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Atos politicos e atos de governo — Realidades diversas, segundo a teoria tetraédrica do direito e do Estado Manques Ouivera Membro do Instituto dos Advogados do Distrito Federal, ex-Auditor do Tribunal de Contas do Distrito Federal A pagina 73 do n? 95 (julho a setembro de 1987) da Revista de Informacao Legislativa do Senado Federal, CRETELLA JUNIOR, professor de Direito Administrativo da Universidade de Sao Paulo, publicou, sob o titulo de "Teoria do Ato de Governo”, didético artigo, onde resume ¢ esgota o assunto, em seu estégio atual. Infelizmente nao fez nenhuma mengao ao livro, por ele mesmo prefaciado, O Controle, Esse Desconhecido, de nossa autoria, onde, de fls. 73 a 88, pensei ter definido 0 vocdbulo ata politico, a fim de transformé-lo cm termo juridico. Assim 6 que me causou espécie o seguinte trecho do lapidar artigo do prof. CRETELLA JUNIOR: “O problema da definigtio do ato politico tem desafiado a argiicia da doutrina, que nfo chega ao contexto exato, ¢ evidente, pela prdpria Hlexibilidade inerente a0 objeto definido.” (p. 177) Logo no comego jé havia dito, no segundo parigrafo de seu trabalho: .. a expresso ato de governo é oriunda da jurisprudéncia francesa de contetido administrativo, que a consagrou e tenfou, em vao, circunscreverThe 0 campo exato.” Na verdade, quando os autores tentam definir o alo politico, perpetram um dialelo: Ato polftico ou de governo sio os atos “editados pela autoridade administrativa, insusceptiveis de todo ¢ qualquer recurso diante dos tribu- nais” (LAUBADERE, Traité de Droit Administratif, 34 ed., 1963, vol. I, p. 418), sie, & p. 78, in fine, da Revista de Informacio Legistativa supracitada. E quals so os atos que 0 Judiciério ou os Tribunais Administrativos nao podem apreciar? Sao... os atos politicos ou (?) alos de governo, Net 0 Conselheiro Acdcio abonaria tal “definigio”, . R. Inf, legisl. Brovilia o. 25m. 99 jul-/set. 1988 3 Mas a coisa mais importante no artigo do Professor CRETELLA JUNIOR. est4 no fato de com ele aprendermos que até agora os atos politicos séo confundidos com alos de governo ¢ parece-me que quase todos 0s autores os circunscrevem ao estreito Ambito do Poder Executivo, tnico que poderia praticar atos politicos ou... atos de governo. Parece que apenas BIELSA (p. 80 da Revista de Informagao Legislativa) e TEMISTOCLES BRANDAO CAVALCANTI (ibidem) suspeitam que o Poder Legislative possa praticar aios politicos ou atos de governo. Mas certamente nenhum autor, jamais, supés que o Poder Judicidrio pudesse também praticé-los... Na verdade, no imbito do “Tribunais” de Contas, por motivos “poli- ticos”, criou-se, hd algum tempo jé, curiosa ¢ insustentavel distingdo entre “controle politico” e “controle técnico” ¢ isso com base para a insélita afirmagao de que os chamados “Tribunais” de Contas executam controle meramente fécnico, enquanto o Congreso executa controle... politico. O Gnico mérito dessa, a nosso ver, ¢ falando em tese, estapafurdia heresia juridica reside no fato de ser esta uma das poucas vezes em que se acentua © fato de o Legislativo também praticar atos politicos. Mas, evidentemente, 6s que fazem tal distincao e extensio ndo tem idéia do que seja um ato politico, em acepedo juridica... Nao iriam ser eles os tinicos a saber, quando nem os franceses, que criaram a expresso, confessadamente néo sabem! © grande GEORGES RIPPERT, no seu famoso livto Les Forces Créa- trices du Droit (), j6 se lamentava: “Crest grand dommage que paraisse s’affaiblir aujourd'hui la valeur d'une technique qui attache aux mots un sens précis, donne de Ie vigueur au raisonnement et de la concision aux développements.” Como exempla bem recente desse descuido no emprego de termos que deveriam ser juridicos mas so usados em acepgao popular, menciono o artigo do festejado constitucionalista prof. J}OSAPHAT MARINHO, publi- cado no fim de 1986, no Correio Braziliense, sob o titulo: “Poder Fiscali- zador”, Ora, um constitucionalista deve saber que, na separagdo de Poderes, no existe isso de Poder Fiscalizador, quando muito poderia — e deveria — haver um Poder CONTROLADOR ou MODERADOR. Pode existir, além disso, uma fungao fiscalizadora, mas nunca um PODER fiscali- zador (*), Nesse artigo, ao especificar um controle politico, o ex-senadot € politico, também professor de Direito Constitucional, usa 0 vocabulo politico em sentido “politico”, vale dizer, de politica partidiria... Afirma ele que o controle politico “é exercido por deputados e senadores, mediante a apre- ciagdo critica, o pedido de informasao, a investigacao parlamentar, ¢ pela vigiléncia da ‘opiniao piblica e dos érgaos de comunicagao”. E termina o parégrafo, dizendo: “A eficdcia da fiscalizagdo est4, efetivamente, no 1) RIPPERT, Georges. Les Forces Créatrices du Droit, Paris, R. PICHON, 1956. (2) VIDE “Poderes e funebes do Estado”, Parte III de A Forea do Direito ¢ os Limites da Lei, Belém, Edigbes CEJUP, 1987, pp. 97 usque 150, 312 R. Inf. legisi, Brasilia a. 25 m. 99 jul./set. 1988 controle administrativo realizado pelos processos técnicos adequados e por Grgios independentes.” Eficdcia da fiscalizagao? Controle administrativo? Quel dommage... Como se vé, nenhuma preocupacio de distinguir fiscalizago de con- trole, como se ambos fossem a mesma coisa... Dé ao vocdbulo politico vago ¢ impreciso campo semntico, mostrando que RIPPERT estava e continua a estar absolutamente certo quando lamentava a desvalorizacao da técnica de conferir aos vocébulos sentido preciso. O direito, curiosamente, deixou de ser ciéncia quando os “cientistas” positivistas invadiram-lhe as fronteiras... Dar sentido unfvoco aos vocdbulos para transformé-los em termos juridicos & todo 0 labor dos que se prezam de juristas. O jurista deve buscar a denotagio exata dos vocébulos ¢ nio descambar para suas conotagSes ov “senotagées”. As conotagoes sao sujeiras semanticas que se prendem aos vocdbulos, tisnandodhes a pureza da denotagao. Hé vocabulos que adoecem de conotagdes ot entdo adquirem infeceao hospitalar nas agéncias publici- tarias ou nos érgios de comunicagio de massa, como, por exemplo, a sublime palavra Amor, que ¢ a propria definiggo de Deus, segundo Sao Jodo, hoje rebaixada a mero sinénimo de sexo. No mundo juridico, espe- cialmente hoje em dia, quando as hordas barbaras dos partidos politicos invadem o Império Romano do Direito, quase todos os vocébulos correntes esto contaminados de conotagées dispares ou substitufdos por eufemismos, verdadeiros draculas vocabulares! Apenas como exemplo de vampiro voca- bular, cito “vontade politica” (1), criado certamente por jornalistas e nfo por jurista. Esse Drécula anda perambulando pelas penumbras dos corre- dores do Congresso, prelibando 0 colo da Constituicdo. Palavras sem alma semantica, a vagar errantes pela noite das inteligéncias e da cultura, ¢ cuja imagem (idéia) no pode refletir-se no espelho juridico... Assim est4 0 vocdbulo “politico”: sujo de conotagées relativas a poli- tica; enfermo de conotagoes maquiavélicas de conquista ¢ manutengav du Poder; tossindo “senotacdes” de aquisicgao e desfrute de prestigio; e, final- mente, delirando semanticamente, como arte de preterir valores © afastar concorrentes temidos. Nisso degenerou a palavra politica e, quando tudo isso se faz com pompa e no uso de um cargo “politico”, temos, segundo alguns, um ato... politico. Mas, para o jurista, tal vocabulo é imprestavel. Necessério é que o jurista siga o velho conselho de CELSO: “Scire leges non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestatem!” A primeira coisa a se fazer seré dar um banho filolégico no vocébulo “politica”, esfregando-o com sabfo-de-cinza etimoldgico. E teremos entio a Nmpida denotagio: politica quer dizer Ciéncia do Estado, assim como matemdtICA quer dizer ciéncia dos ntimeros, muisICA significa ciéncia das musas e gramdtiCA, ciéncia das palavras. POLIS, em grego, quer dizer ESTADO, da mesma forma que jé foi CIVITAS, em Roma, R. Inf. legisl, Brasilio 25m. 99 jul./ser. 1 313 Ora, se 0 ato politico é ato estatal, a primeira coisa que se vé, clara- mente, € que nao é ato de governo. Estado e governo sao coisas diversas, pois um Estado pode momentaneamente estar sem governo, pode ser bem governado, pode mudar de governo ¢, sem contradigéo Idgica, podemos ter um Estado anérquico, ou seja, Estado sem governo (?). Logo, como podem juristas empregat como sinénimos perfeitos ato politico e ato de governo? Aceitar essa equivaléncia ¢ confisséo velada de que se nao conseguiu ver mentalmente, sem confusio, as idéias contidas nos termos ajo politico & ato de governo. Estado é um ente de razio, permanente e impessoal, ubique et semper, quet o chamemos de polis, de civitas ou de Estado, enquanto 0 Governo € passageito ¢ pessoal, seja ele mondrquico, aristocrdtico ou repu- blicano ou tenha degenerado em tirania, oligarquia ou democracia. Os atos politicos mantém o didlogo entre os deuses do Olimpo, como no inicio de Os Lusiadas, por isso, sao intra-estatais, manifestagdes de vontade entre: Poderes. Nesta tertilia, os mortais (os stiditos) néo podem tomar parte a nao ser como Ganimedes, servindo néctar e ambrosia (impostos, taxas ¢ contribuigdes de melhoria) aos divinos componentes do Estado. Com isso quero dizer que todo ato politico & intra-estatal, s6 remotamente atinginde, em seus efeitos, os cidadaos. Os atos de governo, entre os quais os mais conspicuos sfio os atos de policia, sio extra-estatais, sio como que mensagens do Olimpo, trazidas por Hermes aos mortais, os stiditos. O ato de governo é hic et nunc, 0 que lhe da maior grau de concreeao (menos abstrato) que 0 ato politico. E, com isso, apresentamos nova divisio dos atos piiblicos: atos politicos, atos de governo e atos administrativos “stricto sensu”. Os primeitos tém discricio- nariedade absoluta, os segundos, discricionariedade relativa e os tltimos so atos vinculados, conforme se vera em seguida. @ ATOS POLITICOS Gntra-estatais, com discrlolonariedade absoluta) @ ATOS DE POLt- cra ATOS DE GO- ATOS DE ADMI- ATOS PUBLICOS ° . (ATOS ADMINIS- VERNO NISTRAGAO 8U- TRATIVOS dato (extra-estatals, PERIOR sensu) com dlscriclonarie- dade relativa) @ ATOS DE ATOS ADMINIS. eee . - ATOS DE ‘TRATIVOS © ERPEDIENTE stricto sense (vineulados) (@) Sine grano salis.. m4 R. Inf. legis!, Brasilia 9. 25 Quando disse que os atos politicos so intra-estatais, quis dizer que so atos praticados livremente dentro do territério de competéncia demat- cado na Constituicao, para cada Poder. Assim, o Executivo tem seu territério delimitado constitucionalmente e, dentro dessa linde, age com total e abso- luta liberdade, por isso dissemos que tem discticionariedade absoluta, ou s¢ja, nenhum dos demais Poderes pode contesté-1o. Nao apenas o Poder Judiciério, como supunha RUI BARBOSA e parece que continuam supondo os franceses, mas todos os outros Poderes tém de respeitar o ato politico dos demais. E é 86 por esse motivo que todos os Poderes respeitam a res judicata, fruto de atos politicos do Judiciario. Pelo mesmo motivo se respeita a lei, produto de ato politico do Legislativo, Dentro desse entendimento, temos duas conseqiiéncias légicas, deriva- das de dois pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal, nos MMSS n? 16.255 (RTJ 38:245-50) € n° 19.973 (RT] 77:29-48). A primeira 6 a de que, se nenhun dos Poderes constituidos pode resistir a um pronuncia- mento do Tribunal de Contas, como consta desses MMSS, ent&o o Tribunal de Contas, ao se pronunciar dentro do seu campo constitucional, pratica ATO POLITICO. A segunda conclusdo é a de que a natureza juridica do Tribunal de Contas é a de um Poder e Poder diverso dos demais Poderes, uma vez que nem o Congresso Nacional pode contradité-lo.. Isto posto, vamos a duas definigdes que apresentei em O Controle, Esse Desconhecido, as quais podero ser melhor aquilatadas pelos que leram A Forga do Direito e os Limites da Lei (Edigdes CEJUP, 1987), também de nossa autoria. Neste segundo fivro, exponho a Teoria Tetraédrica, a qual, ao FATO, NORMA e VALOR, de RADBRUCH e REALE, acrescento a FORGA. A FORGA no Estado, transmuda-se em PODER, Pela Teoria Te- traédrica vé-se com nitidez que PODER, em sentido constitucional, € o conjunto de quatro (4) fungdes, nem mais, nem menos, Sfo elas: fungo administrativa (forga), fungao normativa (norma), fungao judiciéria (valor) e fungiio controlativa (controle). Estas fungdes, reunidas quatro a quatro > com predominancia de uma delas em cada Poder, constituem esse Poder. No Executivo predomina, entre as quatro, a fungdo administrativa, que pre- valece contra as fungSes administrativas dos demais Poderes. No Legislativo, hé predomindncia da furedo normativa, que prevalece contra as fungdes normativas de todos os outros Poderes. No Judicidrio a fungao predomi- nante € a judicativa, a qual prevalece contra as fungdes judicativas dos demais. Da mesma forma, no futuro Poder Moderador, a fungio predomi- nante serd a fungdo controlativa, a qual diz a Ultima palavra perante todos 98 outros Poderes, em assuntos de CONTROLE. R, Inf, legis! Brasilia a, 25 0, 99 jul./set, 1988 315 As seguintes ilustragdes deixam bem clara a visio do Estado Integral, na concepgao tetraédrica: TETRAEDRO do PODER ESTADO EXECUTIVO $n pt OG Di 5 Es PM t 00 ? DD t EF Vv Rk 0 A D ° k FODER JUDICIARIO fungao administartiva fungo normativa = fungGo judicativa fungaio controlativa funggo-meio de cada Poder [@] = funcaofim de cada Poder, predominante e prevalente sobre as fungdesmeio idénticas dos demais Poderes 316 R. Inf, legit. Brasilia o. 25 n, 99 jul./set, 1988 Fig. 2 — TETRAEDRO DA FUNCAO ADMINIS- TRATIVA no ESTADO, com prevaléncia da fun- gdo-fim administracional (do Executivo) sobre as fungdes-meio, administrativas, dos demais Poderes. Re Inf, Legis! Brosilia 0. 25». 99 jul./ecr. 1988 a7 55 Fig. 3 — TETRAEDRO DA FUNCAO NORMA- TIVA no Estado, com prevaléncia da fungao-fim legislacional (do Legislativo) sobre as fungdes-meio, normativos, dos demais Poderes. a8 R. Inf, lopisl, Brasilia, 25 om. 99 jul./sot. 1988 R, int. legial. Fig. 4 — TETRAEDRO DA FUNCAO JUDICATL- VA no ESTADO, com prevaléncia da funcao-fim jutisdicional (do Judicidrio) sobre as fungdes.meio, judicativas, dos demais Poderes. Brotilia 2, 25 n. 99 jul./set, 1988 319 Fig. 5 — TETRAEDRO DA FUNCAO CONTRO- LATIVA no ESTADO, com prevaléncia da fungao- fim controlacional (do Controle, ou futuro Poder Moderador) sobre as fungdes-meio, controlativas, dos demais Poderes. R. Inf. logitl. Brosilio a. 25 0. 99 jul./sat, 1988 Tendo em mente o esterograma do Estado, reportemo-nos A definigaio que dei de ato politico, em O Controle, Esse Desconhecido: “ATO POLITICO é 0 ato governamental praticado mais que discricionariamente por agente politica no uso de competéncia especifica e expressamente indicada na Constituigdo para condugio harménica dos negécios piblicos, com vistas ao bem-comum.,”” Na verdade faltou a essa definicdo um pequeno acréscimo: “na Cons- tituigao e nas leis complementares & Constituigio”. De fato, a Lei Organica do Tribunal de Contas do Distrito Federal, por exemplo, atribui competéncia especifica aos auditores dessa Corte de Contas, o que faz deles verdadeiros magistrados, de raiz constitucional. Na definigéo acima nao ha circule vicioso pelo fato de haver mengio a “agente politico”, uma ver que jé haviamos previamente feito mencao & bela conceituagiio de agente politico, do renomado HELY LOPES MEI- RELLEs: “AGENTES POLITICOS sao os componentes do Governo nos seus primeiros escaldes, investidos em cargos, fungées, man- datos e comissies, por nomeacdo, eleicéo, designagtio ou delega- go para o exercicio de ATRIBUICOES CONSTITUCIONAIS. Esses agentes atuam cont plena liberdade funcional, desempenhan- do suas ATRIBUIGOES com prerrogativas e responsabilidade pré- prias, estabelecidas na Constituigho e em leis especiais.” (MEI- RELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 3. ed., S. Paulo, Revista dos Tribunais, 1975, p. 445.) — Grifos nossos. Nesta preciosa conceituago de agente politico, fariamos apenas um reparo: houve mengdo a atribuigdes, que na verdade todos possuem quando praticam atos administrativos, lato sensu; nfo hove meng&o expressa a competéncia, que € exatamente 0 limite de poder do agente politico, que © habilita para a prética de utos politicos. Na certa 0 vocdbulo nfo foi usado como termo juridico — caso em que pediria uma complementagio: Atribuigéo, lato sensu —, mas como palavra da lingua... E, segundo o proprio professor HELY, os agentes politicos “so as autoridades piblicas supremas, do Governo e da Administragio na érea de sua atuagdo, pois no estéo hierarqui- zadas, sujeitando-se apenas aos graus limites constitucionais c legais de jurisdigao.” (Idem, ibidem, p. 57) If, tegisl. Brosilio @. 25 n. 99 jul./sot. 1988 321 Ora, os “graus € limites constitucionais legais de jurisdigdo” sao precisamente competéncia ¢ ndo atribuigdo. A propésito, no mesmo livrinho © Controle, Esse Desconhecido, proponho a seguinte tabela de harmonizagao das ordens do direito: ORDEM ORDEM ORDEM ADMINIS- | GOVERN: CIVIL. ORDEM DO | ORDEM the ‘TRATIVA ‘MENTAL ESTADO | JUREDICA @ Soberania @ Jurisdigio @ Fungiio © Poderes @ Personali- dade @ Governo © Competén- © Orgio @ Autorida. @ Capacidade cia des © Poder @ Atribuigdes @ Cargos @ Agentes — @ Pessoa ATO ATO ADMI- | ATO DE ATO SURIDICO | NISTRATIVO | GOVERNO | JURIGENO ATO POLITICO A ocasifio, observamos que o civilista pode usar apenas a clave de sol, mas © administrativista tem de utilizar-se de todas as claves, ser profundo conhecedor do contraponto juridico, para poder compor sua sinfonia, desti- nada a varios instrumentos. Como inicio de pesquisa nesse setor, apresentel a tabela acima, Sua utilidade vai mostrar-se, agora, com pequenos reparos: ORDEM DO | ORDEM ORDEM ROEM ORDEM ADMINIS~ GOVERNA- ESTADO JURIDICA TRATIVA ‘MENTAL CIVIL Soberania ¢ Jurisdigo @ Fungio ¢ Poderes © Personal © Governo © Competén- © Grgio @ —Autorida @ Capacidade cia des © Poder @ Alribuigdes @ Cargos @ Agentes © Pessoa Publico ATO ATO ATO ADM. | ATO DE ATO POLITICO ] JURIDICO | NISTRATIVO } GOVERNO | JURIGENO Na Ordem do Estado, quando dizemos Poder Piblico, estamo-nos reportando & POTESTAS latina, que em A Fora do Direito ¢ os Limites da Lei mostramos poder manifestar-se cum imperio (nos Poderes Executi- vo, Legislativo ¢ Judiciério) ou sine imperio, quando configura o que se chamou de AUCTORITAS, predominante na fungéo CONTROLE ¢ tam- bém presente no Executive e no Legislativo, mas inexistente no Judicidrio, teoricamente, 32 R. Saf. legisl, Brosilio a. 25m. 99 jul./set, 1988 Na Ordem do Estado, quando mencionamos Podetes, queremos refe~ tir-nos aos Poderes Constituidos, ou seja, Executivo, Legislative, Judiciario e todos os 6rgaos de controle que iio, de futuro, compor o Poder Mode- rador, ou Controlativo. A tabela acima € de entender-se como sendo de abstragdes decres- centes, quer de cima pare baixo como da esquerda para a direita, Ou seja: na Ordem do Estado, por exemplo, Soberania é termo mais abstrato que Poder Puiblico, passando pelo grau intermedidrio de abstragio “Gover- no”. Da mesma forma, a Soberania vai-se concretizando (menor grau de abstracdo) em Jurisdicdo, Fungéo, Poderes Constituidos, até chegar a Per- sonalidade que &, poeticamente falando, uma “soberania pessoal”... No nivel “Governo”, por exemplo, este vai-se, por assim dizer, ‘materializan- do”, em Competéncia, Orgao, Autoridades e Capacidade. Neste nivel, nao seria absurdo juridico dizer-se imaginosamente que os Estados-Membros sio “relativamente incapazes” como Governo, suspeitando-se que os Munici- pics, em nossa Republica, tenham sido tratados como “absolutamente inca- pazes”... Outra observacio que nos parece oportuna e pertinente refere-se aos AGENTES. Os agentes podem ser meros agentes administrativos, que tém ATRIBUICOES, stricto sensu, enquanto os AGENTES POLITICOS tém competéncia (para a pratica de ATOS POLITICOS) e também attibuigdes, stricto sensu, para 2 prética de ATOS ADMINISTRATIVOS, também stricto sensu. Entre estes extremos, situamos 0s ATOS DE POLICIA ¢ os ATOS DE GOVERNO, que pressupdem competéncia especifica. Como se vé, a tabelinha aponta rumo de pesquisas que seriam muito frutiferas dependendo do administrativista que as fizesse. Proposta A consideracao dos administrativas, no passa de ponto de partida para visio integral ¢ com- pleta do mundo juridico, distinguindo — mas a0 mesmo tempo harmoni- zando — os mundos do direito pablico e do direito privado. Na tabela acima devemos entender bem a separagao da ordem esta tal da ordem governamental. O Estado ¢ permanente, impessoal, abstrato. © Governo é passageiro, pessoal, concreto. No mesmo Estado podem suce- der-se excelentes e péssimos governos. Os governantes, por sta vez, podem agir apenas na qualidade de governantes, mas também podem agir como agentes politicos, ou seja, agentes do Estado. A diferenga entre duas agdes, uma politica e outra governamental, vamos visualizar nas figuras do tetrae- dro estatal: quando exercita fungao maior, o agente pratica ato politico; quando executa atos das fungdes menores que compdem o Poder em ques- to, os agentes praticariam atos de governo. Exemplo: quando veta uma Jei ou quando a sanciona, o Presidente da Repdblica esté realizando uma fungao maior(Executiva), ou seja, um ato estatal ou ato politico. Quando escolhe um sett Ministro, esté exercitando a furigdo menor administrativa do Poder Executivo ¢ seu ato sera ato de governo € nao ato politico. Quando apresenta 4 consideragio do Congreso um nome para Ministro do Tribu- nal de Contas da Unifo, evidentemente nao estd praticando ato politico, R. Inf, legisl. Brosilio 0. 25 n. 99 jul-/set. 1986 323 mas ato de governo. Tanto isso € verdade que, se apresentar um candi- dato de apenas vinte anos de idade, mesmo que o Senado o aprove, tal ato poderd ser aniquilado juridicamente pelo Poder Judicidrio. Mas nem © Judicidrio nem © Legislative podem obrigar o Presidente da Reptblica a sancionar ou vetar determinada lei e, se houver veto, 0 Senado pode fejeitar o veto, mas néo pode obrigar o Presidente a alterdlo, pois vetar ou sancionar so atos politicos. Diriamos que 0 ato politico tem discricionariedade absoluta, ou seja, discricionariedade “arbitréria” dentro dos limites constitucionais demarca- dos expressamente na Constituicao (art. 59, § 1.°). Além dessa caracteris- tica, 0 ato politico é indelegdvel, por ser exercicio de competéncia e nfo de mera atribuigéio. Mais ainda: o ato politico € irrenuncidvel: o Presidente no pode deixar de, ou sancionar, ou vetar a let votada pelo Congresso (*). Tem de sancionar ou vetar a lei, da mesma forma que o juiz de direito tem de executar a prestagdo jurisdicional. E aqui j4 parece surgir um fruto desta teoria, a ser pensada pelos constitucionalistas e pelos administrativis- tas: os deputados federais ¢ os senadores tém de votar a favor ou contra determinado projeto de lei, pois, sendo tais atos, alas politicos, nao se entende que possa haver abstencao, nem voto em branco, nas votagdes do Congreso em geral. Sdo atos irrenuncidveis, por serem atos politicos. Os atos politicos, além de possuirem discricionariedade absoluta, serem indelegdveis e irrenuncidveis, sio também irretratéveis. Depois de sancio- nar uma lei, ndo pode o Presidente voltar atrés e vetdé-la. Da mesma forma, nfo pode vetéla e depois arrepender-se, sancionando-a. Vetou, est vetado. Sancionou, est sancionado. Igualmente, depois de votar, nfo podem os parlamentares arrepender-se do voto nem alegar erro, mudando seu voto. Votou, esta votado, Na alta esfera do Estado nfo se admitem levian- dades nem enganos. E isso é a contrapartida da imensa liberdade que a discricionariedade absoluta confere aos atos politicos. E, ainda a propésito de discricionariedade absoluta, podemos distingui-la da discricionariedade relativa, dizendo que a discricionariedade absoluta 6 aquela que se néo vin- cula nem & prépria motivagao (5). Os atos discricionérios, como é sabido, Se _n&o se manifestar dentro de 15 diss, tsso equivale a sangéo tacita; cf. art. 89, § 2°, da CRE; c.c. (5) Os atos admintstrativos, quando apreciados pelo Judiclario, o so, apenas, no que tange & sua legalidade, ou conformidede com a lei. © Judiciério (e, conforme vimos expondo, todos os demais Poderes) néio pode penetrar nas questies de opor~ tunidade e conveniéncia, que so 0 campo de “arbitrio” da administracio, Mesmo nos tos vinculados, tal territorio & sagrado: oportunidade e conveniéncta sho 08 privilégios do administrador. Entretanto, se um ato, mesmo discrictonrio, for motivado, a conformidade com a prépria motivagso pode ser analisada pelo Judi- clério, que, de certa forma, vé na mottvagso um privilégio em sentido etimalégico, ‘ou seja, Tel particular e espeeifica pars aquele ato. Se tal ato esté em desacordo com sua propria motivacso, pode, portanto, ser anulado pelo Judictirio (ou por qualquer outro Poder provocado). Mas, como dissemos, 0 ato politico nem & propria ‘motivagdo se vinculat 334 R. taf. legisl, Gresitia a, 23m. 99 ful/aee, 1908 quando motivades, ficam vinculados & propria motivagao. Os atos de go- verno, de discricionariedade relativa, por exemplo, vinculam-se & prdpria motivagao, Idem, para os atos vinculados ou atos administrativos stricto sensu. Mas os atos politicos, nfo. Mesmo que os consideranda feitos pelo Presidente da Republica nos levem logicamente ao veto & Lei proposta, se afinal o Presidente acabar sancionando a Sei, esta sancionada a lei. Mesmo que logicamente se conclua que a lei deve ser sancionada pelos consideranda Preliminares, se afinal for vetada, yetada esté. Diga-se o mesmo da sentenga de um juiz de direito: ainda que desde o comego de sua sentenga tudo nos leve a entender que & caso de condenagio, se afinal for dito “absolve 0 réu”, absolvido estd o réu. E vice-versa. Logo, nem a propria motivacio pode vincular ¢ ate politico e, por isso, chamamos a sua discricionariedade de absoluta. A tltima caracteristica do ato politico ¢ talyez a mais curiosa é serem tais atos intra-estatais, 0 que aliés deveria saltar aos ols Jogo & primeira vista, Se so atos estutais, os atos politicos nao se dirigem aos administra- dores ou stiditos: dirigem-se aos demais Poderes. Um veto nada tem a ver com qualquer contribuinte diretamente. Um veto é veto & proposta do Le- gislativo, é didiogo entre Poderes e s6 entre cles. Uma sentenga do Judicié- tio é expresso da vontade do Judiciério perante os demais Poderes e s6 postetiormente pode vir a referir-se aos cidadios envolvidos. Da mesma forma, o pronunciamento do Tribunal de Contas da Unido é manifestagao de sua yontade perante os demais Poderes, pois tal ato é politico e nio ato de governo, ]4 0 mesmo no acontece com os atos de governo, Os atos de governo sho extra-estatais, dirigem-se aos administrados em geral, mas podem ser resistides pelo particular, com recurso a outro Poder que néo aquele de cujo Sérgio emanou o ato de governo. O ato politico nao admite recurso a outro Pader. Citamos como exemplo uma sentenga do Judiciério, ato politico do juiz. Qualquer recurso s6 pode ser impetrado dentro da esfera do proprio Judiciario, A teciproca nfo & verdadeira, pois 0 ato de governo, que admite recurso a outro Poder, pode, também, accitar recurso dentro da esfera do mesmo Poder de onde emanou. O recurso dentro da érbita do mesmo Poder € 0 que se tem chamado de recurso administrativo, Este campo parece nao ter sido, até agora, aprofundado, Apdés a Teoria tetraédrica, entretanto, ¢ de considerar-se a hipétese de um ato de governo do Judiciario poder ser alterado pelo Executive. Digamos, por exemplo, que um funciondria seja nomeado ou promovido, dentro do Judiciario, em desacordo com as normas legais ou com determinagdes expressas do Poder Executive. Todos os recursos ao proprio Judicidrio nao prosperaram. Teoricamente, cabe ao Executivo, cuja fungio administrativa prevalece contra idénticas fungdes dos demais Poderes, resolver a questao definitivamente, por tratar-se de questo administrativa. Esta € a limpida teoria. No entanto, supersticiosa tradi¢do da ao Judicidrio uma durea de infalibilidade ¢ de intocabilidade que s¢ niio justifica, qucr teoricamente, quer na pritica. Nisso, ¢ evidente, R. Inf, tegish. Bresilie o, 25m. 99 jub/scr, 1988 323 nfo vai nenhuma insinuago maldosa, embora seja tempo de se comecar @ repensar o tabu criado por RUI BARBOSA e outros, quanto ao privi- légio do Judiciério em face dos outros Poderes. Pensamos que a tradicao dos EUA muito influiu em nosso pais, pois, como disse o Chief Justice CHARLES EVANS HUGHES, “... the Constitution is what the judges say it is”. O Judicidrio € um Poder face a outros Poderes: tem seus pri- vilégios regalias ¢ deve ter, também, suas limitagées, Da mesma forma que seus atos politicos sio tao intocdveis quanto os dos outros Poderes, também seus atos de governo sao relativamente discricionérios ¢ sujeitos &s mesmas restrigdes que os atos de governo dos demais Poderes. E parece que, até agora, ninguém jamais pensou que outro Poder pudesse corrigir tais atos ou neles interferit. Por que nfo? Uma prova de que os Tribunais de Contas constituem na verdade um Poder de fato, vamos ter no “julga- mento” das contas do Poder Judicidrio. Se ¢ verdade que o Tribunal no pode alierar uma sentenga do Judicidrio, também é verdade que pode detec- tar um alcance nos atos de governo do Judi E, com estas consideragdes, pensamos ter dado nossa pequena contri- buigdo, ainda que na forma de meta provocagdo intelectual, aos doutos, neste assunto dos atos politicos que, para nés, nao séo nem podem ser assemelhados aos atos de governo, pois, ousadamente, assim definimos as duas realidades juridicas: “ATO POLITICO 6 0 praticado com discricionariedade abso- luta por agente politico no uso de competéncia exclusiva, espect fica e expressamente indicada na Constituigéo, ainda que expl tadas em leis complementares & Constituig@o, ou em leis organi cas ¢ em leis especiais, para condugao harménica dos negécios piiblicos, com vistas ao bent comum.” “ATO DE GOVERNO é @ praticado com discricionariedade relativa, por agente politico no exercicio de atribuigoes admi frativas expressas em lei ou nesta implicitas, para execugao efi- ciente das tarefas do setor piiblico a seu cargo, com vistas tan- bém ao bem piiblico.” De comum, como se vé, sé tém ambos (0 ato politico e o de governo) © fato de, tanto um como o outro, serem praticados por agentes politicos, mais nada. Sei que as definigdes sio perigosas. Mas 0s sertdes brasileiros também exam perigosos ¢ isso ndo impediu que os bandeirantes os desbravassem ou neles mortessem, delirando em vis6es de esmeraldas. Sejam embora tur- malinas as minhas definigses, que outros também se aventusem & Serra de Vupabugu, em busea de verdadeiros termos juridicos! 326 R. Inf. legist, Brosilia @. 25 m. 99 jub./set. 1988

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