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3. Espaco, Tempo, Acao e me Le + A anilise do espetaculo se concentrou até aqui no préprio corpo da tepresentacao: a presenga fisica do ator. Sua voz, o ritmo de sua dicgao ou de seu gestual jd se mostraram por sua vez muito mais dificeis de apre- ciar, mesmo no centro dessa presenga intangivel. Poderia se esperar que © espago, a ago ¢ 0 tempo sejam os elementos mais tangiveis do espeta- culo, mas a dificuldade consiste nao em descrevé-los separadamente, mas em observar sua interagao. Um nao existe sem os dois outros, pois 0 ¢s- pago/tempo dramattirgico, o trin6mio espago/tempo/agao, formam um s6 corpo atraindo para si, como que por imantagio, o resto da representa- cao. Ele se situa, além disso, na intersecgao do mundo concreto da cena (como materialidade) e da ficgao imaginada como mundo possfvel. Cons- titui um mundo concreto e um mundo possfvel no qual se misturam to- dos os elementos visuais, sonoros e textuais da cena. Um simples triangulo ilustrar facilmente a interdependéncia dos tés Angulos do trindmio e a necessidade que cada um tem de recorrer aos outros para se definir: O tempo: manifesta-se de maneira visivel no espago. A agdo: concretiza-se em lugar e momento dados. O espago: situa-se onde a ago acontece, se desenrola com uma certa duragiio, 140 A ANALISE DOS ESPETACULOS Considerado em si mesmo, cada Angulo produziria uma arte que nao é a do teatro: of * Semrespaco, 0 tempo seria durago pura, musica, por exemplo. « Sem tempo, o espago seria o da pintura ou da arquitetura. ¢ Sem tempo e sem espago, a agio no pode se desenvolver. A alianga de um tempo e de um espago constitui o que Bakhtin, no caso do romance, denominou cronotopo, uma unidade na qual os indices espaciais e temporais formam um todo inteligfvel e concreto. Aplicados ao teatro, a ago e 0 corpo do ator se concebem como © amalgama de um espacgo e de uma temporalidade: 0 corpo nao est apenas, diz Merlau-Ponty', no espago, ele é feito de espacgo — e, ousa- riamos acrescentar, feito de tempo. Tal espago-tempo é tanto concreto (espago teatral e tempo da Te presentagao) como abstrato (lugar funcional e temporalidade imagi- naria). A ago que resulta desse par é ora fisica, ora imagindria. O espago-tempo-agao é pois percebido hic et nunc como um mundo con- “creto e em uma “outra cena” como um mundo possivel imagindrio. Arrisquemos uma aproximaga4o com o modo pelo qual, para Freud, segundo Sami-Ali, o inconsciente coordena espago, tempo e corpo: No inconsciente, o tempo se transforma em espago e o espaco em unidade corporal. Durante essa transformacao, 0 corpo, funcionando como esquema de representagiio, forma amediagio entre o tempo € 0 espaco?. O que poderiamos ilustrar por meio de um outro triéngulo no qual aparecem as passagens de um Angulo ao outro: / Tempo Expaco Za Resta estabelecer se a homologia desses dois triangulos é apenas fortuita e se 0 modelo freudiano pode nos ajudar a elucidar as rela- g6es espago-temporais da representagao. Unidade corporal 1. Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, Paris, Gallimard, 1945. 2. Sami-Ali, L’Espace imaginaire, Paris, Gallimard, 1974, p. 241. BSPAGO, TEMPO, ACAO 141 Previamente, antes de partir da experiéncia espago-temporal do espectador que se baseia na sua recepgiio dos cronotopos, vamos lem- brar as condigées de uma experiéncia espacial, depois temporal. A EXPERIENCIA ESPACIAL No lugar de um sobrev6o histérico dos tipos de cena aos quais o teatro fez apelo durante sua historia, preferimos evocar a experiéncia espacial do espectador: sua maneira de sentir, ler e avaliar os espagos nos quais evolui. Existem numerosas e excelentes histérias da ceno- grafia>, mas seu uso nao é uma garantia de boa compreensio dos agos da encenacgao contemporanea. A experiéncia espacial, no teatro como fora dele, dispde das duas. possibilidades seguintes, entre as quais todas as teorias do espago parecem oscilar: 1. Concebe-se 0 espago como um espago vazio que € preciso preen- cher como se preenche um container ou um meio ambiente que & preciso controlar, preencher e fazér-comt que se expresse. Tipica dessa concepgio seria, por exemplo, a de um Artaud: “Digo que a cena € um lugar fisico e concreto que exige que alguém o preen- cha, e que o faga falar sua linguagem concreta”, 2. Considera-se 0 espago como invis{vel, ilimitado e ligado a seus utilizadores, a partir de suas coordenadas, de seus deslocamentos, de sua trajet6ria, como uma substncia nao a ser preenchida, mas a ser estendida. Aessas duas concepcées antitéticas do espago correspondem duas maneiras bem diferentes de descrevé-lo: 0 espaco objetivo externo eo espaco gestual. O Espago Objetivo Externo \ Eo espago visivel, frontal muitas vezes, preenchivel e descritivo. Aqui se distingue as categorias seguintes: * O lugar teatral: 0 prédio e sua arquitetura, sua inscri¢aio na cidade ou ha paisagem; mas também 0 local nao previsto para uma repre- sentagdo onde a encenacdo escolheu se instalar, local especifico nao transferivel para um teatro ou outro lugar. No lugar institucio- nalmente teatral, serio observados a disposigao dos espacos inter- 3. Especialmente as de Denis Bablet, Le Décor de Thédtre de 1870 4 1914, Paris, CNRS, 1965; Les Révolutions scéniques au XX* siécle, Paris, Societé Internacionale d’Art, 1975, 4. A. Artaud, op. cit., p. 53. 142 AANALISE DOS BSPETACULOS nos (palco, platéia, espagos vazios, camarins etc.) ¢ externos (ter- rago, hall e patio de entrada). * O espago cénico: lugar no qual evoluem os atores ¢ 0 pessoal téc- nico; a area de representagdo propriamente dita e seus prolonga- mentos para a coxia, a platéia e todo o prédio teatral. * Oespaco liminar: 0 que marca a separacao (mais ou menos nitida, mas sempre inaliendvel) entre o palco e a platéia, ou entre o palco ea coxia. A liminariedade é marcada com maior ou menor inten- sidade: ribalta, velas, “cfrculo de atenc’o” que o ator traca mental- mente para se isolar do olhar do outro. Tais espacos objetivos e mensurdveis sao facilmente descritiveis: foram-no intimeras vezes ao longo da histéria. Correspondem a usos historicamente atestados do palco. Sua imbricag4o, sua interagao, a dindmica de suas mudangas também nao trazem problemas insoli- veis para 0 comentarista, sob condicao, no entanto, de que ele nao fixe todas essas categorias e que arrume transigGes entre elas: 0 espa- ¢o urbano pode assim se transformar em espaco de atuaciio, 0 espaco do camarim ou do publico, tornar-se uma area de evolugao para os atores. A hierarquia dos espagos € suscetivel de se transformar a qual- quer momento. O importante é definir de que ponto de vista se faz a descrig&o: de onde se assiste ao espetaculo, o que se entrevé dele, 0 que dele escapa, 0 que vero os outros do lado deles? E preciso também obser- var os limites evolutivos da area de atuagao, o lugar relativo dos ato- res nesses espagos modulaveis, a maneira pela qual se fazem e desfa- zem Os quadros espago-temporais que englobam todas as ages. Constatamos que, querendo arrumar a maior flexibilidade possf- vel na captagao dos espagos, nos dirigimos cada vez mais claramente para o conceito do espago gestual. O Espago Gestual — / E 0 espaco criado pela presenga, a posic&o cénica e os desloca- mentos dos atores: espago “emitido” e tragado pelo ator, induzido por sua corporeidade, espago evolutivo suscetivel de se estender ou se retrair. Estaremos especialmente atentos as seguintes manifestagdes desse espago gestual: * O terreno que cobre o ator em seus deslocamentos; 0 “silo” que deixa no espago uma marca de tomada de posse do territério; tal silo desaparece assim que a atengao do espectador se dirige a outro elemento da cena. Exemplo: A entrada, em Marat/Sade, dos doentes no espago carcerario, sua maneira de titubear, de tomar conhecimento desse lu- gar fechado no qual giram em torno deles mesmos; por contraste, a ESPAGO, TEMPO, AGAO 143 chegada processional e segura de Coumier, sua maneira de inspecio- nar o recinto ao tomar posse dele. + A experiéncia cinestésica do ator é sensfvel em sua percepcio do movimento, do'esquema temporal, do eixo gravitacional, do tem- po-ritmo. Dados que teoricamente s6 pertencem ao ator, mas que ele transmite mais ou menos yoluntariamente ao espectador. Exemplo (Marat-Sade): uma paciente, vigorosamente sustentada por duas “irmas”, avanga arrastando a perna; ela controla s6 parcial- mente seu corpo, endireitado pela instituigdo penitenciaria, e quando ela de repente estende um buqué de flores a Mme. Coulmier, senti- mos nos também a agress4o involuntdria e inesperada desse gesto. * A subpartitura na qual o ator se apdia (seus pontos de referéncia e de orientagio no espago, os momentos fortes que facilitam sua an- coragem no espago € no tempo) fornece um percurso e um trajeto que se inscrevem no espago tanto quanto 0 espaco se inscreve neles. Exemplo: logo na exposigio de Marat-Sade, sentimos gestualmente a trajetéria de cada um, espécie de “gesto psicolégico” ao modo de Michael Tchékhov: trajetéria sinuosa dos pacientes, martelada dos guardas, segura e felina de Coulmier, contradit6ria e esquizofrénica do anunciador. * A proxémica’ é uma disciplina bem estabelecida que informa sobre a codificag&o cultural das relagdes espaciais entre os individuos. Exemplo: a moga do buqué provoca um sobressalto em Mme. e Mlle. Coulmier, porque seu gesto é uma intrus&o na esfera privada da re- presentaco social e porque ele nao foi precedido pela aproximagao e “cumprimentos usuais. * O espaco centréfugo do ator se constitui do corpo para o mundo externo. O corpo encontra-se prolongado pela dindmica do movi- _mento. As vezes sio acessorios ou figurinos que prolongam 0 cor- po: 0 Bauhaus prende aos membros do ator bastées que acentuam e amplificam as atitudes; ou séo os véus da dangarina que visualizam sua trajet6ria e seu volume (Loie Fuller). O corpo do ator em situagiio de Tepresentagdo é, segundo a imagem de Barba, “corpo dilatado”, ou seja, que tende a expressar 0 mais forte- mente possivel suas atitydes, suas escolhas, sua presenga. Ao con- trario, a eaiaca enquadrado e a ser preenchido é centrfpeto; vai do quadro para o itidivfduo e focaliza todo movimento em um ponto central interior & cena. Espago Dramatico, Espago Cénico Mesmo que 0 espago dramidtico, ou 0 espago mencionado e sim- bolizado pelo texto, nao diga respeito andlise do espetaculo e nao 5. Edward Hall, La Dimension cachée, Paris, Seuil, 1971 144 A ANALISE DOS ESPETACULOS pertenga ao espago objetivo ou gestual, convém que se diga uma pala- vra sobre ele. Pois esse espago dramético que contém indicagdes so- bre o lugar ficticio, a personagem e a histéria contada, interfere ne- ente 0 espago « cénico. Ha especialmente uma interferéncia entre iconicidade do espago concreto e o simbolismo da linguagem. O espectador/auditor néio est4 mais em condicées de fazer diferenga entre o que ele vé com seus olhos e 0 que percebe in the mind’s eye’. E no entanto, na tradi¢&o teatral ocidental, é mantida a todo cus- to a distingao entre linguagem e cena, donde a separagio entre litera- tura dramatica e pratica espetacular. Tal distingdéo é uma primeira exclus&o do corpo em beneficio da vis&o: visio concreta do olho e sobretudo visio fantasmatica, in the mind’s eye. A visio — 0 teatron grego, por exemplo — recalca a dimensao olfativa, gustativa ¢ sobre- tudo tatil do evento teatral. Ela se afirma e se constitui por oposi- ¢ao a tatilidade, excluindo o gesto do toque e a experiéncia corporal em beneficio da experiéncia do olhar. Ao fim dessa promogio do vi- sual em detrimento ao gestual, a teoria ocidental do espetacular universaliza a dimensio visual e chega até a excluir, ou pelo menos desvalorizar, qualquer outro tipo de experiéncia sensivel. O tedrico de teatro Darko Suvin vé mesmo, nessa separagdo do olhar e da mio, uma caracteristica antropolégica de todo teatro (o que, alids, em nos- sa opiniao, nao é prova de “olho vivo”). O teatro estd enraizado no fato antropologicamente fundamental e constitutive que a posicdio pragmatica dos espectadores est especificamente separada da tatilidade: eles po- dem olhar, mas nao t8m direito de tocar. O mundo possivel no teatro é constituido central- mente pela separagiio fundamental e vivenciada pelo publico entre espago visual e tatil’. Esta tese de Suvin aplica-se aparentemente A tradi¢fio ocidental, mas de modo algum as outras praticas espetaculares que no recalca- ram 0 corpo € 0 tato. Além disso, e sobretudo, nossa hipétese seria antes que o olhar do espectador, mesmo ocidental, € sempre também um pouco “abocanhador’*: ele toca com os olhos, seu corpo s6 em aparéncia esta imével e passivo, ele mima interiormente a tatilidade e a gestualidade. Nao hai compreensdo além daquela que reage imagi- nariamente aos movimentos ¢ ativa os esquemas corporais. A conseqiiéncia dessa hipétese é que, na andlise do espaco céni- co ou gestual, nao se deveria separar radicalmente visualidade e gestua-lidade, espago objetivo e espago gestual, mas pelo contrario bus- car unidades que participam indiferentemente de uma ou de outra. 6. Segundo aexpressiio de Hamlet, literalmente “com 0 olho da mente”. 7. Darko Suvin, “The Performance Text as Audience-Stage Dialog: Possible World”, Versus, n. 42, 1985, pp. 15-16. * No original, haptique, cf. nota p. 44, (N. do T,) inducing a \ ESPAGO, TEMPO, AGAO 145 Veremos mais adiante que os cronotopos constituem conjuntos espa- ¢o-temporais correspondentes a tipos especfficos de corporalidade. J4 notamos, no exemplo da trajet6ria e da marcha dos grupos de Marat- Sade, que cada um incarna (‘‘incorpora”) uma identidade corporal e cronotépica bem especifica. H4, pois, espagos incarnados®. Outras Maneiras de Abordar o Espaco Mais do que outros tipos de espago, seria melhor falar de outros modos de abordar, de conceitualizar ou de viver 0 espaco. * Oespago textual, que nao se deve confundir com o espaco dramé- tico (a maneira como 0 texto fala do espago), é uma metéfora para -a enunciagao do texto no espago-tempo, pela sua arquitetura ritmi- ca, essa “pura configuragao das obras-primas” de que falava Copeau?. E a maneira pela qual o espectador inscreve no espaco sua recitagao do texto. O espaco interior (nada a ver com 0 espago dos lugares fechados!) € a representagio de um devaneio, de um sonho, de um sonho acordado, todos suscitados pela encenagao, dos quais podemos es- tudar 0 processo de deslocamento ou de condensacao. A cena se torna um espaco “desrealizado” suscetivel de figurar os mecanis- mos do sonho, nos quais 0 espectador poderé se projetar. E 0 caso no teatro japonés N6, quando a atuagao evoca um sonho ou um devaneio c, também nas pegas nas quais uma personagem contem- pla seu mundo interior figurado pela cena (Si l’été revenait de Arthur Adamov) ou nos momentos de evocagio visual pela ence-. nagio. * O espaco ergonémico do ator'®, ou seja, seu ambiente de trabalho e de vida, compreende a dimensio proxémica (relacdes entre as pessoas), hdptica (maneira de tocar os outros e a si mesmo), cinésica (movimento de seu préprio corpo). * O espaco da instalagdo: é conveniente descrever 0 espaco teatral diferenciando-o do espago de uma arquitetura ou de uma instala- ¢4o, particularmente levando-se em conta a presenga e os desloca- mentos dos atores. E preciso, no entanto, notar que 0 teatro se instala As vezes em um lugar ou em um prédio como uma instala- ¢4o, que € preciso ent&o levar isso em conta para se compreender o funcionamento do seu espago-tempo. 8. No sentido em que Gardner fala de bodied spaces em seu livro Bodied Spaces, Phenomenology and Performance in Contemporary Drama, Ithaca, Cornell University Press, 1994. 9, Jacques Copeau, Registres I. Appels, Paris, Gallimard, 1974, p. 199. 10. M. Pearson, op. cit., p. 151. 146 AANALISE DOS ESPETACULOS A EXPERIENCIA TEMPORAL O que constatamos para 0 espago — a possibilidade de capta-lo como quantidade mensurdvel e preenchivel ou entéo como qualidade possuida e gerada pelo ator — vale também, mutatis mutandis, para 0 tempo. De fato, ha dois tipos de experiéncia temporal, uma objetiva quantificdvel externa; a outra subjetiva, qualitativa e interior. Tempo Objetivo Exterior Eo tempo concebido como dado externo, mensurdvel e divisfvel: tempo matemiatico dos relégios, dos metrénomos, dos calendarios. No teatro, esse tempo é o da medida da duragio do espetaculo; é tam- bém 0 tempo controlado e submetido & camisa de forga da encenaciio, com seus pontos de referéncia, suas regularidades, suas repetigdes; tempo repetivel noite apds noite, gragas a uma partitura muito precisa € pouco modificavel. B também o tempo da carpintaria dramatirgica com 0s seus pontos de passagem obrigatérios (exposigdo, crescimen- to da ago, ponto culminante, queda). Este tempo minutado € facil- mente perceptivel e descritfvel, sobretudo nas suas relagdes com os signos “visiveis” da representagaio. De fato, cronometra-se muitas ve- Zes a representagéo — nem que seja apenas com 0 contador do video — para localizar a emergéncia e o desaparecimento dos signos para estabe- lecer segundo quais principios e quais regularidades a repetic’io do mes- mo € organizada em cada representagao de uma noite, retomando o que foi, mais ou menos, fixado pela encenagao. Esta gestao objetiva do tempo, esta espacializagéo mensurdével imposta como que do exterior pelo compositor, 0 encenador, ou o ator, esta evidenciagao da prosédia do texto de seu espaco textual, de seu “gesto euritmico”! caracterizam o ritmo. O ritmo é de fato “recorréncia do mesmo”!, o retorno em intervalos regulares dos tem- pos ou dos acentos ritmicos. Na encenagio, 0 espectador reconhece 0 esquema das repeticdes, dos leitmotive, da alternancia dos tempos fortes e dos tempos fracos. O ritmo nao diz respeito apenas a misica, A voz, e & gestio do tempo, mas também ao conjunto da encenagao que € a resultante dos ritmos particulares de cada sistema de signos, sobretudo visuais. E sempre instrutivo desenhar a partitura geral do espetdculo na qual figuram graficamente os diferentes sistemas com sua ritmizagdo propria: a coordenagao dos ritmos, seu paralelismo e suas redundancias, ou ao contrario suas divergéncias, e suas diferengas aparecem assim claramente. 11, Mikhail Tehékhoy, Aire ucteur, Paris, Pygmalion, 1963, 12, M, Gareia-Martines, op, elt, p. 3, ESPACO, TEMPO, ACAO. 147 Tempo Subjetivo Interior Este tempo é préprio de cada individuo, no caso de cada especta- dor, que vivencia intuitivamente a duragdo do espetéculo ou de uma atuagao, sem poder no entanto medi-la objetivamente. Esta impres- sao de duragao nao € apenas individual, ela é também cultural e liga- da aos habitos e As expectativas do ptiblico. De onde vem a dificulda- de ou mesmo a impossibilidade de se avaliar a gestéio do tempo nas obras c€nicas ou musicais externas ao nosso horizonte cultural. Para essa duragao subjetiva quase bergsoniana, ou para a avalia- ¢do temporal de uma outra cultura, nao € importante medir cientifi- camente o tempo, mas sim sentir as variagdes de seu desenrolar, as mudangas de velocidade, o tamanho das pausas. Este tempo subjetivo da variag&o € 0 do tempo-ritmo, da “inscrig&o em um tempo cronométrico determinado, de um maior ou menor ntimero de unidades’”", A determinagao do tempo-ritmo € a tarefa do ator que imprime sua marca e 0 seu tempo-ritmo interno a enunciagiio de seu texto e de seu papel. A andlise temporal da atuacao procurara anotar os mo- mentos de pausa, de siléncio, de interrupgdo da agio, assim como os meios utilizados para marcar uma desacelerago ou uma aceleracio: fluxo vocal, deslocamentos, mudancas de tempo-ritmo em relag3o a norma cultural ou ao sistema adotado anteriormente. Tempo Dramatico, Tempo Cénico Como para 0 espago, que é ao mesmo tempo o espago da repre- sentag4o (espago concreto) e o espago representado (espago imagi- nado), devemos distinguir 0 tempo da representag&o (ou o tempo cénico) e o tempo representado (ou o tempo dramiatico, aquele dos acontecimentos relatados). Para o expectador, logo chega o momento no qual a temporalidade dramatica e a temporalidade cénica (aque- la na qual ele também vive, frente 4 representagdo teatral) come- gam a se interpenetrar e a reforgar mutuamente sua credibilidade. No entanto, a temporalidade cénica permanece o elemento de refe- réncia comum para os atores e para os espectadores, elemento que atrai como um ima todo o resto, compreendendo-se af o tempo dramatico, o da fabula, e que torna concretas e ffsicas todas as acdes que se desenrolam em cena. E de fato a anunciagio cénica, o fato de utilizar concretamente, hic et nunc, a cena com atores e outros materiais, que mobilizam 0 tempo e o atualizam nas acgGes fisicas em cena. Devemos, pois, observar como a temporalidade é mobili- zada e produzida pelas agdes cénicas. 13, Boulez, Penser la musique aujourd'hui, pp. 6263, (Trad, bras. A Musica Hoje, Med, Sho Paulo, Perapectiva, 2002) 148 AANALISE DOS ESPETACULOS Poderiamos acreditar que a temporalidade € um quadro inato do pensamento. Ela é produzida na verdade dentro e pela enunciagio [...]. O presente é propriamente a fonte do tempo. Ele é essa presenca no mundo que sé 0 ato da enunciag&o torna posstvel, pois, se quisermos aprofundar essa idéia, o homem nao dispoe de qualquer outro meio de viver o “agora” e de torné-lo atual a nao ser ao realiza-lo pela insergio do discurso no mundo!, “A insergao do discurso no mundo” € aqui a disponibilizagio da cena e do aparelho teatral para produzir uma duragao, uma fabu- la, uma agao. A andlise se esforga em anotar a maneira pela qual os signos utilizados se inscrevem em uma temporalidade e uma duragdo, estruturam a representagio, estabelecendo assim a “car- pintaria teatral” (a partitura). Outro resultado dessa convergéncia, no espectador, do tempo cénico e do tempo dramatico, da objetividade e da subjetividade, do ritmo quantificavel e do tempo subjetivo: a nogdo tempo-ritmo, que devemos a Stanislévski. Termo-sintese que concilia regularidade objetiva de um tempo mensurdvel ou espacializavel, e variabilidade subjetiva de um tempo moduldvel como pode ser moduldvel a dura- ¢4o no sentido de Bergson. O tempo-ritmo da representagao marca ao mesmo tempo a linha continua da agdo (objetividade do ritmo) e as sutilezas imprevisiveis do subtexto, com suas pausas e seus siléncios (subjetividade do tempo). Tomando 0 caso de Marat/Sade: a linha geral da agao cénica continua é claramente tracada pela encenac4o ¢ seus enunciadores — “encenadores”: a manipulagido de Coulmier, sua encenagao como encarceramento, a de Sade, sua ence- nagao do “id”, a dos anunciadores, sua encenagaéo como enganaco — tudo isso resulta em um ritmo narrativo e cénico bem dominado, um quadro inibidor mas bem tragado. No entanto, no interior desse quadro ritmico, a atuagdo dos atores — pacientes — prisioneiros é sujeita a variag6es individuais de tempo-ritmo das quais parecem ter conservado 0 controle. O produto do ritmo e do tempo resulta em um filme construido segundo um ritmo bem definido, mas que reserva momentos nos quais a atuag4o teatral parece submetida aos mais diversos tempos-ritmos. A andlise deve julgar as relagdes entre as exigéncias do ritmo e as liberdades do tempo. Avaliar a gestio do tempo obriga a determinar se 0 espetaculo se dé mais como um arco temporal completo, relativa- mente fixo e apenas divisivel e estruturével como um ritmo, ou se pelo contrario, o tempo foi dividido e retrabalhado a partir de cada fragmento, sem plano ritmico anterior global ¢ fixo. Nesse tltimo caso, daremos 0 exemplo das coreografias de Pina Bausch: a ritmizagao parte dos fragmentos isolados, em vez de harmonizar o 14, Emile Benveniste, Problémes de linguistique générale, Paris, Gallimard, vol, 2, 1974, p, 83, cepa ee ESPACO, TEMPO, ACAO 149 espetaculo como totalidade controlada e fragmentavel por um core6- grafo central que organizou a priori o tempo. O resultado é um con- junto de seqiiéncias cada qual com seu préprio tempo-ritmo. A temporalidade nao € unicamente um caso de ritmo ou de tem- po, nao se limita ao desenrolar do tempo. Ela se constitui de momen- tos particulares (ou privilegiados nos quais 0 tempo parece parar & que os teéricos da arte procuraram determinar). Foi 0 caso do “instante fecundo” do qual fala Lessing a propésito da representagio estética de uma cena animada (em pintura ou em escultura, ou no quadro vivo); momento pelo qual Brecht e Barthes também se interessaram, seja na teoria do gestus ou na do terceiro sentido ou do punctun. Busca de um momento quase mistico no qual tudo se esclarecera: 0 ma do ator japonés Kabuki, momento de pausa entre duas unidades de aco no qual nao hé nem movimento nem palavra, gracas ao controle da respirag&o; 0 to no Tao coreano, di- mens&o sem comego nem fim, momento e lugar “ao mesmo tempo inomin4vel e mae de todas as coisas do universo”; ou, mais prosaica- mente, 0 momento no qual o ator cativa a atengao de seu ptiblico, o que Daniel Mesguich chama de “momento propicio”. A EXPERIENCIA ESPAGO-TEMPORAL: OS CRONOTOPOS Acabamos de constatar a dificuldade de se tratar 0 espago e 0 tempo como categorias aut6nomas, a necessidade de se aliar a enun- ciagao concreta do espago e do tempo na cena com a simbolizagao do tempo e do espago dramatico. Examinando as aliangas do tempo € do espago na representagao, esperamos evitar as observagGes frag- mentadas, sobre determinado detalhe do espago ou do tempo, para buscar compreender como a encenagio organiza “blocos” espago-tem- porais em uma seqiiéncia de agGes fisicas, na maioria das vezes incar- nadas pelo ator. O Cronotopo Segundo Bakhtin Ao tomar emprestado de Mikhail Bakhtin a nogao de cronotopo, perseguimos um objetivo ainda mais ambicioso que a simples alianga espago-temporal. Queremos determinar se esta alianga pode tomar a dimensdo de um cronotopo artistico. B 0 que o romance consegue fazer, segundo Bakhtin: criar uma figura, um simbolo a partir de da- dos concretos, encontrar uma figura, uma imagem do mundo que seja tio concreta como abstrata, que permita uma metaforizagao espacial © uma experiéncia temporal, 150 A ANALISE DOS ESPETACULOS. No cronotopo da arte literdria acontece a fusdo dos indices espagos-temporais em um todo inteligivel e concreto. O tempo se condensa, torna-se compacto, visivel para arte, enquanto 0 espa¢o se intensifica, mergulha no movimento do tempo, do sujeito, da hist6ria, Os indices do tempo se descobrem no espago, este é percebido e medido a partir do tempo!'. A estrada sera, por exemplo, um cronotopo artistico que ilustra perfeitamente um romance picaresco espanhol: ela permite a Picaro, heréi popular, deslocar-se livremente por todas as camadas da socie- dade; o tempo se concretiza em espago, e reciprocamente. Para a andlise das obras cénicas isoladas, teremos com certeza muita dificuldade para encontrar semelhantes imagens culturalmen- te codificadas (mas as encontrarfamos mais facilmente dentro de um género dado — a farsa medieval, a tragédia francesa cl4ssica, o natu- ralismo europeu etc.). O que releva da andlise estrutural da representa- Ao teatral é antes uma série de cronotopos nos quais 0 uso do tempo e do espago produz uma corporalidade especffica, vamos dart um exem- plo tirado do Marat/Sade dos primeiros minutos do filme de Brook. Logo nos primeiros quadros, a cimera mostra os pacientes de costas: sao introduzidos um de cada vez na area de atuacdo, o espaco € criado pelo deslocamento da camera; a perspectiva é a do especta- dor que avanga entre os pacientes. O cronotopo dominante é o da experiéncia sensivel que nos arrasta, queiramos ou no, ao universo carcerario; esse corpo representado é também 0 nosso: percebido ora por dentro, ora por fora, nao pode se furtar a essa descida ao inferno, desorientado pela auséncia de referéncias espaciais, tomado por um movimento inicidtico. Este cronotopo produz uma corporalidade complacente, no sentido etnolégico do tempo. Dois ou trés planos gerais nas grades que separam o palco da platéia capta o espaco globalmente, frontalmente e a distAncia; 0 pon- to de vista é fixo, objetivo, exterior. O cronotopo que fixa 0 espago € 0 de uma observagio frontal, clinica, objetiva; o olhar é como que sepa- rado do corpo, a corporalidade € cientéfica. A narra¢io filmica prossegue; agora é hora de os atores amado- res entrarem em seu papel; varios planos o surpreendem enquanto vestem seu figurino. Assistimos seus preparativos, estamos no limiar de sua personificagao, tomamos consciéncia do momento e do lugar liminal da atuagdo. O cronotopo dominante € aqui o da liminalidade e da denegagao do ator frente a seu papel: ora ele mesmo, ora jd seu personagem, alienado no sentido etnolégico, que pertence a um ou- tro. A corporalidade é ficticia (ou teatral), no sentido de um perpétuo vaivém entre representagao e realidade, ilusio e desilusao. 15, Mikhail Bakhtin, The Dialogic Imagination, Austin, University of Texas Press, 1981, p, 84, ESPAQO, TEMPO, ACAO 151 Os cronotopos dessa denegacao teatral nado devem ser confundi- dos com os da manipulagao a qual varios planos sao dedicados: mani- pulag&o manu militari, dos guardas, manipulagio mais sutil de Culmier que mantém um discurso liberal enquanto as grades da pri- sdo aparecem por um movimento de cémera. O cronotopo desses cor- pos manipulados € um de distanciamento critico; a corporalidade é do distanciamento: 0 corpo mostra e esconde, diz, 0 contrério do que parece enunciado. Cada um desses quatro grandes tipos de cronotopos produz, as- sim, um modelo original de corporeidade, corporeidade bastante “‘vo- lati!” com certeza, mas capaz também de se adaptar a situagdes novas e de renovar constantemente a experiéncia psicolégica e cinestésica do espectador. Quatro modelos de corporalidade se apresentam aos sentidos: 0 corpo vivenciado e vivenciante, 0 corpo vigiado e punido, o corpo de identidade variével por convengao, o corpo manipulado e distanciado. A anilise dessa seqiiéncia distinguiu, para cada quadro, o tipo de cronotopo e de corporalidade dominante; ela deve igualmenté levar em conta seu encadeamento e a estratégia de sua apari¢&o, o que foi tentado aqui. Assim como cada modelo de cronotopo se traduz por um modelo especifico de corporalidade para as personagens e os ato- res que Os incarna, o espectador deve, ele também, seguir esta evolu- gao mudando sempre de perspectiva e de corporalidade: é com scu corpo que ele deve provar as experiéncias espaciais, temporais, e acionais que se desenrolam diante dele e dentro dele. Daremos alguns exemplos da formago desses cronotopos obser- vando como articulam tempo, espago e agiio. Tipologia Fundamental Para confeccionar os cronotopos a receita é simples: é sé partir de propriedades contrastadas do espago e do tempo, misturar e agitar. E preciso simplesmente prestar atencdo nas proporgdes: Espaco, ‘TEMPO aberto infinito fechado limitado grande longo pequeno curto, global ininterrupto fragmentério pto el 152 AANALISE DOS ESPETACULOS Combinando pelo menos duas propriedades, obtemos cronotopos ja existentes em nossa experiéncia e nossa categorizagio do mundo, como por exemplo: * Aberto + infinito = campo livre, planicie infinita. ¢ Global + limitado = uma ilha. De maneira ainda mais sistematica, obterfamos os quatro crono- topos fundamentais seguintes, espécie de “cores basicas” da repre- sentag&o espetacular. 1. 2. Grande espago Grande espago Tempo rapido Tempo lento 3: 4. Pequeno espaco Tempo rapido Pequeno espaco Tempo lento O titulo desses quatro cronotopos bdsicos poderia ser: 1. “Megalomania”: exemplo: a entrada cavalgante dos atores nas en- cenagdes shakespearianas de Mnouchkine. 2. “Mundo em camera lenta”: 0 deslocamento em camera lenta dos atores em Le Regard du sourd de Bob Wilson. 3. “Nervosismo”: as cenas de commedia dell’arte na pequena cena em Le Carrosse d’Or de Renoir. 4, “Minimalismo”: a concentragio ¢ a imobilidade dos corpos dos dangarinos de Buté. Notemos que essa categorizacio corresponde exatamente a que propée Mikhail Tchékhov em sua busca do gesto psicolégico'. A ago gestual de fechar, por exemplo, ela pode, segundo ele, ser executada: — Rapidamente em um espago imenso. — Lentamente em um espago imenso. — Rapidamente em um espago limitado. — Lentamente em um espago limitado. A andlise do espetdculo comegard por localizar no continuum da representagdo grandes blocos que se definem por uma homogeneidade em seus cronotopos e cuja sucessio da chave da encenagao: sua dina- mica, sua Idgica, seu efeito fisico sobre 0 espectador. A Integragiio das Percepgdes O encadeamento dos cronotopos e a percepgio global dos blocos confirmam a dificuldade de se considerar separadamente os signos ¢ 16, Mikhail Tehékhoy, L'/magination eréatrice de l’acteur, Paris, Pygmalion, 1995, ESPAGO, TEMPO, AGAO 153 a necessidade de reunir percepges fragmentais para formar unidades mais completas como os cronotopos. E preciso no entanto levar em consideragao a maneira diferenciada pela qual o ser humano percebe distintamente através do ouvido, do olho, do toque e da introspecgaio mental. As menores unidades discretas que podemos discriminar so as do ouvido: as mudangas de som, as diferengas entre os fonemas, as variagGes de ritmo sio distinguidas com uma enorme precisao. A introspecgao mental de conjuntos se faz segundo unidades muito maiores e imprecisas; ela é pouco confidvel e dificilmente veri- ficdvel. A vista e 0 tato sio um pouco mais diferenciados e precisos que a introspecg4o mental, mas muito menos que o ouvido. Na maior parte do tempo desassociados (olha-se, mas no se toca) privando-se assim de uma possivel verificagaio e de uma cooperagao dos sistemas sensoriais. A integracio das percepgdes em um esquema de conjunto deve levar em conta essas diferengas e suas conseqiiéncias para a percep- ¢4o e a memorizacio do espectador. O que foi melhor e mais finamente percebido nao é, necessariamente, do ponto de vista da encenagao, o mais importante, mas tende a sé-lo para o sujeito que percebe. Encadeamento dos Cronotopos A integragdo das diversas percepgGes, sobretudo do espaco e do tempo, nao é unicamente pontual e “vertical”. Ela se realiza igual- mente no encadeamento narrativo das cenas, segundo a ldgica da fa- bula. Esta fabula nao é pois uma seqiiéncia descosida de episddios ou temas, ela constitui tema coerente de cronotopos e corporalidades. Assim, 0 comeco de Marat/ Sade analisado anteriormente localiza sistematicamente as contradigdes, os conflitos e as regras do jogo, atribuindo a cada tipo de plano uma cronotopia, uma corporalidade e uma tatica bem especifica: * Introdugdo dos pacientes, com a impressdo que o espectador faz parte do grupo ou pelo menos nao pode escapar desse engaio- lamento. * Instauragao das frentes e dos conflitos: os atores sio percebidos de longe, por tras das grades em um espago do tipo italiano que os apri- sionam e que o denuncia ao mesmo tempo esse aprisionamento, + Alusio a teatralidade, ao teatro no teatro, ao distanciamento. * Passagem a um outro tipo de distanciamento, desta vez politico; provas da duplicidade (de Coulmier, das irmas, do anunciador) e manipulag6es pelo olhar da camera, Este encadeamento, que nos confronta imediatamente a técnicas de atuagilo, estratégias © usos do corpo muito diferentes, 6 facilitado 154 AANALISE DOS ESPETACULOS por uma vetorizacao muito coerente com 0 uso ostensivo dos quatro principais tipos de vetor. Os Cronotopos na Rede dos Vetores Nessa mesma seqiiéncia de Marat/Sade destacamos as operagdes seguintes qué clarificam, orientam e vetorizam a seqiiéncia: * Acumuladores: os signos da doenga, do enclausuramento, da pri- sao se multiplicam, ndo sem ambigiiidade ¢ confusdo. E preciso esperar um pouco para embrear em niveis de leitura que vio além das aparéncias. * Conectores: varios indices que se encadeiam identificam o lugar, definem a légica da operagio, terapéutico-teatral-policial. Esta sé- rie seria: brancura das paredes / musica psicodélica / palidez dos rostos / vazio do local / instauragfio de um dispositivo de atuagao / forga mais policial do que médica / aparigio dos “monitores” (Coulmier, Sade, 0 anunciador). A conexdo deriva rapidamente para uma série de esclarecimentos que revela as aparéncias, gra- gas a indices embreadores adequados para se passar de um nivel a outro: pacientes / doentes mentais / atores amadores / simuladores / prisioneiros de direito comum / prisioneiros politicos. A cada vez, um detalhe do comportamento, da roupa ou da encenagio fflmica basta para operar a translago. * Secionantes: para acabar uma seqiiéncia e passar para uma outra totalmente diferente, a transig&o € as vezes muito seca: assim, du- rante uma mudanga de plano sonoro, ouve-se o barulho seco ¢ realista de uma chave na fechadura de uma porta de prisiio aberta por Coulmier, que vem compartilhar familiarmente 0 espago dos detentos. Todas essas operagdes tendo sido observadas, os destaques feitos, 4s hip6teses verificadas, 0 analista do espago ¢ do tempo, e das agdes nos quais se incarnam, sente a necessidade de deixar repousar um pouco as coisas: ele tem essa possibilidade ao ceder A doce paixdo do desenho: desenho dos deslocamentos dos atores ¢ dos objetos; dese- nho da partitura global da encenagio e do seu ritmo geral. Vamos tomar 0 exemplo dos deslocamentos dos atores. O Deslocamento como Vetorizagiio Os encenadores e os contra-regras conhecem bem este método grafico para anotar os deslocamentos. O computador procede do mes- mo modo ao esquematizar os movimentos. (Ver ilustragdo na pagina seguinte,) ESPACO, TEMPO, ACAO. 155 Seja qual for a técnica de anotacdo, os vetores desenhados indi- cam sobretudo: a forma e 0 tragado do deslocamento, sua duragdo e sua cronometragem, sua velocidade e as variantes de sua intensidade, o lugar reciproco dos atores no espago cénico, a forgae a energia usadas. O vetor € tanto uma trajet6ria inscrita no espago quanto um per- curso temporal ¢ ritmico. Do mesmo modo que 0 cronotopo, o vetor nao faz mais diferenga entre espaco ¢ tempo. Assim, 0 tempo seraé vetorizado, espacializado, enrolado e desenrolado, concentrado e es- palhado em um espago. Quanto ao espaco, sera “corporificado, incor- porado ou incarnado”. Alguns exemplos dessas conversées: * Um figurino voa no vento, inscreve seu trago no espaco e torna-se invisivel a passagem do tempo. * Umcendtio se desenrolacomo um filme, uma histéria em quadrinhos. * Um sotaque arrastado chama atengiio para a relagiio com 0 tempo do locutor. * Uma acio progride, para, € retomada. O deslocamento como vetorizacao permite descrever as agdes dos atores ndo mais em termos de motivacdo psicolégica, mas de tarefa fisica a ser cumprida, de esforgo a fornecer, de objeto a deslocar, em suma, de ergonomia. A Vetorizacéo Ritmica e sua Representagio Desenhar a partitura da encenagdo possui algo de ut6pico, mas é uma utopia necessdria, se quisermos representar 0 conjunto do espe- taculo segundo um sistema que integra espaco,, tempo, ag4o, corpora- lidade, ou seja, espago e tempo incarnados, sistema no qual se enxer- tam todas as outras matérias da representagao. Os diferentes sistemas significantes esto em concorréncia na Tepresentacao, mas tendem para a sincronicidade e produzem entao esta corrente Unica da representagio da qual falava Honzl!7, Se a defasagem é mantida, produz-se um fendmeno de polirritmia ou “superposi¢io de ritmos diferentes particulares com defasagem miitua dos acentos ritmicos”'’, 17, J, Honal, op. ett. 18, Definigilo de M, Honegger, Dictionnaire de la musique, Paris, Bordas, 1976, p, 820, 156 AANALISE DOS ESPETACULOS No interior de cada sistema se instalam, logo no comeco do espe- taculo, quadros ritmicos ou “trago mental do ritmo dos primeiros ins- tantes que se torna o ponto de referéncia do desenvolvimento ulte- tior”!®, Tal nog&o permite compreender a gestdo do tempo, a impressio subjetiva da duragao, da rapidez e da lentidao. Vai ao en- contro da nogdo de quadro cronotépico, de vetorizacgio, de Sinnklammer (paréntese de sentido) de Guido Hiss”. Nessas diferen- tes concepgoes, “o ritmo concerne 4 segmentag&o de um material em espago e tempo; é de natureza nao cognitiva e nao é de forma alguma acessfvel?!, A localizagao desses parénteses e desses ritmos nos leva direta- mente a uma nogio da partitura e da subpartitura do espetaculo que sera muito Util para as andlises do espetaculo. Desemboca também na trajetéria viva para os atores e para o espetdculo em geral, a partitura do espetaculo. E o que Pearson define como os pattern: [...] acstrutura explicita da representagdo como seqiiéncia, mapa do trajeto, monta- gem, conjunto de regras; e também como sobreposigiio de diversos tipos de materiais e de diferentes estilos ¢ técnicas da representagzio; como um desenrolar dos incidentes motores € suas trajetérias, de suas rupturas (mudangas bruscas de diregao), de seus nés (densidade de atividade), de seus Himiares (entrada), pausas, agdes irrevogaveis (mudanga de ambien- te) e sua decadéncia (destruigdes)”. Volta & Hipdtese do Inicio Ao termo desse percurso, que seja permitido voltar & hipdtese de inicio que nos levava a comparar o tridngulo do cronotopo teatral (tempo-espago, agao/corporalidade) e o triangulo das relacdes entre tempo, espago e unidade corporal para o inconsciente, segundo a lei- tura que Sami-Ali faz de Freud. O acaso nos oferece a encenagio do Woyzeck de Biichner por Dimiter Gotscheff no Schauspielhaus de Diisseldorf, em maio de 1994, para testar as hipdteses da psicandlise (filme transmitido no canal Arte). Segundo Freud, no psiquismo humano, 0 espago e o tempo se di- ferenciam por seu tratamento no consciente, pré-consciente e in- consciente. “A relagiio com o tempo esté [...] ligada ao trabalho do sistema consciente”® enquanto o inconsciente esta fora do tempo. Mesmo que 0 inconsciente desconhega a ordem temporal, nao poderia dispensar a simbélica espacial para expressar o tempoe dar & duragao suas figuras sensfveis, E como 19. M. Garcia-Martinez, op. cit., p. 20. 20, Guido Hiss, Korrespondenzen, Tubingen, Niemeyer, 1988. 21. Guido Hiss, “Freiriiume fur dis Phantasie”, TheaterZeitSchrifi, n. 35, 1994, p. 28. 22. M. Pearson, op. cit., p. 50. 23, Sigmund Freud, “L'Inconscient", Métapsychologie, Paris, Gallimard, 1948, p. 97, Citado por Sami-Ali, op. eit, p. 240, ESPACO, TEMPO, ACAO. 187 por outro lado o tempo est ligado ao consciente, devemos concluir que o inconsciente é atemporal porque € espacial”. Se transpusermos essas teorias do sonho para o plano da anilise do espetaculo, somos levados a reconsiderar as relagdes do espago e do tempo, segundo a pensemos de maneira consciente, pré-consciente ou inconsciente, Recapitulemos com Sami-Ali e tentemos tirar conclusGes para a andlise cénica: + “Ao sistema Cs [consciente] pertencem 0 tempo e 0 espaco reais concebidos como duas estruturas distintas, irreversivel e reversi- vel”. Se nos colocamos na perspectiva do encenador consciente do que faz, ou do espectador observando a cena de maneira conscien- te, podemos de fato distinguir 0 espago e o tempo, assim como seu modo especifico de funcionamento. + “Ao sistema Pcs [pré-consciente] correspondem amalgamas insta- veis espago-tempo nos quais espago e tempo, a meio caminho do real e do imagin4rio, sao respectivamente tidos por irreversivel ¢ reversivel, 0 tempo agindo sobre 0 espaco e vice-versa”. No ato da criag&o, o encenador organiza seus materiais no espago-tempo gra- gas a seus atores, sem saber ao certo se ele est4 sendo guiado por um senso do ritmo ou por uma visio de um espaco a atravessar ou estender; ao dirigir o ator, podera tanto lhe pedir para variar o ritmo ou se situar espacialmente. E nesse amdlgama que passaré a criatividade pré-consciente. Quanto ao espectador, aborda a andli- se cénica ora com uma varredura do olhar, ora por uma intuigao das duragdes e dos tempos, sem distinguir muito as coisas. + “No sistema ics [inconsciente] o tempo nao existe, mas sim unica- mente um espago imaginario, quer dizer corporal, cuja reversibi- lidade serve de modelo para a representagao simbélica do tempo”. Para os mecanismos inconscientes do encenador que trabalha os materiais de cena, podemos representar sua tarefa como a produ- cdo na “panela” do espaco cénico, de agSes reversiveis, podendo voltar no tempo, ir em todas as diregdes, se entregar a todas as vetorizagGes: 0 espago é tanto 0 espago cénico real como 0 espago imaginario, 0 “grande teatro do mundo”, espago que podemos re- presentar como um corpo maledvel e manipuldvel 4 vontade. Va- mos tomar 0 exemplo de Woyzeck. Um Woyzeck Anatomizado A pega é representada sobre um podium inteiramente vazio, aber- to em trés lados aos olhos do ptiblico. Quando nao representam, os 24, Idem, ibid 158 AANALISE DOS ESPETACULOS atores ficam sentados em cadeiras simples, no fundo da cena, man- tendo a ilusao de sua personagem ao repetir continuamente a seqiién- cia de gestos que melhor a caracterizam. No comego, como no fim do espetaculo, todos esto no palco, cada qual obcecado por seu “gesto psicolégico” (M. Tchékhov) repetido ad libitum. Woyzeck nao esté singularizado nesse universo, nao € 0 objeto de uma focalizagio para denunciar sua alienagdo e seus trotes. Estd antes desmontado e re- montado em cada uma das outras personagens, que Ihe servem de sucessivos alter-ego espalhados no espago comum. Nada no espaco cénico nem no desenvolvimento das cenas inscreve a pega em um meio determinado; o tempo nao decorre linearmente com o objetivo de construir uma fabula com um comego, um meio e um fim. O tabla- do nu acolhe todos os lugares imagindrios, muda de identidade pela simples gestualidade prépria daquele que Ocupa por um momento a cena e as atencdes. Nao ha légica temporal, nem dramaticidade da agao; a cena do assassinato nfo € 0 ponto culminante, Passa quase despercebida. O espago-tempo (tal como péde sonhar Gotscheff e tal como nos parece na percepgao atual ou na lembranga) é uma espécie de partitu- ra sobre a qual se espalha um corpo desdobrado em suas variantes e suas repetigdes compulsivas; é 0 corpo de Woyzeck, como que esten- dido ¢ dissecado diante de nds, fragmentado em seus parceiros, mais alter-ego que adversdrios, corpo repartido no espago-tempo como sobre uma prancha anatémica que representa os diferentes 6rgéios de um mesmo corpo social. Tal corpo coletivo dissecado é “reversfvel’”, na medida em que a vetorizagdo, sobretudo de conexdo, é deixada a critério do espectador. Este dispositivo da encenagao e sua organizacao cronotépica pa- recem corresponder perfeitamente 4 maneira como funcionam espa- go, tempo e corpo para uma andlise dos mecanismos conscientes, pré- conscientes ¢ inconscientes. O tempo, tornado ciclico e reversivel, é mesmo 0 do “fatalismo pavoroso da hist6ria” do qual falava Biichner. O templo, ciclico ¢ reversivel, imagindrio ¢ pertencente ao “reino da tepeticao”’, transformou-se em um espacgo anatémico auténomo. O corpo dos atores e o corpo da cena em sua totalidade sio mais que o cendrio: séo a mediagao entre o espago teatral (a figuracao do univer- so mental de Woyzeck) e o tempo teatral (a construgaio ciclica, fatal e pavorosa da peca). Nao sao simplesmente os corpos semioticamente legiveis, mas os corpos fenomenolégicos, corpos incarnados (no sen- tido de embodied) que atraem o espectador, seu corpo e seu inconsciente, como corpos concretos, reais, depois que 0 espago ¢ 0 tempo foram incarnados pela presenga em cena. Nessa encenagiio, a 25. SambeAll, op. cli, p, 242, ESPACO, TEMPO, ACAO 159 corporalidade e a unidade corporal nao so sustentadas por uma re- presentacdo inscrita em um lugar e um espago concreto, mas por uma figuracfio que funde o tempo, 0 espago e 0 corpo em uma representa- ¢ao do inconsciente, no caso aquele, fragmentado, de uma persona- gem, um autor, um encenador, um ator e um espectador. , Tal exemplo e muitos outros que poderiamos trazer para apoiar nossa demonstrag4o nos confirmam a importancia de uma andlise global da representagao, particularmente do espaco-tempo-acio. E, na seqiiéncia, a exposicao dos materiais da encenagéo nao diré outra coisa... 162 A ANALISE DOS LSPETACULOS rago espacial, a coreografia, a musica ec a atmosfera”!, A cronologia de nossas impressées de espectador & por certo fundamental, mas nao pode ser 0 objeto de regras absolutas: no maximo, observaremos que © espectador se impressiona primeiro pelo que € visfvel e humano, ja atuagao, depois pelos materiais mais “invasores” como 0 cenario 0s figurinos, &\por fim por aquilo que autoriza a propria percepgao: a\iluminagao. O recorte material que efetuamos é assim bastante arbitrério: nao sabgria se pronunciar sobre a pertinéncia e o nimero exatd-dos sistemas cénicos a serem distinguidos no interior da repre- sentag’io. Deus estaria nos detalhes? Em todo caso, o sentido de uma repre- sentagao de sua andlise estA com certeza nos detalhes: um fragmento aparentemente anédino afigura-se muitas vezes caracteristico do con- junto e é preciso saber reconhecer tais detalhes “insignificantes” que, muitas vezes, se abrigam em alguns elementos materiais privilegiados do espetéculo, Cada sistema significante vale por si, mas constitui igualmente um eco sonoro, um amplificador que diz respeito ent&o a todo 0 resto da representagiio. E por isso que o estudo minucioso e fragmentério de um material leva muitas vezes a uma iluminagiio que esclarece tudo, ou pelo menos uma boa parte, da obra, e insere um material em uma marchetaria de conjunto tio lisa ¢ brilhante quanto o assoalho da Galeria dos Espelhos de Versailles. Esse elogio do detalhe no deve nos fazer esquecer 0 sentido da estrutura e dos grandes conjuntos, pois os detalhes materiais que rele- varemos na andlise se inscrevem, se pretendem.tomar um sentido, em uma dindmica e uma vetorizacdo nas quais spago,\tempo) © acdes es- t4o estreitamente ligados: uma ago tem lugar-Fentarémos nao esque- cé-lo ao relatar os mais infimos vestigios de matérias que aparecem no microsc6pio que dirigimos para a representagao. Uma primeira localizagao consistiré em avaliar a proporgdo de cada material no interior da encenagao, o que obriga néio somente a quanti- ficar os sistemas significantes mas também a figurar seus limites e seus pontos de contato, Cada género possui uma partilha especffica (mas com certeza modulavel) desses componentes: se nos limitarmos aos aspectos materiais visuais ligados ao seu suporte espacial, obteremos as seguintes proporgdes aproximadas. (Ver tabela pagina seguinte.) As proporgGes sio instaveis, elas variam ao lon go do espetaculo, mas as relagGes das massas ¢ as fronteiras entre os componentes per- manecem as mesmas: Para 0 teatro psicoldgico, é preciso captar relag&o entre escamotea- mento do corpo ¢ a hipertrofia da expressdo facial. 1. Maria Shevtsova, Theatre and Cultural Interaction, Sydney Studies, 1993, p. 119. 8 OUTROS BLEMENTOS MATERIAIS DA REPRESENTAGAO 163 ‘TEATRO PsicOLGGICO "TEATRO DE BAUHAUS DANGA P6s-MODERNA cenario cenério espago figurino cs 5 figurino corpo figurino ei rosto corpo maquiagem corpo Sistema dos materiais | * Para o balé mecdnico de Bauhaus, 0 figurino tende a fazer desapare- cer o corpo dos dangarinos e o cendrio no qual evoluem: este € reduzido a um fundo colorido, aquele supostamente nao deve apa- recer, mas se trai 4s vezes (pés sob a estrutura do figurino, flexibi- lidade humana das articulagées). : * Para a dangarina pés-moderna observamos uma neutralizagao dos materiais que nao sao o corpo dos dangarinos confrontado a um espaco vazio nao figurativo. O recorte dos materiais cénicos nos sistemas significantes é arbi- trério e herdado de uma tradic&o critica; bloqueia a reflexao tedrica obrigando-o a pensar segundo categorias fixas. Mas, por outro lado, s&o sempre nossos hdbitos perceptivos culturais que nos dirigem para a valorizagao deste ou daquele detalhe ou recorte. Porém, quem é es- perto o bastante para se colocar acima de seu solo cultural, e, alias, de que serve isso, j4 que nossas percepgdes e€ nossas medidas ‘objeti- vas” sempre nos levam de volta a ele? Vamos tomar entao trés dessas categorias que herdamos (figurino, maquiagem, objeto) e tentar sim- plesmente.captar-seus contornos e sua organizacao interna. a ~ NN fi OFIGURINO \ Bini tes do Figurino EN oe tio facil dizer onde comega a roupa, e tampouco é simples distinguir ‘o-figurino de conjuntos mais localizados como as miéscaras, as perucas, os posticos, as jdias, os acessérios ou a maquiagem. E, uma operagao delicada extrair o figurino do conjunto do ator em seu meio. O que ganhamos entio na precisiio das andlises das roupas, arrisca- mos perdé-lo na avaliag&o de seu impacto sobre o resto da Tepresenta- cio. Na medida em que o figurino constitui muitas vezes 0 primeiro contato, ¢ a primeira impressao, do expectador do ator e sua persona- gem, € por ele que poderiamos comegar a descrigao. 164 A ANALISE DOS ESPETACULOS Organizagiio das Observagées Inscrevemos em geral as observagdes sobre o figurino em qua- dros que vio do mais amplo ao mais estreito: * O mais amplo quando as relacionamos a encenagao, verificando se confirmam ou infirmam os outros dados materiais do espetéculo, qual é o “Costume Design”, a encenaciio dos figurinos que foi es- colhida. * O mais estreito quando descrevemos sua fabricag4o e quando ten- tamos estabelecer como os atores se investem deles e os vivenciam. Como todo kigno da representacao| o figurino é ao mesmo tempo significante (pura materialidade) e significado (elemento integrado a um sistema de sentido). B assim mesmo que Barthes encara o “bom figurino de teatro”: ele “deve ser material o bastante para significar e transparente o bastante para nao constituir seus signos em parasitas...”7, As Fungiées dg Figurino de Teatro Gragas as reflexdes de Brecht e de Barthes conhecemos muito melhor a patologia dos figurinos de teatro que sua semiologia. As doengas dos figurinos de teatro sfo tao freqiientes e endémicas que suas Categorias so titeis para a andlise comum do espetaculo: seja ela arqueolégica,-histérica ou estetizante, a doenga ‘revelauma tendéncia fundamental de toda encenagiio. As grandes fungdes db figurino sao: * A caracterizagao: meio social, época, estilo, preferéncias indivi- duais. * A localizagao dramattrgica para as circunstancias da agao. + A identificagao ou o disfarce da personagem. * A localizagéo do gestus global do espetaculo, ou seja, da relagio da representagao, e dos figurinos em particular, como universo so- cial: “Tudo o que, no figurino, confunde a clareza dessa relagao contradiz, obscurece ou falsifica 0 gestus social do espetaculo, é ruim; tudo o que, pelo contrdrio, nas formas, cores, substAncias e seu embricamento, ajuda a leitura desse gestus, tudo isso é bom”. a ~ O Figurino eo Resto ~)_, ‘Oo figurino e 0 corpo / O figurino é téo vestido pelo corpo quanto o corpo é vestido pelo figurino. O ator ajusta sua personagem, afina sua subpartitura 2, Roland Barthes, “Les maladies du costume de thédtre"’, Evsais critiques, op, cit, p. 61, 3, Idem, pp, 53°54, Thre eesessennt? OS OUTROS ELEMENTOS MATERIAIS DA REPRESENTACAQ, 165 ao experimentar seu figurino: um ajuda o outro a encontrar sua iden- | tidade: Uma manga muito larga ou muito estreita, muito longa ou muito curta, pode modificar a projecio cénica de uma personagem, exigir de um ator uma modifica- | ¢Ho onde sua atitude que provoca em seguida invengdes-construgdes para o figuri- no € assim por diante*. Descrever a atuacdo obriga a captar o ajustamento da gestualidade edaroupa. Nos manuais de retérica dos séculos XVI ao XIX, as ilustra- Ges reproduzem o plissado das togas dos tragicos, o que contribui } enormemente para a caracterizacao da atitude e da emogiio. (Foto pa- { gina seguinte.) | Seja o retrato do dangarino de Buté, Kazuo Ohno: 0 rosto ¢ 0 vestido apresentam 0 mesmo aspecto amassado e frégil: o figurino € uma extensao do corpo fragilizado do dangarino e de sua personagem, a Argentina, e, reciprocamente, o travestimento deixa ver 0 corpo do velho e o da grande dangarina a qual ele presta a homenagem. Quanto a nudez, nao é o grau zero do figurino — seria antes 0 figurino que, por sua familiaridade e sua adequagdo aos nossos valo- res, representa o grau zero. A nudez pode acolher todas as fungées: erotica, estética, “estranheza inquietante” etc. (Foto p. 167.) O corpo aparentemente nu, que esté deitado numa espécie de menir — pedra tumular ¢ jacente — parece tao mineral e inerte quanto a pedra que o sustenta e parece té-lo engendrado: o figurino (ou 0 corpo de uma rigidez cadavérica) se dissolve no conjunto da cena, limita-se a amplificar a atitude do corpo e 0 insdlito do lugar. | / figurino e o espago O figurino é muitas vezes uma|cenografia ambulante] um cenario trazido & escala humana e que se desloca com 0 ator. Um cendriofi, igu- _rino como o chama a figurinista Claude Lemaire’. Algumas formas de danga tradicional oriental, como a danga balineza ou a Opera de Pequim, concentram no cendriofigurino uma riqueza que torna supérfluo qualquer caracterizagio do espago cénico que permanece vazio para melhor acolher a coreografia e 0 canto. Pode-se notar os contrastes absolutos entre figurino e espago: 0 figurino hipersignificante e codificado da Opera de Pequim ou da commedia dell’arte evoluem em espago vazio; ou, ao contrario, 0 cor- po.nu e vazio do dangarino de Buté é S captado em um ambiente normal “pleno” (paisagem ou cidade). Onge we vf yt i 4, Giorgio Strehler, em Georgi anu, Le Costume de thédire dans la mise em * seéne contemporaine, Paris, CNDI ba p. Ihe 5, Bm G, Banu, op, elt, p. 166 A ANALISE DOS ESPETACULOS Kazuo Ohno em La Argentina | A cada elemento da encenaciio corresponde uma fungao signi- ficante do figurino que a anélise se esforgard sistematicamente em relevar. Assim, no continuum espago-tempo-agao-luz: * O figurino preenche e¢ constitui um espago, nem que seja apenas pela maneira pela qual valoriza 0 corpo em seus deslocamentos. OS OUTROS ELEMENTOS MATERIAIS DA REPRESENTACAO 167 * Ele se estende mais ou menos, podendo materializar uma época, mas também um ritmo e uma maneira de voar ao vento. ° Ele participa da agao, sempre colado na pele do ator, ou transporta- do em um volume cinético, sempre vestido pelo ator, a ndo ser que se transforme em uma crisdlida abandonada por ele. * Ele capta mais ou menos luz, estruturando e ritmando as mudangas de intensidade luminosa. Figurino do Performer, Figurino da Personagem. Antes mesmo de descrever e interpretar o figurino de um espeta- culo, é bom se questionar como foram elaborados: seriam eles prove- nientes de uma tradig&o imutavel que fixou e que rege o uso do figuri- no, como na maioria das tradigdes de atuagdo e danga orientais, ou ent&o foram eles criados inteiramente por um figurinista, em fungio das exigéncias especificas da peca e do papel, para servir uma encena- ¢4o original, no sentido ocidental do termo? No primeiro caso, trata-se do figurino do ator-dangarino (do performer): ba pouco a se dizer sobre isso sendo de maneira hist6ri- ca para determinar o que conduziu a tal corte, a tal colorido, a tal de- talhe. No segundo caso trata-se do figurino préprio da personagem, no interior da ficgio e em consideragao a situagGes das personagens. Po- derfamos entdéo — como a respeito da atue gio = falar do estilo dos figurinos: clés ralista, simbolista, épico ete, ), do espago ou da encena- fintico, realista, natu- 168 A ANALISE DOS ESPETACULOS v7 _ Vetorizacgao dos Figurinos aan Toda a descrigao yerbal dos figurinos que mostra as nuangas den- tro de sua fungao é ttil, mas talve: iciem la se perde nos detalhes e no deixa aparecéro “s “sistema da moda” que regula seu uso. Por isso, vamos propor classificd-los sei segundo a tipologia dos se- tores ja exposta: Exo ba Meronimia J Eixo DA METAFORA 2. Conectores 1, Acumuladores 4. Embreadores 3. Secionantes Vamos tomar o exemplo do Marat/Sade de Peter Weiss no filme que realizou Peter Brook em 1966 ¢ examinemos a fungao dos figuri- nos no conjunto da encenagao. Figurinos como vetores-acumuladores A localizagéo das personagens, bastante numerosas nessa peca, exige que o espectador identifique os grupos em conjuntos claramente definidos. O uso das roupas implica ent&o uma repeti¢ao, uma confir- macio e uma acumulagiio dos indices discriminatérios, como por exemplo: — — roupas ou\roupas de baixo brancas dos pacientes; — figurinos superteatralizados, ou seja, escandalosamente coloridos dos quatro cantores; — roupa de noite da familia Culmier (estilo Império) etc. Figurinos como vetores-conectores, Os indices suficientemente acumulados, o espectador tenta se localizar nas oposigdes mais marcadas, ler uma roupa em relagao as outras, captar os sistemas das regularidades que fazem 0 efeito de uma conexdo ou de uma desconex4o. Aqui, nao é, por exemplo, pertinente, distinguir pacientes, alienados, prisioneiros de direito comum e prisio- neiros politicos. Por outro lado, as roupas permitem reconhecer.a dife- renga entre prisioneiros e guardas ou entre atores amadores dirigidos por Sade e a boa sdciedade napolednica que veio observd-los. A cone- xo se faz termo a termo, um detalhe do figurino remetendo a um outro detalhe de um outro fig igurino, ou entao, um estado de de Tino preparando 0 © seguinte: @ enirada dos pacientes ‘corresponde assim a tentativa de saida dos prisioneiros no final do filme. Um observador 6, Ronald Barthes, Le Systéme de la made, Paris, Seuil, 1967, | | | | Nvo OS OUTROS ELEMENTOS MATERIAIS DA REPRESENTACAO 169 treinado notaré esses indices sistematicamente colocados pelo figuri- nista visando a facilitar a trama e a percepgiio das mudangas. Figurinos como vetores-secionantes SS Durante as mudangas bruscas na ag4o, notamos sempre uma mo- / dificagdo na aparigfio dos figurinos. A aparigao da familia Culmier em roupas de aparato 4 moda do Império vem, por exemplo, interromper bruscamente a série dos retratos de pacientes vestidos em trapos, que nao situa uma ac4o em hist6rico preciso, mas significam antes a alie- nagiio sob todas as suas formas e em todas as épocas. A aparigio de Sade, depois a dos cantores, é parcialmente marcada por uma mudan- ga de aparéncias, em todos os sentidos do termo. Figurinos como vetores-embreadores O sistema de correlagao dos figurinos nao € somente interno 4 ficgdo, ele garante a transigao de um universo ficcional para outro; € muitas vezes 0 caso quando um figurino possui alguns indices que facilitam a passagem de uma época para outra: globalmente, os figuri- \ nos da época revolucionéria e napole6nica se transforma sem dificul- X\ dade em alusées a qualquer época na qual os prisioneiros sao trancafiados, sobre © pretexto de uma reabilitagao psiquica e fisica: o doente amnésico 6u letdérgico transforma-se em um alienado ou em um detento assim que suas roupas s&o filmadas e apresentadas com os poucos fndices necessarios. Indices vestimentéri m| ortamentais convergem para garantir as “ransigdes, as alusdes & diz sim, sequer é necessdrio aqui que, como na famosa versio 3 do Tartufo montada por Planchon, os homens de lei estejam vestidos como. CRS* para que as alusGes, as lutas dos anos de 1960 se tornem transparentes> O figurino transborda naturalmente para 0 corpo do ator e tudo o : que o cerca; ele se integra ao trinmio fundamental da representagiio® (espago-tempo-agao) iluminando assim sey movimento. ae 2 Sobre os tablados [dizia o cendgrafo, Gischia], formas e cores representativas de uma personagem esto em movimento. Hlas se déslocam em um espago de trés dimen- sdes segundo um ritmo que, convenientemente regulado, deve ter o rigor € a unidade de um movimento musical. Assim o figurino deixa de ser um disfarce ¢ torna-se um ele- mento essencial do movimento dramitico. . Mais seguro e concreto que qualquer outro sistema significante Xe da representaco, 0 uso dos figurinos bascia-se em observagoes verifi- 8 cAveis, a partir de as de signos estritamente codificadas. E_por isso que a a abordagem funcionalista da semiologia € especialmente apta _para_a_andlise dos figun figurinos, O figurino €, no teatro, um embreador * Polfeia politica francesa contemporfinea (N, do T.). 170 A ANALISE DOS ESPETACULOS natural entre a pessoa fisica e privada do ator e a personagem da qual ele veste a pele e os aparatos. [Perfeito agente duplo, ele é levado por um corpo real para sugerir uma personagem ficticia: podemos assim aborda-lo a partir do organismo vivo do ator e do espetéculo, ou en- to, a partir do sistema da moda que ele transmite da maneira mais precisa possivel, tao precisamente quanto uma ma marionete\(a qual é muito mais confidvel que a carne e a emocao hhumanas). O figurino de teatro é, de fato, ao mesmo tempo, vestido (ou investido) pelo ator e concebido externamente pelo figurinista e encenador. Sua descrigio imp6e entao ao espectador um duplo olhar, ao mesmo tempo existen- cial (“como o ator se vira com isso?”) e estrutural (“o que isso vira para a produgao global do sentido?”). A MAQUIAGEM O Maquiado e 0 “Montado” Ocenario colado ao corpo do ator se torna figurino, o figurine que se inscreve em sua pele se torna maquiagem: a maquiagem veste tanto o corpo como a alma daquele que a usa, daf sua importancia estratégica tanto para a sedutora, na vida, como para 0 ator, no palco. No teatro tudo € maquiado e mesmo “montado”: 0 rosto e o corpo tém sempre algo a esconder, como que para se vender melhor. A maquiagem nio é, no entanto, uma extensao do corpo como podem ser a mascara, 0 figurino ou 0 acessério. Nao é tampouco uma “técnica do corpo”, uma “maneira com a qual os homens sabem utili- zar seu corpo”. E, melhor dizendo, um filtro, uma pelicula, uma fina membrana colada no rosto: nada est4 mais perto do corpo do ator, nada melhor para servi-lo ou traf-lo que esse filme ténue. Topologia do Rosto A primeira dificuldade para quem tenta descrever a maquiagem dos atores é a de 1é-la em relagio ao rosto que a usa. De certo modo, é tao dificil distinguir os tragos verdadeiros do rosto humano e a pintura que os retrabalham, os mascaram ou os transformam do que distinguir a espontaneidade de uma expressio e as “maquinas da 6pera” que acionam essa expressao aparentemente natural (para retomar a ima- gem de Marivaux). Os fisionomistas elaboraram teorias das emogoes legiveis a partir do rosto humano. As formas codificadas do teatro, da farsa a um me- 7, Maree! Mauss, Soetologie et anthropotogie, Paris, PUP, 1950, p, 365, OS OUTROS ELEMENTOS MATERIAIS DA REPRESENTAGAO, 171 lodrama, fazem grande uso disso e 0 espectador que possui os cédigos de atuag&o nao tem qualquer dificuldade para ler as motivagdes das personagens. Assim, é importante que o espectador saiba reconhecer o que faz funcionar o rosto e que ele tenha uma nogao de sua topologia. Dumezil e Dagongnet® (e antes deles, Delsarte?) distinguem trés ho- mens que correspondem a fungées e a emogées diferentes e as quais poderiamos dar os exemplos teatrais seguintes: * aboca, a mandibula inferior esto ligadas a fung&o nutritiva, o arle- quim guloso tira daf uma grande parte de sua identidade. * oolhar, as bochechas sao o centro da fungao respiratoria, do folego e das emogGes. Todos os atores conhecem bem a importancia de um félego preciso aliado a um olhar bem colocado. * a testa é o lugar da contemplacao e da teoria: os mondlogos da teflex&o parecem focalizar a atengiio na testa e as fungdes superio- tes do ser humano. Tragos e Fungdes da Maquiagem Ao interpretar a maquiagem nos esforgaremos nao apenas para descrever a técnica e 0 tragado, mas também para compreender como ela modifica e até mesmo constitui 0 corpo humano e o imaginario ligado a isso. E preciso avaliar a funcdo simbélica que ela preenche em dado momento da espetacularizagio do corpo. Alguns casos de figura freqiientes poderdio assim ser apontados. Acentuagao, reforgo dos tragos Por causa da distancia, os tragos expressivos devem ser aumenta- dos de maneira a parecerem naturais, mesmo longe do palco. A pers- pectiva e a escala desse aumento podem assim ficarem deformadas e 0 observador deve entao permanecer consciente dessa convengao céni- ca 4 qual nao se submetem o teatro de cimera ou 0 cinema. S6 os especialistas do cosmético saberao apreciar quais produtos foram uti- lizados (estes se renovam muito rapido assim como 0 equipamento militar). O uso de mascaras em latex que restituem a tessitura e a elas- ticidade da pele aumenta a ilusdo, um bom conhecimento dos jogos e dos efeitos de luz sera indispensavel para julgar a maneira com a qual a arte facial nao deixa nada para o acaso. Segundo a estética da ence- nagiio, a maquiagem terd uma tendéncia para servir 0 verossimil das situagdes (uso realista ou naturalista) para reproduzir mimeticamente os rostos das personagens, ou pelo contrério, para‘sublinhar seus prdéprios procedimentos, a se tornar um fim em si, uma pintura facial ou 8, Citados por Dominique Paquet, Alchimie du maquillage, Paris, Chiron, 1989, p. 96, 9, Frangois Delsarte, Une anthologie, Paris, La Villette-IMEC, 1992,

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