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As teorias de T. S.

Kuhn e a matemática: um ensaio discu-


ciente da "nova historiografia" da matemática

Herbert MEHRTENS
Hamburg
Traduzido por Marcelo Papini

Súmula

Uma discussão da aplicabilidade dos conceitos da


teoria das revoluções científicas de T. S. Kuhn,
estimulada pela proposição, por M. J. Crowe, de dez "leis"
relativas à mudança na história da matemática. Os
conceitos "revolução" e "crise" são recusados, enquanto
são admitidos, para uso sistemático na historiografia da
matemática, conceitos centrados na sociologia da
comunidade científica. Isso é completado pelas
consideração de influências extramatemáticas. Finalmente,
mostra-se que as "leis" de Crowe se explicam mediante
esses conceitos.

1. Introdução

Em um artigo recentemente publicado em Historia Ma-


thematica, M. J. Crowe tentou "estimular a discussão da
historiografia da matemática, defendendo a proposta de dez
"leis" concernentes à mudança na matemática (CROWE 1975,
p. 162). Seu ponto de partida é a "nova historiografia da
ciência", cujo livro básico é o ensaio A estrutura das
revoluções científicas [The structure of scientific
revolutions] (1970a), de T. S. Kuhn, cuja primeira edição
apareceu em 1962. Desde então, tem havido ampla discussão
das teses de Kuhn. Conseqüentemente, Kuhn teve que refinar
alguns de seus conceitos, o que foi feito no importante
Pós-facio [Postscript 1969] à segunda edição de seu livro
e em artigos posteriores (1970b, 1970c).
Kuhn afirma que "historiadores da ciência começaram
a propor novos tipos de perguntas e a traçar diferentes
... linhas de desenvolvimento" (1970, p. 3). Esse é o
núcleo do que foi denominado a "nova historiografia" da
ciência. Historiadores da ciência adotaram explicitamente
o substrato teórico, principalmente da filosofia e da
sociologia. Tentaram colocar questões boas e fecundas, a
fim de obterem uma compreensão vasta e adequada de como se
desenvolvem as ciências e a matemática. No campo da
matemática, Crowe apontou dois exemplos importantes, a
saber, um artigo de I. Lakatos (1963/ 1964) e os estudos
de R. L. Wilder (1968, 1974). Contudo, as "leis" do
próprio Crowe deixam questões ainda por serem propostas e
fornecem pequeno material conceitual para um melhor
entendimento da história da matemática.
Ainda assim, as "leis" apontam certas regularidades
importantes que me induziram a iniciar a discussão. Tenta-
rei, neste ensaio, tecer essas regularidades em um arranjo
conceitual que é basicamente kuhniano.
Na parte principal, discutirei a aplicabilidade da
teoria e dos conceitos de Kuhn à história da matemática.
Iniciando com uma breve descrição da teoria de Kuhn,
discutirei então os conceitos em conexão com a matemática,
indo dos modelos gerais de mudança, revolução e crises,
através de conceitos mais específicos, como comunidade
científica, aos diferentes termos da matriz disciplinar. A
seção 3 voltar-se-á a influências extramatemáticas e, na
seção 4, discutir-se-ão as "leis" de Crowe nos termos dos
conceitos aqui elaborados.

2. Os conceitos de Kuhn e a sua aplicabilidade à


matemática

O conceito básico de Kuhn é o de "comunidade cien-


tífica". "Uma comunidade científica consiste ... nos
praticantes de uma especialidade científica. Eles foram
submetidos, em uma grau sem paralelo em muitos outros
campos, a educação e iniciação profissional similares;
nesse processo, absorveram a mesma literatura técnica e
dela extraíram muitas das mesmas lições ... No interior de
tais grupos, a comunicação é relativamente plena e o
julgamento profissional é relativamente unânime ...
Certamente que comunidades nessa acepção existem em vários
níveis. O mais abrangente é a comunidade de todos os
cientistas." (KUHN 1970a, p. 177)
O grupo é constituído pelo substrato comum de seus
membros. É isso a que Kuhn chama o "paradigma" da
especialidade. "Um paradigma é aquilo que é partilhado
pelos membros de uma comunidade científica e,
reciprocamente, uma comunidade científica consiste nas
pessoas que partilham um paradigma." (Ibidem, p. 176) Esse
conceito encontrou muitas críticas e Kuhn teve que o
refinar em "matriz disciplinar": "disciplinar porque se
refere à posse comum dos praticantes de uma disciplina
particular; matriz, porque é composto de elementos
ordenados de vários tipos, cada um deles exigindo especi-
ficação ulterior." (Ibidem, p. 182)
Como termos de uma matriz disciplinar, Kuhn enumera
os quatro seguintes (embora os haja mais):

• "generalizações simbólicas", expressões como f = ma, que


são tanto legislativas quanto definidoras (ibidem, p.
182-183),
• "crenças em modelos particulares", como a crença de que o
calor é a energia cinética das partes constituintes do
corpo (ididem, p. 184),
• "valores" acerca das qualidades das teorias, de
predições, de apresentação de matérias científicas etc.
(ibidem, p. 184-186),
• "modelos" ou "paradigmas", soluções de problemas concre-
tos que mostram como se deve efetuar o tarefa (ibidem, p.
187-191).

Agora Kuhn distingue duas formas na evolução da


ciência: ciência "normal" e "revolucionária" (ou extraor-
dinária).
No âmbito da matriz disciplinar aceita, o cientista
é capaz de escolher problemas que são relevantes e, em um
alto grau de probabilidade, solúveis. Os termos da matriz
disciplinar atuam como regras que asseguram a solubilidade
do problema. Além disso, os modelos configuram-se em guias
de pesquisa. Esse tipo de trabalho é como resolver
enigmas. O fracasso em resolver um problema normal será
atribuído à falta de paciência ou de inteligência do
cientista. Somente depois que tais fracassos se tornam
espetaculosos, ou por causa da reputação das pessoas
envolvidas ou por causa de sua quantidade, serão
questionados os termos da matriz disciplinar. O tipo de
pesquisa na qual não ocorrem problemas espetaculares é
"uma vigorosa e dedicada tentativa a forçar a natureza a
se ajustar ao quadro conceitual fornecido pela educação
profissional" (KUHN 1970a, p. 5). Kuhn denomina-o "ciência
normal". Para ele, "resolver enigmas" é o critério
demarcativo das ciências maduras.
Regularmente, a natureza exibe "anomalias", fenôme-
nos que se mostram resistentes à classificação habitual.
Geralmente, tais fenômenos são deixados para as gerações
vindouras, munidas de melhores ferramentas. Algumas vezes,
o fracasso persistente no trato de uma anomalia conduz a
pequenos desvios na matriz disciplinar, o que conse-
qüentemente permite integrar a anomalia à teoria, de uma
forma razoavelmente normal. Se isso não ocorrer, a comuni-
dade científica é conturbada. Seus membros gradualmente
reconhecem que existe algum erro em suas crenças básicas.
Esse é o estado de "crise" na comunidade científica. Os
laços até então rígidos da matriz disciplinar tendem a
afrouxar-se e, basicamente, novas teorias e soluções,
novos "paradigmas" podem surgir.
Não existe escolha racional entre o velho paradigma
e o novo. As razões da escolha de uma teoria (capacidade
de explicação, fecundidade, elegância etc.) atuam antes
como valores que como regras de escolha. A troca de
paradigma é como uma mudança no modo perceptivo; os
cientistas percebem a natureza de modos distintos. Os
conceitos, as generalizações simbólicas etc., se houverem
sido preservados no novo paradigma, têm um novo
significado por causa de um novo contexto lingüístico.
Essa tese de incomensurabilidade tem sido muito discutida;
sua elaboração por Kuhn (1970c, p. 259-277) mostra muito
claramente como ele encara o desenvolvimento científico.
As revoluções kuhnianas não são apenas mudanças
fundamentais no modo de ver o mundo, as quais ocorrem uma
vez em cada século. Revoluções são "um tipo pouco estudado
de mudança conceitual que ocorre freqüentemente na ciência
e que é fundamental ao seu avanço." (KUHN 1970c, p. 249-
250) Nessa acepção Toulmin tem usado o termo "micro-
revolução" (TOULMIN 1970, p. 47). As revoluções são sempre
vistas com respeito a uma comunidade científica que pode
ser muito pequena; e revoluções podem envolver apenas
partes da matriz disciplinar.

2.2 As aplicações dos conceitos de Kuhn à matemática

2.2.1 O modelo da mudança científica

O ponto de partida de Kuhn é a psicologia (ou


sociologia) da comunidade científica normal. O contraposto
da comunidade científica é a natureza. Daí ele desenvolve
sua visão dualista da mudança científica.
Em princípio, isso se transporta à matemática. Sem
discutir se a matemática se refere de alguma forma à na-
tureza, podemos dizer que a matemática cuida daquilo que
oferece resistência ao matemático e que requer tratamento.
Em maior grau que nas ciências naturais, os problemas por
serem examinados são determinados pela própria matemática.
Isso porém é apenas uma diferença de grau. A relação entre
os matemáticos e o seu tema é muito parecida com a que
vigora nas ciências naturais.
Kuhn assume que a comunidade científica esteja cla-
ramente identificada, relativamente insulada no seio de
comunidades maiores, e que esteja relativamente livre de
influências extra-científicas. Isso converte toda sua
teoria em uma forte idealização que recebeu severa censura
dos historiadores da ciência (cf., por exemplo, MEYER
1974). Tal modelo de mudança, se ocorre na matemática,
certamente não é facilmente visto. Existem, entre outras
coisas, desenvolvimentos entrelaçados de disciplinas
matemáticas distintas e influências extramatemáticas de
vários tipos. Não parece ser um modelo geral de mudança na
matemática que se possa aplicar à historiografia. Existem,
porém, muitas regularidades (como o demonstram as "leis"
de Crowe) e essas se podem examinar e explicar
parcialmente pelos conceitos de Kuhn. Assim, discutiremos
a aplicabilidade dos conceitos, começando com "revolução"
e avançando na direção dos elementos da "matriz discipli-
nar".

2.2.2 Revoluções

Há geralmente duas questões envolvidas na aplicação


dos conceitos de Kuhn à matemática: Existe tal conceito em
matemática? Se existir, esse conceito se presta ao uso
definido e fecundo na historiografia da matemática? Pri-
meiro, existem revoluções na matemática? Consideremos esse
exemplo:
Até certamente no século XIX, os instrutores de
Cambridge e de Oxford consideravam toda tentativa de
aprimoramento da teoria das fluxões como uma revolta ímpia
contra a sagrada memória de Newton. Decorreu disso que a
escola newtoniana da Inglaterra e a escola leibniziana do
continente europeu flutuavam separadamente ... Essa
situação embaraçosa mudou repentinamente em 1812 quando,
sob a inspiração do veterano Robert Woodhouse, um grupo de
jovens matemáticos de Cambridge formou a "Sociedade
Analítica" para propagar a notação diferencial ...
Inicialmente, esse movimento suportou pesada desaprovação,
posteriormente suplantada por feitos como a publicação de
uma versão em língua inglesa do "Tratado elementar de
Cálculo Diferencial e Integral" de Lacroix (1816). A nova
geração na Inglaterra começou então a participar da
matemática moderna. (STRUIK 1948, p. 246-248)
Para a comunidade matemática inglesa, isso foi uma
revolução. Foi subvertida uma parte substantiva da matriz
disciplinar, o compromisso com o sistema newtoniano de
notação. Esse é apenas um exemplo muito sugestivo, mas há
outros.
Ainda assim, Crowe sustenta que não ocorrem revolu-
ções em matemática ("lei" 10 em CROWE 1975, p. 165).
Provavelmente, ele rejeitará o exemplo dado, dizendo que
essa não é uma revolução na matemática. Para ele, "a
preposição em é crucial." (Ibidem, p. 166) Infelizmente,
ele não explica o que significa em matemática, dizendo
apenas que nomenclatura, simbolismo, metamatemática,
metodologia e historiografia não estão em matemática.
Provavelmente Crowe considera o "conteúdo" ou a
"substância" da matemática. (Que é isso?)
Tomemos porém um exemplo. Certamente que, na
acepção de Crowe, constitui uma peça da matemática o
teorema de Taylor, o qual foi invariavelmente válido desde
a sua publicação em 1715. Será que ele apresenta o mesmo
conteúdo na publicação original de Taylor e nos modernos
livros de texto? Existe sempre um amplo substrato
associado a esse teorema. Hoje em dia, o conceito de
função é completamente diferente, a análise infinitesimal
é fundada na topologia geral, o matemático considera com o
teorema de Taylor uma generalização a espaços de Banach
etc. Entretanto existe algo mais que mera tradição
vinculando o teorema de 1715 ao de hoje. O exemplo
pretende mostrar que é difícil apreender esse "conteúdo".
Talvez não se possam desnudar os conteúdos da nomencla-
tura, do simbolismo, da metamatemática etc.
Para o historiador da matemática, há um perigo
nessa preposição EM. O matemático de hoje tende a declarar
toda a história como a pré-história da matemática que ele
sabe. Assim, tudo o que esteja incluído ou seja derivável
da matemática moderna está na matemática. Os aspectos
historicamente significantes, como o uso de conceitos, a
crença geral na disciplina etc. naturalmente não estão na
matemática. Crowe mostrou que não é culpado por tal ponto
de vista. Eu, porém, gostaria muitíssimo de saber como ele
explica sua preposição EM.
Para acabar a discussão desse tópico, tomarei um
outro exemplo. Digamos que estamos considerando a Moderne
Algebra de 1930 de van der Waerden e qualquer livro
didático de álgebra da década de 1830. A diferença é
surpreendente; mudaram o conjunto completo dos domínios de
conteúdos intimamente associados, a nomenclatura, o
simbolismo, a metodologia e a metamatemática implícita.
Todos esses elementos se encontram entretecidos: um
conceito, por exemplo, não está determinado apenas por seu
próprio conteúdo, apresentado na definição, mas também
está determinado pelos contextos nos quais é usado. Assim,
existe uma "metafísica" para ele. Além disso, qualquer um
dos elementos separados é substantivo à teoria, como
ocorre historicamente. Portanto, direi que mudanças na
metodologia, no simbolismo etc. são mudanças na
matemática.
Poucas teorias matemáticas, se houver alguma, foram
completamente destruídas; porém muitas teorias ficaram
obsoletas ou se modificaram a tal grau, que quase não há
semelhança. Freqüentemente, essas mudanças resultaram da
ação recíproca das mudanças nos "conteúdos" e na
"metafísica" da disciplina. Um exemplo é a transformação
da álgebra clássica na álgebra moderna, sendo a "morte" da
teoria dos invariantes (cf. FISHER 1966, 1967) uma parte
desse desenvolvimento geral.
Até agora mostrei que existem eventos na história
da matemática que se podem denominar como "revoluções" e
que não existe razão em distinguir tais eventos quanto a
estarem ou não na matemática. O exemplo de um
desenvolvimento "revolucionário" que abriu a presente
seção é muito sugestivo, porque, nesse caso, são
apropriadas as conotações do vocábulo "revolução". Há
muitas palavras que se podem usar para exprimir a
importância histórica de um evento; um desses é
"revolução". A analogia implícita com a história política
é um recurso de expressão para o historiador como
escritor. Se, contudo, estivermos buscando um conceito que
desempenhe um papel metodológico na historiografia,
guiando e auxiliando a pesquisa e a interpretação na
história da matemática, essa força imaginativa de tal
palavra carregada de conotação constituirá antes um
perigo. Isso é óbvio, quando se vem a conversar sobre
"micro-revoluções". Aqui, seguramente, as conotações são
ilusivas.
Isso responde à segunda pergunta, sobre a utilidade
do conceito. Após haver recusado o esquema dualístico de
Kuhn como um modelo geral para a história do
desenvolvimento da matemática, nada resta que justifique o
uso do conceito de "revolução" como parte de um situante
conceitual metodicamente aplicado.
Seria muito apropriado dispor de tal situante con-
ceitual para a classificação (e a explicação) de tipos de
mudança na história da matemática. Não conheço nenhum.
Minha proposta consiste em usar o conceito de matemática
"normal" (que será discutido adiante) como ferramenta na
avaliação das inovações matemáticas: referir a inovação ao
seu substrato matemático contemporâneo (a matriz
disciplinar), verificar se é uma peça da matemática normal
e, se não o for, tratar dela individualmente, descobrindo
exatamente o que nela não é normal e por que assim o é.

2.2.3 Crises

Assim como "revolução", o conceito de "crise" tem


seu principal valor como parte do modelo kuhniano de
desenvolvimento científico. Rejeitando esse modelo geral
para a matemática, ainda assim, podemos debater o papel
das crises kuhnianas. Sejam quais forem os motivos, marcam
o fenômeno de serem questionados, em uma dada comunidade
matemática, os compromissos comuns do grupo e de,
conseqüentemente, correr risco a estabilidade do sistema
social. Os matemáticos estarão mais aptos a desenvolver
idéias que se desviem do substrato comum de seu grupo e
estímulos externos à comunidade serão mais facilmente
aceitos. Desse modo, podemos perceber crises como úteis ao
desenvolvimento científico.
Conhecemos crises na matemática, as denominadas
"crises de fundamento" (1). Por falta de espaço para
tratar delas, apenas posso consignar que duvido de que
seja historicamente adequada uma visão funcional dessas
crises, consoante a explicação anterior. Parcialmente,
isso é o resultado de uma ambigüidade do termo em sua
aplicação intuitiva à matemática. Significa sempre uma
crise social da comunidade dos matemáticos; porém, também
é vista como uma crise da matemática, a qual implica que,
se aparece uma contradição lógica básica, então ocorre uma
crise. Assim, o problema com o conceito está em verificar
qual evidência histórica pode justificar o uso do termo
"crise". Não dispondo de solução para esse problema e
alimentando forte dúvidas acerca da possibilidade de usar
esse conceito em explicações históricas (relativas à
matemática), preferirei não fazer um uso sistemático dele
(2).
O problema restante é indagar como se exercem em
matemática as funções de crises no esquema de Kuhn. Por um
lado, como Crowe expôs ("lei " 9, CROWE 1975, p. 165) e
Lakatos (1963/1964) ilustrou, os matemáticos possuem um
vasto repertório de técnicas para manipular problemas que
poderiam gerar crises. Uma dessas técnicas consiste em
ignorar problemas de fundamentação e confiar na
aplicabilidade ou na fecundidade dos conceitos e das
teorias matemáticas. Além disso, as comunidades
matemáticas são sistemas abertos. A ação recíproca entre
as disciplinas matemáticas e sua relação aos campos
extramatemáticos assim como a divergência dos matemáticos
entre si permitem mudanças básicas ao longo do percurso
sem enfrentamento de crises por toda a comunidade. As
seções seguintes elaborarão algumas dessas idéias.

2.2.4 Anomalias

Anomalias são fenômenos que não atendem às expecta-


tivas da matriz disciplinar aceita. Um exemplo eminente em
matemática é o quinto postulado de Euclides, que levou fi-
nalmente a novas geometrias e à subversão da "metafísica"
da geometria.
O exemplo mostra que anomalias desempenham papel
decisivo na história da matemática. Conforme foi dito, as
anomalias freqüentemente se podem manipular pelas técnicas
existentes. Freqüentemente, modificam-se conceitos para
integrar ou para excluir anomalias (cf. a "obstrução dos
monstros", de Lakatos 1963/1964). Averiguação dos modos
como os matemáticos reagem a anomalias fornecem subsídios
valiosos à historiografia da matemática.
"Anomalia" é um termo relativo. Ele remete à
relaçao entre um fenômeno e as expectativas teóricas dos
matemáticos. Como tal, constitui-se em um importante
conceito para avaliar o substrato e as inovações na
história da matemática. O quinto postulado não concordava
com a manifesta evidência, característica dos axiomas e
dos outros postulados euclidianos. Conduziu ao abandono da
crença em uma única geometria, apoiada em prejuízos
manifestamente evidentes.
Um exemplo menos familiar é a invenção dos primos
ideais e dos ideais por Kummer e Dedekind. Kummer tentava
provar o [grande] teorema de Fermat (o qual é, ele mesmo,
uma anomalia na teoria dos números). Ele aplicava técnicas
apenas recentemente adquiridas no domínio dos inteiros
complexos. Sua esperança era que os métodos e os teoremas
da teoria dos números naturais pudessem estender-se aos
inteiros algébricos. Assim chegou à falsa idéia de que
esses fossem fatoráveis em primos de um único modo. Após
Dirichlet lhe haver mostrado o erro, tentou integrar essa
anomalia e inventou os primos ideais, mais exatamente, a
divisibilidade por primos ideais. Dedekind adotou a linha
de pesquisa de Kummer, tentando desenvolver uma teoria
geral dos inteiros algébricos, tomando como modelo a
teoria clássica dos números, na forma em que foi moldada
por Gauss e Dirichlet. Conservando o conceito de
congruência no seu lugar central, tentou elaborar a teoria
em termos de congruências superiores. Porém, ao longo
desse tratamento, encontrou anomalias ulteriores.
Conseqüentemente, foi conduzido à invenção do conceito de
ideal, completando a teoria com o uso de corpos e de
módulos. Essa solução, obtida somente após anos de
trabalho esforçado, constituiu um desvio do substrato
usual no qual as novas entidades eram conjuntos de números
definidos não construtivamente. Em suma, a teoria dos
números algébricos desenvolveu-se pela ação recíproca, por
um lado, entre a força dos princípios diretores oferecidos
pela teoria gaussiana dos números e, por outro lado, as
anomalias que se exibiam nos diferentes corpos de números
algébricos. Esse esboço imperfeito pretendeu mostrar o
papel freqüentemente importante das anomalias (6).
Há muitos outros exemplos com diferentes graus de
conspicuidade. A reação da comunidade matemática a uma
anomalia depende da força das crenças por ela violadas. No
contexto conceitual pitagórico, a incomensurabilidade deve
de ter sido escandalosa. Porém o contexto não precisa
abranger toda a comunidade. Um exemplo inaparente é a
prova por E. Schröder da independência da distributividade
na axiomática da álgebra de Boole (4). Schröder, em sua
primeira apresentação da álgebra da lógica, havia colocado
a distributividade como axioma (SCHRÖDER 1877). C. S.
Peirce, a quem Schröder muito admirava, em um ensaio de
1880, afirmou ser a distributividade um teorema porém
omitiu a prova. No que tange à expectativa de Schröder,
isso era altamente anômalo, induzindo-o a dedicar-lhe a
maior atenção. Foi conduzido à separação em duas
desigualdades distributivas e encontrou a prova de uma
delas. Através de um modelo emprestado de suas outras
pesquisas, conseguiu mostrar que a outra desigualdade era
indemonstrável. Essas investigações fizeram-no enxergar a
aplicabilidade da estrutura definida por aqueles axiomas
que, no seu arranjo, precederam a lei de distributividade.
Instituiu o conceito de reticulado (com 0 e 1), a que
chamou cálculo lógico com grupos [logischer Kalkül mit
Gruppen] e os aplicou a problemas da álgebra universal
contemporânea (SCHRÖDER 1890, I, Anhang 4-60. Assim, a
anomalia conduziu a interessantes resultados que, todavia,
não tiveram maior efeito na história da matemática: quase
ninguém, nos próximo trinta anos, estaria interessado em
estruturas que estendessem a álgebra de Boole. Schröder
não apresentou nenhuma outra prova de independência. Porém
logo o método axiomático moderno fez daquelas estruturas
um procedimento canônico e a lei de distributividade
deixou de ser anômala. A prova de Peirce, que ele
finalmente produziu, baseava-se em outro axioma.
Esse exemplo quer mostrar, além do papel de uma
anomalia, o modelo geral de minha aplicação dos conceitos
de Kuhn. Recusei os conceitos de "revolução" e de "crise",
a despeito de existirem fenômenos que possam levar esses
nomes. O motivo foi que esses conceitos não podem tomar a
forma de ferramentas vigorosas em inquisições históricas.
Acredito e tentei mostrar que o conceito de anomalia
constitui tal ferramenta. É um indício de importantes
conexões históricas. Referindo inovações em matemática aos
contextos teóricos contemporâneos, o conceito de anomalia
ajuda a compreender e a avaliar os desenvolvimentos
históricos.

2.2.5 A ciência normal

Também em matemática se efetua o tipo de trabalho a


que Kuhn chama "ciência normal". Por exemplo, muitas teses
de doutoramento são matemática "normal". Uma tese é
decisiva a uma carreira acadêmica e, conseqüentemente, há
uma forte tendência em se escolherem problemas que
prometem admitir solução pelos métodos canônicos. Grande
parte da matemática é produzida de modo normal, segundo as
regras ensinadas nos textos usuais, resolvendo-se
problemas modelares, preenchendo-se lacunas em uma teoria,
estendendo-se conceitos, refinando-se condições etc. A
versão didática final de uma teoria, elegante,
compreensiva e eficiente, se obtém apenas depois de uma
fase de pesquisa normal na teoria. Esse tipo normal de
pesquisa é, além disso, um sinal de que a disciplina ou a
teoria se tornou uma parte aceita da obra matemática.
Uma descrição adequada da matemática normal é um
difícil problema histórico. Há uma tendência normal em
enfocar os grandes matemáticos e os seus descobrimentos e
em omitir a matemática normal. Isso não é satisfatório mas
uma tentativa de descrever completamente um
desenvolvimento em matemática pode produzir uma coleção
indigesta de fatos. Uma alternativa para evitar esse
dilema pode consistir em uma descrição geral das
principais correntes do trabalho normal em uma teoria,
usando os fatores que o estarão orientando. (Esses fatores
serão discutidos adiante, sob o título "termos de uma
matriz disciplinar".)
Já que não intento discorrer sobre a matemática
"revolucionária", poder-se-á objetar que nada restou além
da matemática normal. Porém, assim como "anomalia",
"normal" é um termo relativo. Ele refere uma peça do
trabalho matemático às "normas" contemporâneas. Um ensaio
matemático pode ser extraordinário sob muitos aspectos: na
escolha do problema, nos métodos empregados, na extensão
dos conceitos conhecidos etc. Para a compreensão adequada
da condição histórica de uma contribuição matemática é
essencial enxergar exatamente o que nela não é normal e
descobrir como isso pôde acontecer.

2.2.6 A comunidade científica (3)

O principal valor do conceito de comunidade cientí-


fica reside em que ele elimina a impressão, freqüentemente
obtida em discussões sobre a matemática e a sua história,
de que a matemática seja um pacote de verdades eternas e
espirituais que se vai gradualmente abrindo no curso da
história, visíveis apenas aos olhos internos de gênios
singulares, que as tornam acessíveis aos diligentes
estudantes de pesquisa. Na verdade, a matemática é uma
obra humana: sua base vital é a ação social recíproca
entre os matemáticos e a sua comunidade matemática. Nenhum
matemático parte do nada. Ele tem de construir sobre a
tradição matemática. Durante sua educação matemática, seja
ela formal ou de outro tipo, ele adquire um "conhecimento
tácito" acerca da matemática, do modo de conversar sobre
ela, de seus objetivos e de seus métodos etc., que o
habilitam a comunicar-se com seus colegas. Torna-se um
membro dessa comunidade, mais ou menos adaptado ao modo de
operar e a suas normas. Ele esforça-se em ser reconhecido
por seus colegas. Mesmo estranhos, como H. Grassmann,
tentam tornar sua mensagem entendida pela comunidade
matemática; no caso de Grassmann, pela elaboração da
segunda edição de sua Teoria da Extensão [Ausdehnungs-
lehre].
Não estou tentando explicar tudo sobre a matemática
em termos sociais ou sociológicos. Muitas coisas dependem
da biografia pessoal de um matemático que raramente pode
ser investigada bastante de perto. Existem, além disso,
fenômenos que parecem não ser explicáveis de forma alguma,
pelo menos não de uma forma satisfatória. Nada obstante,
as condições sociais, especialmente as da comunidade mais
próxima de matemáticos, constitui a base do
desenvolvimento da matemática.
A despeito de seu valor básico, o conceito de comu-
nidade científica apresenta algumas falhas. Certamente que
é aplicável à matemática do século XX, na acepção de Kuhn
de que, primeiramente, se deve identificar a comunidade e,
depois, a sua matriz disciplinar. Porém, retrocedendo na
história, torna-se difícil identificar convenientemente
subcomunidades matemáticas bem delimitadas. Podemos
identificar a comunidade de todos os matemáticos porém
mesmo essa se confunde parcialmente com a comunidade dos
astrônomos e dos físicos. Existe o perigo de um tratamento
da história centrado no presente. Assim, embora o conceito
deva ser usado, deve sê-lo com alguma cautela. No
tratamento de disciplinas matemáticas, devemos constatar
se existe uma correspondente comunidade por ser
identificada (o que pode ser feito através da inspeção da
comunicação entre os membros). Então impõe-se indagar
quais os compromissos comuns que são específicos da
subcomunidade. Aqui está a conexão com o conceito de
matriz disciplinar, que é o complemento da noção de comu-
nidade científica.

2.2.7 A matriz disciplinar.

Nas seções precedentes, usei freqüentemente o vocá-


bulo substrato [background], ao falar dos compromissos co-
muns dos membros da comunidade matemática. O significado
de substrato provém do conceito de matriz disciplinar.
Esse conceito é o principal instrumento para a análise do
substrato comum e, simultaneamente, detém alto poder
explicativo para a historiografia da matemática.
O conhecimento disciplinar da matemática consiste
em teorias, teoremas, métodos de prova, métodos de
apresentação, um simbolismo, uma nomenclatura etc. Existe,
além disso, um conjunto de crenças relativas ao valor
geral da matemática, ao seu objeto e a outras questões
desse tipo. Em seguida, existem valores acerca da estética
da matemática, do papel das aplicações, dos métodos de
demonstração etc. Esse substrato, complicado e de longo
alcance, é um pouco diferente em cada pessoa. Porém, é
adquirido através do processo de aprendizagem, em um dado
ambiente social, de um tema de estrutura bem definida, a
matemática. Conseqüentemente, existe um forte substrato
comum dos membros da comunidade matemática. Os vínculos da
comunidade são os diferentes tipos de comunicação, os
livros, os ensaios, a correspondência etc., que constituem
a base da linguagem comum, do conhecimento comum e dos
compromissos comuns; em resumo, a matriz disciplinar.
Assim, a matiz disciplinar possui uma função social
importante para a comunidade e uma função emotiva para o
cada membro. O matemático que se apóia nos compromissos
comuns de seu grupo pode sentir-se seguro; ele assegura
sua identidade, confiando na matriz disciplinar. Esse
fenômeno esclarece um grande grupo das "leis" de Crowe,
como será visto na seção 4.
A matriz disciplinar determina as coisas relativa-
mente às quais a comunidade matemática é um tanto
conservadora. Simultaneamente, ela é orienta a matemática
normal.

2.2.8 Os termos da matriz elementar

Para uma investigação mais íntima dos


desenvolvimentos históricos, devemos tratar um pouco dos
importantes termos da matriz disciplinar. A fim de fazer
isso de modo convincente, devemos tentar classificar os
diferentes termos que são determinantes no trabalho dos
matemáticos. Devemos evidenciar a importância das
categorias. Devemos investigar os procedimentos pelos
quais os matemáticos adquirem crenças, normas etc. Além
disso, devemos discutir as prioridades na matriz e a
interdependência entre os seus termos. Finalmente, devemos
tentar analisar a relação entre as matrizes em diferentes
níveis das comunidades matemáticas. Isso pode ser feito em
um minucioso estudo de caso, o que não é o escopo deste
ensaio. Apenas posso fornecer algumas proposições, aduzir
algumas questões e dar alguns exemplos.
Discutirei cinco dos termos de uma matriz discipli-
nar: crenças em modelos particulares, valores, exemplares
(ou paradigmas), conceitos e problemas canônicos. Os três
primeiros foram propostos por Kuhn. Acredito que os dois
últimos são específicos da matemática.

2.2.8.1 Crenças em modelos particulares

Aqui eu me refiro a crenças "metafísicas", como


"matemática é a ciência da grandeza", "a aritmetização
fornece uma base apropriada para a análise", os programas
do formalismo, do logicismo etc. Tais crenças básicas
parecem ser o que Crowe considerava na sua quinta "lei"
(CROWE 1975, p. 163), na qual ele cita o "conhecimento" em
várias camadas possuído pelos matemáticos. Há modelos
também em um sentido mais heurético, tais como a visão de
uma curva como a trajetória de um ponto móvel. Contudo,
não estou convencido da utilidade do último conceito de
"modelo" na historiografia da matemática.

2.2.8.2 Valores

Na história da matemática, valores desempenham um


papel importante para a comunidade matemática assim como
para o matemático. Há valores instituídos nas comunidades
maiores de todos os eruditos, como as que R. Merton
explorou (MERTON 1968). A comunidade de matemáticos
partilha valores acerca de como se deve conduzir a
pesquisa e se devem apresentar resultados e acerca do
valor de temas, de métodos e de problemas. Um desses
valores, de alta prioridade, é que as inovações
matemáticas devem ser fecundos e aplicáveis (na matemática
ou fora dela). O sistema de valores muda historicamente.
Um quesito interessante é a comparação dos valores de
fecundidade e de rigor. A história dos números complexos
mostra que a fecundidade dominava o rigor. Outro exemplo é
a declaração de Dedekind de que ele não publicara
imediatamente suas idéias sobre números irracionais porque
o assunto era pouco fecundo [so wenig fruchtbar] (DEDEKIND
1930/1932, III, p. 316). Rigor como valor adquiriu peso
cada vez maior durante o século XIX. Esse desenvolvimento
mostra dois tópicos, intimamente vinculados, sobre
valores. Primeiro, a variação histórica de valores é
determinada pelas circunstâncias materiais da vida, a qual
permite viver ou não de acordo com tais valores. Por outro
lado, os valores influem em tais circunstâncias. Aqui vem
o segundo tópico. No caso do valor de rigor, ele tem tanto
mais peso quanto mais fácil for praticar rigor no trabalho
matemático. Esses recursos de matemática rigorosa foram
criados por matemáticos, como Weierstrass, Dedekind e
Peano, que, em seu seu trabalho, tinham o rigor em uma
estima excepcionalmente alta. Assim, não foi apenas a ação
recíproca entre os valores da comunidade matemática e as
circunstâncias materiais mas também a ação recíproca entre
o indivíduo e os valores da comunidade.

2.2.8.3 Exemplares ou paradigmas

O conceito de paradigma foi, desde o seu início, o


mais espetacular na teoria de Kuhn. Paradigmas são
exemplos partilhados que estruturam a percepção dos
matemáticos e lhes guia a pesquisa. Gostaria de usar o
termo "paradigma" para aquisições que governam o
desenvolvimento matemático de vários modos e por um longo
lapso de tempo. Exemplos são os Elementos de Euclides, os
procedimentos de cálculo de Arquimedes, as Inquisições
aritméticas [Disquisitiones Arithmeticae] de Gauss, as
Leis do Pensamento [Laws of thought] de Boole e trabalhos
similares. Nessa acepção, um paradigma é muito mais que a
solução de um problema. Ele abrange conceitos básicos,
soluções canônicas de problemas, um simbolismo e uma
nomenclatura específicas e, freqüentemente, apresenta uma
robusta força geradora de valores.
Nas Leis do Pensamento de Boole, por exemplo, os
principais elementos paradigmáticos foram a aplicação do
simbolismo e dos procedimentos algébricos à lógica e o
tratamento das equações lógicas. Até cerca de 1900, o
livro era a influência central no desenvolvimento da
lógica matemática. Entrementes, se adotou um novo
programa. Nesse caso, se quisermos falar em um
"paradigma", ele foi gerado pelos diversos artigos e
livros de C. S. Peirce, Dedekind, Frege, Peano e outros. O
princípio diretor já não foi a aplicabilidade da
matemática à lógica mas, inversamente, a aplicação dos
recursos da lógica simbólica aos fundamentos da matemá-
tica, o que foi viável pelos resultados alcançados no
período precedente. A mudança de paradigma, nesse caso, é
bastante complicada e dificilmente pode ser denominada
"revolucionária". Além disso, encontram-se traços da tese
da incomensurabilidade, como na falta de apreciação por
Schröder dos objetivos de Frege (cf. LEWIS 1966). Talvez
se possa tratar desse tipo de mudança de paradigma nos
termos da concepção de Lakatos de programas de pesquisa
concorrentes (LAKATOS 1973).
Os tipos mais restritos de paradigmas, aos quais
chamarei "exemplares", são soluções modelares de
problemas. Um exemplo é a representação geométrica dos
números complexos, que operou como um modelo na busca de
sistemas similares de análise do espaço, culminando nos
quaterniões de Hamilton (cf. CROWE 1967, p. 5-12). O
exemplo exibe um traço importante dos exemplares. Eles
podem sugerir soluções para problemas inteiramente
diferentes do problema originalmente resolvido. Nesse
exemplo, o problema era a "possibilidade" dos números
imaginários, que receberam um substrato material por
representação geométrica. A representação é conversível e
o que se buscou, considerando os números complexos, foi
uma representação algébrica do espaço de três dimensões.
Muitos exemplares mostram um traço importante do
desenvolvimento matemático, a saber, o fato de que
aquisições em um ramo atuam, em aspectos, específicos,
como exemplares para outros ramos. Novamente, a
representação geométrica dos números complexos é um
exemplo. As distintas interpretações dos números complexos
revelaram o processo abstrato de interpretação que foi
adotado pelos matemáticos ingleses na sua concepção da
álgebra simbólica (NOVY 1973, p. 194]. Exemplares influem
no modo como os matemáticos enxergam os seus temas. Isso é
ainda mais claro na aplicação dos conceitos da teoria
algébrica dos números às funções algébricas. Depois que
Dedekind elaborou sua teoria dos números algébricos quase
completamente, ele percebeu a estrutura similar no domínio
das funções algébricas. Em colaboração com H. Weber, ele
perfez a teoria das funções algébricas em estrita analogia
com a anterior (DEDEKIND 1930/1932, p. 283-350).

2.2.8.4 Conceitos

Talvez os conceitos sejam análogos às


generalizações simbólicas de Kuhn (5). Certamente eles
desempenham um papel importante na história da matemática.
O conceito de função, por exemplo, constitui um tema bem
conhecido da historiografia. Como termos da matriz
disciplinar, os conceitos estão estreitamente vinculados
aos valores e às crenças em modelos "metafísicos". Para o
matemático produtivo, que não se preocupa muito com
questões ontológicas, os conceitos que ele conhece
determinam o que existe em matemática. Daí decorre uma
idéia, geralmente implícita, acerca do tipo de conceitos
permitidos. A reação aos desvios é individualmente
diferente; Kronecker é um extremo bem conhecido.
Assim como os exemplares, os conceitos guiam a
matemática normal. Também colocam fronteiras. Quando
Hamilton buscava um sistema vetorial, o conceito
predominante de multiplicação restringia a possibilidade
de operações às comutativas. Esse exemplo será elaborado
adiante, ao tratarmos das leis de Crowe.
Há muito que ser dito acerca dos conceitos em mate-
mática. Wussing (1970) propôs um modelo de desenvolvimento
histórico dos conceitos científicos o qual, intrigante sob
alguns aspectos, pode ser aplicado aos problemas do desen-
volvimento das matrizes disciplinares.

2.2.8.5 Problemas canônicos

Da unicidade da fatoração dos números naturais em


números primos decorre uma pilha de teoremas sobre
fatoração na álgebra moderna. Podemos considerar isso como
um exemplar, porém um novo teorema sobre fatoração em
algum ramo esotérico da álgebra moderna não é instituído
segundo exemplares conhecidos. Antes, a fatoração é um
procedimento bem conhecido, há determinadas técnicas e
problemas de fatoração são geralmente tidos por objetos de
investigação válidos. Em resumo, fatoração é um problema
canônico. Além disso, problemas canônicos não exigem uma
solução completa como as oferecidas por alguns protótipos.
Isso é mais claramente visível no caso em que o problema,
inicialmente, não encontra solução tal como o problema da
palavra (***) em grupos e em outras estruturas algébricas.
Muitos dos "problemas abertos" listados em livros
didáticos pertencem a esse tipo canônico. Entre outros
exemplos, que não a fatoração, citam-se a decomposição, a
representação, a axiomatização e a generalização. Esses
problemas têm níveis distintos. A generalização, por
exemplo, foi considerada por WILDER (1968, p. 173) como
uma força evolutiva na matemática. Prefiro não falar de
uma tal força constantemente atuante. O valor "resultados
matemáticos devem ser tão gerais quanto for possível" tem
tido um peso variável no curso da história. O que estou
considerando é a generalização como um procedimento
modelar que ocorre no desenvolvimento da matemática dos
séculos XIX e XX. Tão logo se admita uma hierarquia de
estruturas, se tenta estender um teorema válido em uma
estrutura a uma outra mais geral. No caso da
generalização, é visível o estreito vínculo entre valores
e problemas canônicos. Problemas (não necessariamente
canônicos) resolvidos com bom êxito influem sobre os
valores acerca da escolha de problemas e os valores
determinam não os problemas canônicos mas a sua
abrangência. Já que são implícitos os valores acerca da
qualidade dos problemas, eles são adquiridos mediante o
conhecimento de problemas canônicos predominantes. A
aplicação dos problemas é guiada pelos valores; muita
generalização é feita mas não é publicada, por ser apenas
generalização trivial. É necessário que ostente alguma
outra propriedade, como a "fecundidade". Problemas
canônicos são freqüentemente (ou sempre ?) gerados por
exemplares e são uma das causas dos descobrimentos
múltiplos, antecipando, muitas vezes, novos exemplares ou
paradigmas.

2.2.8.6 Termos ulteriores

Os termos da matriz disciplinar não são nitidamente


separados. Existem forte interação e interdependência. As-
sim, outrem irá estruturar a matriz por conceitos que não
os meus; isso se abre à discussão. Termos ulteriores que
podem ser considerados e receber discussão individual são
"símbolos", "métodos" e, talvez, "restrições". Já que des-
crevi modelos, valores e conceitos como fatores
parcialmente restritivos da atividade matemática, incluí
"restrições" entre esses termos mas é discutível se essa
admissão é viável em certos casos históricos. Do mesmo
modo, a discussão deve, em geral, incluir todos os
períodos da história da matemática (o que não tentei
fazer).

2.3 Conclusões
O modelo geral da teoria da estrutura das
revoluções científicas de T. Kuhn parece não ser aplicável
à matemática. Contudo, muitas das concepções de Kuhn
permanecem valiosas para a historiografia da ciência,
ainda que se rejeite o modelo básico da teoria. Os
conceitos centrados em torno da sociologia dos grupos de
eruditos possui alto poder explicativo e, a meu ver,
fornecem conceitos decisivos à historiografia da
matemática. Eles elucidam a relação entre as aquisições
matemáticas e o substrato contemporâneo. Dessa forma,
servem para explicá-los e para entendê-los e para fazer
maior justiça aos matemáticos do passado, aos seus es-
forços e aos seus fracassos que a tendência dominante em
enxergar as aquisições matemáticas do passado somente sob
a luz de seus efeitos de grande duração.
Os exemplos usados pertencem quase exclusivamente
aos séculos XIX e XX. Não insisto em que os conceitos
sejam aplicáveis em todos os casos. Não quero tornar a
historiografia da matemática completamente kuhniana. Deve
ficar claro que estou procurando obter satisfatória
compreensão histórica e não propor uma bela teoria. Sob
esse aspecto, as concepções de Kuhn e possivelmente outras
servirão ao pensamento histórico de duas formas. Primeira,
novos fenômenos são percebidos e novos desenvolvimentos e
novas conexões causais são enxergadas. Segunda, a
aplicação explícita de um substrato conceitual torna
discutíveis os prejuízos, usualmente completamente
implícitos, nos quais se funda a historiografia da
matemática. Assim, é útil dispormos de diferentes sistemas
que possam iluminar a história e a historiografia da
matemática de muitos ângulos diversos.
Os conceitos até então elaborados devem ser comple-
tados de modos distintos. Dentre esses, o papel das
influências sociais extramatemáticas é discutido na
próxima seção. A seção final mostrará o que denominei
poder explicativo dos conceitos, pela discussão das
regularidades na história da matemática expostas por Crowe
em suas "leis".

3 Um suplemento necessário: o substrato social externo

Uma das fraquezas das concepções de Kuhn, correlata


com a forte idealização da comunidade científica é a falta
de consideração das influências extradisciplinares. Já
referi a interação entre as disciplinas matemáticas e há
muito por ser dito acerca das relações da matemática com
fatores não matemáticos, estendendo-se desde a astronomia
até as condições materiais gerais da sociedade.
Cingir-me-ei à imersão da comunidade matemática na
sociedade. A posição social do matemático e de sua comuni-
dade depende da estrutura da sociedade e de seu desen-
volvimento. Conseqüentemente, o desenvolvimento da
matemática não é independente do fato de que os
matemáticos são amadores, filósofos, servidores civis,
acadêmicos ou professores universitários. A esse respeito,
a condição social dos matemáticos na sociedade é, a meu
ver, uma parte própria da história da matemática.
Como argumenta Ben-David (1971, p. 6-16), não deve-
ria haver influência sistemática da sociedade no conteúdo
das ciências; porém, como seu livro esclarece amplamente,
a estrutura social da sociedade é uma condição prévia ao
estabelecimento de uma posição científica, a qual é a base
da tradição científica. A especialização ao matemático das
linhas de investigação de Ben-David constitui um valioso
tema de estudo.
Relativamente à condição social dos membros de uma
comunidade científica e à sua influência no
desenvolvimento da matemática, distinguirei dois exemplos.
O primeiro é fornecido por J. Needham (1956, 1964). Por
comparação das estruturas sociais e das tradições
científicas (e matemáticas) da China e da Europa Ocidental
no renascimento científico, Needham mostra que a estrutura
da sociedade foi um fator da ascensão da Nova Ciência que
uniu a matemática e o conhecimento da natureza. Ele
argumenta que o fato de os eruditos chineses terem sido
parte do sistema burocrático era desfavorável a tal
desenvolvimento, ao passo que este foi favorecido pela
condição dos homens de saber na sociedade mercantil do
Ocidente. Devemos acrescentar que os ensaios de Needham
não pretendem demonstrar a conexão mas, antes,
experimentar argumentos. Ainda assim, eles são uma con-
tribuição convincente ao debate sobre as causas do
renascimento científico e se aplicam tanto à matemática
como às ciências naturais.
Meu segundo exemplo alude à quarta "lei" de Crowe,
a qual declara que o rigor nas teorias matemáticas
freqüentemente só é adquirido tardiamente no
desenvolvimento histórico. A evidência dada distingue
sobretudo os fatos de que a fecundidade é um maior valor
que o rigor e de que os séculos XIX e XX produziram altos
modelos de rigor. Tentarei explicar o último fato. A
comunidade matemática do século XVIII consistia em
eruditos [scholars] e em profissionais liberais
[practitioners]. Os dois grupos já eram totalmente
separados mas ainda existiam conexões. Os meios de
garantir segurança social eram diversos e comumente
difíceis (cf. DUVEEN/HAHN 1957).A base institucional da
comunidade eram as academias e as sociedades científicas.
Institucionalmente, as academias uniam a matemáticas e os
seus campos de aplicação. Além disso, a condição política
das academias lhes atribuía a tarefa dupla de buscar a
verdade e a produção de saber útil. Assim, os matemáticos
também estavam interessados em matemática "aplicada", de
modo que, por exemplo, os resultados de cálculo superior
possuíam justificação pronta e robusta, ainda que
repousassem em uma base lábil.
Pelo início do século XIX, uma nova classe social
tornou-se dominante. Como conseqüência dessa mudança, o
sistema de educação foi modificado e fortalecido. A
Revolução Francesa conduziu ao estabelecimento da École
Polytechnique e da École Normale, que tiveram enorme sig-
nificado na história da matemática. A França era o centro
da matemática e da ciência na virada do século, era o
modelo para eruditos de outros países. A reforma da
universidade alemã, que começou com a fundação da
universidade de Berlin em 1809, mesclou traços do modelo
francês com idéias filosóficas especificamente alemãs e,
mais importante, foi uma tentativa de assentar a autonomia
dos eruditos sem violar os limites impostos pelo estado
político dos países alemães. Os cientistas não
participaram da reforma; mas essa se revelou muito
favorável ao desenvolvimento da matemática e das ciências
naturais. A característica principal era ser o ensino
dirigido a estudantes que podiam permanecer na uni-
versidade para se tornarem professores de matemática. O
suporte institucional era suprido pelo instituto
[Institute] e pelos seminários [Seminare] que foram
fundados durante o século. Assim, os matemáticos podiam
ensinar a matemática em que eles próprios estavam traba-
lhando.
Esses desenvolvimentos influíram, de diversos
modos, na relação entre a matemática pura e a aplicada.
Primeiro, a conexão entre a matemática e a tecnologia foi
desfeita pela separação entre escolas técnicas [technische
Hochschulen] e universidades. Assim, por exemplo, a
geometria descritiva desapareceu do currículo
universitário. Segundo, o modelo de formação dos
seminários era o seminário matemático-físico
[mathematisch-physikalisches Seminar] de Königsberg; sua
quarta cópia, o importante Seminário de Berlim, já era
puramente matemático. A estrutura institucional tendia a
separar os campos, favorecendo assim, a matemática pura.
Terceiro, o ensino dirigido a estudantes encarados como
matemáticos potenciais teve dois efeitos: Por um lado, os
matemáticos podiam ensinar matérias nas quais estivessem
interessados, ascendendo prontamente o ensino ao nível da
pesquisa efetiva e assim constituindo uma forte tradição.
Por outro lado, os matemáticos voltaram seu interesse
profissional às matérias que estavam ensinando, ficando
mais envolvidos com as partes elementares de suas
disciplinas.
Em resumo, os liames aos campos de aplicação afrou-
xaram-se, havia uma condição social firme para o
matemático e sua principal tarefa era o recrutamento da
nova geração de matemáticos. A primeira geração de
matemáticos universitários ainda se envolvia, também, com
a matemática aplicada; as gerações seguintes voltaram-se,
cada vez mais, para a matemática pura. Isso significa que
a matemática se volveu para si mesma. Esse fato aliado aos
efeitos e às necessidades do novo estilo de ensino
universitário converteu o rigor em um valor de alta
prioridade.
Esse tosco esboço de uma explicação do desenvolvi-
mento do rigor na matemática do século XIX pode ser
completado pela evidência de muitas minúcias. Para algumas
dessas, cf. Ben-David (1971, capít. 7) e Lorey (1916).
Minha explicação apresenta somente parte da verdade.
Também há fatores intramatemáticos, que não foram
discutidos aqui.

4. A explicação das "leis" de Crowe

Em suas "leis", M. J. CROWE (1975) descreveu algumas


regularidades na história da matemática. Não tentou
explicar essas regularidades. Muitas delas se podem
explicar às expensas dos conceitos desenvolvidos nas
seções precedentes do presente ensaio. Fá-lo-ei, para
mostrar como se podem aplicar esses conceitos e, mais
geralmente, para patentear a importância da sociologia da
comunidade matemática na história da matemática. Além
disso, a mera enunciação de tais regularidades não possui
maior valor para a historiografia, devendo ser indicado um
situante teórico.
Algumas das "leis" já foram discutidas. O asserto
de que "nunca ocorrem revoluções em matemática" (décima
lei) deve ser julgado conforme o uso que se faz do termo
"revolução". A esse respeito não há nada por explicar.
Outro tanto se diga do termo "crise". Crowe declara que os
matemáticos possuem técnicas para manipular contradições
lógicas, evitando assim as crises (lei 9). Tais técnicas
pertencem ao saber disciplinar. Uma análise mais acurada
da "lei" suscita quesitos filosóficos espinhosos da
matemática que não são pertinentes ao presente artigo.
Outra afirmativa acerca do saber disciplinar é que "o
"conhecimento" da matemática possuído pelos matemáticos,
em qualquer instante, consiste em várias camadas" e que
existe uma metafísica da matemática (quinta lei). Isso foi
discutido e especificado, com a extensão adequada, nas
seções sobre a matriz disciplinar e os seus termos (2.2.8
e 2.2.7).
Um grupo de "leis" podem ser tratadas com relação
ao exemplo principal do próprio Crowe, a história da
análise vetorial. "Novos conceitos matemáticos,
freqüentemente, surgem ... contrariando os esforços
vigorosos dos matemáticos que os criaram" (primeira lei).
Essa formulação pode ser elegante mas é ilusiva. Considere
a invenção dos quaterniões por Hamilton. Certamente que
Hamilton não lutou contra os quaterniões e os quaterniões
não surgiram por si mesmos. O trabalho de Hamilton foi
guiado pelo exemplar dos números complexos e um dos termos
da matriz disciplinar de seu tempo dizia que a
multiplicação era uma operação comutativa. Somente após um
longo lapso de trabalho vigoroso, Hamilton abandonou a
comutatividade e encontrou os quaterniões (Crowe 1967). O
problema com o qual Hamilton se ocupava era matemática
normal (ibidem, p. 12). Porém, não podendo ser resolvido
normalmente, configurou-se em uma anomalia. É altamente
provável que, tendo continuado, por muitos anos, a
trabalhar obstinadamente nesse problema, Hamilton, no
curso do tempo, tentasse pensar ao longo de linhas que se
desviassem cada vez mais dos caminhos usuais. Assim,
encontrar soluções como os quaterniões pressupõe muito
tempo e esforço, necessários para que se desvinculasse das
restrições feitas pelas crenças e pelos conceitos
dominantes. É a isso que, suponho, Crowe chama luta contra
novos conceitos.
"Muitos novos conceitos matemáticos ... , ao surgi-
rem, encontram vigorosa resistência e obtêm aceitação
somente após um longo lapso de tempo" (segunda lei). A
comunidade matemática, assim como o criador do novo
conceito, somente relutantemente abandona algumas de suas
crenças e noções aceitas. Isso pode ser visto
funcionalmente. Um uso inábil de novos conceitos que
rompem com muitas restrições e crenças implícitas poria em
risco a própria base de comunicação da comunidade. Além
disso, muitos matemáticos ocupam-se tão somente com a
matemática normal e não se esforçam por compreender e
apreciar conceitos e teorias novos e peculiares. Assim,
transcorre um longo lapso de tempo até que seja aceito um
conceito incomum, como os quaterniões, e algumas invenções
não são sequer notadas.
"A fama do criador de um novo conceito matemático
desempenha um papel poderoso ... na aceitação desse con-
ceito, pelo menos se o novo conceito rompe com a tradição"
(sexta lei). A reputação tem sido considerada funcional
sob muitas formas pelos sociólogos da ciência. A questão
principal é se a reputação assegura competência
disciplinar de um membro da comunidade matemática. No
tocante à citada "lei", isso significa claramente que, por
meras razões de economia, os membros de uma comunidade
matemática estão mais dispostos a gastar tempo com o
trabalho não normal de um matemático famoso do que com o
de um estranho. Isso é tanto mais verdadeiro quando, como
no caso de Hamilton e no de Grassmann, a obra do estranho
parece mesmo esquisita e extravagante.
"Novas criações matemáticas freqüentemente ocorrem
em contextos bem maiores que o conteúdo preservado dessas
criações ..." (sétima lei). Uma noção ou teoria nova,
sendo elaborada por um estranho ou por um matemático que,
durante um longo trabalho, se afastou das vias normais e
articulou idéias diferentes de modos invulgares, muito
provavelmente será referida em uma forma peculiar e
pessoal. Além disso, o matemático que rompe com tradições
e viola crenças aceitas , tende a substituí-las por alguma
coisa. Ou ele interpretará suas criações de sorte que se
tornem, tanto quanto for possível, compatíveis com a
matriz disciplinar contemporânea ou ele preparará, como
justificativa, uma filosofia própria, que o ajudará a
conservar sua identidade profissional e que estará
intimamente ligada à nova noção ou teoria. O mesmo
procedimento, conduzido de outras formas, será adotado
coletivamente no processo de aceitação pela comunidade
matemática. Muitas peculiaridades serão eliminadas mas al-
guma parte do que não é o "conteúdo" (Novamente, que é
isso ?) pode tornar-se um bem comum.
"Múltiplos descobrimentos independentes de
conceitos matemáticos são a regra e não a exceção" (oitava
lei). Crowe remete à sua segunda e à sua sétima lei para
explicações parciais. Posso compreender isso somente na
acepção de que o prolongado lapso de tempo necessário à
aceitação de novos conceitos provê espaço para
descobrimentos independentes mas isso é uma questão menor
no que tange à explicação dos descobrimentos múltiplos.
Não pretendo ser capaz de suprir uma explicação geral para
múltiplos na história da matemática; cada um é diferente e
cada um é multifário. Porém o fato de que os
descobrimentos múltiplos sejam freqüentes constitui um
ponto forte na argumentação de que a interação dos matemá-
ticos com sua comunidade é a base vital do desenvolvimento
da matemática. O fato de que os descobrimentos estejam "no
ar" só se pode explicar racionalmente pela matriz
disciplinar contemporânea: a combinação de certos de seus
termos, como exemplares, conceitos, problemas e valores,
aliada à existência de anomalias e, quiçá, a influências
extramatemáticas possibilitam o surgimento de certos novos
conceitos. Novamente, a história da análise vetorial é um
exemplo. Crowe fala de "tendência" ou "movimento" (1967,
p. 48, p. 248) que evolveu de diferentes tradições. Um
estudo comparativo que considere a relação de cada
tentativa com o substrato contemporâneo deverá esclarecer
melhor as causas dessa "tendência". Para concluir a
discussão das leis, no tocante à história da análise
vetorial, desejo acrescentar que o livro de Crowe, à luz
dos pontos de vista esposados neste ensaio, é uma
excelente peça da história da matemática.
"Embora as exigências da lógica, da consistência e
do rigor tenham, por vezes, instado pela rejeição de
alguns conceitos hoje aceitos, a utilidade desses
conceitos repetidamente forçou os matemáticos a aceitá-los
e a tolerá-los ..." Essa regularidade na história da
matemática deve ser explicado às expensas das crenças e
dos valores básicos da comunidade matemática. Argumentei
acima que a fecundidade é um valor de prioridade mais alta
que o rigor. Além disso, existe a crença geralmente
implícita de que a matemática se ocupa em resolver
problemas. Ainda que, às vezes, possa parecer que a
comunidade matemática, ou parte dela, almeje a construção
de belas teorias, no caso dos números imaginários (o
exemplo de Crowe), a matemática aspirava a resolver pro-
blemas e aqueles números impossíveis constituíam uma
importante solução. Quesitos de fundamentos e de ontologia
são deixados aos filósofos ou aos matemáticos com
propensão à filosofia, que são tolerados como
destinatários de questões desconfortáveis que não dizem
respeito à verdadeira matemática. A noção de matemática
verdadeira modifica-se ao longo da história e pode ser
reconhecida apenas como uma aquiescência da comunidade
matemática que não pode ser nitidamente delimitada.
Na terceira seção, propus uma idéia interpretativa
acerca da emergência do rigor, ao qual alude a quarta
"lei" de Crowe. Crowe declara que o rigor de apresentação
em livros didáticos é freqüentemente uma aquisição tardia,
a que se é forçado, não tendo sido procurada pelos
pioneiros do campo. Podemos acrescentar, como explicação,
que a apresentação de um tema em livros didáticos é
freqüentemente precedida por uma fase de atividade
matemática no campo. Nessa fase, se presta atenção às
minúcias e especialmente àqueles tópicos que não condizem
com os padrões da comunidade matemática, impondo-se assim
o rigor na apresentação do tema.

NOTAS

1. Crises de fundamentação foram estudadas por J. Thiel


(1972). O autor inicia com uma definição basicamente
social de "crise", parece esquecê-la e termina por uma
discussão sistemática e filosófica. Do ponto de vista
histórico, o livro é insatisfatório. S. Bochner, em um
artigo (1963) sobre o livro de Kuhn, chega a sustentar,
sem oferecer muita evidência, que as crises matemáticas de
fundamentos são revoluções. O tópico de seu artigo que
exige maior consideração é o papel do paradigma matemático
na física.

2. Em um curso sobre as crises de fundamentos na


matemática (Hamburgo, 1973), J. Höppner e o presente autor
tentamos aplicar os conceitos de Kuhn e de Thiel. A
discussão mostrou que ambos são inadequados como
generalizações dos fatos históricos e como parâmetros para
a investigação histórica.

3. Em um estudo exploratório dos aspectos sociais da


atividade matemática de resolver problemas, Ch. S. Fisher
(1972/ 1973) apresentou um interessante retrato da
comunidade matemática contemporânea, que ele descreve como
totalmente difusa.
4. Esse exemplo provém de minha pesquisa sobre a teoria
dos reticulados.

5. H. J. M. Bos notou que essa afirmativa aponta a


diferença intrínseca entre ciência e matemática: a ciência
usa generalizações simbólicas de alguma coisa enquanto a
matemática estuda as próprias generalizações simbólicas -
os conceitos.

6. Possíveis dúvidas acerca da veracidade dessa anedota,


no caso de Kummer, não debilitam o argumento. Cf. EDWARDS,
H. M. "The Background of Kummer's Proof of Fermat's Last
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Título original:

T. S. Kuhn's Theories and Mathematics: a discussion paper


on the "new historiography" of mathematics.
Historia Mathematica 3 (1976), 297-320

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