenta-se em cortar uma aba da sua vesti- menta: eis uma consciéncia delicada, Passa um ano inteiro sem ter menor remorso de seu adul- tério com Betsabé ¢ do assassinato de Uriel: eis a mesma consciéncia endurecida ¢ privada de luz. Assim 6, diz ele, a maioria dos homens. Admitimos ao cura ‘que os grandes do mundo geral- mente esto neste caso: a torrente de prazeres e de afazeres os arrebata, nao tém tempo para ter consciéncia (0 que ¢ bom para o povo) e também niio a possuem quando se trata de ganhar dinhei- ro. B, portanto, muito bom de vez em quando despertar a consciéncia das costureiras e dos reis com uma moral que possa impressioné-los, mas para isto é melhor falar como nao se fala hoje. Secko Quarta * Liberdade de Consciéncia Traduzido do aleméo UNao adotamos todo este pardgrafo, mas, como ha nele algumas verdades, nao cremos dever omiti-lo e néo nos encarregamos de justificar o que se puder af éricontrar de pouco comedido e muito duro.) © capelao do principe de. . ., catélico romano, ameagava um anabatista de expulsé-lo dos Estados do principe. Dizia-lhe haver somente trés seitas autorizadas no império, que para ele, anabatista, sendo de uma quarta, nfo era digno viver nas terras de monsenhor, e, enfim, a con- versa se esquentando, o capeldo ameagou mandar enforcar o anabatista. : “Tanto pior para sua alteza”, responde o anabatista; “sou um grande manufatureiro, empre- g0 duzentos operirios, fago entrar duzentos mil escudos por ano nos seus Estados, minha familia iré estabelecer-se em outro lugar e monsenhor perder mais do que eu.” F . “E se monsenhor mandar enforcar teus duzentos operdrios ¢ tua familia?”, replica o capelio, “E se der tua manufatura a bons cat6licos?” “Eu o desafio”, diz o velhote, “Nao se da uma manufatura como se doa uma herdade, porque niio se da a engenhosidade. Seria loucura maior do que se mandasse matar todos os seus cavalos Poorque um deles te derrubou e porque és um mau escudeiro. O interesse de monsenhor no est em que eu coma pao sem levedura ou levedado. Mas est, isto sim, em que eu fornega o que comer 8 seus siiditos, e que eu aumente seus Iucros com meu trabalho. Sou um homem honesto e, se tivesse a infelicidade de nio ter nascido tal, minha profissio forgar-me-ia a tornar-me, pois nos negécios nao € como na corte ¢ na tua igreja: nfo h& sucesso sem probidade. Que importa se fui batizado na idade chamada da razfio, enquanto o foste sem o saber? Que importa se adoro Deus a maneira de meus pais? Se seguisses tuas belas méximas, se tivesses a forga nas mios, irias de uma ponta a outra do universo, mandando ao teu bel-prazer enforcar 0 grego que nao cré o Espi- tito Santo procedente do Pai ¢ do Filho, todos os ingleses, todos os holandeses, dinamarqueses, suecos, irlandeses, prussianos, hanovrianos, saxdes, holsteneuses, hesseuses, virtemburgueses, berneuenses, hamburgueses, cossacos, valacos, russos que ndo créem o papa infalivel, todos os mugulmanos que er8em num s6 Deus, ¢ 0s indianos cuja religidio € mais antiga que a judaica, ¢ 08 letrados chineses, que ha quatro mil anos servem um tinico Deus sem superstigio e sem fanatis- L i VOLTAIRE me io ¢ 0 que farias se fosses 0 senor?” “Segurament ”, diz 0 monge, “pois estou devorado la casa do Senhor: Zelus domus suae comedit me. diabgs BroPesto, caro capelio”,retorquit 0 anabatista, “diga-me: és dominicano ou jesufta, ow diab ‘Sou jesuita”, diz o outro. “Ah! meu amigo, se nao és diabo, por que dizes coisas tio licas?” “E que o reverendo padre ritor ordenou-me dizé-las.” “E quem ordenou essa abominagio ao reverendo padre reitor?” “Boi o provincial. “De quem o provincial recebeu essa ordem?” ““Do nosso geral,e para agradar a um senhor maior do que ele — 0 paps.” rang ine ters, que com trés dedos encontrastes 0 segredo de tornar-vos senhores duma Pande parte do gener humano, se no fundo de vossos coragies admitis que vossas riquezas ¢ egos niio sio essenciais a vossa salvagio ¢ & nossa, gozai-as com moderagfio. Nao quere- day ree ror a mitra on tara, mas no nos esmagueis. Gozai e deixai-nos tranqiilos. Desenre- 5 interesses com os reis e deixai-nos nossas manufaturas.” PUCRS/BIBLIOT CENTRAL ~ ( IA Ni ERMOS DA LE! 9.610/ E LEI 10.696/2003. Estados, Governos Qual é 0 methor? ._ Ainda nao conheci até hoje ninguém que tenha governado um Estado, Nao falo dos senhores inistros que, em verdade, governam dois ou trés anos, uns; seis meses, outros; seis semanas, “ida outros; falo de todos aqueles homens que, & hora da ceia ou no intimo dos gabinetes, expla- AM 0 seu sistema de governo, reformando os exércitos, a Igreja,o vestuario e a finanga. ay O abade de Bourzeis comegou a governar a Franga cerca do ano de 1645, sob o nome de car- ‘al de Richelieu e fez esse Testamento Politico pelo qual pretende alistar a nobreza na cavalaria * ts anos, manda pagar a derrama aos tribunais de contas e aos parlamentos, priva o rei da\ ta da gabela *”; garante sobretudo que, para entrar em campanha com cingiienta mil homens, rs ‘em-se por economia recrutar cem mil. Afirma que “sé a Provenga tem muito mais portos de que a Espanha e a Franca juntas”. oe © abade de Bourzeis nunca tinha viajado. De resto, a sua obra esté ingada de anacronismos © lates; pSe 0 cardeal de Richelieu a assinar duma forma como ele nunca assinou, bem como 82 falar como ele jamais falou. Acresce que preenche um capitulo inteiro a dizer que “a raziio Ve ser a regra de um Estado”, ¢ a tentar provar essa descoberta. Essa obra diabélica, produto Re do abade de Bourzeis, durante muito tempo passou por filha legitima do cardeal de mattelieu; e todos os académicos, nas suas arengas, nunca se esqueciam de exaltar desmedida- “ate essa obra-prima da politica. Sr. Gatien de Courtilz, ao ver 0 éxito do Testamento Politico; de Richelieu, mandou impri- * cm Haia, o Testamento de Colbert, com uma formosa carta de Colbert dirigida ao rei. E evi- susre We 8¢ esse ministro fosse autor de semelhante testamento, teria de ser dado por interdito © ‘Penso do cargo; contudo, este livro foi citado por alguns autores. : bigg 2, 24 patitorio, de quem se desconhece o nome, arranjou logo processo de langar a pi- tome estamento de Louvois, ainda pior, se possivel, do que o de Colbert; um abade de Chev tint POs também a testar o Duque Carlos da Lorena. Tivemos seguidamente os testamentos pol 608 do Cardeal Alberoni, do Marechal de Belle-Islee, finalmente, o de Mandrin. lesz Bois-Guillebert, autor do Pormenor da Franga, impresso em 1695, apresentou o projeto Aiiivel do dizimo real, sob o nome do Marechal de Vauban. eee louco chamado La Jonchére, que nao possufa cheta, magicou em 1720 um projeto finan- ro €m quatro volumes; ¢ alguns imbecis citaram essa produgao como uma obra de La Jonché- © tesoureiro-geral, supondo que um tesoureiro nao pode fazer um mau livro de finangas. _ Mas havemos de concordar que alguns homens houve, muito shbios ¢ sensatos, talver até Muito dignos da govemnagio, que tém escrito acerca da administragio pblica, quer em Franga, Aver na Espanha ou na Inglaterra. Os seus livros foram de grande utilidade: nfo se julgue que te- tim n£2tigido os ministros entio no exercicio do poder, quando tais livros apareceram, porque The wuttistro nunca se corrige nem deixa corrigir por outrem. Segue uma linha determinada; nfo .alem instruges nem conselhos alheios; nao tem, sequer, tempo para os ouvir; a acumulagio, © Titmo dos assuntos a resolver arrastam-no num auténtico turbilhio; mas esses livros bons edu- aM a juventude, que vird mais tarde a ocupar fungdes de chefia; educam os principes ¢ a segunda Beraco fica mais instruida e mais competente. mir, SPbelarcraunrdircito sobréo sal que se Cobwavacem Branicn antesida Revolupiorde 1789s (Mb des T.) DICIONARIO FILOSOFICO 183 A fraqueza € a forga de todos os governos foi mui de perto examinada nos iitimos tempos. Dizei-me, pois, vos que tendes viajado, que muito tendes lido e visto, em que Estado, sob qual re- ime politico, gostaricis de ter nascido? Percebo perfeitamente que um grande senhor latifundiario de Franga nfo ficaria aborrecido por ter nascido na Alemanha; ali seria soberano em vez de stidi- to. A um par de Franga havia de ser-lhe grato ter os privilégios do pariato inglés, pois seria legislador. O homem togado ¢ o financeiro achar-se-iam melhor em Franga que algures. Mas que patria deveria escolher um homem sensato, livre, um homem de parca fortuna ¢ sem preconceitos? Um membro do Conselho de Pondichéry, criatura bastante ilustrada, regressava a Europa or terra na companhia de um brama, bastante mais instrufdo do que vulgarmente os bramas cos- tumam ser. — “Como achais 0 governo do grito-mogol?” perguntou o conselheiro. — “Abominé- vel”, respondeu o brama. “Como quereis que um Estado seja governado capazmente, e com éxito, por tartaros? Os nossos raias, os nossos omras, os nossos nababos, estio todos muito satisfeitos, mas j4 no assim os cidadaos, e alguns milhdes de cidadaos ainda devem valer qualquer coisa.” O conselheiro ¢ o brama atravessaram a Asia inteira, observando e discutindo. — “Reparai numa coisa”, disse o brama; “no hé nenhum Estado republicano nesta vasta parte do mundo.” — “Houve outrora a repiblica de Tyr”, disse 0 conselheiro, “mas pouco durou. Também havia outra para os lados da Arabia Pétrea, num recanto chamado Palestina, se podemos honrar com © nome de repGblica uma. horda de gatunos ¢ usurdrios, tio depressa governada por jiiizes como por uma espécie de reis, ora, ainda, por grandes pontifices, horda que foi submetida ¢ escravizada sete ou oito vezes ¢ acabou por ser expulsa da regiao que tinha ocupado.” : — “Compreendo que devem encontrar-se a face da Terra muito poucas repiiblicas”, disse 0 brama, “Raramente os homens sio dignos de se governarem a si proprios. Essa felicidade apenas deve pertencer aos pequenos povos que se escondem nas ilhas, ou entre as montanhas, como coe- Ihos bravos que se esquivam dos animais carnivoros; mas, por fim, so descobertos e acabam também por ser devorados.” Quando os dois viajantes chegaram a Asia Menor, o conselheiro disse ao brama: — “Sereis Dor acaso capar de acreditar que houve uma repiblica formada num cantinho da Italia, a qual durou mais de quinhentos anos e que dominou esta Asia Menor, a Asia, a Africa, a Grécia, as Ga- lias, a Espanha ¢ a Italia inteira?” — “E transformou-se depois numa monarquia?” indagou o brama. — “Advinhaste-lo”, disse 0 outro; “mas essa monarquia caiu ¢ todos os dias lemos belas dissertagSes para encontrar as causas da sua decadéncia ¢ da sua queda.” — “Incomodais-vos por nada”, respondeu o indiano; “esse império caiu porque existia. Tudo vem a cair; ¢ tenho espe- ranga de que acontega outro tanto ao império do grio-mogol.” — “A prop6sito”, disse o europeu, “acreditais que seja necesséria mais honra num Estado despético e mais virtudes numa repGbli- a2” Depois de Ihe ter sido explicado o que se entende porhonra, o indiano respondeu que a honra era mais necesséria numa repiiblica ¢ que era mais necessaria a virtude num Estado mondrquico. — “Porque”, disse, “um homem que pretenda ser eleito pelo povo nao o conseguird se estiver desonrado; ao passo que numa corte facilmente podera obter um cargo, conforme aquele preceito de um alto principe que costumava dizer que um cortesao, para triunfar, nfo devia ter honra nem mau humor. No que respeita a virtude, € prodigiosamente precisa numa corte, mas para ousar dizer a verdade, O homem virtuoso esté muito mais a vontade numa repiblica, pois ali néo tem que lisonjear seja quem for.” ee — “Acreditais”, inquiriu o homem da Europa, “que as leis as religibes sejam feitas para os climas, tal como fazem falta as peles em Moscou € 0s tecidos de gaze em Delhi?” — “Decer- to”, respondeu o brama; “todas as leis que dizem respeito a fisica sio calculadas pelo meridiano onde se habita; uma s6 mulher chega e sobeja para um alemdo, ao passo que um persa possui trés ‘ou quatro. Os ritos da religifo sio da mesma natureza, Como podia ev, se fosse cristio, dizer missa na minha provincia natal, onde nio h4 pio nem vinho? Acerca dos dogmas, porém, jé o caso ¢ outro; o clima para ai nfo conta nada. A vossa religiio nio comeyou na Asia, donde a expulsaram? Nao é agora praticada para as bandas do mar Baltico, onde era desconhecida?” ‘ — “Qual é 0 Estado, sob qual regime, gostarieis mais de viver?” perguntou o conselheiro. ; “e tenho encontrado 8 E LEI 10.695/2003. TAIRE 184 VOL’ firmam outro tanto.” — “Mas”, insistiu o respondeu: — “Aquele onde todos obedecem as ”, aes ee selbale “LA por isso, nao se diga que é “B onde é esse pais?” perguntou o conselheiro, O i ue al muitos siameses, tonquineses, persas € turcos < jerfeis?” curopeu, “qual Estado escolh O br leis”. — “E essa uma antiga resposta”, dis uma resposta ma”, redargiiu 0 brama, — brama disse: — “Ha que procuré-lo.’ Evangelho iti yblema saber quais sio os primeiros evangelhos. E uma verdade sill eae disser, que nenhum dos primeiros Padres da Igreja ** até Ireneu, Le ngelhos que nds hoje conhecemos, i i it Me asso dos quatro eval gee eee ar rejeitaram constantemente o Evangelho de Sio Joio e falaram , como afirma Santo Epifanio na sua homilia trigésima segunda. Os Sea aie jor apontam anda que nao s6 os mais antigos padres nunca citam nada dos evange- eer ‘ainda varios passos 0s quais apenas se encontram nos evangelhos apécrifos, jel none. aera cieeds por exemplo, conta que tendo sido Nosso Senhor interrogado acerca do tempo em que viria 0 seu reino, respondeu assim: “Seré quando dois forem s6 um, quando o que ttl de fora se assemelhe 20 que esti dentro e quando nao houver macho ou fémea”. Ora, deve- thos confessar que este passo ndo se encontra em nenhum dos nossos evangelhos. Ha cem outros Txemplos que provam esta verdade; podem ser recolhidos no Exame Critico, de Fréret, secretrio perpétuo da Academia de Literatura de Paris. ‘0 sdbio Fabricio dedicou-se a tarefa de reunir os antigos evangelhos que 0 tempo poupou; © de Tiago parece ser o primeiro. £ certo-que goza ainda de grande autoridade nalgumas igrejas do Oriente, Chamou-se-Ihe o primeiro Evangelho. Dele nos ficaram a paixo e a ressurreicio, que se supde tenham sido escritas por Nicodemo. Este Evangelho de Nicodemo é citado por Sito Justi- no e por Tertuliano; 6 af.que se encontram os nomes dos acusadores do Salvador: Anés, Caifiss, Summas, Datam, Gamaliel, Judas, Levi, Neftalim. O cuidado em mencionar esses nomes dé uma certa aparéncia de sinceridade a toda a obra. Os nossos adversdrios conclufram logo que jé que tantos falsos evangelhos foram, a princ{pio, considerados auténticos pode-se também ter suposto como auténticos aqueles que sao, ainda agora, objeto da nossa crenga. Insistem muito na fé dos primeiros heréticos que morreram por causa desses evangelhos apécrifos. Houve com certeza, afirmam eles, falsdrios, sedutores e pessoas seduzidas que morreram no erro: nao € isso entio uma prova da verdade da nossa religidio, que tenha havido mértires que se sacrificaram até a morte por ela? Acrescentam, ainda, que nunca se pergunta aos mArtires: “Acreditais no Evangelho de Joao ou no Evangelho de Tiago?” Os pagios nao podiam basear interrogatérios sobre livros que niio 4 Veja o artigo Genebra, na Enciclopédia.(N. do A.) “9 Padres da Igreja — expressio (mais célebre do que explicita) pela qual se designam os autores de um literatura religiosa que, comegando a partir do século II, se espraia pelos séculos seguintes. Padres da Igreji um termo que evoea, nas prateleiras das bibliotecas de conventos e seminSrios, as majestosas séries de i quartos publicados ha cem anos pelo Abade Migne, sob o titulo geral de Patrologiae Cursus Completus — 277 volumes de patrologia latina e 161 de patrologia grega, limitando-nos aos textos gregos ¢ latinos e dei- xando de lado os Padres Sirios, Coptas e Arménios; ¢, por outro lado, tem o termo um sentido cronolégico muito vasto, estendendo-se, no que respeita ao Ocidente, até a morte de Inocéncio III (1216), e até o séoulo XV no que diz respeito ao Oriente. S6 por extensdo se poder4 chamar “Padre da Igreja” a Sio Bernardo; 08 primeiros padres, aqueles que verdadeitamente fundaram 0 pensamento cristo, séo os dos cinco primeiros séculos, até & queda do Império Romano. O termo padre designava, na origem, os chefes das igrejas, os bis- os; foi este o sentido que conservou para o primeiro dos bispos, o de Roma, o papa. Neles residia toda a autoridade, quer doutrindria, quer disciplinar. Mais tarde, o termo passou a aplicar-se aos defensores da dou- trina, principalmente aqueles que, perante os hereges, Iutavam pela f¢, embora nao tivessem carfiter episco- Pal. ae nem todos os autores cristéios que versaram temas religiosos sio denominados Padres da Igreja. (N. s T,) Se DICIONARIO FILOSOFICO 185 conheciam: os magistrados puniram alguns cristios como perturbadores da ordem piblica; mas nunca os interrogaram sobre os nossos quatro evangelhos. Estes apenas foram um pouco conheci- dos entre os romanos no tempo de Trajano e nao andaram nas maos do piblico antes dos iiltimos anos de Diocleciano, Os socinianos rigidos consideram, pois, os nossos quatro evangelhos como obras clandestinas, fabricadas cerca de um século depois de Jesus Cristo ¢ cuidadosamente escon- didas dos gentios durante o século seguinte; afirmam que sio obras grosseiramente redigidas por homens grosseiros, obras que durante muito tempo se destinavam ao uso da populagao. Nao que- remos repetir aqui as outras muitas blasfémias que diziam. Essa seita, embora bastante divulgada, anda hoje tio escondida como andavam nesse tempo os primeiros evangelhos. So muito dificeis de converter, porque 96 acreditam na raziio, Os outros cristios combatem contra eles apenas com a vor sagrada da Escritura: por isso, é impossivel que uns e outros, continuando a ser sempre ini- migos, algum dia possam reconciliar-se. (Pelo abade de Tilladet.) PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NC suem Campos sAfaros e rudes no DICIONARIO FILOSOFICO 223 Igualdade Que é que deve um cio a outro cio, ¢ um cavalo a outro cavalo? Nada. Nenhum animal depende do seu semelhante; mas por que o homem recebeu da Divindade um raio de luz que se chama razdo, qual € 0 fruto disso? E ser escravo em quase toda a terra. Se a terra fosse 0 que parece que devia ser, isto é, se por todo lado 0 homem encontrasse alimentagao facil e garantida, e um clima adequado & sua natureza, é dbvio que teria sido impos- sivel a qualquer homem escravizar outro, Se 0 globo fosse coberto de saborosos frutos; se o que deve contribuir para a nossa vida nfo nos causasse as doengas ¢ a morte; se o homem nio necessi- tasse doutra morada ¢ doutra cama que aquelas que tém os gamos e os cabritos: nesse caso, os Géngis Can e os Tamerlio s6 teriam como servos os seus proprios filhos, que fossem criaturas honradas e generosas o bastante para os ajudarem na velhice, Nesse estado natural, de que gozam todos os quadripedes, as aves ¢ os répteis, o homem seria feliz como cles o sfio, a servidio tornar-se-ia uma coisa absurda, em que ninguém havia de Pensar; quando nfo se tem necessidade dos servigos de outrem, para que chamar eter criados? Se passasse pela cabega de qualquer individuo de feito tiranico brago nervoso escravizar uum vizinho menos forte do que ele, a coisa seria impossivel: j& 0 oprimido estaria a cem léguas de disténcia antes que o opressor tivesse tempo de tomar as suas precaugées para o agarrar. Todos os homens seriam, portanto, necessariamente iguais se de nada precisassem. A misé- ria, condigao agregada a nossa espécie, subordina um homem a outro homem; ndo é a desigual- dade que ¢ um mal real, mas a dependéncia. Muito pouco importa que tal ou tal individuo se charhe Sua Alteza, outro fullano ‘Sila Santidade; 6 que d6i, 0 que é duro de roer, & ter de servir maou outrd,“" * Uma familia numerosa cultivou uma terra fértl; duas fam‘lias vizinhas, mais pequenas, pos- é preciso que as duas familias pobres sirvam 3 familia opulenta, ou a degolem, é bom lembrar. Uma das duas familias indigentes. vai oferecet.os seus bragos i rica, para conseguir ganhar o seu BAO? & i_atacar os ricacos ¢ é vencida, A fami- llarservigal da ongeni 4 criadager operrios, a familia vencida da origem aos esoravos, a ~~ No nosso desgragado globo é impossivel que os homens que vivem em sociedade nfo estejam divididos em duas classes: a dos ricos, que governam, ¢ a dos pobres, que servem; ¢ estas duas subdividem-se em outras mil e estas mil, ainda, possuem caracteres distintos, Os pobres niio sito todos infelizes, em absoluto. A maioria j& nasceu nesse estado de miséria © trabalho constante impede-os de sentirem demasiado a sua triste condig’i0; mas, quando repa- ram nela, geram-se as guerras, como, em Roma, as do partido popular contra o partido do Sena- do; a dos camponeses na Alemanha, na Inglaterra, na Franga, Todas essas guerras acabam, mais cedo ou mais tarde, pela submisséio do povo, porque os poderosos tém dinheiro e o dinheito é 0 senhor de tudo num Estado: e digo num Estado, porque jé 0 mesmo nao acontece de nagio para nagao. O povo ou nagao que melhor souber servir-se do ferro das armas subjugar4 sempre aquele que tiver mais ouro do que coragem. Todos os homens nascem com uma tendéncia bastante violenta ¢ pronunciada para o domi- nio ¢ os prazeres, ¢ uma queda acentuada para a preguiga: por conseguinte, qualquer homem gos- taria de possuir 0 dinheiro ¢ as mulheres ou as filhas dos outros, ser o amo deles, submeté-los a todos os caprichos seus e néo fazer nada ou, pelo menos, fazer apenas o que muito bem Ihe apete- cesse. JA véern que, com to lindas disposigdes, & impossivel que os homens sejam iguais, como & impossivel que dois pregadores ou dois professores de teologia nio tenham citmes e inveja um do outro, O género humano, tal como na realidade é, nao pode subsistir a menos que nao haja uma infinidade de homens diteis que nada possuam; porque, é mais do que certo, um homem que pos- 10.695/200 MOS L BLIOT - 2: ae VOLTAIRE Sui A ae a © suficiente e viva a seu bel-prazer nio vai abandonar a sua terra para vir cultivar a vossa; € ‘nfo seré, com certeza, um referendério que v6-1o fara. Se tiverdes preciso de um par de sapatos, mais natural e mais quimérjca que existe. ‘o que podem, elevaram ao ctimulo esta desigual- menbum sic ‘Salsse ‘onde 0 acaso 0 Tize- Rae ‘sentidio desta iei, visivelmente, € 0 ‘seguinte: Este pals é to mau e anda tao maT gover- nado, que proibimos a todo tidividuo que sata dele, _comnmadanque:todaa gente-s¢.1Ashen onselho que procedam doutra maneira é melhor: “igen a todos 08 vossos siditos 6 desejo 10s estrangeiros 0 desejo de a visitarem. Todo e qual vem, no intisno.do.coracdo, esté no seu direito de julgar-se inteiramente Tau ee da 10 iniove conclu que o cozinhelF ci td eeiova obigar ete ' fazer-the o jantar; mas o cozinheiro pode ‘argumentar: “Sou um homem tal qual meu amo, nasci como eu, nas mesmas angGstias e nas mesmas dores da agonia. =. Se os turcos se apoderarem de Roma e, nessa altura, como ele a chorar; ha de morrer, Ambos fazemos as mesmas fungdes anima eu for cardeal ¢ 0 meu amo cozinheiro, hei de tomé-lo a meu servigo”. Bsta arenga é razoavel e justa, duma ponta a outra; mas, enquanto aguarda que o Grande Turco se aposse de Roma, 0 cozinheiro tem de cumprir o seu dever, ou toda a sociedade humana esté pervertida e dara consigo m pantanas. Que deve fazer um homem que nao é cozinheiro, nem cardeal, nem est revestido de nenhum deve nada a ninguém, mas anda aborrecido Outro cargo piiblico; um simples particular que nao Tados com um certo ar de protegao ou desdém, que percebe perfeita- nem tém mais espirito do que ele, € que, que deve fazer?! £ pér-se na alheta. Por ser recebido em todos os mente que varios monsignori nao sabem mais do que ele, ortanto, se aborrece de estar s vezes na sua antecimara, — COPIA NOS TERMOS DA LE! 9.610/1998 E LEI 10.695/20 " *Propriedade “Liberty and: Property”'®! € 0 grito inglés. Vale mais do que “Saint George et mon droit, Saint Denis et mon joie” °?: é 0 grito da natureza. Da Suiga & China, os camponeses possuem terras proprias, Somente o direito de conquista péde despojar os homens de um direito tio natural, Tanto na guerra como na paz, o lucro de uma nagio é do soberano, do magistrado e do Povo. A posse de terras fermitida aos camponeses é itil igualmente ao trono e sos siiditos em todos os tempos? Sé-1o-4 para o trono se puder produzir uma renda maior e mais soldados, E preciso, pois, ver se o comércio ¢ a populagio aumentario. E certo que o possuidor de um {erreno cultivara muito melhor sua heranga do que a de um outro. O espirito de propriedade uplica a forga do homem. Trabalha-se para sie para sua familia com mais vigor e prazer do que Para um senhor. O escravo que esti sob 0 jugo de um outro inclina-se Ppouco ao casamento, temendo gerar escravos como ele proprio. Sua habilidade est sufocada, sua alma embrutecida. ‘Suas forgas nio exibem toda a elasticidade de que so capazes. O possuidor, pelo contrario, dese. Ja uma mulher que partithe de sua felicidade e filhos que o ajudem no trabalho. Sua esposa e seus filhos 0 enriquecem, Um terreno pode tornar-se dez vezes mais fértil do que antes nas mios de uma familia laboriosa. O comércio geral aumentaré, O tesouro do principe lucrard. O campo for- nnecerd mais soldados. Portanto, a vantagem est com o principe. A Polénia seria trés vezes mais Tica € povoada se o camponés nao fosse escravo. Também é vantagem para os nobres. Se um deles possuir mil jeiras de terra cultivadas por seus servos, cinco mil jeiras fornecerio uma renda muito fraca, freqtientemente absorvida em Tepatos ¢ reduzida a nada pela intempérie das estagdes. Que ocorrerd se a terra for mais extensa € 0 terreno mais ingrato? Serd o senhor de uma vasta solidio. S6 seré rico quando seus vassalos © forem. Sua felicidade depende da deles, Se essa felicidade se estender a ponto de tomar sua terra bastante povoada, chegando a faltar terreno para tanta mio laboriosa, entio 0 excedente dos cultivadores necessérios espalha-se pelas cidades, pelos portos maritimos, pelas oficinas dos artis- tas, pelos exércitos. A populagio terd produzido esse grande bem e a posse das terras dadas a0s cultivadores, sob a divida que enriquece os nobres, teré produzido essa populagio. Ha uma outra espécie de propriedade nio menos itil — aquela liberada de toda divida e que aga apenas os tributos gerais impostos pelo soberano para o bem e a manutengiio do Estado. Essa propriedade contribuiu para a riqueza da Inglaterra, da Franga e das cidades livres da Ale- manha. Os soberanos que franquearam os terrenos que compunham seus dominios jé de inicio tiraram vantagem porque cobraram caro as franquias, E atualmente retiram um bem ainda maior, sobretudo na Inglaterra e na Franga, pelo progresso da industria e do comércio, A Inglaterra deu um grande exemplo no século XVI quando franqueou as terras da Igreja e dos monges. Era uma coisa odiosa, prejudicial a um Estado, ver homens votados por seus institu- 1°" “Liberdade e Propriedade”. (N. dos T,) ; 19% “Sio Jorge ¢ meu direito, Sao Dionisio ¢ minha alegria” — era o grito de guerra dos reis franceses cujo patrono & Sio Dionisio, (N. dos T.) RMOS ‘DA LEI 9.610/1998 E LEI PUCRSI/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS ae VOLTAIRE 4 5 terras mais belas do reino, tratando os ane mi nines rs Sens ete ie rquezas particalares empobreciars 0 o#o GO Fn0- © abuso foi destrufdo € a Inglaterra tornou-se rica. Em todo o resto da Eee i foi possivel um aaah tent ae ssa isso direitos que ni The pertenciam, a Coron gavtion sche rei Per oma efeito, a Igreja, cuja primeira instituigle © He 1 legislador de seus direitos legitimos, Toms ariamente para engordar com o fruto do trabalho dos tomens. humilde ¢ pobre, nfo fol re Olpstado, deve economizar 0 fruto desses eke trabalhos, para 0 s ce ese ey oe ¢ para o esplendor do trono, Em toda parte onde o povo trabalhe para a do proprio Esta © Pot cn parte onde o povo trabalha para si préprio ¢ Fars © soberano, Tareja, o Estado & pov © comércio se propaga. A marina mercante orna-se 2 escola ca mari- 0 Estado 6 rico. B, entlo, © Cr mapanhias de comércio. Em tempos diffceis, 0 soberanc encon- pees Form desconhecidot. Nos Estados austriacos, na Franga ¢ na Inglaterra vereis 0 tr eee tomar emprestado facilmente de seus siditos com vezes mais do que poderia arrancar- ‘9 povo estagnava na servidio. pera ers voterio ricos, eno & preciso que o sejam. Carecemos dehomens aque tenham seus bragos ¢ boa vontade, Mas até estes homens, ve parecem o rebotalho da sorte, vrieipardo da felicidade dos outros. Ser livres para vender sou trabalho a quem quisr pagé- Ios melhor. A liberdade sera sua propriedade. ‘A esperanga certa de um justo salario os su:tentara. a peetia educardio sua familia em seus offcios laboriosos e ites, E essa classe de homens, tio oan aces olhos dos poderosos, const o principal celero de soldados. Asim, de esto 2 ie ae, to se anima, tudo prosper tudo ganha forga nova gragas a uma Gnict mola Ssilde termos visto quio vantajoso € para um Estado que os cutivadoressejam proprie- tarios, resta vermos até onde tal concessio pode estender-se. J4 ocorreu, em mais de um reino, que © servo franqueado se tenha enriquecido gragas A sua engenhosidade e labor, e se tenha colocado no lugar dos antigos senhores empobrecidos pelo luxo, Compra suas terras ¢ toma-theso nome, ‘A antiga nobreza é aviltada e a nova s6 consegue ser invejada e desprezada. Tudo foi corfundido. Os povos que aeitaram tai ‘usurpagées tornaram-se joguetes nas mios das nagSes que syuberam evitar esse flagelo. ‘Os erros de um governo podem ser uma igo para os outros. Aproveitam 0 bem que fez € evitam o mal que cometeu. I tio facil opor o freio das leis & cupidez e ao orgulho dos novos ricos, fixar a extersio dos terrenos plebeus que podem comprare proibir-lhes a aquisigao das grandes terras senhoriai,'°° de sorte que nenhum governo podera arrepender-se por ter franqueado a servido ¢ porter enri- Gquecido # indigéncia, Os exemplos das outras nagées advertem, tanto assim, que os povos que se Aeiciamn por éitimo ultrapassam freqiientemente os mestres de quem receberam as ligSes. somente quando os servos da Coroa ¢ da Igreja tiveram a florescimento do comércio, das artes ¢ das cidades. Deve-se enciam, a Coroa ganhou a extensio 103 Rstas duas diltimas leis seriam injustas, mas quem quiser opor-se A grande desigualdade das riquezas ¢ nio tiver coragem bastante nem uma politica bem esclarecida capaz de abolir absolutamente as supstituigSes © 08 direitos de primogenitura poderia pelo menos restringir esse privilégio aos feudos possuidos yela nobre~ za antiga ou titulada. Pelo menos seria agir conseqiientemente, é verdade que de acordo com ut principio viciado, que é 0 de favorecer as distingdes entre as posigdes sociais (é4ats). (N. do A.)

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