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Curitiba
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2008
Monografia apresentada à
Universidade Federal do
Paraná como requisito parcial
para a obtenção do grau de
Bacharel em Ciências Sociais.
Curitiba
2008
RESUMO
A presença de uma Cultura de Medo no ambiente escolar, interagindo com os mecanismos de reprodução
escolar, tende a ter efeitos importantes sobre os agentes da instituição escolar. Representações sociais
provenientes dessa cultura de medo, ligados a sentimentos de incompreensão e desprezo por alunos cujas
famílias ocupam uma posição outsider podem levar à estigmatização e a decorrende criminalização de
determinados alunos, que estão em vias de construção de identidade.
PALAVRAS CHAVE
Estigmatização, criminalização, escola, construção de identidade, violência
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Ludwig Wittgenstein
Agradecimentos
Agradeço também à Prof.ª. Dra. Marlene Tamanini e à minha amiga Neli pela compreensão
e apoio às crises que as sociologias desconfortáveis provocam e sua cumplicidade;
Agradeço especialmente aos meus alunos que me apontaram, à sua maneira, as limitações
da instituição da qual fazíamos parte.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 8
CAPÍTULO 1
A CULTURA DE MEDO VAI À ESCOLA 12
CAPÍTULO 2
ESCOLA E REPRODUÇÃO SOCIAL 17
CAPÍTULO 3
ESTIGMATIZAÇÃO EM SALA DE AULA 24
CAPÍTULO 4
CRIMINALIZAÇÃO E CONTROLE SOCIAL 30
CONSIDERAÇÕES FINAIS 37
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 40
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INTRODUÇÃO
A partir de então, sem o vínculo do Projeto Não Violência, passei a pesquisar sobre o
assunto. Por meio do material coletado anteriormente, minha hipótese era de que agentes da
instituição escolar (professores, funcionários, etc) poderiam estigmatizar alunos. No sentido de
verificar de que modo isso ocorria, me tornei professora da Rede Pública Estadual, com vínculo
PSS. Meu foco então seria de verificar de que modo essas estigmatizações acontecem, o motivo
de ocorrerem e que efeito provocam nos alunos que sofrem esse processo. Os alunos observados
tinham entre 12 e 17 anos, e cursavam os ensinos Fundamental e Médio.
Partindo da idéia que de haveria um processo de estigmatização fundados em algumas
características dos alunos - o que encontramos na primeira parte da pesquisa, como o fato de
alguns professores sentirem medo de alunos maiores, ou ainda, um intenso desconforto frente a
alunos que a eles pareciam sujos - entre outras situações, a intenção era verificar de que modo eu
tenderia a não reproduzir aquilo que observava sendo reproduzido: um distanciamento entre
alunos e professores causado pela objetivação de distâncias sociais, o que teria uma série de
implicações não só para a educação formal do aluno, mas também para aquela presente na
composição de um currículo oculto, que segundo (Bernstein apud Silva, 2002), é aquele que
"embora não faça parte do currículo escolar, encontra-se presente nas escolas
através de aspectos pertencentes ao ambiente escolar e que influenciam na
aprendizagem dos alunos. Na visão crítica, o currículo oculto forma atitudes,
comportamentos, valores, orientações etc., que permitem o ajustamento dos
sujeitos às estruturas da sociedade".
sobretudo, se relacionar e cumprir sua função de educador diante das alteridades que viriam a ser
encontradas.
A ocasião escolhida foi a Semana Acadêmica de Pedagogia, realizada na última semana
de setembro de 2008. Assisti a uma sessão de exposição de Painéis sobre O Novo Perfil do
Estudante de Ensino Médio do Paraná, que me permitiu verificar em que medida existe um
esforço de desconstrução da idealização de alunos e um princípio de categorização mais
adequada das diversas populações e dos diversos contextos sociais atendidos pela instituição
escolar no estado do Paraná. No entanto, foram escassos os painéis, mesas e oficinas que
problematizassem a formação do profissional dialeticamente orientada pela prática, ainda que
seu conteúdo tenha sido uma grande fonte de material para verificar em que medida são feitas
essas discussões na área.
Na contramão dessa tendência, a pesquisa desenvolvida na Universidade Estadual de
Maringá por Adriana Tessaro, no campo da Educação, revela os efeitos de um preconceito
gerador de estigmas como problema na formação de professores. A autora, a partir de casos de
dois alunos, demonstra como a exclusão da participação escolar é refletida nas representações
que alguns professores fazem deles e sua família. Segundo a autora, era evidente que “a
violência familiar aludida pela escola/professora estava relacionada à percepção da
instituição e de seus profissionais de que essas crianças sofriam negligência familiar, uma
extensão, sem dúvida, da violência”, e ainda, que “crianças são visivelmente rotuladas por não
pertencerem ao modelo nuclear de família”. No entanto, nessa pesquisa, as crianças não foram
entrevistadas.
A produção sociológica sobre o assunto da violência escolar têm crescido ano a ano por
conta da crescente demanda pela mesma. Entretando, a maioria dessas produções na sociologia
partem do aluno como uma tábula rasa, algo ou alguém a ser reparado e disciplinado. Nesse
sentido um modelo de produção sociológica que inverta o foco de análise considerando a
construção de identidade do aluno tem validade porque propõe uma tentativa diferente de pensar
a escola e seus mecanismos de funcionamento, tendo a indisciplina e sua criminalização como
fatos que ilustram falhas a serem reparadas, ao contrário das proposições de reparação dos
indivíduos que promovem a “entrada da violência” em ambiente escolar.
Nosso trabalho, portanto, é uma tentativa de como pensar a exclusão e marginalização a
partir do ambiente escolar, mais precisamente a partir do espaço da sala-de-aula, levando em
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semana. Dados do Censo Escolar de 2006 apontam, naquele ano, um número de 42.189.483
matrículas no Ensino Fundamental e Médio, em 727.191 turmas. Se forem mantidas as proporções
para o ano de 2008, três casos de agressão escolar em uma semana não têm relevância estatística,
sobretudo quando um dos três casos foi o fato de um aluno ter cortado um pedaço do cabelo de
uma professora. Ainda, na mesma reportagem, apresentou-se o dado de que 83% dos professores
gostariam que fossem tomadas “medidas mais duras em relação ao comportamento de alunos,
como a expulsão da escola”, algo que não é permitido por lei.
Pode-se dizer que a violência escolar garante audiência. Garante audiência ao passo que
intimida professores, pais e alunos em suas atividades diárias, retirando sua tranquilidade e seu
sentimento de segurança, criando, automaricamente, mais demanda por informações, porque
geralmente inconclusivas, as reportagens sobre o assunto carregam grandes questões que
precisariam ser resolvidas, como as possibilidades de uma essência e uma patologia agressiva, de
condições econômicas e genéticas para a agência criminosa, entre outras. Além disso, a mídia
difunde alguns trechos de reportagens que apesar da aparente superficialidade, carregam, em si, a
profundidade da própria relação do medo e de acontecimentos noticiados: “O colégio já não é mais
um lugar seguro para nossos filhos. Fico sempre com medo de acontecer algo”1.
A indefinibilidade de elucidar pontualmente (medo de acontecer algo) o que poderia
colocar a segurança dos alunos (e filhos ) em risco em parte demonstra como a mídia explora essas
“lacunas de informação”, que são fundamentais para que os indivíduos que têm contato com a
reportagem imaginem-se em constante risco, sobretudo porque esse risco parece ser dificilmente
delimitável, tanto pela mídia, quanto por eles mesmos. Essa dicotomia ausência/presença de
informação relacionada a casos de violência aprofunda ainda mais o sentimento de insegurança,
que nada mais é que um sentimento constante da presença de riscos à integridade humana.
Diante de uma complexa trama de condições que influenciam a produção de representações
sociais e as concepções de mundo que a sociologia permite identificar, somadas à influência da
mídia, defendemos a importância dos debates, pesquisas e discussões que permitem evitar uma
visão inflacionista da violência (Debarbieux apud Bonnafé-Schmitt). È nesse sentido que dados
levantados por pesquisas do Projeto Não-Violência na Escola Municipal Omar Sabbag em Curitiba
demosntrou que casos de agressão física e até mesmo verbal no interior da escola são raros,
contrariando expectativas de alunos, pais e professores que acreditam estar relacionados a uma
1
[http://www.nota10.com.br/noticias_parana/arquivo/2006/junho/12.html#javascript;];
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escola muito violenta. Há, sobretudo, mais expectativa da ocorrência de atos violentos do que a
presença efetiva dos mesmos, confirmada pelos próprios indivíduos.
Dada a intensa sensação de mal-estar pelos riscos de violência, a prática profissional dos
professores tende a sofrer severas influências: em uma entrevista, uma professora declarou que
tinha medo de pedir para um aluno se sentar, porque por ser maior do que ela, ele a poderia agredir
facilmente. De um lado oposto, na perspectiva dos alunos, suas práticas diárias têm influências
diretas de representações da violência – mesmo que em sua negação: são comuns depoimentos de
alunos que consideram projetos culturais e esportivos como um meio que potencialmente os
libertaria dos riscos da violência, do crime e das drogas.
Nesse contexto pode ser compreendida a afirmação de Jean Delumeau (1990, p.26 ), quanto
trata do Conceito de Angústia, cunhado por Kierkegaard: “é impossível conservar o equilíbrio
interno afrontando por muito tempo uma angústia incerta, infinita e indefinível, é necessário ao
homem transformá-la e fragmentá-la em medos precisos de alguma coisa ou de alguém. “O
espírito humano fabrica permanentemente o medo” para evitar uma angústia mórbida que
resultaria na abolição do eu”. No caso da professora acima citada, todo o seu medo é objetivado no
aluno.
No caso dos alunos, eles mesmos passam a acreditar que sem essas políticas específicas de
torná-los ocupados, poderiam passar a agir violentamente. Isso ocorre porque é com relativa
persistência que são atribuídas a populações específicas uma alta probabilidade de envolverem-se
em atividades criminosas e violentas, padrão que tende a ser reproduzido no ambiente escolar. Em
geral, opiniões que encontram em condições econômicas a determinação para as ações
consideradas violentas têm grande aceitação na escola e criam, no entanto, um grave impasse: em
escolas que atendem alunos que provêm de famílias de baixa renda, o sentimento de insegurança
tende a ser maior.
Em uma reportagem publicada no website da Associação dos Professores do Paraná – APP,
uma lista das dez escolas mais violentas de Curitiba - Escola Estadual Arlindo Amorim (Curitiba);
Escola Estadual Papa Angelo (Almirante Tamandaré); Escola Estadual Flávio Cordeiro da Luz
(Curitiba); Escola Estadual Anibal Cury Neto (Curitiba); Escola Estadual Santa Rosa (Curitiba);
Escola Estadual Alfredo Paródia (Curitiba); Escola Estadual Marly Braga (Piraquara); Escola
Estadual São Cris tovão (Piraquara); Escola Estadual Domingos Zanlonrenzi (Curitiba) – é
precedida da afirmação de que embora “não sejam poucas as histórias contadas por docentes”,
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“ainda não há dados específicos”. Mais adiante, é citado o caso da escola Hildebrando de Araújo,
em Curitiba:
Embora faça-se a distinção estatística de que menos de 30% dos moradores da Vila das
Torres pertençam a gangues, a relação de violência externa proveniente da Vila das Torres é
estabelecida pelo diretor da escola, dado que segundo ele, são parte dos moradores da Vila das
Torres “os responsáveis por esses problemas na escola”.
Segundo Edmundo Campos Coelho, em seu artigo A Criminalização da Marginalidade e a
Marginalização da Criminalidade, o autor defende que
Logo, um dos caminhos mais comuns para que se possa identificar as origens da violência
no ambiente escolar se baseia numa provável identificação da população que a comete. Essa
posição, embora pertença a um discurso hegemônico sobre os agentes da violência, também
encontra contraposições. Em um artigo para o jornal Edição Pedagógica, da APP-Sindicato de 30
de agosto de 2007, Janeslei Aparecida Albulquerque defende uma abordagem histórica para o
problema da violência e sua inserção na escola.
Segundo a autora, “Quando comentamos a violência presente hoje em nossas escolas
muitas vezes a desvinculamos da que se reflete nas ruas e nas relações políticas das potências
imperialistas que banalizam o uso da força (...) Essas reiteradas práticas políticas produzem
cultura, produzem modelos de comportamento e produzem valores”. Mais adiante, defende que o
ambiente escolar “é um espaço de condicionamento e de reprodução da cultura dominante, mas
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também pode fazer e faz uma reelaboração [desses] elementos culturais”. Portanto, não se pode
considerar unânime entre professores uma atribuição de relação de causa e efeito entre fatores de
renda/classe e a produção de atos de violência.
Acreditamos, no entanto, que a defesa dessa relação renda-violência no interior do
ambiente escolar deve ser debatida a partir de dois pontos: o primeiro, de que a noção de violência
quando problematizada, relativiza sua agência, podendo assim desconstruir determinismos de
classe – incluindo pertencimentos de raça e etnia - sobre a ação violenta; segundo, que uma
espécie de etnocentrismo tende a classificar como violentas as ações que não tem intenção de
causar algum tipo de dano físico ou moral a outrem, visto que são ações corriqueiras, fundadas em
outras maneiras de ser, agir e pensar, condensadas em diferentes experiências sociais.
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Dado que “o professor leva para a sala de aulas seus pontos de vista sobre a tarefa, seus
preconceitos, seus medos e insuficiências pessoais, suas ambições, sua humanidade e disposição”
(Mannheim, 1963), a primeira experiência do primeiro dia do professor de ensino fundamental ou
médio em sala-de-aula é sempre comentada, porque é a situação-limite em que uma relação
conflituosa inaugural entre fato e valor é estabelecida na atuação profissional do professor.
Em geral, os próprios professores apontaram em seus depoimentos, majoritariamente, para
o fato da ineficiência da preparação para este dia, ou talvez para toda a prática profissional. Relatos
que lamentam a estrutura escolar são muito comuns, e se baseiam em críticas às baixa
remuneração, às instalações físicas, à ausência de recursos de mídia e à conservação do mobiliário
e principalmente à escassez de livros, até mesmo livros didáticos. No entanto, condições físicas são
superadas por outro tipo de dificuldade que acomete a categoria: a condição dos próprios alunos.
São também significativos os relatos de professores que se sensibilizaram de forma extrema com a
condição de saúde e das vestes dos alunos, impossibilitando a continuidade de seu trabalho.
Diferentemente do tipo ideal de aluno, geralmente por eles consolidado durante sua
formação acadêmica, os professores encontram alunos, indivíduos com os quais eles dificilmente
encontrariam e interagiriam em outros espaços sociais, que não sejam espaços públicos, hoje
tendendo a sofrer pesados processos de contração. Essa situação pode ser pensada em consonância
com o modelo construído por Pierre Bourdieu em La Distinction, também analisado em Razões
Práticas: Sobre a Teoria da Ação. Sobre o modelo por ele proposto na primeira obra, o autor
defende na segunda que (2007, p. 24)
Portanto, de acordo com suas proposições, poderíamos compreender a escola que está em
“ambiente de risco” como uma instituição que promove uma improvável aproximação de agentes
sociais distintos nas figuras de aluno e professor porque procedem de experiências sociais de
classe distintas objetivadas em maneiras de ser, agir e pensar, condensadas em seu conceito de
habitus. Ainda segundo Pierre Bourdieu, “Os habitus são princípios geradores de práticas distintas
e distintivas (...) Estabelecem as diferenças entre o que é bom e o que é mau, entre o que é distinto
e o que é vulgar” .
A noção de habitus no interior da instituição escolar, acreditamos, deve ser pensada não
em si mesma, mas numa relação com princípios de hierarquia institucional socialmente orientada.
A posição hierarquicamente privilegiada dos professores a eles confere uma influência que não
somente diz respeito à autoridade da difusão legítima de conhecimentos outorgada pela validade de
seu diploma (Weber, 1971), mas também da atribuição legítima do estabelecimento das regras de
convivência e comportamento, identificáveis por antagonismo às noções de indisciplina, bagunça
incivilidade, no caso da sociologia francesa, ou até mesmo, em casos extremos, às noções de
violência.
A desatribuição de educação e “interesse” aos alunos pode passar por vários conteúdos de
argumentação. Temos relatos, por exemplo, de professores que defendem que “os alunos não
sabem mais ouvir música clássica, não sabem mais apreciar arte”. Claramente presa à contextos
escolares passados, carregados de nostalgia, o trecho demonstra que os gostos culturais dos alunos
não são mais os ideais. Disso podemos tirar duas reflexões: a primeira, de que os alunos já
souberam ouvir música e apreciar arte e que estão submetidos a um processo de “empobrecimento
do espírito” – o que nos remeteria a um momento anterior à democratização do ensino; a segunda,
de que seria apropriado que os alunos ouvissem música clássica.
Partindo da idéia de que os gostos são socialmente construídos e que os professores ao
desconhecerem essa relação ou ignorarem-na, passam a supervalorizar e subvalorizar gostos
objetivados ou não, promovendo uma espécie de hierarquização dos alunos no interior da sala de
aula, atribuem a eles oportunidades e até mesmo sanções diferentes. Os alunos, portanto, que estão
mais próximos da representação por eles outrora construída de aluno ideal têm, em geral, mais
facilidade de relacionamento com o professor, e sobretudo, mais probabilidade de compreenderem
o professor em sua linguagem, porque de alguma forma compartilham de suas representações
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sociais, e atendem em certa medida, salvo exceções, a condição básica da relação entre professor e
aluno, que segundo Stewart e Mannheim, é a condição de dominação e submissão.
Ao tratar dos herdeiros, Bourdieu (2006) afirma que “los estudiantes más favorecidos no
deben sólo a su medio de origen hábitos, entrenamientos y actitudes que les sirven directamente en
sus tareas académicas, heredan tambíen saberes y un saber-hacer, gustos y un “buen gusto” cuya
rentabilidad académica aun siendo indirecta, no por eso resulta menos evidente”. Nesse sentido, o
“bom gosto” e o “saber-fazer” herdados familiarmente se apresenta como uma característica que
definiria esses alunos como bons alunos, ou alunos ideais.
Os herdeiros, já desde o ensino fundamental e médio, têm neles incorporado o sentido do
jogo inerente à instituição escolar – sem um cálculo racionalmente orientado - e por isso são
vistos, aos olhos do senso comum, como inteligentes por natureza. Sobre esse processo, Pierre
Bourdieu (2007) diz que
“os agentes sociais que têm o sentido do jogo, que incorporaram uma cadeia de
esquemas práticos de percepção e apreciação que funcionam, seja como
instrumentos de construção da realidade, seja como princípios de visão e
divisão do universo no qual eles se movem, não têm necessidade de colocar
como fins os objetivos de sua prática”.
Outro discurso existente sobre a ausência de interesse por parte dos alunos passa por uma
falta de estímulo familiar causada pela falência do modelo de família nuclear, que garantiria ao
aluno melhores condições de aprendizado porque desse modo, o aluno viria mais preparado, mais
educado para participar da escola. A desestruturação da família é apontada como a causa para
inúmeros problemas encontrados no interior da escola, desde a ausência de interesse do aluno à
ausência de padrões de comportamento exigidos pela escola.
Isso ocorreria porque professores, partindo de um ideal de aluno que necessita também de
um ideal de família, estão imbuídos de uma espécie de etnocentrismo de classe. Segundo o Pierre
Bourdieu, em A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino (1975), a ação
pedagógica
tornar-se indisciplinado, por não compreender o que é dele exigido e tem grandes chances de
participar dos índices de evasão escolar. O que acreditamos que precisa ser problematizado é que a
caracterização do aluno lento por este autor correlacionada à condições de classe e sua inserção em
áreas de subcultura, acaba sendo um exemplo singular do uso de categorias para alunos que
diferem da condição (ideal) de um aluno normal.
O caso apontado do aluno lento caso distinto do caso do aluno considerado indisciplinado,
porque o aluno lento, antes de ser indisciplinado, é um aluno com problemas de aprendizagem
causado por um déficit de estímulo, ao passo que o aluno indisciplinado seria indisciplinado por
uma espécie de opção. Apesar disso, ambos os exemplos de categorias configuram situações de
desafio para o professor em sala de aula porque carregam o peso do encontro improvável na
instituição escolar.
Acreditamos, no entanto, que a indisciplina é uma espécie de reação à própria instituição
escolar que poderia ser pensada a partir da discussão que Durkheim (p.73, 2003) propõe sobre o
crime. Segundo ele, o crime é “necessário, ele está ligado às condições fundamentais de toda vida
social, e por isso mesmo, é útil; pois as condições de que ele é solidário são elas mesmas
indispensáveis à evolução normal da moral e do direito”, porque “com efeito, o crime não é senão
uma antecipação da moral por vir, um encaminhamento em direção ao que será”. Portanto a
indisciplina, assim como o crime, considerada como socialmente reprovável, tem sua relevância
para que se possa buscar nela as razões para sua existência permitindo que a própria instituição
escolar seja reconsiderada em seu funcionamento e estrutura.
Já a discussão desenvolvida por Michel Foucault em Microfísica do Poder (1979) oferece a
possibilidade de se pensar o poder disciplinar como um novo tipo de poder, que “não pode mais
ser transcrito nos termos de soberania”, porque seu discurso, que não é o discurso do direito, é
“alheio ao [discurso] da lei e da regra enquanto efeito da vontade soberana”. O poder disciplinar
“apóia-se mais nos corpos e seus atos do que na terra e seus produtos (...) É um tipo de poder que
se exerce continuamente através da vigilância”. E o poder, para poder exercer-se nos mecanismos
sutis dos instrumentos de acumulação e formação do saber, “é obrigado a formar, organizar e por
em circulação um saber, ou melhor, aparelhos de saber que não são construções ideológicas”.
A despeito das inúmeras ideologias democráticas ou não democráticas que orientam as
práticas dos professores, seja por eles escolhida ou não, consciente ou não, tendem a serem sujeitas
pela própria organização e funcionamento da instituição escolar, que exige um disciplinamento dos
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corpos como pressuposto fundamental para a viabilidade das aulas. Portanto, a indisciplina, se
pensada como um movimento de luta, é muito mais próxima à direção proposta por Foucault no
que se trata do estabelecimento de um novo direito antidisciplinar. É também nesse sentido que o
indivíduo indisciplinado (Foulcault, 2002) é alguem a ser corrigido.
Segundo Roberto Machado, em sua introdução à edição brasileira de Microfísica do Poder,
sobre a noção do poder disciplinar proposta por Foucault, a disciplina tem com primeira
característica ser
O controle do corpo no espaço, aliado ao controle do tempo, que “estabelece uma sujeição
do corpo ao tempo, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo de eficácia”,
discutidos por Foucault, podem ser facilmente visualizados em Introdução à Sociologia da
Educação, de Steweart e Mannheim, sobretudo neste trecho sobre a sala de aula, em Sociologia e
a Sala de Aulas:
Portanto, a indisciplina como reação tende a explicitar uma incoerência entre discurso e
prática, sobretudo porque o ideal democrático, amplamente defendido pelos professores, não é por
eles aplicado. Logo, é de se esperar que comportamentos indisciplinados tendam a surgir e fazer
parte integrante do cotidiano escolar, visto que sempre fizeram parte. Mas para o autor, ocorre um
processo de complexificação do ato indisciplinado a partir dos anos 90:
O que pode ser notado a partir desse trecho é que os alunos indiciplinados parecem ter uma
posição muito mais ativa, dinamizando e apresentando críticas ao funcionamento da instituição
escolar. É nesse sentido que o autor defende a importância de se “questionar qual o grau de
participação da própria escola na geração de indisciplina, e não apenas assumir a posição simplista
e autoritária que sugere, sem a devida fundamentação, que o problema sempre reside ou se origina
na atitude dos estudantes”. Essa posição, muito semelhante à posição defendida por Durkheim
sobre o crime, nos tem sido rara em relatos de professores por nós colhidos. Nesse sentido ocorre
uma desatribuição de criticidade ao ato considerado indisciplinado e seus agentes são considerados
“problema”.
Pensados em oposição a partir das discussões de Bourdieu, aluno-ideal e aluno-problema,
herdeiros e desfavorecidos, igualados numa condição de igualdade formal afirmada pela instituição
escolar, tenderão a seguir caminhos diferentes. Uns, pelos gostos ou pelos “dons e talentos” inatos,
outros, pela dificuldade e inadaptabilidade aos preceitos de funcionamento da escola. Alguns
desses ainda tenderão a contestar a instuição escolar e provavelmente não obterão sucesso escolar.
È nesse sentido que a instituição escolar reproduz as estruturas sociais, embora seja sempre
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referenciada como uma instituição que anuncia por meio de si a mobilidade social, garantindo ao
jovem que por ela passa “ser alguém na vida”, como se já não fosse ou ainda não fosse alguém.
3. ESTIGMATIZAÇÃO EM SALA-DE-AULA
Segundo Pedro Geraldo Novelli, "uma sala é inicialmente um espaço que pode ou não ser
ocupado. Quando se trata da sala de aula, o espaço deve necessariamente ser ocupado. Isso se
deve ao fato de que a sala de aula é um espaço socialmente instituído. É um espaço
historicamente conquistado e construído. Apesar de ser um espaço social, o acesso a ele não se
encontra plenamente garantido". A sala-de-aula, a partir de uma produção da Educação sob uma
perspectiva antropológica, ao ser desvendada (Carneiro et al ), “revela o que a escola realmente
opera em relação às propostas oficiais de educação, a sala de aula materializa o currículo
proposto e revela os limites estruturalmente presentes na prática dos educadores e dos fins
almejados pela escola” .
Portanto, a observação em sala de aula tem grande relevância no sentido de observar
como a educação tem sido realizada em seus mínimos detalhes, na interação social. Nessas
condições é possível observar que formas de etnocentrismo não se expressam apenas na atuação
profissional do professor – condensada na condição do etnocentrismo professoral - e suas
representações no trato com os alunos, mas também é expressado em uma série de elementos que
permeiam a instituição escolar. Essa relação pode ser observada, por exemplo, nos livros
didáticos, quando não contribuem para uma educação relacionada à difusão de representações
sociais que incluam e promovam mais igualdade social. Um balanço referente às pesquisas
realizadas nesse sentido é feito por Paulo Vinícios Baptista da Silva, em um artigo presente em
Notas de História e Cultura Afro-brasileiras.
O autor defende que embora tenha ocorrido um aumento da freqüência de personagens
negros em livros didáticos, os mesmos ficam relacionados a temáticas específicas, e sujeitos a
uma situação de desproporcionalidade no uso de imagens entre negros e brancos. Segundo ele, “a
tendência geral é manter os personagens negros a representações estereotipadas ou socialmente
desvalorizadas”. Ainda segundo ele, “os meios discursivos continuaram produzindo e veiculando
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discurso que trata o branco como representante da espécie e situa o personagem negro como out-
group”, algo que não é levado a discussão em sala de aula2.
Esse é um exemplo de como os conteúdos ensinados nas escolas tendem a fornecer
elementos que representam a inserção e não inserção de determinados grupos nas narrativas
históricas e nas instituições sociais. Os meios discursivos literários usados na escola confluem e
se relacionam com os discursos dos próprios alunos, funcionários, professores, criando teias de
significações. Esse processo de exclusão, travado numa somatória de dinâmicas inerentes ao
ambiente escolar não necessariamente conduz alunos a atos indisciplinados por conta de um
desinteresse de determinados alunos, mas conduz, certamente, a processos de estigmatização.
O estigma, conceito cunhado por Erving Goffman (1978, p.13), é “um atributo
profundamente depreciativo, (...) uma linguagem de relações e não de atributos”. Se outrora o
estigma era um símbolo criado para alertar para o contato com determinadas pessoas, o conceito
de estigma cunhado por Goffman é uma relação que confere normalidade a alguém e a
desatribui de outros. Pois sendo o estigma uma condição e relação social mediada por
representações sociais, pensar o caso do aluno que difere do aluno ideal, que não é
recompensado e reconhecido como alunos tidos como ideais – ou a antítese dos alunos-problema
- , é importante no sentido de compreender sua construção de identidade no interior do ambiente
escolar, que pode vir acompanhada de um posicionamento que pode ser considerado como
contrário àquele do aluno idealizado pela instituição escolar.
Essa sensação de não-pertencimento provocada em determinados alunos, movidos por
esses processos de afastamento das representações mais legítimas de aluno ou até mesmo de
indivíduo podem conduzí-lo para uma condição de estigmatização. Segundo Goffman, sobre o a
condição de indivíduos estigmatizados, “ um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido
na relação social quotidiana possui um traço que pode-se impor à atenção e afastar aqueles que
ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus. Ele apresenta um
estigma, uma catacterística diferente da que havíamos previsto” (1978, p.19).
Pensar que a estigmatização de determinados alunos, por si só, levaria a condução de atos
indisciplinados seria errada. Embora nem sempre o aluno tenha consciência disso, em geral, os
professores conhecem e às vezes partilham do universo de representações feitas sobre os alunos.
2
Interessante notar que não ocorre propriamente racialização de discursos durante a estigmatização de alunos.
Mas essa relação é observável pelo fato de que que alunos negros/pardos, nos casos que presenciamos,
tendem a ser a maioria dentre aqueles que são expulsos de sala de aula.
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dá, senão eu também não dou aula. Então tem que ser quando a situação tá pior e eles ficam
calmos por muito tempo”.
Por meio de nossa observação participante, foi possível observar a recorrência do uso de
referências pejorativas relacionadas aos moradores de favelas em momentos de necessidade de
controle da indisciplina. Afirmações como “estão agindo como favelados” – num claro exemplo
de preconceito de classe, somados aos discursos raciais embutidos nos conteúdos dos livros
didáticos possuem um forte poder simbólico.
Para Bourdieu (1989, p11), em O Poder Simbólico,
Cultura de Medo estabelecida na escola é por esses alunos aceita e reproduzida também como
uma forma de poder.
Durante minha pesquisa de campo, conheci um grupo de alunos que se auto intitulavam
“os Gênios”. Segundo eles, a escola os entediava. Os professores repetidas vezes retiravam-nos
da sala-de-aula por “não se comportarem”, o que fez com que eles se conhecessem fora de sala
de aula, durante as aulas que deveriam estar assistindo. Alguns queixavam-se da dificuldade de
permanecerem sentados nas carteiras durante a aula toda, e que até mesmo o modo de se sentar
era considerado inadequado pelos professores. Igualmente, seu linguajar era considerado
inadequado, e o uso de termos como “foi mal” e palavrões – mesmo que sem a intenção se
ofender – eram considerados ofensa e motivo para que saíssem de sala.
Mas apesar de terem de sair de sala, de serem excluídos e separados dos outros alunos,
algo como que um desdobramento escolar de uma contenção punitiva, esses alunos se
consideravam inteligentes e capazes, a despeito de todo o discurso sobre eles feito e da
construção de um estigma pelos professores. Como oposição a isso, formaram um grupo cujo
nome confronta as representações que deles são feitas e passaram a inscrever o nome de seu
grupo nos quadros negros e através de colagens nas paredes, o que foi tratado como um
problema de vandalismo e pichação.
Esses alunos assumiam uma postura crítica com relação a escola, reconhecendo suas
potencialidades e ineficiências a partir de suas experiências. Por serem considerados por
professores e alguns alunos como uma gangue, passaram a ser temidos dentro e fora da escola, o
que além de os conceder poder, conferiu-lhes também um estigma. No entanto, uma mobilização
incentivada entre eles com relação ao movimento hip-hop permitiu que eles ressignificassem sua
posição no interior da escola por meio de uma objetivação de sua posição social, algo muito
semelhante à noção da imaginação sociológica de Wright Mills, como uma “qualidade de
espírito que lhes ajude a desenvolver a razão, a fim de perceber, com lucidez, o que está
ocorrendo no mundo e o que pode estar acontecendo dentro deles mesmos” (1982, p.11).
A uso de um capital simbólico objetivado proveniente do hip-hop adicionado ao uso
obrigatório do uniforme condizia, no caso dos Genios, não apenas a uma distinção diante dos
outros alunos e até mesmo de professores, mas como uma forma de provocar as regras da escola.
Ao serem vistos com colares, calças e moletons que remetiam ao hip-hop, inspetores e
professores não podiam deixá-los entrar. Durante minha observação, assisti uma dura repreensão
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de um diretor ao uso de um colar por fora da camiseta do uniforme. Segundo ele, o uso desse
colar era “coisa de marginal” e de gente “sem futuro”, algo que deveria ser escondido.
Sem o argumento da não-diferenciação proposta pelo uso do uniforme, bem como do
debate sobre seus efeitos de segurança, tal colar foi associado a um “estilo de vida marginal”.
Outros elementos do movimento hip-hop trazidos por alunos tendem a ser desprezados, como
músicas e obras da chamada literatura periférica. Segundo Tessaro (2004), “a instituição escolar
se apresenta como vítima de mais uma “clientela” inadequada. A partir dessa situação,
esses alunos começaram a ser rotulados pela escola como preguiçosos, bagunceiros,
problemáticos, indisciplinados, agressivos, apáticos, marginais, uma vez que estão estabelecendo
juízos de valores a priori, isto é, esses alunos não aprendem porque sofrem abandono familiar”.
Pode-se observar, no entanto, que àqueles alunos que não possuem o suporte de grupos e
movimentos que oferecem respostas a suas condições, oferecendo oportunidades de objetivar
suas posições e traçar planos, processos sistemáticos de estigmatização têm efeitos muito mais
incisivos e dolorosos. Embora os Gênios tenham objetivado sua condição negando uma
representação de valor negativo que deles é feita – algo muito parecido com o esperável de uma
imaginação sociológica, nem todos os grupos têm a mesma sorte.
Com o intenso medo e sentimento de insegurança que é gerado em torno dos grupos
atribuindo-lhes poder e autoridade, esses passam a ser considerados gangues, e passam a
“merecer cuidado especial”. Sob a classificação de gangue, o grupo está submetido a condições
específicas de tratamento, estando sujeitos a uma vigilância mais intensa e por vezes aos
cuidados da polícia – no caso, a patrulha escolar. Logo, percebe-se que a ineficiência no trato
com o outro no controle da indisciplina por parte de determinados profissionais da educação
pode conduzir à estigmatização de certos alunos cujas possibilidades de sucesso na instituição
escolar são pequenas.
Entretanto, entre o processo de estigmatização e a (futura) delegação externa da resolução
de “problemas” no interior da escola, ocorre outro processo: o de criminalização da indisciplina
que provém de alunos que correspondem tipos sociais. Esse processo, que aparenta ser uma
forma muito peculiar de ajuste da origem social a determinados destinos sociais dos indivíduos,
está atrelada a um modelo de controle social perverso, de contenção de populações consideradas
“perigosas”, fato que não apenas seleciona e reproduz as estruturas sociais, mas que também
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Pois se tem difundido, incrustrado num sensacionalismo midiático que generaliza casos
graves de violência escolar, legitimada pelas opiniões de alguns especialistas como psicólogos,
concepções de juventude e de jovem que se aproximariam muito à idéia de um mini-adulto, de
um indivíduo que, embora jovem, age racional e conscientemente. A partir de casos específicos,
jovens têm sido considerados uma ameaça constante, porque “estando em formação, seriam mais
facilmente influenciáveis, inclusive – e aqui haveria um grande perigo – pelo mundo do crime”
(Moraes, 2008).
Sendo tido como outro, jovens precisam equilibrar-se numa posição ambivalente de ter
sua expressão negada e silenciada, em outros momentos tem sua expressão exigida, sob a
condição de serem vistos como alienados. De um modo geral, alguns jovens e alunos
desagradam e ao perceberem, intensificam atos e opiniões que causa algum tipo de impacto.
Talvez saibam que já estão sujeitos ao controle e a determinadas regras do jogo, nada tendo a
perder. Sujeitos ao controle, têm como punição quase certa a privação física do acesso ao
conhecimento, o que os leva à familiarização com trâmites de esperas. Ainda que nos corredores
das escolas.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
etnocentrismo, “ponto de vista segundo o qual o próprio modo de vida de alguém é preferível a
todos os outros” (Herskovits, 1991 p. 1), das relações entre professor e aluno.
Além dessa mudança de percepção sobre o outro, as ciências sociais, de um modo geral,
podem oferecer ferramentas analíticas eficientes ao exercício profissional do professor, seja na
problematização de conteúdos e no estímulo ao debate em sala-de-aula, seja nas pesquisas de
campo feitas pelos próprios professores que carecem de orientações metodológicas para que
melhor se conheça a clientela de alunos.
Mesmo entre professores que significam o espaço escolar a partir de orientações
epistemológicas que diferem do modelo tradicional de educação subsistem traços de
etnocentrismo professoral. Há também que se pensar que o recrutamento de professores, de
tendência a ser mais heterogêneo com o passar do tempo, por meio das políticas afirmativas
estabelecidas recentemente, deve a mudar a prevalescência de um etnocentrismo escolar/
professoral no interior das salas de aula sobretudo porque as políticas afirmativas já têm
produzido, nas universidades, importantes avanços no sentido de se reestruturar não apenas
conteúdos, mas a própria prática educacional.
Acreditamos ser a partir de uma nova percepção do outro que está em sala de aula que se
poderá fazer operar princípios democráticos em sala de aula, evitando, e de maneira ideal,
fazendo cessar processos estigmatizantes e criminalizantes do controle da indisciplina. Nesse
sentido, é possível também pensar e discutir a indisciplina a partir de outros referenciais, que não
o da incivilidade de determinismos de classe, provenientes do senso comum, que classificam o
outro de modo perverso. Assim se evitaria que o sentimento de insegurança e medo de
determinados tipos sociais ocorressem no interior da escola.
Pensar a educação a partir da estímulo à autonomia e do desenvolvimento de um
protagonismo juvenil não passa apenas pela adoção de práticas mais democráticas em sala de
aula, mas também pelo reconhecimento de que algumas representações que são feitas dos alunos
desatribuem deles qualquer poder de autonomia que não seja atrelado ao crime e a violência.
Pois no momento em que a escola demonstra, mesmo e sobretudo em momentos críticos, as
possibilidades que o aluno terá, afirmando por meio de um agente que seu possível lugar futuro é
na “prisão, na cadeia ou no cemitério“, está sentenciando seu fracasso escolar, tecendo uma
profecia que muito provelmente se auto-cumprirá.
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Nesse contexto é relevante também notar o peso que os discursos sobre a necessidade de
atividades extra-curriculares para alunos têm sobre a percepção que alguns alunos fazem de si
mesmos, quando afirmam que na ausência de atividades em contraturno escolar, ficariam nas
ruas envolvidos com drogas e com a criminalidade. Concepções como essa partem da idéia de
que a própria sociabilidade de algumas populações já conduziria, como que naturalmente, esses
jovens a entrarem em conflito com a lei. Esse acaba sendo um caso muito comum de
internalização de crenças depreciativas que são tecidas sobre os grupos sociais dos quais esses
alunos provém.
Mas o caso dos Gênios ainda conduz a algumas constatações. A primeira, de que a
meritocracia não opera para alunos como eles. Boas notas e um aproveitamento escolar acima da
média não são o bastante, porque além de dominar conteúdos, os alunos precisam internalizar
códigos culturais. No caso deles, tinham consciência disso e não o faziam porque isso negaria
seus próprios códigos. A segunda, é que se a instituição escolar reproduz estruturas sociais por
meio de seus agentes, o faz tendo em vista também aqueles que devem ser excluídos da presença
dos demais, punindo e colocando à margem alguns eleitos: aqueles que mais estão vulneráveis
porque mais estigmatizados.
Esse caso também conduz à necessidade de uma reflexão sobre a própria noção de
juventude. Segundo Bourdieu (1983), "Parece que um dos efeitos mais poderosos da situação de
adolescente decorre desta espécie de existência separada que os coloca socialmente fora do
jogo".
Se a idade, por si só, ja é uma categoria excludente, há como pensá-la diferentemente.
Segundo Coimbra (2005), "subverter a noção de adolescência é uma ação política importante
nesse momento em que há tanta insistência em individualizar e interiorizar as questões sociais, e
em psiquiatrizar e criminalizar os ditos desvios das normas impostas a todos nós. O conceito de
juventude poderia permitir a abertura de espaços para a diferença que existe nos processos e nos
acasos dos encontros, afirmando cada sujeito".
Mas além disso, pensar a juventude a partir disparidades de posições que os jovens
brasileiros ocupam, além de elucidante, é desafiador. Pois se pensada essa juventude também a
partir posição – e condição - de outsiders, uma série de outros conflitos emergem.
Daí a importância de que pesquisas que envolvam adolescência e violência abandonem as
fortes tendências emolduradas numa Cultura do Medo e explicitem os fatores que condicionam a
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ação desses jovens agentes sociais, potencialmente destinados aos futuros cuidados de
instituições de reabilitação, ou ironicamente de (re)ssocialização. Mas para isso, é preciso
atribuir-lhes voz não apenas nas instituições das quais participam, mas também nas pesquisas das
quais têm sido, por um longo tempo, objeto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
QUEIROZ, L.D. Um estudo sobre a evasão escolar: para se pensar na inclusão escolar. (2002).
Disponível em www.anped.org.br/reunioes/25/lucileidedomingosqueirozt13.rtf , acesso em
05 nov 2008
WEBER, M. Os três tipos puros de dominação legítima. In: COHN, Gabriel (Org.). Max
Weber. Sociologia. São Paulo: Ática, 2005, pp. 128-141.
ZALUAR, A.; LEAL, M.C. Avaliação e Políticas Públicas em Educação. In: Cultura, educação
popular e escola pública. Rio de Janeiro: Fundação Cesgranrio, 1996.