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Enrique Krauze, O Estado de S. Paulo (15/04/06)

O populismo na América Latina adotou um amálgama desconcertante de posições


ideológicas. Esquerdas e direitas poderiam reivindicar a paternidade do populismo,
todas ao conjuro da palavra mágica "povo". Populista quintessencial foi o general Juan
Domingo Perón, que havia atestado diretamente a ascensão do fascismo italiano e
admirava Mussolini a ponto de querer "erigir-lhe um monumento em cada esquina".
Populista pós-moderno é Hugo Chávez, que venera Fidel Castro a ponto de tentar
converter a Venezuela numa colônia experimental do "novo socialismo". Os extremos
se tocam, são cara e coroa de um mesmo fenômeno político cuja caracterização não se
deve tentar, contudo, pela via de seu conteúdo ideológico, mas sim de seu
funcionamento. Proponho dez traços.

1 - O populismo exalta o líder carismático. Não há populismo sem a figura do homem


providencial que resolverá os problemas do povo. "A entrega ao carisma do profeta, do
caudilho na guerra ou do grande demagogo - recorda Max Weber - não ocorre porque
a mande o costume ou a norma legal, mas porque os homens crêem nele."

2 - O populista não só usa e abusa da palavra: ele se apropria dela. A palavra é o


veículo específico de seu carisma. O populista se sente o intérprete supremo da
verdade geral e também a agência de notícias do povo. Fala com o povo de modo
constante, incita suas paixões, "ilumina o caminho", e faz isso sem restrições nem
intermediários. Weber assinala que o caudilhismo político surge primeiro nas cidades-
Estado do Mediterrâneo na figura do "demagogo". Aristóteles sustenta que a
demagogia é a causa principal das "revoluções nas democracias", e percebe uma
convergência entre o poder militar e o poder da retórica que parece uma prefiguração
de Perón e Chávez: "Nos tempos antigos, quando o demagogo era também general, a
democracia se transformava em tirania." Mais tarde desenvolveu-se a habilidade
retórica e chegou a hora dos demagogos puros: "Agora os que dirigem o povo são os
que sabem falar." Há 25 séculos essa distorção da verdade pública se desenvolvia na
Ágora real; no século 20 ela o fez na Ágora virtual das ondas sonoras e visuais: de
Mussolini (e Goebbels), Perón aprendeu a importância política do rádio para
hipnotizar as massas. E Chávez superou o mentor Fidel ao usar até o paroxismo a
oratória televisiva.

3 - O populismo fabrica a verdade. Os populistas levam às últimas conseqüências o


provérbio latino: "Vox populi, vox Dei." Mas como Deus não se manifesta todos os dias
e o povo não tem uma única voz, o governo "popular" interpreta a voz do povo, eleva
essa versão à condição de verdade oficial, e sonha com decretar a verdade única. Os
populistas abominam a liberdade de expressão. Confundem a crítica com inimizade
militante, por isso buscam desprestigiá-la, controlá-la, silenciá-la. Na Argentina
peronista, os jornais oficiais - incluindo um órgão nazista - contavam com generosos
privilégios, mas a imprensa livre esteve a um passo de desaparecer. A situação
venezuelana, com a "lei da mordaça" pendendo como uma espada sobre a liberdade de
expressão, aponta no mesmo sentido; terminará por esmagá-la.

4 - O populista usa de modo discricionário os recursos públicos. Não tem paciência


com as sutilezas da economia e das finanças. O erário é seu patrimônio privado, que
ele pode usar para enriquecer-se ou para embarcar em projetos que considere
importantes ou gloriosos sem levar em conta os custos. O populista tem uma
concepção mágica da economia: para ele, todo gasto é investimento. A ignorância ou
incompreensão dos governos populistas em matéria econômica se traduziu em
desastres descomunais dos quais os países levam décadas para se recuperar.

5 - O populista divide diretamente a riqueza. O que não é criticável em si (sobretudo


em países pobres, onde há argumentos extremamente sérios para dividir, de fato, uma
parte da receita, à margem das dispendiosas burocracias estatais e prevenindo efeitos
inflacionários), mas o populista não divide de graça: focaliza sua ajuda e a cobra em
obediência. "Vocês têm o dever de pedir!", exclamava Evita a seus beneficiários. Criou-
se assim uma idéia fictícia da realidade econômica e entronizou-se uma mentalidade
assistencialista. No fim, quem pagava a conta? Não a própria Evita (que cobrou seus
serviços com juros e resguardou na Suíça suas contas multimilionárias), mas sim as
reservas acumuladas em décadas, os próprios operários com suas doações
"voluntárias" e, sobretudo, a posteridade endividada, devorada pela inflação. Quanto à
Venezuela, até as estatísticas oficiais admitem que a pobreza aumentou, mas a
improdutividade do assistencialismo só será sentida no futuro, quando os preços
dispararem e o regime levar às últimas conseqüências seu propósito ditatorial.

6 - O populista alimenta o ódio de classes. "As revoluções nas democracias são


causadas sobretudo pela intemperança dos demagogos", explica Aristóteles. O
conteúdo dessa intemperança foi o ódio contra os ricos: "Algumas vezes por sua
política de denúncias... e outras atacando-os como classe, (os demagogos) incitam
contra eles o povo." Os populistas latino-americanos correspondem à definição clássica,
com uma nuance: fustigam "os ricos", mas atraem os "empresários patrióticos" que
apóiam o seu regime. O populista não busca, necessariamente, abolir o mercado:
sujeita seus agentes e os manipula a seu favor.

7 - O populista mobiliza permanentemente os grupos sociais. O populismo apela,


organiza, inflama as massas. A praça pública é o teatro onde comparece "Sua
Majestade, o Povo" para demonstrar sua força e escutar as inventivas contra "os maus"
de dentro e de fora. "O povo", claro, não é a soma de vontades individuais expressas
em um voto e representadas por um Parlamento; nem sequer a encarnação da "vontade
geral" de Rousseau, mas uma massa seletiva e vociferante que caracterizou outro
clássico, Marx - não Karl, mas Groucho: "O poder para os que gritam 'O poder para o
povo!'"

8 - O populismo fustiga sistematicamente o "inimigo externo". Imune à crítica e


alérgico à autocrítica, precisando apontar bodes expiatórios para os fracassos, o regime
populista (mais nacionalista que patriótico) precisa desviar a atenção interna para o
adversário de fora. A Argentina peronista reavivou as velhas (e explicáveis) paixões
antiamericanas que ferviam na América Latina desde a guerra de 1898, mas Fidel
converteu essa paixão na essência de seu triste regime, definido pelo que odeia, não
pelo que ama, aspira ou consegue. E Chávez levou sua retórica antiamericana a
expressões de baixeza que até seu mentor Fidel (talvez) consideraria de mau gosto. Ao
mesmo tempo, faz representar nas ruas de Caracas simulacros de defesa contra uma
invasão que só existe em sua imaginação, mas em que um setor importante da
população venezuelana (contrária, em geral, ao modelo cubano) acaba acreditando.

9 - O populismo despreza a ordem legal. Há na cultura política ibero-americana um


apego atávico à "lei natural" e uma desconfiança das leis feitas pelo homem. Por isso,
uma vez no poder (como Chávez), o caudilho tende a se apoderar do Congresso e
induzir a "justiça direta" ("popular", "bolivariana"), arremedo de uma Fuenteovejuna - a
obra teatral de Lope de Vega sobre abuso de poder e justiça - que, para os efeitos
práticos, é a justiça que o próprio líder decreta. Hoje, o Congresso e o Judiciário são um
apêndice de Chávez, como na Argentina o eram de Perón e Evita, que suprimiram a
imunidade parlamentar e depuraram, segundo a sua conveniência, o Poder Judiciário.

10 - O populismo mina, domina e, em último recurso, domestica ou cancela as


instituições da democracia liberal. Ele abomina os limites a seu poder, considera-os
aristocráticos, oligárquicos, contrários à "vontade popular". No limite de sua carreira,
Evita buscou sua candidatura à vice-presidência. Perón se negou a apoiá-la. Se
houvesse sobrevivido, seria impensável imaginá-la tramando a derrubada do marido?
Não por acaso, em seus tempos aziagos de atriz radiofônica, representara Catarina, a
Grande. Quanto a Chávez, ele declarou que seu horizonte mínimo é o ano 2020.

Por que renasce de tempos em tempos a erva daninha do populismo na América


Latina? As razões são diversas e complexas, mas aponto duas. Em primeiro lugar,
porque suas raízes se fundem em uma noção mais antiga de "soberania popular" que
os neo-escolásticos do século 16 e 17 propagaram nos domínios espanhóis, que teve
uma influência decisiva nas guerras de independência de Buenos Aires ao México. O
populismo tem, além disso, uma natureza perversamente "moderada" ou "provisória":
não termina sendo plenamente ditatorial nem totalitário; por isso alimenta sem cessar a
enganosa ilusão de um futuro melhor, mascara os desastres que provoca, posterga o
exame objetivo de seus atos, amansa a crítica, adultera a verdade, adormece, corrompe
e degrada o espírito público. Desde os gregos até o século 21, passando pelo aterrador
século 20, a lição é clara: o efeito inevitável da demagogia é subverter a democracia.

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