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Maria Regina Soares de Lima Literalizacdo politica ¢ abertura econdmica representam hoje 2 nova realidade das politicas doméstica e internacional dos paises periféricos, ‘em geral, e em particular dos paises latino-americanos, depois de déca- das de regimes burocritico-autoritarios © modelos de economia protegi- da com forte indugao estatal. Esses paises esto experimentando proces sos de reforma institucional abrangentes que néo se restringem a0 campo ‘econdmico, mas alcangam as préprias instituigdes de governo.eum leque variado de politicas piblicas. Contudo, democratizagio das relagies politicas ¢ liboralizagao econdmica tendem a gerar condigées contradi- {6rias com respeito a viebilidade de mudanga no status quo institucional ‘ena orientagdo de politica. O primeiro processo induz & descompressa0 "tim pia verso dese abo fi apescatad no sind Pla Lteracioral «Compara Perpetvas Rozentes no Brat enasiado pelo Deparameato de RelagesInereeieasis dt UB, Drain, Lc12 de ovens de 199, A segunda veri fo seu 9 workshop ELE det Dele CContempordneo en Relacloues[remsionls, organist pelo Cerro de RelscionesItracionaes Se Univridad Yorceno Dia, Rene Aes, 2-28 duo de 2000 Sea rest fot incimente “dsenvelvido em plea profes no fatto Ri Brasco, MIRE. Bras, en 10 de aro de 1999 CONTEXTO INTERNACIONAL Rios lant, o-22,292 jlboKersntzo 200, p. 255-33. 265 ‘Maria Regina Soares de Lima das demandas da sociedade sobre 0 sistema politico, & politizagdo do Proceso de formagtio de politicas piblicas e & redistribuigo dos direitos de propriedade sobre o proceso decisério na diregdo da ampliagfio do controle popular sobre 0 processo legislativo, A liberalizagZo econémi- ca, contudo, implica a retirada da protego publica prévia, a exposicio dos agentes & competieto do mercado e uma redefinigao dos direitos de ropriedade da esfera piblica parao mercado. Aquilo que anteriormente era objeto da decisio ¢ alocaco pablica, a partir do voto da maior passa a ser decidido agora no mercado, Nesse contexto, é inusitado e necessita ser explicado, como foi possivel que as reformas estruturais na economia — liberalizagao comercial, desregulamentasio e privatizagio, para mencionar as mais importantes —tenham sido implementadas no Cone Sul em contextos de transigo € liberalizagao politica, sem o retomo aparente dos regimes de forga? A have para este resultado pode estar na natureza das instituigivespelitions 4a regio que, a0 contrério das suas congéneres no Norte, concentram poder no Executivo. Este artigo no examina diretamente esta questo, mas uma variante do Problema. Seus objetivos so bem mais modestos. Em primeiro lugar, discutir a relago entre instituigies polfticas democriticas e politica externa, em contextos de liberalizagao econémica. Neste particular, apresento os dois principais argumeutus relitivos as dificuldades de se compatibilizer democracia ¢ politica externa: 0 da especificidade da Politica externa e o das deficiéncias institucionais das democracias. Em seguida, examino a questéo do peso causal da politica doméstica na formacio da politica externa e, mais especiticamente, as implicagdes da liberalizagao politica e econdmica para a formagdo da politica externa. ‘Na tiltima seco, as conseqiiéncias das mudangas polticas e econdmicas recentes para a formagio da politica exterior brasileira so analisadas. A globalizagao eo fortalecimento das forgas econémicas transnacionais {em sido associados ao enfrequecimento do Estado, em particular 3 266 Instituigoes Democriticas ¢ Politica Exterior redugio de sua capacidadle de controle dos fluxes interfronteiras @ da ‘gestdo das politicas piblicas. Um outro impacto também meneionado ‘com freqiiéncia diz respeito & crescente disjuntiva entre © espago da decisiio — intemacional — e o espago da representagio —nacional— com sérios desafios & ordem democritica intema. No caso dos paises periféricos, também tem sido apontada a natureza assimétrica da globa- lizacdo, contribuindo para ampliar a desigualdade e « polarizagio social. Este trabalho vai em outra direcio. A globalizagao é um fenémeno ‘multfacetado, seus efeitos no so nem univocos nem lineares, Preten- de-se demonstrat a validade analitica de se postular que a diluigo da fronteira intemo-externa pode ter efeltos democtatizantes no processo decisério da politica exterior, em particular naqueles pafses cuja hist6ria politica etradiedo constitucional tm concentrado o poder de decisio no Ambito do Executivo, Democracia e Politica Externa ‘No contexto da hegemonia da economia de mercado ¢ da democracia representativa liberal, a perspectiva realista tendc a perder o lugar pre- Gominante que ocupara até recentemente na reflexio sobre politica internacional no ambito intelectual e académico latine-americano. Pas- sam a ser privilegiadas nas andlises correntes no apenas novas defi~ nigdes do coneeito de seguranca, como as possibilidades de cooperagio {ntemacional em fungéo de normas compartithadas existentes nas for- ‘mages republicanas de governo. Assim, com respeito a relagao demo- craciae polftica externa, tende a predominar a visio otimistae atradugio ‘modema do argumento classico kantiano a partir da hipétese de que as democracias sio naturalmente pacificas ¢ a5 autocracias neces- sariamente belicosas, desenvolvida na literatura sobre a “paz democr’- tica”. HA também um argumento otimista que explora determinadas virudes institucionais, em particular a divisdo de poderes e a existéncia de checks and balances mais efetivos nas democracias, Tais mecanismos 267 Maria Regina Soares de Lima Testringiriam a liberdade total dos decisores governamentais que, de outro modo, poderiam declarar guerra pelos motives mais triviais, A Enfase nas normas compartilhadas e nas instituigdes politicas domésticas necessérias & cooperagto intemacional contrape-se frontalmente & ex- Plicagao sistémica da guerra, paraa qual anatureza anérquica do sistema internacional seria sua condigio permissiva. Empiricamente, a hipdtese liberal da paz democratica tem sido testada a partit de séries hist6ricas da incidéncia de conflitos violentos entre democracias nos iltimos 180 ‘anos, bem como da durago das aliangas democréticas! E curioso que a América Latina forega um contra-exemplo quer & hhipstese das caracteristicas normativas da democracia, quer da nature za de suas instituigSes politicas. Comparativamente a outras regiges Periféricas, a drea diferencia-se por apresentar baixos nivcis de conflitos violentos intcrestatais. Contudo, a hist6ria politica da regifio é marcada pela alta incidéncia de governos autoritérios e suas instituigoes, ainda quecopiadas do modelo presidencialista norte-americano, caracterizam- ‘© por graus mais elevados de concentragao de poder. Aparentemente, outros fatores (sistémicos) poderiam explicar essa relativa “paz autori- tivia” na regio, Na contracorrente da perspectiva otimista, o trabalho examina critica- ‘mente a visio cética das dificuldades de se compatibilizar democracia e politica externa. Duas familias de argumentos céticos podem ser identi- ficadas: a que tem por base a natureza espectfica da politica externa que ‘distingue da politica interna; ea que esté referenciada ds caracteristicas institucionais dos regimes politicos, em particular as deficiéncias ins- titucionais das democracias. A discusso destes argumentos tem tam ‘bein 0 objetivo de aproximar a visio cética do realismo, com relago &s Possibilidades democréticas na politica intemacional, da literatura neo- ituctonalista que focaliza os problemas de capacidade de governo e mudanga no status quo nas experiéncias contemporiineas de mudanga institucional domestica 268 instituigbes Domocrdticase Politica Exterior A Bepocificidade da Politica Externa ‘Como se sabe, a politica internacional surge, enquanto rea disciplinar specifica, no contexto intelectual anglo-saxio, no bojo de um processo mais amplo de delimitagio de campos disciplinares distintos repre~ sentativos das diversas reas do conhecimento?. A necessidade de se diferenciar da ciéncia politica e do direito intemacional pode ter sido responsivel por duas caracteristicas marcantes da nova disciptina no seu inicio: a critica “realista” aos fundamentos “idealistas” da politica inter- nacional ¢ a énfase na especificidade das relagbes intern: se dio em um contexto caracterizado pela auséneia de uma autoridade acima dos Estados. mnais ja que “Morgenthau (1948), um dos pais fundadores da disciplina, constréi uma teoria realista, em oposigio & visio idealista, a partir da constatagio da ‘politica de poder” prevalecente entre entidades soberanas. Para Aron, as relagdes intemmacionais constituem um capitulo da “ciéncia ou filoso- fia da politica”, mas sua originalidade € “tratar das relacdes entre unidades politicas que reivindicam o direito de fazer justiga ede escother entre a paz e a guerra (1979:55, énfases no original). Em ambos, 0 modelo ontol6gico subjacente € 0 da interagao de unidades polticas soberanas, capazes, em algum momento, de se envolverem em uma guerra generalizada (idem:153). Essa representago, posteriormente denominada de modelo do ator uunitério, era hegemOnica na disciplina até muito recentemente. A premissa acerca do ator nacional fez convergir os realistas clissicos € contemporineos em tomo de uma interpretagio tesrica que tem por base a racionalidade instrumental: “[..] a teoria das relagdes internacionais toma como ponto de partida a pluralidade dos centros auténomos de deciséo, admitindo a risco de guerra; e deste risco deduz a necessidade de calcular os meios” (ibidem, énfases no original). A tcoria estratural de Waltz, (1979) radicalizou a contribuigio dos autores realistas classicos 269 ‘Maria Regina Soares de Lima a pattir do conceito de anarquia © da promissa de que as unidatles $40 ‘dgnticas em praticamente todas as dimensdes, & excego do diferencial de poder que, dessa perspectiva, constitu um atributo sistémico, Esse casamento entre o realismo, a premissa do céleulo racional e © modelo do ator unitério — em uma sintese que poderfamos denominar “realismo analitico”, tal como ocorret com o “¢naexismo analitico” — fica evidente na apresentacao de Grieco (1997) da teoria realista da politica mundial. Neste texto, o autor lista as trés premissas realistas sobre os Estados: racionalidade instrumental, autonomia com relagio as suas respectivas sociedades nacionais e capacidade de agir de forma coerente com respeito a outros patses (idem: 165-166) A especificidade da politica externa est dada no pela premissa da racionalidade, que é um axioma de todas as teorias da escolha racional, tas pelas duas tltimas. Mas ao contrério da primeira, que & premissa epistemol6gica, as duas tiltimas sio ontolégicas e definem a natureza do Estado realista, Pode-se postular aexisténcia de uma “afinidade eletiva” entre © modelo do decisor unitério ¢ a diplomacia enquanto instituigéo tipo ideal do sistema de Estados, tal como concebido em seu momento fundador no séoulo XVIL. A metéfora do tabuleiro de xadrez sugere nao apenas o tratamento de um Estado sem conflitos ou divisdes internas, como assume uma politica extema cocrente e congruente como interesse nacional, Interesse navivunal © imeresse do Estado sao sinommos ¢ 0 iplomata representa esse interesse no plano externo, buscando maximi- Zéclo vis-a-vis 0s interesses dos demais Estados. Fste parece ser de fato o modelo (implicito) do estadistarealista para Gricco, por exemplo, pois @ autor firm que a eutonomia do decisor immplicaacepacidade de reconhecere implementaros interesses da nagio como win todo, mesmo contra as preferéncias de atores domésticos poderosos, bem como de coordenacao do aparato de Estado s6 /possivel em uma estruturaburocrticaabsolutamente vertcalizadae concentrada, E curioso que estas duas capacidades apresentadas como premissas da 270 Inatituigbes Domocriticas © Politica Exterior teorla, mais adlanteno texto de Gricco séo analisadas enquante hipsteses cempiricas que podem ou nao ser observadas na pritica (idem:168-169). Isto me leva a crer que essas duas premissas nao stlo propriamente axiomas te6ricos, mas modelos normatives, prescritivos a indicar as qualidades ¢ as condigdes necessérias a0 bom desempenho da politica externa pelo estadista virtuoso. Nada muito diferente das expectativas de “Morgenthau acerca das qualidades necessérias ao bom estadista,emuma chave weberiana classica. A representacio do Estado como ator coeso ¢ auténomo além de cons- tituir uma excessiva simplificagio na representagio de um ator com- pplexo, adota como script cognitivo o modelo germanico de formagio do Estado. Como se sabe, a caracteristica principal da via prussiana foi sua insercao em um contexto geopoltico de guerras. A guerra dos Trinta ‘Anos assinalou o fim do incipiente constitucionafismo na Prissia, uma ver que 6 conflito continnada possibilitou, na prética, a usurpacto de poder dos governantes vis-a-vis os estados e a nobreza objetivando a extrago de recursos para as atividades militares. A destruigio desse frdgil constitucionalismo no século XVII pos em marcha 0 absolutismo burocritico-militar, A partir daquele momento, o Estado prussiano ad- quiriu piveis extremos de autonomia com respeito & sociedade cireun- dante. A ameaga de invasio externa fez substituir uma tradigo jé centendria de processtialismo pela Raison d’ état (Downing, 1988:16). A. ameaga sistémica é crucial para a ontologia realista, chassica e amultiva, derivando-se daf a importincia da seguranga como objetivo do Estado. Historicamente, porém, quando a intensidade da ameaga externa atingiy nfveis clevados, o poder das autoridades governamentais foi fortalecido em detrimento das instituigdes de controle democratico ¢ da sociedade civil “Tanto nos realistas ckéssicos como nos analiticos parece estar subjacente ‘uma determinada concepsao substantiva da politica internacional deri- vada da tradigo historicista alema do “primado da politica externa’®. Nesta concep, a politica internacional esta acima da politica domés- an ‘Maria Regina Soares de Lime tica porque voliads para a defesa dos interesses nacionaise portratar de uestées afetas a seguranga ea sobrevivéncia do Bstado, em um contexto fem que tanto uma quanto outra no estio garantidas por qualquer instituiga0 ou norma, mas apenas pelo proprio poder de cada Estado, A distingdo da escola realista entre high low polities, a primeira provincia exclusiva da politica intemacional ¢ a segunda abrangendo @ politica intema, a economia etc, expressa de forma sintética essa representagao. ‘Sea razo de Estado conferiu, em determinados casos histéricos e nas situagbes de ameacaa seguranica, a oportunidade a legitimidade de suas reivindicagdes de autonomia em relagio ao controle democratico, pode- Se apontar a persisténcia na tradigdo realista de um eeticismo quanto & ficiéncia da democracia para garantir compromissos internacionais, ‘ais inefici€ncias se expressam, por exemplo, na falta de racionalidade na intromissio das paixdes da opinigo publica na formagdo da politica externa — “obediéneia aos sentimentos e ao impulsa do que a0 céleulo © 8 prudéncia ¢ 0 abandono de um plano de longo prazo para satisfazer luma paixo moment€nea”, segundo Tocqueville. Também se manifes- tam em fungo da oposigdio weberiana entre politica, enquanto arena dos interesses em conflito e das facgdes, ¢ burocracia, onde predomnina uma ‘concepeiio holistica do interesse priblico, com base em padres objetivos ¢ julgamento prudencial ¢ bem informado. Esta oposicdo aparece em Morgenthau como um problema gerado pela diferenga entre os estadis- tas, que pensam cn teruius do interesse nacional, concebido como poder centre poderes, ¢ a “mente popular, que raciocina em termos moralistas 1 legalistas do bem ou do mal absolutos" (1948:142) (© tema da iracionalidade da “opinido piiblica” e, por conseqiiéncia, a antinomia democracia-politica extema constitui parte pondervel da critica realista de George Kennan A dipiomacia norte-americana do século XIX a primeira parte do XX. Ao condenar o comportamento da epinigo piblica, que uma vez provocada reage de forma agressiva irracional, Kennan utiliza uma sugestiva analogia entre a democracia ¢ ‘© dinossauro, no que zmbos témn em comum: um eérebro do tamanho de 272 lum alfinere, reagio denirada diante de cventuais ameagas, mas uma ferocidade destrutiva do adversério € mesmo de seu habitat natural (1984:66). Para o criador da doutrina do containment, as deficiéncias da opiniao pablica so de duas ordens: imediatismo © emocionalismo, ‘Assim, atribui as dificuldades da politica extema norte-americana & pressiio de curto prazo da opinio piblica sobre o Executivo, bem como ‘A “natureza erritica e subjetiva da reagio do pablico as questées de politicaexterna”. O“emocionalismoca subjetividade da opinido pablica fazem dela um guia pobre e inadequado a aco nacional” (idem:93). ‘A énfase na irracionalidade da politica democrética é um trago distintivo da critica clitista & democracia, presente nos autores realistas do final do, século XIX e inicio do XX. Como se sabe, 0 tema da irracionalidade na politica emerge simultaneamente & propria democratizagao da politica ‘com 0 surgimento da democracia de massas, em funcdo da progressiva, uuiversalizagdo do oufrdgio nas democracias hoje consolidadas. O que ‘0s autores realistas da politica internacional fizeram foi retomar essa Tinha de argumentago com base na necessidade de se manter a politica ‘externa fora da arena piblica, uma vez que esto em jogo os interesses de longo prazo do pafs. © irracionalismo le boniano das massas € atualizado para 0 contexto contemporiineo da poliarquia e dos grupos de interesse. Ao fim ¢ ao cabo, a opinidio publica nfo é um bom guia para a politica externa porque refleteinteresses particularistas, de determinadas minorias com acesso aos cfreulos de poder. “[..] que eparece come a opinido pulblica em muitos paises que se consideram como tendo governo popular, geralmente, 0 6 o consenso dos sentimentos da ‘massa do povo, mias a expresso dos interesses especiais de minorias altamente vocais — politicos, comentadores ¢ publicity-seekers de todo tipo” (idem:61- 6 Para além da premissa, muitas vezes implicita, da irracionalidade ¢ da ineficiéncia da politica, portanto, da impossibilidade dademocraciaem ‘um mundo complexo, a outra parte do argumento sealista estd caleada na diferenga ontol6gica entre politica extema ¢ as demais politicas 273 ‘Maria Regina Soares de Uma iblicas. Como se viu, esta cencepeto & sxiomética para oa autores realists, estando bem representada na imagem de que a politica para na fronteira da nacio, Para os autores realists, a “boa politica externa’ é aquela que esti de acorco com os verdadeiros interesses nacionais, cujo ccontetdo 86 & conhecido pelos “verdadeiros estadistas”, intérpretes da Vontade nacional, ecuja viabitidade pode ser impedida pela democracia. A ctftica a essa familia de argumentos tem por base questionamento da separasdo cute politica extema e politica doméstica. Esta andlise € realizada a seguir, com base em argumentos teéricos e substantivos. No Ambito das tcorias de relagSes intemacionais, uma das primeiras criticas & hegemonia da representa do ator unitério & 0 modelo de “politica buroctatica” de Graham Allison (1971) que, ao aplicar o para- digma pluralista & andtise de decisdes de politica externa, questionou 2 artificialidade da sepatagao interno/externo e, conseqtientemente, a es- pecificidade das relacoes internacionais vis-d-vis a andlise da politica doméstica. Uma das deficiéncias de se aplicar a perspectiva pluralista & politica internacional estd relacionada as fragilidades inerentes a ess abordagem derivadas quer da no consideracio dos problemas de ago coletiva, quer do ocultamento da dimensdo do poder e do diferencial de recursos entre distintos atores politicos e sociais. Por outro lado, em um texto que antecipou a perspective neo-institucionalista na anilise polti- ca, Krasner (1978) argumentava que, a despeito da fragmentacao do sistema politico norte-americano ¢ do elevado grau de acesso dos grupos de interesse, a coeréneia da politica extema norte-ameticana e mesmo a autonomia com respeito aos interesses particularistas de grupos econd- micos poderosos podiam ser mantidas, em Fungo de o Executivo dispor de capacidade para definir a agenda e a natureza das questOes externas, ‘bem como sua arena de decisao. ‘De qualquer maneira, 0 trabalho de Allison foi pioneiro na sugestao de se explorar os rendimentos te6ricos e analiticos dos modelos e teorias ccomuns &ciéncia politica nas relagdes internacionais. A posterior hege- 274 Instituibes Democraticas e Politica Exterior monia do realismo estrutural de Waltz. as novas possibilidades abertas pelo uso de modelos dedutivos acabaram por desviar os estudos interna- cionais da trajet6ria aberta pelo modelo de politica burocrética, Apenas recentemente a fertilizagao entre os dois campos foi retomada, Assim, por exemplo, a eliminagdo das fronteiras intemofextemno foi ‘operada a partir de perspectivas tesricas amtitéticas. Dessa forma, tanto vuma abordagem esteatégica, com base na eacolha recional, quanto uma abordagem normativa, a partir de uma perspectiva cosmopolita, vio postular a indiferenciagao desses dois ambitos. No primeiro caso, a premissa da racionalidade instrumental, homogeneizando os atores, leva que seja necessiria a especificagio do contexto estratégico em que ‘ocorre a interacdo*, A partir dessa delimitagao, com a teoria dos jogos e a construglo de diversas configuragdes estratégicas, 6 possivel ir além da mera constatago dos efeitos da anarquia sobre a cooperagao, por exemplo. Os dilemas de cooperagio ou de coordenagao nfo diferenciam © mbito intemo do extemnoe vice-versa, Problemas de agao coletiva sto endémicos a vida social. Como observado pelos proponentes da aborda- gem da escolha estratégica, “os atores domésticos, geralmente, se depa- ram com problemas estratégicos m defrontam os Estados” (Lake e Powell, 1999:5). semelhantes aqueles com que se ‘Tambem de uma otica normativa, argumenta-se sobre a inexisténcia de diferensas entre as duas esferas o que justficaria uma teoria normativa da justiga mo plano internacional. Do ponto de vista substantivo, a ctescente interdependéncia de atores nacionais de diversos pafses impli caria a existéncia de uma comunidade que ultrapassa, de fato, as frontei- ras nacionais, Se as fronteiras sao arbitrérias, nfo correspondendo mais 8 interagio real dos individuos, passam a ser importantes as relagées morais entre os membros de uma comunidade internacional. Assim sendo, nfo apenas as questdes intemnas estardo sujitas a0 “eserutiaio moral extemno”, como os alores nacionais de um pais devem obrigagoes de justiga com relagao aos nacionais de outro (Beitz, 1979). 275 ‘Maria Regina Soares de ima De um fingulo que claramente enfatiza a dimensao causal da politica doméstica na formagiio da politica internacional e a necessidade de se integrar teoricamente os niveis da negociagdo internacional ¢ da ratif cago doméstica, esté a contribuigao de Putnam (1988) € su modelo dos jogos de dois niveis. A solugdo cooperativa de qualquer negociagtio internacional requer que se superponham as respectivas estruturas dos ganhos domésticos dos parceiros. O modelo de Putnam pressupoe um problema de cooperagio entre Estados ¢ uma arclem interna polisequica, uma vez que o sucesso da negociagio internacional depende das expec- tativas de cada um dos parceiros com respeito aos resultados do processo de ratificagio interna do outro’. A novidade do jogo de dois niveis é nao apenas introduzir a causalidade doméstica na explicagio de resultados internacionais, mas apontar para a necessidade da ratificagao interna de quando estes envolvem quest6es dis- compromissos. intemacionai tributivas no plano doméstico, gerando custos intemos que levam & mobilizagao dos atores afetados, positiva e negativamente, o que empur= raparaaesfera piblica adiscussio da polttica internacional. Esta questio serd desenvolvida mais adiante, quando for tratar do problema da def nigtio do interesse nacional em contextos democraticos. Anteriormente ao desenvolvimento do modelo dos jogos de dois niveis, 1 sociologia historica ja rompera com a dicotomia externofinterno, cenfatizando, a0 contrario, a mediago da guerra, vinculando essas duas cesferas, naconstrugio dos Estados nacionais. Pioneiro desta perspectiva, Otto Hintze (1975) jé observara que o Estado territorial s6 pode se constituir em vista do conflito entre as duas instituigdes universalistas da ‘ordem medieval: a Tgreja e o Império. A guerra no apenas configurou ‘0s atores territorias e, neste sentido, representou uma oportunidad para aexpansio e consolidagiio da estrutura administrativa do Estado, como, simultaneamente, etiou oportunidades para a redefinigao do equiltbrio de poder entre os governantes e a sociedade, Neste autor, esti clara a vinculagdo entre sistema de Estados e sistema de estates, origem dos sistemas representativos modemnos. Ainda que néo se observe consenso 276 Instituigbes Domocraticas ¢ Politica Exterior na literatura sobre © impacto variével da guerra na constituigdo dos Estados nacionais, 05 casos inglés e prussiano so paradigméticos, no sentido de representarem os “tipos ideais” de constitucionalismo e ab- solutismo, respectivamente, Em um caso, a guerra acabou por democra- tizar as relagées Estado/sociedade, enquanto no outro, serviu para jus- tificar o aumento da intervengao e usurpacio de poderes do Estado sobre 2 sociedade. De qualquer modo, foi a experiéncia prussiana © no 0 modelo anglo-saxio liberal que cerviu de template 2 representaglo realista do Estado e do sistema andrquico intemacional Argumentou-se que a tese da incompatibilidade entre politica extemae ‘democracia 36 se sustenta quando se parte da premissa da existéncia de ‘uma distingdo ontolégica entre politica interna e externa, Foram exami ‘nados argumentos de politica intemacional que eliminam essa distinglo ou a vinculam a modelos causais integrativos. Se as diferengas entre Politica externa e doméstica deixam de existir, também no mais se sustenta a alegagio de um processo decisério distinto para as questdes intemas e externas. A incompatibilidade politica externa/democracia desaparece, a menos que se adote uma visio tecnocrética da politica rout court, com base na alegada racionalidade das decisées técnicas. As Deficiéncias institucionals da Domocracia Os argumentos que se seguem poem énfase em certas caracteristicas institucionais das democracias representativas que podem impedir ou inviabilizar o estabelecimento de relag6es internacionais estéveis ou da ‘cooperacio intemacional. O modelo subjacente de democracia, nessa familia de argumentos, € o schumpeteriano, enquanto um attanjo ins- ‘titeional para se chegar @ decisées politicas. Dessa forma, parte-se de

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