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Flores tão corriqueiras e raras

Eduardo Rocha

ricardrbrsp@yahoo.com.br

vanialuciadearaujo@yahoo.com.br
Introdução

A senhora Rose Lens fechou os olhos. Arfava. A respiração a enchia


de vida exterior. O ar cortado pelas cigarras recém-chegadas do fundo da
terra dividia a madrugada embebida em barulho de mar. Torna-a
multíplice em sua lucidez dilacerada. O mar ao longe. Parece aqui. Dentro
do quarto. Nos pensamentos relativos ao momento imediato imprimiu-se
um colorido digressivo. No pio da ave noturna há um desenho aos pés da
freira no colégio; o raio lunar em que nasce o cântico das contrações
retroage à primeira varanda ao luar, à madrugada em que a menina sai à
luz vinda do ventre de sua mãe. E como ouvisse do lado de fora céleres os
morcegos, ao som da inspiração profunda ansiou a antiga liberdade. Mãe,
mãe! Ambíguas, as lágrimas brilhavam como nos reencontros. Minha
filhinha... As reminiscências enviaram ao corpo quieto na cama as praias
da adolescência povoada de gaivotas. Quem sou, se pergunta. Mulher,
menina; mãe, filha; esposa. Esposa. Bater de asas. O pulsar do colchão de
molas havia ateado um rubor vivíssimo às partículas de pó – assim o
Verbo no principio, quando fervilham as esperanças entre o sabor e o
azedume. E permanecem por toda a noite semelhante àquela em que a
consciência fez com que ela se acovardasse e decidisse se casar apesar
da claridade gloriosa de um dia distante (o primeiro dia do seu primeiro
namoro) apenas reconhecido por certa memória imprecisa. Ainda
consegue vislumbrar a redenção, que todavia se confunde com as
preocupações da segurança material. Ai. Um arrepio na parte de dentro
das coxas. Como foi tola. O que se leva do mundo? Nada, pensou ao levar
os dedos. Então a revelação. Hoje. Espere. O gatinho sobe na cama e se
aconchega ao lado dela. Esperaria, se anteciparia até. Através da estreita
passagem, escura como a madrugada próxima ao amanhecer e, mesmo
antes da aurora, pelo sol redimida.

Houve um momento em que o mundo se desligou da noite e o


primeiro efeito foi a perda do contraste das estrelas em relação ao céu.
Preguiçosamente amanhecendo. Despertará também ela? Logo a azáfama
dos passarinhos. O espaço entre os galos, que se houvera comprimido,
volta a se deslocar no tempo. A proximidade do sol deixa a Natureza em
frenesi, introdução do rei no salão de festas após algumas danças. Uma e
outra revoada. E outra mais. Fez-se uma daquelas ocasiões especiais em
que o minuto que passou pouco apresenta em comum com o atual e o
seguinte terá igualmente atributos peculiares, distando uns dos outros
não o período de tempo que os separa mas todos os séculos culminantes
no Juízo. O gato se agita, ergue os olhos para o teto como se visse os
pássaros, suas garras chegam a se vergar. Que tristeza, murmura a
senhora Lens. Seu espírito é levado para um canto mais sombrio do muro
onde se erguera o fícus no quintal agora no arrebol imerso. Mas logo
ensaiará um sorriso, tocada pela súbita expectativa traduzida pelas
primeiras luzes do dia a tangenciar o monte diante do qual o mar bramia
seu misterioso refrão de louvores metálicos.

Por um instante, o sol emprestou à varanda do prédio em frente um


amarelo vivo na seqüência do canto dos pardais permeado de currueras.
Altivez barulhenta de um adejo. Era ainda primavera. No ônibus que se
aproxima da cidade, cerca-se Gerard de ansiedade e cuidados, seu
coração reclama paz. Ele é a noite, não mais a habita. Podiam ouvir o
sangue, Gerard e a senhora Lens, pois as veias estavam abertas. Desejo e
receio, sintomas de proximidade. O ônibus passa pela casa. A mulher
escuta o motor, a mudança da marcha e a distância. O rapaz fixa o hibisco
no jardim, não há muitas flores na metrópole. Calado, mal respirava. A
passageira da janela oposta fez uma pergunta e após os segundos de
praxe, quando ao olharmos um estranho decidimos se nos é simpático ou
desagradável em sua extroversão, responderam. Talvez vinte minutos,
não mais. Dentro dele, bem lá dentro, entrou o frio do desconhecido.
Passa os dedos pelos cabelos. A mulher na cama sente uma arrepio no
alto da cabeça. A vida é una. O miado dói; os sons do vizinho – pessoas,
portas, vozes – são movimentos engenhosos do tempo. Tudo era a noite;
tudo ela, Rose. Mas amanhece e quem sabe o que trará a manhã?
Sussurrou, ofegante. Podiam ouvir, Gerard e Rose: que a vida siga em
novidade. Em paz. Dormiu neles durante muito tempo esse jeito de ser
estranho, sem se saber comum. Mas amanhece. O gatinho entra nas
cobertas e ronrona.

O ângulo da luz matinal concedeu um brilho azulejado à sacada.


Onde se refletia o sol, surgiu a intensidade da paleta da senhora Lens ao
contornar os desenhos de dourado. Tanta luz não podia mais ser apenas
registrada. Decidiu dar-se o dia. Descansaria. Descansaria na praia. A rua
está vazia. Uma música ao longe estranho incenso se tornou de beleza
pairando como os hipérbatos. O ar estava quieto em suspenso mas as
ramagens balançavam como se fosse ao vento devido aos passarinhos.
Em fração de segundo despegam-se. Adiantando-se a hora, a nova
posição do sol no céu subtraiu o fulgor da varanda, ofertando-o ao resto
do mundo. A filha parece ter perdido de novo a hora da escola. Ou já terá
ido? Michele estava até há pouco sentada perante o oceano, sozinha.
Erguendo de súbito a cabeça, a senhora Lens saiu de seus pensamentos
para a contemplação da circunferência incandescente, um gesto
orgulhoso da manhã, em contraste com uma mulher mais e mais
humilhada, doente, melancólica. Sonolência mórbida. O peito oprimido. Os
intestinos trancam a emoção num desconforto que parece a estar
inchando. Os lados da cabeça revezam em aura na disputa do lugar em
que deverá sofrer sua crise diária de enxaqueca. A natureza ao redor, em
sua eflorescência, mostra-se indiferente aos males dos homens. Lá fora,
as pessoas caminham indolentes pelo calor. Ela as ouve.

Necessidade que se impôs de solidão, o amor da arte lhe deu uma


fineza doméstica, um porte em casa como num salão de festas. A
elegância secreta, a solenidade que emprestava ao ato de sentar,
apanhar algo no chão ou no alto do armário, só de camiseta, a maneira de
segurar o pincel e monologar – tudo era reverencia, postura. Seminua
diante de seus rascunhos, a poucos vê e para tantos vive.

Uma cidade muito pequena, cultuada por artistas, de acordo com a


lenda de sua tranqüilidade salgada. Por aquelas ruas andara com a
menina, que já não pode deixar de ser notada. Cresceu. Não há de ser um
sinal que ela envelhecera. Bom dia, senhora Lens. Certamente é. Bom dia.
Caminho de terra batida. Presente e passado estão para se encontrar no
futuro e o acorde de pão quente, balsâmico, que chega no ar, no ar
chegará ainda quando não houver mais a sua consciência para discerni-lo.
Aquela ultima manhã em que existia sem saber de Gerard era também a
manhã do dia seguinte, pela lembrança de Gerard transtornada. E a tarde
quando o conhecerá compreende a tarde em que apenas o havia visto.
Passado e futuro se encontrarão no presente e o amargo da boca desfeito
pelo dentifrício se converterá em si mesmo quando ela acordar com a
imagem de Gerard no dia do aniversário de Michele.

Filha e mãe. A menina está na escola, o celular tira uma foto dela
com a amiga. Keshia. Abraça-a. Uma menina bacana. Só um pouco
estressada mas tudo bem. A mãe chega do mercadinho, agora faz o café.
Presente e futuro. As costas de uma e de outra são fortes, as pernas
firmes. A mulher caminha pela cozinha. Nessas pernas. Um pouco acima.
Onde antes o desejo, agora a sublimação da tonalidade bem ajustada;
onde antes a dispersão, a procura de um novo tempo, não por causa de
Gerard, mas ao qual Gerard tão bem se adaptará. Jamais entretanto
colocaria outro sobrenome, quando se livrasse desse que como um fardo
carregava. Rose. A água ferve, ela está à mesa. No caderno de receitas,
cobre e recobre o nome. Rose Ponce. Pequenas alegrias libertas de
conceitos arraigados pelo costume. Um melindre se torna catarse, um
gênero outro de destino tecido pelos anjos da vontade aberta. A senhora
Lens é um enigma à beira do sol de verão. Esconde a vida atrás da vida e
tempos adiante.

Gostava de convívio, queria estar com gente, conhecer melhor as


pessoas, saber de seus problemas; mas resistia. Bom que houvesse em
Celba pessoas com quem pudesse conversar, a quem pudesse recorrer.
Amigos, corre-se o risco de perde-los; mas conhecidos sempre podem se
tornar amigos. E amigos artistas são gente ainda mais difícil de encontrar.
Então não desgastava seu relacionamentos com os colegas da vila. Um
escritor de quase setenta anos, Aleksander, e um músico, Yoran Tess.
Sabia seus nomes e rostos, trocava cumprimentos. Seu coração está mais
descansado tendo-os por perto. De resto, aceitava sem maior resistências
as imposições de sua natureza tímida, exceto pela perspectiva da
intimidade com o jovem que inesperadamente chegará para mudar a sua
vida – como se no momento em que se cumprisse o clima prometido pelos
olhares furtivos a senhora Lens devesse deixar de fazer parte do mundo e
a sublimidade do amor se transferisse à dos fenômenos naturais. Como se
ela mesma devesse se tornar outra mulher e morrer para si mesma,
abandonando o acanhamento de seu espaço de ser e habitando um outro
e amplo.

Pesava a educação que recebera. Não adiantava que os valores de


seu pai fossem cristãos, de tolerância, se ele mesmo não era um homem
tolerante. Sua mãe era passivamente feliz apesar dos meneios de cabeça
de Rose (similar ao sarcasmo de Michele em relação a ela) que por sua
vez não os queria desapontar. O que diriam se soubessem que ela iria se
separar? Seguia então a sua farsa. Até quando? Mas se assustou de
verdade quando depois de violenta discussão com George acabaram na
cama, ela subjugada e – estremecia de pavor ao lembrar – orgástica. Se o
marido tinha outras mulheres, isso passava por concessão aos homens.
Embora não ligue para ela, tem esse ciúme doentio, morador que não
gosta da casa mas é proprietário mas sente-se no dever de zelar pelo
imóvel. Casquinha de pão. Adoro. Percebera afinal que certas preferências
sexuais dele tinham mais a ver com uma vontade real de machucar do
que com fantasias ou mesmo tara. O carro estaciona diante do escritório.
O jeito como ele lida no trabalho, enganando as pessoas, enoja-a; como
zomba das vitimas de seu estelionato. Mas fazer alguma coisa a respeito,
ela nada fazia. Levantara-se ele dos infernos para dentro da vida da
senhora Lens. O que vira num homem como George? Contudo se fosse
diferente, gentil como – como era mesmo o nome dele?, enfim, como
aquele rapaz (Reinaldo?) por exemplo, decerto não teria lhe dado a
mínima.

Gritos no quarto. Tinir de copos à cabeceira. Queixas chorosas. Cale


a boca! Pulsos arroxeando. Uma janela se abre lá fora. Os corpos se
estendem nos lençóis amarrotados.

Tornara-se uma mulher de meia-idade, mãe de uma adolescente.


Não tinha o direito de se iludir. Sente-se ameaçada por George, projeta
nele seus maus sentimentos inerentes, como a mulher estuprada ao se
tornar roteirista violentará as moças de seus filmes. Nossa, já são quase
nove horas! Durante algum tempo incorreu no clássico erro de supor que
poderia mudar o noivo; noutro período acreditava que a maldade era nele
apenas um tipo romântico de rebeldia. Precisa ir agora, antes que a
vizinha apareça para ficar de conversa mole. Na verdade, ai dela caso se
atrevesse a questionar o comportamento de George, seus vícios e
perversões, mas por que ela o tolerava? Aí vinha tanta coisa à tona...
vaidade, comodismo, dependência, ambição, concupiscência, a droga... A
senhora Lens chorou.

Sua arte primava pela linearidade, tudo muito certinho. Mas sua vida
era certinha? reta? Totalmente indireta. Sua alma obliqua, suas verdades
sinuosas. E o rapaz com quem iria ao paraíso em olhares distintos, as
coisas transcorreram de um modo imprevisto, naturalmente cheio de
rodeios. Contornos fragmentários sufocam o tédio confortável e a técnica
geométrica. Vendaval que turba as fontes. Matava a perfeição com seus
quadros perfeitos. O quanto é preciso se tornar imperfeito para chegar às
capacidade artística? É que a perfeição não cria, enfada, é preciso se
antes lapidado pela dor e pelo erro. Essa é a graça da vida e a sua
salvação, que provavelmente terá um dia uma outra perfeição como
coroa. Prolepse, diria que nada existia em si que justificasse a
reciprocidade em relação a um homem tão mais jovem, saudável, atrás
de quem as mulheres deviam correr. Não que fosse feia. É que as
estações a haviam sazonado. Assim faz o tempo com as frutas, queimou a
musa dos Cânticos. Estava escrito nas linhas de seus rosto e as carnes de
seu corpo o revelavam. Entretanto é esse tipo de mulher que mais atrai
homens jovens, não as garotinhas. Se não era linda, com sua boca grande
demais e as grossas pernas meio tortas, transpirava o que se deseja
inspirar e deixava os amigos da filha boquiabertos. Agora, o jovem sem
nome daquele primeiro dia por quem cruzaria diariamente em seu passeio
matinal pela praia, aceitou renunciar a ele por uma força ligada à sua
capacidade artística. E era essa a força de seu amor, maior que o próprio
amor assumido, maior que o próprio amor: sua renúncia. Existem tantas
cidades no mundo, pensou, por que o destino o trouxe justamente para
cá? Está tão cansada. Voltará para casa após vê-lo em frente ao hotel.
Está consumida por esse desejo absurdo. Não sabe se é possível mantê-lo
imaginário e fecundar a privação. De resto, não surgiu esse desejo com o
fim não de ser satisfeito mas de inquietar. Ah! É forte demais. Aniquila.
Poderá controlá-lo? Um impulso mais forte que ela? Só poderá descansar
após o apaziguar. Respira fundo antes de olhar o ateliê à sua volta. Meu
Deus, isso não é amor...

Fora não mais que uma troca de olhares, pensou, quando na verdade
nem isso. Mas desde aquele dia em que viu Gerard, absorveu a
perspectiva de toda uma vida. Envolvida por uma paixão da qual se
julgava imune, decidiu que não transgrediria, em nome da paixão, os
princípios católicos dentro dos quais fora educada. A vida estava muito
além da atração física. O desejo adquire o tom da esperança e a senhora
Lens se permite contemplar. Viu no mesmo desejo aquelas coisas que
estavam na vida além e todas de alguma forma residiam na própria
paixão. Havia o amor da natureza, a paz do silêncio, o usufruto pleno do
que se possui, a gestação de um filho. A arte. Então decidiu. Viveria sem o
objeto daquele súbito e inesperado desejo, viveria sem sequer pensar
nele (melhor assim), em sua voz que dirá Muito prazer senhora no almoço
de Michele; em seu queixo, em seu peito, em suas coxas; em seu olhar
que lia os olhos dela, luzes de um farol trazidas à noite pelo oceano que
marulhava à janela. O nariz arrebitado e petulante, de criança mimada.
Conheço o tipo. Mas nunca assim. Pelo menos agora. Um motivo para o
despertar. Um novo tipo de passeio matinal. Sua boca não atrairia a
atenção de qualquer mulher mas Rose, a artista, a artista plástica, a
artista plástica marginal, para ela a umidade assimétrica da borda rósea
refletia o tremor das folhas em uníssono com o seu coração. Por meio da
contemplação oferta a si mesma uma vida vicária que deverá ser sua
serva ao conter as loucuras de uma paixão proibida. Paixão? Outra vez. O
quê? Amor.

Caso pudesse chamar de amor, amou-o desde o primeiro momento.


Impossível negar. Amar aquele jovem era um sentimento que corria em
suas entranhas como se fosse seu único habitat no imenso mundo.
Estremece a cada evocação dele. Amor então. O desenvolvimento
esperado do arrebatamento inicial. Bem, deveria ser. E se impõe o
sacrifício. Não transgredirá. Como será, transgredir? Deitarem-se juntos,
talvez na praia noturna. Mas não. Será boa para sua arte a renúncia.
Melhor assim. Faz tempo que não pega em seus papéis, nos lápis, no
buril. Ultimamente, é ela a própria forma líquida, negra, na superfície
oscilante. Seu ultimo quadro fora um estudo confuso onde não
desenvolveu uma visão da pintura engajada mas acabou envolvida pelos
tons sombrios, deixando-se arrastar por uma crise de nervos que a jogou
na cama em frangalhos. Flor cujo viço está prestes a morrer, dela cuida o
marido com zelo de jardineiro. Embora gozasse com as floradas novas e
seus brotos, não deixara de dispensar gratidão à planta que definhava
para dar lugar àquelas geradas da eflorescência anterior. Esteve à sua
cabeceira com gentilezas de comerciante que lesa os clientes, de médico
que assedia a paciente. A senhora Lens tem pavor desses rasgos de
bondade. Nos filmes de terror, o recanto bucólico sempre antecede as
orgias de sangue. Era ainda bela sua mulherzinha, serviria ainda por um
bom tempo. Quanto às outras, está no homem ter muitas mulheres como
está presa no ramo da planta atual a que germinará no futuro. Assim
pensa George Lens entre Rose e a Zona Vermelha, entre as jovens frescas
da noite e a mulher de 45 anos. Como um jardineiro que ao cuidar das
novas plantas não percebe o arbusto seco reflorescendo, não percebeu o
olhar brilhante do amor, desde o primeiro momento, na véspera do
aniversário de Michele, a Gerard dedicado. Tomara que não perceba. Ela
não estaria preparada para essa possibilidade. Odeio esse homem.
Realmente, como pôde chegar a se casar com ele?

Se não devia fidelidade ao marido infiel, à arte a fidelidade exigida


não era a que se aprende por meios morais mas aquele de que se
depende para sobreviver. Portanto talvez George fosse necessário para
que de algum modo ela pudesse ser plenamente Rose, com suas
melhores virtudes nascidas do sofrimento e de grandes alegrias por
contraste. Para sempre registradas em suas telas. Ainda bem que existia
um lugar como Celba, pensou, ainda bem que havia a solidão, não
sobreviveria numa vida social. Talvez George fosse necessário, como o
próprio Gerard de outro modo.

Durante a primeira parte da manhã, talvez uns quarenta minutos,


permaneceu diante do espelho. Ainda não morri. Nem mesmo estava
velha. O fulminante amor que a colhera lhe destinou mudanças, nada
mais do que Compreensão. Acontecera um dia com a pintura. Está
sentada, ereta, com as mãos na região lombar. Olha para as mesmas
mãos no reflexo, percebe os resíduos da tinta na pele, como uma roupa
encardida. Produzira-se em seus quadros, essa compreensão, a partir da
mudança da metrópole para a vila de pescadores. Um tom insistente, qual
gemido, a que se poderia se chamar estilo. Estica-se para trás, alonga.
Geme. Regozijara ao descobrir o caminho a seguir. O mar; os matizes do
mar; o barulho do mar; o cheiro do mar; e oh sim tudo encontrava eco em
seu espírito de mar. Olha para o ombro esquerdo, nítido, branco e cheio,
plena do sofrimento que é forma de vida em extinção. E o que ela –
nereida – compreendia, passava às telas, em perfeita simbiose. Quando
pintava. Mas não tem pintado. Abre as palmas diante dos olhos. É isso.
Leu as manchas de sua pele através das quais correm as veias azuis. Sim,
ela o amava. Amará de fato. Ama Gerard.
Talvez o responsável por seu amor seja um tolo. Mas, como não irá
se envolver, isso não afetará as profundezas e altitudes. George Lens já
tinha saído. Sobe as escadas do prédio. Cidadezinha miserável. Gentinha.
Nem sabem o que é um elevador. O alívio da senhora Lens se confunde
com o terral que varre o vilarejo para desespero das donas-de-casa,
obrigadas a levar uma segunda e terceira vez a ultima vassourada pela
porta. Tarefa que pode esperar, decide ao entrar no banheiro. E para o
almoço mandará buscar uma ou duas quentinhas. Possivelmente Michele
nem venha, como está se tornando costume. Lembrou-se do absorvente.
O mar, a lua. Ciclos. Pode uma mulher ser livre? Sua vida vai pelos ares
agora também respirados por Gerard. Ele não a verá passar quando,
depois de falar com o jardineiro, retornar à pousada. Conquanto espere o
encontro, e trocar um olhar com a materialização de seu sonho. A visão
do corpo maduro e roliço em meio à névoa.

A maré subia. A areia dura registrava as passadas de Gerard,


caligrafia tensa do desejo de reencontrar a mulher. No vigor da espuma
lançada com mais força, apaga-se a trilha de um dos pés, figurando a
laceração, preservação de apenas metade dos projetos que o distinguiram
com tão peculiar vilarejo. A paixão o divide. Tudo parece complicado,
desde as mais simples tarefas do técnico de informática da pousada.
Emprego caído do céu. Viu como é bom fazer as coisas direitinho?
Lembraram-se dele para o cargo. Agora porém o rumor do mar mantém-
no prisioneiro, nos corredores que esperam a temporada. Os
pensamentos batem nas paredes, entranham-se na fina grama da
entrada, luzem na fachada dórica, volatilizam-se junto ao aroma das
buganvílias. Do segundo andar se espalham por toda a parte em cachos
rosas, vermelhos e brancos. Porque tudo aquilo, como ele inteiro, havia
sido marcado pelos devaneios desde que vira a mulher, de quem retivera
o pecado de sonhar. O que vê, ao entrar entre os capitéis triplos do prédio
em que trocará cumprimentos com os veranistas, é ela, apenas ela. Seu
nome, saberá no dia seguinte.

De agora em diante felicidade passa a ser a madrugada fresca do


lado de fora das casas, nas redes das varandas, em uma aldeia de
pescadores, olhando as estrelas e criando a manhã de nadar e encontrar
uma deusa madura, esperando o sol para segui-lo pelo mar turquesa após
um dia desgastante entre pentes de memória e mensagens de erro. Está
sentado à janela do ônibus, chegando. A estranha da madrugada vai
descer. Que importa? Apenas um evento erótico na vida de qualquer um.
Normal. As vozes entranham-se umas nas outras, mais, à medida em que
as cortinas vão sendo abertas e o dia entra e entram na cidade. Luz.
Felicidade. Aos domingos recostar-se em almofadas no tapete, os
suplementos do jornal espalhados, agradecendo a Deus por tê-lo
encaminhado para uma vida assim. Você estava tão bonito naquele dia
em que chegou, mesmo de longe, aliás nem tanto assim. Mesmo antes,
ali, olhando o mar a correr pela janela. Ainda não a viu. Mas pressente. O
mar tem segredos.

A senhora Lens passa no rosto o creme hidratante que já usara no


pescoço. O som está ligado. Nick Cave, Tom Waits, Lou Reed, Leonard
Cohen. Ele uma vez disse que eram escolhas significativas mas nunca
disse o porquê; nunca disse nada além do que um genro tem a liberdade
de dizer. Nunca fez qualquer elogio referente a seu físico. Por respeito é
claro. Ou nem liga. As duas coisas? Aqui ela separa as roupas sobre a
cama no espelho, a bermuda floral que a deixa à vontade sem
constrangimentos e a blusa sem mangas, seu uniforme de passeio à
beira-mar. O ônibus passa a seu lado. Passam tantos ônibus
interestaduais naquele horário. Nem pode imaginar. Dentro dele. Um
suspiro. O corpo fala pela postura e pela naturalidade com que a postura
se mantém. A roupa fala; o equilíbrio é bom-gosto, revela, função
importante no caso da senhora Lens, calada e cada vez mais após a
partida de Silvia. Tem todavia vontade de falar. Por isso mais que vaidade
a escolha do vestuário.

Foi esse tipo físico. O jeito simples, o porte, e alguma outra coisa
que ele não saberia dizer mas transpirava daquele corpo. Chamou a
atenção de Gerard ao despontar na praia quando chegava à cidade,
acalentado até então apenas pela exuberância da natureza ao redor.
Talvez pudesse ter ali evitado esse destino. A senhora Lens se cala diante
dele, à porta. Ela acabou de chegar e perguntar por Michele. Não, não
havia como evitar. Esse destino está à janela dos ônibus. Sente no rosto o
vento e a chuva que batera contra o vidro durante a noite. Está do lado
errado. Com desconforto se acomoda à poltrona. A vida pulsa na solidão
tempestuosa. Logo tudo parecerá um sonho. Um desatino atemporal.
Quando acordou de manhã, o ônibus deixando estrada e mais estrada e
mais estrada para trás, um sol tímido se arriscava em finos feixes.
Espíritos do ar se alimentam dos pensamentos dos passageiros e
depositam em suas mentes a conjetura que não saberão definir. Gerard
emprestou às existências ocultas a força de sua esperança. O ônibus
encosta na rodoviária, na verdade a pequena marquise da loja de venda
de passagens. Um olhar estrangeiro. Ponto a ponto de referencia, se
exalta em arroubos próprios de pessoas em lugares novos. Dava Celba
por definitiva em sua vida. A visão fugidia do vulto que tanto seria amado
iniciou o processo do renascimento do Deus feminino por quem, na beleza
do céu agora de súbito entrevisto entre dois prédios, havia na
adolescência se apaixonado.

Sem dúvida, o destino.

A música que ainda tocava em seus ouvidos possuía uma dimensão


nova de ser, superpunha uma nova alma sobre a antiga. Uma nova
realidade repercute nas batidas de seu coração. Enche o peito. O mar lhe
faz tanto bem. Amanhã bem cedo dará um mergulho, nadará um pouco,
precisava. Quem sabe ainda hoje. Fechou os olhos. A música paira,
melodia lisérgica de não-usualidade. Pensar na mulher provoca a fraqueza
profética, mistura felicidade e terror. Não se atém à música, ao céu ou o
mar entrevisto. Uma historia de incerteza e horror. Agora ele sabe, não
sabe como. Agora uma nova consciência. Passeava ousadamente pelo
medo da realização das coisas que muito se desejam. Pensa na mulher.

O alongamento no ato de se espreguiçar interage com o frio na


barriga. Tinha a ver talvez com um velho sonho, viver numa vila como
aquela, apaixonado. Derramando-se pelos telhados como uma mancha de
luz, o sol impossibilitava a fixação no descanso verde de uma arvore, na
sensualidade de tijolos vermelhos ou na liberdade de algum azul no céu
ou no mar. Tira momentaneamente os fones e, passando por uma casa,
ouve vozes enquanto o ônibus se aproxima e depois que se afasta. Estou
indo agora, acho que me atrasei um pouco, diz a menina. Rose não iria se
aborrecer, não hoje. Disse que estava tudo bem. Que ia à praia. Como
assim “vai à praia”, mamãe? Assim: de biquíni e toalha pela trilha (Na
verdade está pensando no short branco, a camiseta petróleo e a bolsa
branca). A senhora não tinha prometido dar um jeito na minha calça para
a festa? Claro. Só não tinha marcado horário. Mas o aniversário é sábado,
sabia? Sim, Michele, foi nesse dia que te dei à luz. E você, sabe que hoje é
quinta? A adolescente deu de ombros. A mãe estava mesmo ficando cada
dia mais estranha. Deve ser a idade. Na idade dela, pensou Rose, eu já
teria dado eu mesma um jeito na calça. Ou poderia usar uma calça velha,
o que naturalmente Michele não faria. A filha não fez questão de
dissimular o olhar que percebeu a estria na senhora Lens, que foi discreta
ao notar seios e culote brotando de modo um tanto descontrolado em
Michele. Tudo bem, mãe, boa praia. Só faltou dizer: Papai não vai gostar
quando souber. Obrigado, querida. Boas aulas. Os sons de um concerto
marcam no ônibus a distância da casa. Eca, mãe, que musica horrível,
resmunga a filha ao sair. Quando você tiver a própria casa poderá ouvir
músicas lindas em todos os aposentos. Quando tivesse a própria casa,
pensou Michele, seria mesmo sua, jamais dependeria de um homem.
Porque era filha e porque era fase, porque o pai tinha algo que ela, porque
descobriu. As vozes ecoam em Gerard como se tivesse passado não de
ônibus mas a pé. Essa voz. Então lembrou. De seu sonho? Não.
Acontecera.

Houve sim a noite no ônibus. Com licença, disse a jovem. E de fato


aquela mão. Talvez ele tivesse permitido, talvez não tenha reagido para
ver até onde ela chegaria. Mas o quê? Estou pensando em um sonho?
Não. A claridade, o cochilo, quase o enganaram. Mas as noites sempre
voltam. E ali, de seu descuido, de seu sonho ou o quê. Essas coisas
acontecem. Nada demais. São os tempos. É a noite. O aconchego de um
ônibus leito. Mais tarde algum tipo de culpa, caso não impeça a súbita
mão que desliza e permita o contato no encosto dos braços comuns às
poltronas – logo diálogo de pele, arrepio, a contração de todo o corpo sob
o cobertor. Evento oculto dos olhos, ainda que não exista olhar ocupado
com aquele lugar no interior do veiculo. Nenhum olhar para qualquer
lugar especifico do interior do veiculo. Então os dedos se insinuaram
enquanto vigorava a lei dos olhos fechados e do pretenso sono.

Ela entrara na segunda parada e, como já não estava ali ao


chegarem, saiu antes da ultima. Há um rio correndo por dentro da cidade.
Ela o cruza, pela ponte. Segunda parada. Entrando. Contraponto aos caras
grosseiros da rua, o passageiro com aspecto sonhador. Não será algo
doentio. Ela lhe apenas lhe dará algum conforto, pois ele parece tenso,
quase à beira das lágrimas. Roçar de braços faz despertar. O ruído do
motor traduz o quanto na distância ficou a segunda parada. Nem mesmo
ele poderia jurar, caso a reencontrasse, que não dormia. E caso se
encontrassem mesmo? A cidade era tão pequena. O temor que habita a
consciência. Não. Nem se reconheceriam. Ou talvez. Vale a pena o risco?
Três passageiros entraram na segunda parada. Uma moça. Os dedos
eram tão gentis que mesmo no sonho ele custou a acreditar – se é que
acreditou – que não era proposital. Movem-se sobre a separação mas já
introduzidos no calor. Não há sedução mas momento, não vergonha mas
encanto. Homem e mulher, menino e menina. Coisas que acontecem após
a segunda parada no silencio das reputações.

Uma réstia de luz entre as cortinas do lado esquerdo de quem entra


pelo corredor. Gerard leva um olhar morno junto ao raio até que pousem
no perfil da jovem, sim, dir-se-ia adormecida. Mas é dela esta mão. São
dela os dedos que procuram. Isso não está certo. Mas o que pode fazer?
Há algo que possa fazer dentro do limbo no entorno de um gozo que não
se consumará nem na verdade deve se consumar? É apenas o dedo
médio, gordinho (das poucas coisas que notara assim que ela se
aproximou) com uma pequena ajuda de indicador e polegar.
Acompanhando a trilha, a senhora Lens chegará na praia por volta das
nove e meia, descanse agora, dê um mergulho, estenda a toalha, tome
um sol. Por agora ainda dorme, ou tenta conciliar de novo o sono. Mas o
sono é úmido como a areia nas proximidades do mar, como a jovem do
ônibus. Agora são todos os dedos. Pressionam, diminuem o aperto,
veementes, suaves. Detém-se agora no pulsar que ignora as fases
primárias do desejo e as complementares, da consumação. Tão natural.
Ela, com freqüência tocada, agora toca; ele nada fazia, se integrava.

A mão por dentro do cobertor. Descobre a borda e a leva abaixo no


ritmo da estrada e do motor. Um ser triunfante desafia a lã. Em que
momento os dedos pararam, se a mão guiou a outra mão, em algum
momento esqueceu. Respiração regular de reles mortal. Tudo bem, aceito
ser um pouco feliz assim, obrigado. Tardou o necessário. Passou. A voz de
Michele, na verdade um resquício da sua voz, fragmento de fragmentos,
um acento qualquer, um pronúncia incomum, um jeito de falar, envolve-se
no incidente noturno. Bom dia, diz ela assim que ao descer pisa na terra
que ladeia o asfalto. Bom dia, senhorita. Vista por um velho sob a arvore
que marcava a penúltima parada, o ser que desceu do ônibus parecia um
anjo, as vestes molhadas de azul.

No inicio da tarde do dia em que chegara para assumir os


computadores da pousada, viu a mulher pela primeira vez. Se Deus
tivesse aspecto humano, Deus mesmo, não seu Filho, seriam as feições
daquela mulher; se tivesse um corpo seria seu corpo, lírio entre as plantas
espinhosas. Passeava à beira do mar. No momento em que pousou nela o
olhar, desencadeando aquele fogo que o devorou em esquecimentos, a
senhora Lens encheu os pulmões do ar salino, enchendo os seios discretos
nas fronteiras em V. Ônibus adiante, o ângulo de visão apresenta uma
mulher na casa dos quarenta, em exuberância de porte. Erguem-se
montes cobertos por névoa floral. Gerard retém a imagem da senhora
Lens nos minutos em que está no ônibus depois de tê-la visto e antes de
saltar.

Chegara enfim.

A senhora Lens passava os dedos através dos cabelos. Pega uma


flanela fina e se entretém a limpar as lentes dos óculos. De longe o viu à
janela. Sim, um ligeiro tremor, não atração física. Viu a compaixão no
olhar do rapaz falando com o jardineiro. Senhor Gerard? Muito prazer. Sou
Cronelin. Seja bem vindo. Gerard sorriu, agradeceu. Respondeu. É um
prazer para mim também. Pouco antes do verão, chovia mais do que
normalmente. Aproximava-se o Natal.
Gerard. Arrumou apressadamente as coisas no quarto, como se
estivesse atrasado para um encontro, e saiu em direção do lugar na praia
em que havia visto a mulher. Como o ônibus houvesse dado uma volta
naquele ponto, teve dificuldades de se orientar. O sol vermelho busca seu
próprio reflexo na linha do horizonte. Logo, sóis estariam se unindo no
oceano na policromia do infinito aos pés espumosos das ondas. Chegou
ao lugar, marcado por um pé de tamarindo gigante, quando o sol
encontrou seu duplo e a noite começou a cair.

Não havia ninguém.

A senhora Lens

A tradição determinava que a vila de Celba, com sua orla marítima


plena de curvas como as redondezas das versaletes no diário de uma
adolescente, fixasse nos que chegavam com a rodovia uma impressão
beatífica. O terral sopra à tarde, balançando as buganvílias no forte calor
infestado de maribondos, mas pouco o ameniza. Aura de séculos. Hábitos
femininos dissolutos. Vendilhões no século XIX vivem do tráfico de
escravos. Da estudante à vendedora de balcão, da filhinha de papai à
fugitiva, da turista adolescente à radicada madura, as mulheres dali
tinham essa essência que as resumia, uma sensualidade vulgar. Para os
homens, a principal fonte de recursos da vila era não a pesca, nem o
artesanato de conchas, mas o turismo. A maioria dos que moram ali o ano
inteiro vive em função da temporada, mas alguns são indiferentes a esses
verões. A temporada os incomoda. Era o caso da senhora Lens, pintora
em cuja paleta subsiste simplicidade. Com inspiração no cenário natural
da vila, ela produzia mais a partir do outono, quadros que a crítica
acreditará brilhantes. O brilho literal, Gerard viu do ônibus quando
chegava. Qualquer pessoa o veria. Aos olhos da distância havia sim um
lirismo que se perderia no crepúsculo. Porque Celba não depende da
pesca ou do turismo mas da luz.

Essa vizinhança de nativos em seus casebres e donos de mansões


para aluguel cumulou-se da mistura que acrescentava à atmosfera
maledicente da cidade pequena a perversa liberalidade da metrópole. Na
época, Celba contava com menos de dez mil habitantes. Mas há qualquer
coisa na comunidade que a faz parecer maior do que realmente é. Em
comunidade o mundo que constitui cada pessoa interfere nos outros
mundos, como transmissão de rádio. A vida da cidade se expande. As
pessoas ali são portanto muito parecidas, esperam a temporada como
quem torce por números de loteria, num universo de bilhetes premiados.
Quando vêem a senhora Lens, que não é turista mas vai à praia e não se
junta para falar da vida alheia, murmuram. Olhem. Lá vem a madame.
Gerard tampouco escapará. Arrogante. Sozinho pelos cantos da cidade.
Gênio difícil? Não, apenas um idiota. Amará a senhora Lens porque deseja
a liberdade que na vivencia cotidiana está além dos relacionamentos.
Amará o fruto por ser proibido, não pelo seu sabor? O sonho por ser
utópico?

Celba. Lugar maravilhoso, pensou. Castanheiras. Esperou a manhã.


Folhas. Coisa maravilhosa. O sol num milhão de nuances. Acompanham a
orla. A pouca distância dos recifes passavam todos os dias ao romper da
aurora barquinhos com dois homens. Verificam a rede, curvando-se para o
espelho. À direita de quem chega ergue-se o monte Lagar. Uma falésia
surge na proximidade do verão. Ali a praia começa ao sul suavizando a
rocha na areia escura. Para onde quer que se olhe, montanhas ou mar. A
chuva costuma sumir por longos períodos e as grandes tempestades
anunciadas são mais barulho, eletricidade e redemoinhos. Mas isso Gerard
não sabe ainda. A população flutuante faz o estranho passar despercebido
ao descer do ônibus. Que lugar. Acredita que enfim acertou em cheio.
Junte-se à paz turquesa a sensibilidade de um espírito nobre e aí está o
principal efeito do lugar em Gerard, semelhante ao que habitou em Rose
havia alguns anos.

Oito anos. Veio a convite de um amigo com o qual irá se casar.


Quer uma dieta de peixe nas férias e acaba fazendo do peixe, sobre a
mesa da casa de tijolos vermelhos, a base de seu cardápio para o resto da
vida. Aos poucos, as ruas da vila passam a fazer parte dela. O caminho do
mar e a avenida do meio, da prancha da balsa até a lagoa. Aflorou a
sensualidade por meio da qual Celba promovia a unificação entre as
pessoas de bem e gente de caráter duvidoso. Casos mostravam o
passional desequilíbrio que a preguiça reprimia, crimes hediondos sobre
os quais pairava silêncio. Essa maldição, incorporando-se à existência,
torna a mulher sombria e intensa, leva aos quadros a catarse. Motivos
crepusculares e lúbricos. Num arrebol lascivo sobe o ônibus pela estrada.

Gerard deixara para trás na capital o emprego de caixa e uma vida


luxuriosa testemunhada pelo apartamento que o banco oferecia aos
funcionários, no próprio prédio da agência central. Fugia do desejo
irrefreável, do desgaste da capacidade estética, da banalização dos
relacionamentos. Vislumbra a cidadezinha de um cimo. Viverá em paz,
tem certeza agora. Irá guardar-se do mal, do cansaço, da treva. Bem,
continuaria a se comunicar pelo computador com o resto do mundo. O
velho com a colher aproveita o máximo do mamão partido ao meio.

São Braico para lá daquelas colinas. Os olhos de Gerard, o cristalino


sobre a retina e as superposições que registram forma e cor, como
operários, trabalham visando o descanso. A mulher leva o leite para
dentro. Uma outra agora ali. O talhe nobre nasce das luzes. Sem sombra,
um relógio de sol. Recortada no horizonte: ultimo pouso do olhar dele
antes que a perdesse.

A senhora Lens se livrará da depressão por causa desse amor, mas


não logo. Logo, por causa do amor, a depressão se intensificará.

Devido ao itinerário confuso como alguns romances que só fazem


sentido –quando fazem– no final, chegaram ao mesmo tempo naquele
mesmo lugar, ela pela areia. Ele soube que era ela ou não seria ninguém.
Sonho e realidade. Equilíbrio entre a atração física e a admiração de olhos
benévolos. A mesma tentativa de sempre. Num outro corpo esquecer do
próprio corpo, do terror que ele contém. Era como se aquela moça da
noite o soubesse.

Junto dele andaria sempre aqueles momentos no ônibus, como um


souvenir de sua estada no auge da esperança, nas horas que precederam
sua chegada. Determinados eventos da vida pessoal tem um papel
simbólico essencial, como na História os mitos. Agora ele tem uma
perspectiva e uma atmosfera, o que mais pode querer para um
renascimento? São duas vidas que não mais mudarão o poder que as
envolve e se expande para todos os seus gestos e contemplações ainda
que viesse a conhecer as mulheres que as possuíam, porque nem mesmo
a banalização da pessoa que a produz pode invalidar o poder de uma
impressão.

Aqui. O prédio da pousada. Mas esperará um pouco, dará antes uma


volta. É cedo. Realmente sente-se bem nas ruas da cidadezinha. Aqui até
os biquínis parecem mais satisfatórios para os corpos femininos, o ar
salino não é pegajoso como costuma ser noutros lugares, as ruas estreitas
parecem guardar a cada curva uma revelação. Passos, passos. Quem
sabe terá agora um lugar que possa chamar um dia de casa. Caminha
porque ainda não está satisfeito, embora saiba que devesse estar. Quer
algo mais para esse dia, já que será inevitável guarda-lo na memória.
Como a vida pode ser simples e bela. Mal acredita que alcançou tal estado
de espírito.

A temporada portanto dividia a vila de Celba em duas: a do verão,


cosmopolita, e a provinciana no resto do ano. Por volta do Natal, em meio
a tempestades, da exposição desses dois períodos ao mesmo sol, nascia
um corpo rico e rústico feito das pessoas em férias que se ligavam aos
moradores anuais, pescadores e comerciantes e a gente a eles ligada,
além dos especuladores, obedientes a leis tão imutáveis quanto as que
determina, na semelhança entre pais e filhos, o gene. Gerard chega em
novembro, quando a vila apenas se ensaia a temporada, mas pode sentir
essas faces. O feriadão está cheio de turistas.

Quando se faz a curva vislumbra-se a vila num prisma plano pela


primeira vez. O sol se põe a noroeste nessa época do ano por detrás da
cordilheira. O vento sopra quase sempre na mesma direção, fortemente
às tardes. O mar é raso durante imenso trecho transparente, quase dá
para se chegar às ilhas sem nadar. Branco corte litorâneo, inexato chamar
de areia – luminoso chão de fibra ótica termina em choupanas ao pé do
Lagar. Um rio corre ruidoso, ladeia toda a rua paralela à avenida beira-
mar. No extremo sul repousa a lagoa do Trancoso, reflexos de água doce
na pura paz de algum engano. Assim se desvendou Celba quando Rose
chegou, assim agora retiniu nos olhos de Gerard. Um coração palpita além
do que se deveria supor.
Chegou na quinta. Abandona-se agora ao prazer da desfeitura dos
hábitos de cidade grande. Estabeleceu-se na pousada. O computador fica
do lado esquerdo, junto à parede oposta à da janela. A impressora e o fax
numa mesa menor, de fórmica. Móveis anteriores aos raques específicos
para computador, que por uma mal formulada questão econômica o dono
da rede de hotéis ainda não se dispusera a trocar. Conectado. Viu o rosto
que não conhecia. Torne à realidade, Gerard, o que por Deus será de você
sem uma mínima base de vida à parte da estética e da sensualidade? A
conexão era boa, via rádio, uma surpresa agradável para quem ainda não
conseguira se livrar de todo da pré-histórica internet discada. De que
adiantava a estabilidade no emprego e o salário razoável? São contas que
não se dispunha a pagar, televisão a cabo, assinatura de jornal, banda
larga e toda essa tralha de que se diz serem essenciais hoje em dia.
Quem disse que o kindle não cria novos leitores? Assim teve o primeiro
contato com Silvia. Ela estará disponível numa velocidade aceitável.
Afinal não é um lugar tão primitivo. Um comentário num blog qualquer.
Tente olhar mais para a câmera e menos para o seu monitor. Suficiente
para se virar e se perder na contemplação do oceano. A nova vida
pretendida. O barulho do mar estaria sempre ali para não permitir que
esquecesse. Subitamente para quem olhasse, levantou-se. Saiu.

A imagem da mulher o envolve.

Não seria a primeira obsessão amorosa em sua vida mas certamente


a ultima. Na qualidade de obsessão se desfará para abrir espaço a um
amor autêntico que o entregasse, homem, a uma mulher – que o
entregasse, não o emprestasse. Sentenciando-o a amar quando não
amasse mais a si mesmo na pessoa amada mas a essa mesma pessoa e,
amando, levar ao amor das pessoas em geral, e a essa moça em
particular. Uma irmã.
A vista da janela. A inserção na vista ao nadar até os recifes. No
quarto vazio o halo de sua presença. Um dia conversava pelo messenger
com a mulher, Silvia, que agora deixou sozinha no monitor. Falavam sobre
decepção e abandono, expectativas criadas e frustradas. Mas no fundo é
irrelevante. Os mortos permanecem mortos quaisquer que sejam os
motivos da morte ou os sentimentos que em vida alimentaram. E os vivos
não tem uma segunda vida. Tentativa e erro, parece não haver outra
forma. No mar, a prateação do braço esquerdo ao horizonte. Mistérios ao
sol. Matizes oblíquos nos prédios que dão para a praia. A mulher em
algum lugar, sob o mesmo sol. Possivelmente perto. Luz obliqua na
transversal de sul para norte no lado oposto da ciclovia. Mães e filhas
respiram obliquamente artesanato de conchas, búzios furados com
alicates de unha colocados no fio de pesca. Palavras e palavras e ainda
outras palavras. Maledicência mata. Ah deixa pra lá, o que me importa?
Não quer mais carregar os vícios do mundo.

Raios refulgem no jorro da Fonte Sarracena. É possível reter apenas


a beleza das coisas. Mas... Há a lateral plúmbea da igreja, a parede
rachada cheirando a urina. Verdes pedaços velhos de orçaz, maços de
cigarro amassados, guimbas, seringas. Ocultas pela triste parede as
lágrimas do padre aidético. Será a vontade de Deus? Escurecia. Esticam-
se as sombras de prédios e pessoas. Aqui um homem foi morto por nada.
Agora Gerard sai da água; agora a senhora Lens está em adiantado
caminho de volta para casa. A pousada momentaneamente não tem cor
definida. Como o dia passou rápido. Nos telefones públicos em frente ao
posto, o entardecer inspira jovens turistas a enaltecer Celba para seus
familiares. É um lugar muito bonito, nossa mãe, uma vilazinha bem legal.
Tá bem, meu filho, se cuida, dizem que aí rola muita droga. O rapaz sorriu
fazendo sinais para a namorada. Beijam-se. Mal podem esperar a noite e
quem sabe não esperem mesmo. Ainda não sabem que o amor deve ser
um porto seguro, não aventuras de cais. Os velhos fios de cobre sobre
suas cabeças transmitem confissões, mas esse rapaz entra novamente na
pousada sem ter descoberto o que buscava. Dois carros passam muito
rapidamente após ter ele atravessado a rua.

Uma estrela desponta e depois outra irrigadas pela lembrança da


moça do ônibus. Mas a inspiração não é tão firme como entre os dedos
dela. Nem sabe se caso precisasse poderia manter atividade. Era ainda
novo, deve ser resquício das drogas. Deus também o poderia estar
castigando pela promiscuidade da qual fugia. Claro, haverá uma
recompensa a longo prazo pela iniciativa de mudar, por querer mudar. É o
primeiro passo para tudo na vida. No casamento decerto estaria curado.
Outra estrela. A história se fecha na pracinha do cemitério, o amor
conhece o esquecimento nas lápides. Gerard lembrará um dia. Dava para
ver jazigos de sua janela. A senhora Lens passou por ali no caminho de
volta. Gosta daquele silêncio. Lembra da noite anterior e não sabe mais o
que fazer para evitar a aspereza diária em seu canal ressecado. Os beijos
pelo menos são cada vez mais raros. Nem a preliminares George se dá
mais, apenas a penetra rasgando, arrogante viagra. Ele apenas se serve
de mim, sempre me usou, sempre apenas me usou. Mas não tem forças
para romper com aquilo.

No recém-inaugurado shopping enforcam o feriado no cinema ou na


praça de alimentação. A senhora Lens chega em casa pensando que
Michele estaria. Gerard acabou de tomar um banho após nadar, senta-se
diante do computador. Começa a digitar, clica e o contato se faz. Uma
velha correspondente, nunca a havia visto. Uma amiga virtual. Médica. Ao
menos se dizia. Do outro lado da tela, distante de Celba e mais perto do
que a telefonista do hotel, a mulher soltou os cabelos negros que caíram à
altura dos seus ombros.
Doutora, não mentira. Chegou a ser a mais jovem infectologista do
Centro Médico de São Braico. Da arrogância dos colegas nasce o desejo
de sumir, recomeçar. Não será jovem outra vez nem terá mais essa
pureza. Quem sabe. Uma nova forma de relacionamento na luz baça dos
dias. A alma se derrama pelo espaço, mantém-se assim viva. A simples
consciência de que esses jovens existem fazia com que Silvia suportasse
melhor suas frustrações e estados depressivos, motivo de constante
preocupação de seus amigos, especialmente de sua melhor amiga, Rose
Lens. Talvez, pensou, se refugiasse um dia naquela Celba de sonho.
Trabalharia, quem sabe, no hospital municipal. Conviver com tamanha
incidência de contágio levaria ao esquecimento de si mesma. Pensava
nisso insistentemente apesar do alerta da senhora Lens: o lugar é
perverso; as pessoas, traiçoeiras. Rose era infeliz no casamento,
evidentemente isso reflete na sua avaliação da cidade natal do marido.
Me lembrei que vou ter que dar um telefonema – leu Gerard na tela. Mais
tarde nos falamos.

Mas voltemos à imagem da senhora Lens tirando os óculos.


Penderam em seu peito quando a voz grave atendeu o telefone. Na sala
de estar, cujas paredes mantém uma tonalidade íntima entre o amarelo e
o vermelho, nuances quentes acolheriam quem entrasse. As lâmpadas
alógenas abandonavam o foco sobre os quadros: Goya, criança e animal;
abstrações de Mondrian; uma foto de Evgen Bawcar; e o “Vinhedo
Vermelho”. Na parede oposta, o auto-retrato da senhora Lens, implacável
em seu nicho sobre a lareira, colocado ali no transcurso da vaidade
juvenil, na inconsciência da passagem do tempo ali metaforizada pelos
matizes vindos das cortinas. Modificam o ambiente pela transformação do
dia mantido do lado de fora. As almofadas de cetim espalhadas pelo sofá
cor-de-terra marcavam de retângulos o carpete, cheias de motivos
esverdeados e triangulares, à espera de que a senhora Lens se estenda
para passar seus cansaços. Seu rosto no enquadramento de fundo
cortinado juntou-se ao arranjo de flores secas.

Estava deitada, lendo sobre Cézanne, quando o telefone tocou. O


caleçon azul de seda mista se ondula deixando adivinhar as formas das
coxas em luz de lâmpada no tecido. O sutiã bege encheu-se quando
inspirou. Quem poderia se deleitar com a visão, uma vez que a senhora
Lens estava só, como sempre? Vestia-se para si mesma há muito tempo,
desnudava-se para si mesma. Ao andar pelo tapete, seus pés pequenos o
marcavam.

Como Rose estava? Era bom ouvir a voz de Silvia. Há quanto tempo.
O que tem feito? Silvia queria falar do que gostaria de fazer. Quero te ver,
ir a Celba. A senhora Lens respondeu animada que, claro, lhe daria muito
prazer. O George não vai achar ruim? O George não vai achar nada.
Quando Silvia estava pretendendo viajar? Um pouco antes da exposição.
Quando você vai para os Estados Unidos? Poderiam ir juntas. Sim, iriam
juntas. E as coisas? Iguais. Você precisa tomar uma decisão. Não era nada
trágico. Ele a maltrata? Maltratá-la seria estar consciente de que ela
existia. Silvia se pergunta como Rose pôde casar. A senhora Lens
pensava que o noivo era apenas um homem rude. E pensou que poderia
dar um jeito nisso, que podia ensiná-lo. Bobagem, as pessoas não
mudam. Quem dera ele fosse de fato só um homem rude. E a menina?
Está bem de saúde. Sabe como são os adolescentes, disse a senhora
Lens. O que esperar deles exatamente? Silvia podia imaginar? Fui ter uma
conversa ela, achei que estava exagerando na maneira de se vestir, com
biquínis minúsculos, shorts enfiados e... – A senhora fala como se eu
fosse uma predadora — dissera Michele na ocasião. – É exatamente o que
está parecendo! – Fale pela senhora, mamãe! Silvia lembrou que elas
também haviam sido adolescentes. Faz tempo... Nem tanto. A senhora
Lens estava feliz. Para quando devia esperá-la? Segunda à tarde? Tudo
bem. Assim terei mais tempo, disse a senhora Lens. Michele estará na
escola e George no trabalho. Será bom rever você, disse Silvia. Tenho
novidades. Alguém? De certa forma. Como assim? Quando chegasse,
conversariam. Mas você sabe, adiantou Silvia, que eu tenho um
computador em casa. Vadia... Silvia dissera que ia comprar um para
trabalhar! Lidar com homens é um trabalho exaustivo. A senhora Lens
pensava que a amiga os tivesse deixado de lado. Como Silvia disse, é um
homem apenas de certa forma.

Nas pausas, a senhora Lens podia ouvir o refrão do mar, sempiterno.


Também escutava-o Gerard ao desligar o computador. Desejaria retirar
todo o prazer da melodia mas contentou-se em ter a intensidade de
percepção possível. Não era capaz da plenitude dos sentimentos que a
sublimidade música pode passar. Perdeu-se no céu parcialmente
estrelado, pensando na mulher da praia. Ela caminhava pela areia úmida
com jeito de nereida, uma rainha, na areia como se nas nuvens, a
carregar o paraíso consigo na brisa de novembro. O rosto desenhava-se
em proporções características de bebês. Os olhos eram grandes e muito
abertos. Gerard não tinha certeza mas acreditava-os castanhos. Não era
um rosto fora do comum mas irradiava beleza de aura. Deusa
despercebida, não para Gerard, insone que adorava os filmes de Hanna
Schygulla e lia tanta Clarice Lispector. O porte vestal admitia um corpo
talhado para o amor. Cabelos e pescoço, seios e coxas, pés e mãos,
tornozelos e ombros, costas e barriga — como se o amor existisse não em
si mesmo, mas naquele corpo. O acesso se dava não por conhecimento
mas imaginação. Viu-se diante dela, nos montes abrigando-se da solidão
tempestuosa, na austral curva descaindo no vale sombrio. No corpo que
gerava a fantasia de Gerard, a senhora Lens sentiu doer as costas e
passou a mão direita em sua lombalgia. Tornava-se crônica. Falando em
homem, Silvia perguntou como estava o Renaud. Renaud? Aquele, de que
você me contou uma vez, o da festa, havia esquecido? Ah. Veja há quanto
tempo não nos vemos! Mas você existe, está aí, eu sei.

Uma reflexão. Tornavam-se raras. Silvia sente a falta física das


pessoas. A senhora Lens não tem muitas pessoas das quais devesse sentir
falta. Por que não se separava? Michele o adora. E a ela mesma, Rose,
quem adora? Quem ia se sacrificar por ela? É minha filha, Silvia. Não
pediu para vir ao mundo. Droga, nem você! Precisavam mesmo
conversar. Os filhos crescem e será tarde. A senhora Lens bem o sabia. A
gratidão dos filhos não deveria ser suficiente para encher a vida dos pais.
Rose era jovem, atraente. Silvia devia estar brincando. Não estava, ora,
trinta e quantos? Quarenta e cinco. Silvia estava nessa faixa e se sentia
desejável. Tinha tempo para isso. O mal das mulheres casadas é não se
permitirem ter tempo. Na verdade George era bom com a senhora Lens.
Na verdade era um canalha dissimulado. Era bom com ela: o que fazia
fora não podia mudar isso. Mas muda, disse Silvia. A menina o adora,
respondeu Rose. Assim voltaram ao princípio. A senhora Lens não podia
afastar a filha do pai. Sabe, disse Silvia, o mais curioso é que às vezes te
invejo. Realmente estava brincando. Não brincaria com isso. Você está
num contexto normal – as mães são dependentes e as mulheres se
sacrificam. Estão excitadas, perdem todo pudor entre si. A que contexto
pertencia Silvia, dos artistas marginais? Uma como a outra, uma nos olhos
da outra e tão distintas. Artista? Silvia suspira ao pensar que talvez. Quem
larga a medicina para se aventurar na literatura. Cartas tão poéticas, sem
contar o livro. E se aventurar, simplesmente. Parta Rose as portas
estavam sempre abertas. Nunca uma fila de banco. O que sabia do
sistema de Saúde ou como funciona a Educação no país era só
informação. Nunca desempregada. Uma vida ao longo da vida quase da
vida separada. Michele chegava da escola.

–Vou ter de desligar – disse a senhora Lens.


Estaria esperando a amiga.

Desde que levantou-se da frente do computador, Gerard cumulara o


rosto de indagações, buscando algumas respostas da memória e outras
da esperança, além de um tanto relevante do desencanto, que no limbo
em seus olhos refletia, entre o que não acontecera e o que não fazia
diferença se tivesse acontecido ou estivesse para acontecer. A
sensualidade de Silvia existe sem um corpo e sem um rosto, e há essa
prova de que pode curá-lo, mas não o entusiasma tanto. E, é claro, nada
que se compare à mulher. Ainda assim. Dra. Silvia... Um raciocínio lógico
demais para idéias tão ardentes. Um ritmo, dir-se-ia. E a tal amiga,
apresentando-a como vítima, estivesse talvez justificando seus desvios.
Mulher só trai quando o homem dá motivo. Ele associa. A mulher. Jamais
daria motivo acaso eles. Eles. A senhora Lens pensa no rapaz. Vê.
Namorada eterna, desnudada para alguém. No rosto se ilumina um prazer
não sentido, disperso pelas feições do rosto dele. Como nada soubesse
dela exceto o físico, os perfis conforme o ônibus passava, Gerard,
deslocando-a do desejo para a simples memória e desta para a saudade,
colocou-a assim ao norte de seu amor. Adormeceu.

O ruído que o arrancou do sono e o devolveu ao mundo era um


bando de adolescentes na rua da praia. Naquele tempo os filhos eram
tiranos. Os pais poderiam ser responsabilizados? A época? Em todos os
casos? Com a menina fora assim, era assim. Os Lens não perceberam que
Michele se tornava mulher. O pai antes da mãe, depois da coisa
consumada. Espera um filho homem. Ignora a criança pequena e da maior
sente raiva. Na jovenzinha todavia presta atenção. Ela mostra alegria com
o súbito pai. Um silêncio pairou de uma hora para outra. As vozes e
passos dos adolescentes crescem na praia.
À evocação se junta uma voz feminina que contava a noite anterior.
Gerard percebe a ereção matinal. Já não é tão firme. Deus meu, a verdade
é que pode simplesmente ser impotência. Acontece. A senhora Lens
lembra com desconforto da noite anterior mas não lhe ocorre a idéia de
evitar a assiduidade do sexo. Bem, pelo menos os beijos são cada vez
mais raros. Prostituta, chegaria a pensar se um som qualquer não
desviasse o pensamento.

Michele se comprazia em ser em tudo o contrário da mãe. Torna-se


alegre, falante, além do que desejaria. A senhora Lens é
reconhecidamente virtuosa. Mas alguma coisa detém a menina quanto a
outros vôos. Beijinhos aqui e ali, ficando com um e com outro, como
qualquer menina de sua idade, nada passível de conseqüências. Se
guarda para alguém que se pareça com o pai, tão másculo e generoso
como ele. Alguém que não olharia para sua mãe. Quando olhos
deslumbrados se voltam para a senhora Lens, a dor adquire tons de
traição. Não acontecia se o rapaz em questão se interessasse por uma de
suas amigas.

Educar Michele era um dilema. A senhora Lens não quer retroceder à


sua própria educação, repressiva; tampouco retirar necessários limites.
Um calafrio. A menina, o choro após tantas horas na maternidade. Essa
menina. A verdade da vida. As vozes na rua se multiplicam, quase gritos,
chulos. Será Michele tão pouco exigente quanto a seus amigos e
namoradinhos? Será capaz de se apaixonar por um desses meninos
vazios, como ela própria por George? Quis se apaixonar, na verdade. Quis
sair de casa a qualquer preço e ah o preço que pagava!... Mas Michele era
livre, independente. Fumava de tudo, bebia cerveja, saía quase todas as
noites e a hora determinada de voltar era só uma formalidade, uma lei a
ser transgredida. Pessoas como George só se impõem quando pessoas
como Rose o permitem. Quando a senhora Lens reagiria?
Os grupos passavam. Normal a estupidez, sadia a falta de
educação, a dureza, a leviandade; os vícios e os maus modos, sadios.
Gerard perto de um ser que não será. O que exatamente? Intui que deve
atentar. Poderia ser ele, poderia estar ali. O tempo. Bons, maus tempos.
Sabedoria de alguém que deseja ser mas está longe. Atraente ainda,
talvez, triste desse jeito, sonolento ainda, atento. Safa-se, graças talvez às
muitas mulheres, ou são só um reflexo, só um reflexo. Cansam-no,
elevam-no, fazem-no esquecer e lembrar, intensamente retorna a
infância, mas agora é diferente. Depois de tantas, não mais a mãe? A
nova fase se inicia nesta escada. Desejara a senhora Lens sem conhecê-
la, desejara-a desde o primeiro momento, ardentemente, desejá-la-ia
sempre. Precisa vê-la de novo. Até certo ponto é ainda sonho adolescente
mas já há um ingrediente real no querer. Teria sentido assim há dez ou
quinze anos, mas agora havia sim um estranho progresso no desejo. Em
que momento o sexo se torna amor? E a perspectiva do sexo uma
introdução ao amor? Que possa, ò Deus, ser como imaginara um dia: que
essa revelação do amor, dessa outra face do amor, presa à carne mas não
só, ligada ao próprio Deus (paixão mais antiga, êxtase do crepúsculo), que
pudesse ser assim, como a visão da praia se abria da porta da pousada,
na aura de um sentimento abrangente onde coubessem os detalhes mais
pequenos, revelados em cada segundo. Por favor. Estava chegando a
algum lugar. Não, o tempo não destrói todas as coisas. Não era tarde.

Rondando o casario, a eletricidade anuncia a tempestade. Quem


sabe essa cairá mesmo pra valer. Michele adora a chuva. Passa horas
vendo as gotas nas poças ou contra o vidro e escorrendo. Apoiou os
cotovelos, apoiou o queixo, respirou fundo. Agora está sonhando com
outro mundo. Como percebeu que era mulher, em que isso a mudara.
Realmente sair na chuva a fascina. Mistura-se aos turistas anônima. Por
pouco tempo. Seus amigos. As meninas de patins e os meninos de
bicicleta. Ela era a única de carro, embora não tivesse carteira. Michele,
eu disse que precisava do carro hoje. Papai ia à zona de novo? A cara de
George se fecha, se Michele tornasse a falar assim ele a rebentaria. Mas
ela fala a verdade, como eles a ensinaram. A mão desce e surge Joana,
um filete em seus lábios treinados. Ele podia bater, isso, me bate, me
mata. A senhora Lens interfere, sabe o peso daquele tapa. George manda
a mulher não se meter. Não ouviu o que ela falou? Rose pondera com o
marido que nada justifica a violência. Lembre-se de como odiou seu pai.
Ele se lembra e odeia a mulher. Era para isso que desabafava, para ela
usar as palavras dele contra ele mesmo! Ora, e logo quem vinha falar em
família. O pai de Rose era patético, não se importava com ela, por isso
não lhe dava disciplina e fazia todas as suas vontades.

Deixa-os, Michele.

Meneia a cabeça e se afasta. Preferia mesmo sair a pé na chuva,


mexia com o seu metabolismo. Na rua, algazarra. Vindo na direção da
turma o professor Delano teve um instante de estremecimento. Todos o
cumprimentam, devolve a saudação. Evita o olhar de Michele. Segue para
a casa de Liane, a diretora. Na sala vazia, a adolescente aceita o
atrevimento de um colega, beijos, mãos sob a saia e sob a blusa. O
professor. Ameaça-os. Manda o rapaz à secretaria, pega o celular. Michele
descomposta, e agora? Devia comunicar ao doutor George o despudor da
filha? O vento redemoinha no pátio quando sabe estar no limite do risco,
de um definitivo e desnecessário risco. Não seria preciso. Ela faria o que
Delano quisesse.

O sinal de saída, o burburinho no pátio, o prédio vazio. Menina má. A


mesa em frente da lousa. A mão masculina, peluda. Os cuidados
simplesmente esquecidos. Boa menina, nascida de um delírio muito
anterior. Ela está à vontade, não se sente minimamente usada. Mais que
isso, adora. O som se repete menos grave. No meio do sulco, dedos que
escapam. É quase uma carícia que se dilui pelo arrepio. Há uma forma de
escapar do castigo, na casa dele. Lá, ela sabe o que fazer mas o professor
precisa continuar dando ordens. Isso, desabotoe, tire, melhor assim. Ela já
está cansada, é óbvio que conseguiu. Pode então abreviar o desfecho e
quando se aproxima do tecido inequívoco, Delano não tem mais o que
dizer, ela sabe o que fazer, sempre leva a melhor contra as amigas, o
primo de Keshia como cobaia feliz.

Desde aquele dia, Delano a respeita muito mais do que deseja.

Nos dias seguintes ela sonhou. O gosto do professor, nem assim


desarmado. A lousa cresce diante dela, inclinada, marcada. Ele a segura e
abre e é quente quando lança de si dentro dela, e ela estremecendo
boceja.

Michele não se envergonhava. Dava graças por ter um lar e não ser
maltratada como tantas meninas de Celba sem chance sequer de
brincarem de médico, já nas ruas atendendo a anúncios, trocadas por
droga quando não por comida, violentadas por autoridades e
caminhoneiros, viciadas em crack, grávidas, mortas. Michele sabia se
defender. Liane escorria pela toalha, os vira de longe. Tinha certo orgulho
de Michele, a menina que Liane mesma fora um dia.

O professor passou. O céu havia se aberto. As primaveras estavam


mais e mais vivas. O mundo estava vivo. Gerard deteve-se nas meninas
que passando arquejavam no falar ininterrupto, doces anátemas, carne de
agouro. De perfil sonhador a primeira tinha os cabelos presos e brincos
enormes e a blusa era tom sobre tom em pouco tecido. As nuvem passam
e continuam a passar. Quando o luar incide sobre a pele da segunda, uma
tonalidade escura, leitosa, surge do meio do decote, prometendo
sacrifícios. Longos cabelos negros entornaram a terceira na sublime cena.
Um vestido preto de alças largas obriga à sedução sem permitir que a
criança seja de todo abandonada. Ela nada sabe. Deve ser mesmo coisa
da moda. Quando caminham as pernas próximas se juntam, gambeteiam.
Destacando-se, reinou a presença de Michele captada no limite do pudor
sob a lua no desenho da boca e dos olhos escuros. Gerard quis notar certa
semelhança mas não, nada que se comparasse. Na mulher havia mais que
elasticidade, mais que plasticidade e tono, havia experiência, equilíbrio,
entrega. Um movimento no sentido da dor; do desejo e da privação; da
idade e do renascimento.

Os olhos pousados em Michele. Passa uma freira e chega uma


canção. Imaterializa-se pela melodia. Nos anos futuros quando pensar em
como a conheceu a canção terá a interpretação dos acontecimentos.
Insistirá a lembrança da festa na casa do melhor amigo, o filho do
embaixador. Então sim, a semelhança será inexorável.

Esquece a balbúrdia que no primeiro dia na vila lhe roubara a paz.


Não quer mais paz. Adolescentes têm virtudes e defeitos como todos e,
entre as virtudes, a naturalidade em relação a todas as coisas sem
apologia ou discriminação. A praia não estava decerto propícia à
contemplação das estrelas ou ao banho de mar. Vacilou. Depois decidido
desceu. A chuva miúda só era visível na lâmpada dos postes. O bramido
do mar se intensificava com a cheia que chegava quase na calçada,
reduzindo a nada a faixa usufruível de areia. Os garotos eram gente boa,
estavam apenas confusos e, de resto, quem não está? Oi, cumprimenta.
Aproxima-se. Pergunta se pode passar no cigarro que era partilhado. Eles
disseram que tudo bem, chegasse mais.

Michele estava sentada nos calcanhares, as ondas nos joelhos,


anunciação tensa de um ciclo. Os pelinhos oxigenados ornam a
grossurinha de coxas. Gerard segura a fumaça. Não deve permanecer
mais que o necessário, nunca se sente à vontade, Se o tempo passa e as
coisas mudam, algo permanece. Como um jornal velho que louva um
artista agora no ostracismo.

Devia subir e esperar nova mensagem de Silvia mas a conversa com


a turma é real, cheia de vida. A jovem pergunta seu nome. Responde e
devolve a pergunta. Ela responde. Sorriram. Conversam. Há nas cidades
uma migração interna para os bairros da moda e como eram feios os
bairros da moda! Agora com os prédios históricos ameaçados será triste o
fim de capitais como São Braico. Não demora aqui mesmo em Celba tudo
será apartamentos. O passo da menina é lento, é possível ouvir a chuva.
George procura Rose pela casa, viu onde deixei as chaves? Estão
sozinhos, ele a empurra para o quarto. Pede desculpas pelo que disse
sobre o pai dela, jura que a ama. Seria diferente com outro? Tudo é
sempre igual com homens, tudo se repete. Coisa horrível, né? Keshia sorri
sem alegria. Desumano o agrupamento demográfico, a poluição. Gerard
concorda. E a solidão, a solidão das cidades. Silvia já está on-line. Que
barulhinho irritante, resmunga um hóspede. O hotel é um exemplo
estranho do que dizem. A desproporção das escalas. Keshia diz que queria
ser arquiteta. Bem, tem todo o tempo e oportunidade para isso, sim, mas
não sabe que tipo de arquiteto existirá quando adulta. Gerard tem dúvida.
O homem está preparado para os mundos abertos pelo computador?
Tecnologia de ponta supõe seres de ponta. Aos poucos se afastam do
resto do grupo. Ela pinga colírio e oferece. Ele agradece e devolve o
frasco. Direitos autorais, jornalismo, o mundo do emprego – o futuro é
imprevisível por causa da internet. Keshia se lembra de uma coisa. Só
havia um cybercafé em Celba. Quem sabe seja um bom sinal, que a vila
ainda tardaria a chegar no desumano progresso de São Braico. Não é mais
questão de classe. Todos têm suas sentenças.

Ele podia imaginar quem ela encontrara num ônibus em São Braico?
Keshia, sem esperar resposta: a própria princesa. De ônibus, imagine.
Indo trabalhar. Faz-se silêncio e depois, sorrindo ao olhá-la, Gerard diz que
ela uma menina madura. Imagine. Apenas leio os jornais de domingo. Sim
gostava do que qualquer jovenzinha normal costuma, de dançar e
paquerar, estudar e chocolate, pensar em sexo e projetar o futuro,
festinhas e orkut. Blog era um outro nome para o diário que Anne Frank
consagrara, DVD era ainda cinema. Por outro lado, a inquietação típica. O
desejo de se apaixonar, o medo de ter filhos, de não saber combinar as
roupas, de espinhas, do peso. A vergonha de ser diferente, a ignorância
quanto às doenças sexualmente transmissíveis apesar de toda
informação. Até mesmo o velho conflito de gerações. Senhorita, aonde
você vai? Ia onde todas iam, fazia o que todas faziam. Em casa tentava
ter a vida interior da qual fugia na rua e sozinha no quarto chegava a
meditar. Gerard a olhou mais demoradamente quando ela se distraiu com
uma mariposa. Uma boa menina. Ao menos parecia. Mas do que
realmente gostava, o que a emocionava? Ah. Adoro música e pintura,
minha mãe é pianista e estou começando. A mãe de Michele é pintora, faz
quadros lindíssimos. E você?

Gerard respira fundo. Era muito ligado em tecnologia, amava


computadores, trabalhava com computadores, possuía um. Conhecia os
perigos, a possibilidade do vício sempre à espreita. Keshia perguntou
quantos anos ele tinha, sabe Deus devido a que tipo de associação. Vinte
e nove. Gerard tinha 34. E ela? Dezenove. Keshia tinha 17.

Sentaram-se à beira-mar. A equipe de reportagem sai da cidade.


George no noticiário da noite e no suplemento cultural. Criara uma
menina com liberdade e senso de responsabilidade impossível numa
cidade grande. O pai de minha melhor amiga apóia a idéia de ela estudar
em São Braico. Só ficará contra quando souber que Michele se hospedou
com Silvia. Puta que o pariu! Na casa daquela vadia? Que tipo de mãe era
a senhora Lens afinal? Silvia é uma mulher de bem, responsável, temente
a Deus. As mulheres da Zona Vermelha também. Isso George deve saber
bem o quanto. Ele próprio no jornal de domingo promoverá a gratidão ao
Senhor – louvado seja eternamente – por nunca ter Ele deixado de o
inspirar, Deus e George numa parceria perfeita. Keshia conta a Gerard
como o pai de sua amiga pregava a beleza da serenidade e do amor,
tanto nas suas obras como nas que aceitava bancar como editor. Pela
casa que tem, deve ter um excelente faro para a literatura. Mas Keshia
não gostava de ler. Domingo, Gerard comprará o jornal. Na foto da
matéria, o homem moreno e entroncado vestido de modo simples, jeans e
camiseta, nenhuma garrafa visível. Estava com o braço apoiado na
mureta da varandinha onde, quando estendia a rede porque sozinha, a
senhora Lens se acomodava no linhão como numa placenta. Um dia te
levo lá, Gerard.

O monte domina a paisagem na neblina, a praia noturna. Quase


madrugada. O tempo se firmara sem abrir. Procuram em vão uma estrela
na fumaça. A percepção provocada é plena; a rotineira longe disso. As
plenitudes de Gerard e Keshia comungam. Seria bom que a gente fosse
assim toda hora, sem efeito. As mãos se tocam, os dedos sentem-se e um
pelo outro a paisagem, a noite. Keshia suspirou inaudível. A Michele é
uma boa amiga. A Michele está de olho em você. A Michele, nem percebi.
A Michele lembra mesmo alguém. Ela tem essa tendência, sabe, de se
interessar por rapazes bem mais velhos. Isso hoje é um problema sério.
As meninas que querem se provar, saber seus limites, se podem mesmo
conquistá-los. Ou pela estabilidade financeira, pelo carro, para não terem
de depender da mesada dos pais. Mas será crime para eles. Suspirou
novamente. Seus seios adultos. Gerard não deixará que ela concilie o
sono naquela noite, como o grilo para quem já está insone. Michele, ei-la
se reaproximando. Diz “Gerald”. Gerard, corrigiu ele. Ah sim pois é,
Gerard. Venha na festinha de meu aniversário. Só não esperasse muita
coisa. Era apenas uma reunião para os amigos mais íntimos. Ele se sentia
honrado. Elas riram por dentro mas até acharam bonito aquele jeito
solene. Nos vemos então amanhã. Meigo o sorriso de Keshia. Afastou-se
com Michele. Ah. A casa era em frente ao parque de diversões, a das
buganvílias vermelhas, não tinha como errar. Já de certa distância Michele
quase gritava. É só perguntar pela casa do editor, todos conhecem.

George era de fato conhecido, reconhecido na rua. Poucos gostavam


dele mas todos gostavam de dizer que era um velho amigo. Eu não
saberia dizer se é possível aqui incluir uma ou outra mulher com
tendências masoquistas, pensou Joana. Estava três quilos mais magra, as
olheiras enegreciam hora a hora, envelhecia um ou dois anos cada mês.
Não ainda a que Gerard conheceria mas ele todavia a achará bonita. Um
bom rapaz esse Gerard, o forasteiro. Conhecido de todos, a lisonja
chegava em George fragmentada e se unia dentro dele feita vaidade.
Então como pode uma mulher da vida demonstrar esse desprezo? Como
todas, naturalmente gosta mesmo é disso, de ser fodida e apanhar de seu
homem, mas vão fingir que não, que são santas desviadas. A maior razão
de sua antipatia em relação a Gerard não terá a ver com sua mulher mas
com essa fama. Ele entra em sua casa e não demonstra reverência, nem
poderia. Estava olhando algum detalhe do vestido de Michele quando ela
falou do pai. Mas isso se dará no dia seguinte. Agora George bebe a
terceira dose enquanto faz contas e pesquisa na internet. Retorna ao
Google para atualizar as suas citações. E nem mencionam o grande
amante. Rose sucumbira depressa e não é para qualquer um fazer com
que uma prostituta se apaixone. Claro que estava apaixonada desde o
primeiro encontro. E nem conhecia ainda seus truques viris que levam as
mulheres a implorarem mais, tudo, ou piedade.

Não perguntará pela casa de ninguém, decide Gerard. Sairá cedo e


descobrirá sozinho. Aproveita assim e conhece a vila. A cadência do mar
envolvia todos no abraço da noite. Volta para a pousada. Deita-se e, ainda
rolando de um lado para outro, amanhece.

Todas as coisas amanheceram ensombradas. Com que forças


levantará? com que energia fará qualquer coisa? Não sabe se é desespero
ou só consciência. Tudo. Até a ausência de George é mais presente que
qualquer outra coisa ao redor. Desde que ele quase nunca estava em
casa, que andava com outras sem fingir inocência, e ultimamente com
essa talzinha, a senhora Lens não tinha desejo senão definhar como
definhava, apenas mais rápido sim podia ser mais depressa. Mais
depressa. Não raro, Joana caminhava pelo quarto à noite e pensava que
tinha piorado, mas está apenas abrindo gavetas, procurando um bibelô ou
a poesia marcada pela pétala entre as páginas.

Não o gozo de um paraíso póstumo mas apenas a janela e a brisa da


manhã. Gerard apertou os olhos enquanto se encolhia debaixo das
cobertas. Conforme despertava, o universo ia se renovando na
consciência da hora em que estaria na casa de Michele. Uma menina
atraente, simpática nem tanto. Mas a simpatia de Keshia fará deles
irmãos, como costuma acontecer. Ela não teria desejado isso. Mas sabe o
quanto Michele sempre leva a melhor com os rapazes. Sabia que estava
mesmo engordando e não sabia mais o que fazer a respeito. A senhora
Lens costumava dizer Não Keshia, imagine, você está linda – Mas a
senhora Lens era uma pessoa extraordinariamente gentil, não dá pra
acreditar em tudo o que diz com seu belo sorriso nos lábios. Gerard pensa
que o sorriso de Michele sem dúvida lembra alguém, decerto não uma
outra menina, sequer uma moça, mas uma mulher mais velha. Para Rose,
que resolvera fazer dele apenas um motivo, não importa que idade
tivesse agora ou daqui a quinze anos. Sublimação. Por isso começou a
pintar. Não imaginara chegar tão longe, nem com a pintura nem com o
amor.

Imaginou o solene desdém com que Silvia trataria esse tipo de


relacionamento. Amava Silvia. Admirava-a. Seu coração sentiu-se feliz
quando ela ligou, alegrou-se por sua disposição de ir a Celba. Era bom
conversar com ela. Mas cumpria guardar segredo. Aliás, não estava certa
se já não tocara no assunto ao telefone. Sua memória começa a causar
preocupação. Louca! Quem dera. Consolar-se na alienação. Leite! Olha o
leiteiro! Silvia tinha uma memória privilegiada, pensou enquanto abria a
porta e sentiu o volume fresco e luminoso, pesado. O homem apenas um
vulto. Obrigado, Sr. Matias! Bom dia! Depois de anos, pela primeira vez o
atendia de camisola.

Na curva do rio as arvores filtram o dia. O que a senhora Lens faria


com uma memória privilegiada? Quando colocou o leite na mureta da
varanda, estava chuviscando e Gerard caminhava na luminosidade baça
da manhã. Bom dia, disse o jardineiro da pousada. Keshia e Michele na
mente, mas também a possibilidade de jogar com um dos rapazes.
Precisa mesmo de um parceiro de xadrez, contra o computador ficara
enfadonho. Pensando assim deparou com a casa. Dentro daqueles muros,
talvez penteando os cabelos naquela janela acessa, estava Michele. Mas o
que exatamente ela significava para ele? Uma irmã que não tem porque
morreu. Nada disso. Ah, não sabia. Sabe Deus. Uma coisa sabe: ela não
supõe futuro. E também sem passado, Michele representava
possivelmente o universo púbere em que se daria seu renascimento, em
que sentiria as coisas com um coração novo, mas logo duvida que algum
ser humano possa realmente mudar, e se as coisas novas não são apenas
novas faces das antigas. O mar o mar o mar. As buganvílias nas paredes.
O que dele a ocultava dele era uma atmosfera feérica luzindo no cacho
das flores, nos pardais subindo após se banharem na areia – isso os
separava – os galhos verdes que no balanço modificavam a casa de
segundo em segundo. Isso é o que há de novo: os ventos trazem todos os
aromas, menos o do inevitável desfecho.

A aproximação de um homem que já não se conhecia, Gerard. Muito


perto, as cascas da pintura descascada soltam-se, escuras, do muro
branco. Ali se recortam as plantinhas. Ele ainda sou eu, em que medida?
Se imaginar que não chegou aqui, saberá, se pensar que é ainda o
bancário e portanto não conhece nem Michele, nem Keshia nem jamais
viu aquela mulher, jamais terá estado diante dessa casa, se pensar
assim, se imaginar o que era antes de vir para Celba, saberá o que
ganhou e o que perdeu, e se existe ou não algo realmente novo e que
valha a pena. Jamais viu igualmente essas flores vivíssimas,
aparentemente tão simples, pois estão em toda parte, mas tão diferentes
de todas as flores que já vira.

As plantas adoram a chuva e amando as plantas a senhora Lens


amava a chuva, que dava-lhes colorações de peculiaridades discerníveis,
como pessoas, como ela própria, verdejando também. Atendidas as suas
orações, o tempo chuvoso afastou as crianças que patinavam na calçada
em frente à casa arrancando as flores em meio ao barulho enlouquecedor.
A deliciosa mulher do editor costuma ter dor de cabeça, tadinha –Eu sei o
remédio que ela precisa. Por outro lado, na chuva a praia se tornava
cinzenta, feia, impedia o banho livre das algas se pegando nas pernas,
que coisa desagradável, sobretudo para quem está acostumada a nadar
em transparência turquesa. Essa chuva, por miúda que seja, quando
contínua, atrapalha a simples saída de casa pelas vias de terra
enlameadas, ruas que se pegavam aos pés e advertiam quanto ao
vexame de um tombo. Mas naquele momento em que a senhora Lens se
preparava para sair não chegara a esse ponto. É uma chuva adulta, que
coloca a senhora Lens no colo. Miudinha mas senhora de si. Seu som
seguia um percurso suave, como o regato de Celba no outono. De longe o
adivinha o forasteiro. Que é isso? Gerard acorda no ônibus. Agora está ali,
diante da casa, na perspectiva de rever as meninas, descanse, tudo está
bem, tudo vai ficar bem, e ainda em sua memória a navegação de duas
noites atrás, nas águas escuras onde o Chiasmodon espalha terror, as
trevas infinitas onde passeia sua beleza apavorante o rubro Saggitae. O
fim do caminho para baixo, pensa, o silencio eterno dos abismos.

O coração da senhora Lens iluminou-se na escuridão daquele


amanhecer. No espelho se viu sensual, pronta para incendiar algum
coração jovem. Sua canga sobre uma calcinha. A pessoas falariam mas
falariam de qualquer forma, que falassem, mas pelo menos se sentisse
ela confortável. Daquele jeito sentiu-se bem e ostentou um olhar feliz e
voluptuoso. A gata acaba de amamentar os filhotes na varanda. Pega a
chave para sair. Diz que está realmente alegre porque irá reencontrar
Silvia. São dias tão difíceis, chuvosos e com novas chuvas previstas. A
amiga afirma, embora tenha feito uma pergunta, com que então ela
andava sonhando. É um mal? Quem sabe. Não existe um meio de se
avaliar, exceto viver o sonho. Bem, me aguarde, dissera Silvia. A imagem
some, agora a chuva é tudo, os pés no barro quase deslizando.

Gerard devia deixar de lado a idéia de procurar a mulher, num


lugar assim acabarão se encontrando mais cedo ou mais tarde. Mas
viveria ela ali? Então o pensamento. Uma associação, uma idéia, só isso.
Caminhando, sentiu as pernas cansadas de algum esforço de que não se
lembrava. Ah, estava mesmo perdendo aquele vigor irrefutável da
juventude. Que é isso! Nem quarenta anos! Linda a cor dessa rosa em
meio aos espinhos da primavera. Viu a janela iluminada no sobrado.
George escuta os passos da filha no quarto de cima. Sobre o que você
queria tanto falar, Michele? About men. Keshia achava bonito e um
pouco sem noção essa mania de respostas em inglês. Outra razão para
se orgulhar quando confundiam sua voz com a de Michele. Gerard, se
não podia ouvir os movimentos da menina, vê-la subitamente sim.
Primeiro a silhueta, depois o corpo pequenino, despido em tom sobre
tom, luzente nos ombros. Depois de desligar o telefone, ela chega ao
parapeito. Nem pudera dormir, pensando naquele rapaz, comparando-o
a seus amigos. Ajoelha-se à janela. Saberá ele também o que fazer?
Gostaria de uma outra iniciação. Gerard, um nome diferente. Expressão
terna e paterna, vê apenas meninas, ao contrário do professor e outros
homens, sempre e sempre, inclusive seu pai, cujos olhares indiscretos
eram para uma mulher que supostamente brotara de seu corpo.
Agradavam-na esses olhares. Mas, se ela sabia o que faz uma mulher
não significava que fosse uma. Por que Keshia estava tão feliz quando
desligou o telefone? Escreveu em seu blog: Esse Gerard é uma gracinha
e um fofo. Os olhos dele lembram os olhos de um cachorro que eu tive
quando era criança. O amor é lindo. Puxou o papel do envelope que
estava colado na folha anterior. Michele, eu gosto mto de vc, perdoe c
um dia t magoei, vc é mto legal e uma gracinha e eu te amo d+. Ah. Por
que Michele era tão má com ela? Ao lado da assinatura redonda,
desenhada, havia em caneta verde o desenho de um rosto chorando.

Portão dos fundos de uma casa distante o bastante do centro para


não estar próxima à agitação da temporada e não distante demais que
não fosse possível ir a pé comprar coisas, tintas por exemplo. A luz do
meio-dia é discernível mesmo através das nuvens. Silêncio nas sinuosas
ruas de terra batida. A sobremesa do almoço de Michele, um creme de
papaia. Que alegria ao deparar o mar! Alguém diz que a menina está
seguindo os passos da mãe. Dá pra perceber. Claro que todo mundo
verá isso não demorará muito. A senhora Lens tira o vestidinho pela
cabeça, entra na água.
O mar quebra na praia cinzenta.

Gerard parado em frente ao portão. Casas o intimidam, sempre


preferiu a discrição dos prédios de apartamentos. A barra da calça,
molhada, pesa, incômoda. Dobrou o debrum e tonteou ao se repor
ereto. Vinham na sua direção as apanhadoras de conchas. Viu que corpo
horrível? Se acha muito gostosa mas tá cheia de celulite. A senhora Lens
mergulhou, saiu, pôs o vestido e recomeçou a caminhar no sentido da
pousada, sempre na esperança de ver aquele a quem desejava
conhecer. Sabia que, mesmo que esse desejo não se realizasse, ainda
que não o visse agora ou num sentido mais amplo não chegasse a amá-
lo verdadeiramente, nada disso apagaria o prazer de sua espera. Passou
pela pousada. Procurou-o pela aglomeração formada em torno do
telefone. Jovens agindo como jovens, em nenhum o porte austero. Ele
usava óculos? O vestidinho de novo é tirado e na água ela começa
agora a nadar em direção ao fundo. Uma braçada. Outra. Daqui dá para
ver caso apareça.

Ele está na frente da casa da senhora Lens, mas decide ir ao


centro. Ah, quanta vida a timidez impede! Um lugar assim plano e sem
trânsito é o que sempre desejara. Vamos combinar que seja por isso que
não bateu na porta embora tanto quisesse entrar. Michele disse almoço
mesmo? ou lanche? Ou simplesmente festa? Enfim. Voltaria já de
bicicleta. Sinto-me vazio, pensou. Era a aura da descida. Não, não era
tímido, como poderia ser com a vida que levava? Mas bipolar, isso era
bem possível. Em volta, tenebroso deserto. Por quê? As coisas estavam
indo muito bem, deveria estar feliz. Mas não. Tudo perde a cor, você
sabe que está só. As pessoas em quem confiava já não existem. Nada
de fato existe.

A senhora Lens nadou e nadou, inutilmente atenta. Sabia que Silvia


estava certa, precisava se separar imediatamente. Por que não o fazia,
sem nunca deixar de pensar em fazê-lo, era uma questão que se
colocava para milhares e milhares de mulheres no mundo; mas longe de
ser consolo isso a incomodava. Desistiu de ver de novo o rapaz, na
imaginação as coisas estão mais seguras. Não o mar mas um livro nas
mãos. Crédito ou débito, senhor? Caminhos de Celba. Mãos que apertam
as próprias coxas na saída das águas. Outras, veias altas, orientam a
bicicleta. Alumínio e titânio, carne e sangue. Após o posto de Saúde será
o Beco das Cores, praticamente a casa de Michele. Em frente à casa,
quem dera a mulher tivesse horários habituais, pensou. Frustrada, ela
retorna. Essas calêndulas logo darão sementes. Oi! Já chegou! Cedo,
parecia. Não, imagina, tudo bem, assim haverá mais tempo pra gente se
conhecer. Ele sentiu alívio ao ver chegarem outras meninas, de
bicicleta, Keshia entre elas. Alguns rapazes depois, espinhas no rosto
formado, corpos fortes, sovados. Provavelmente suas fotos no
messenger são sem camisa. Surfistas. Chegados diretos de uma outra
vida. Quis se aproximar da menina, quem sabe fazer dela confidente,
sentir-se mais próximo, fazer parte da turma. Na prática isso é
impossível, ele sabe, mas insiste. Fez uma introdução que serviria a
qualquer coisa que viesse a dizer. Eu acho... Nunca saberemos. A
mesma resposta para a mesma pergunta e todavia é como se fossem
novos questionamentos. Vislumbrou o segredo ao vislumbrar a mulher.
Se aproxima, sem que ele a reconheça.

Para colher a rosa mais bela, sacrificará jardins. Renunciará a


caminhos conhecidos. Não sabemos a que mundo pertencemos, a este
em que se vive ou ao no coração ignoto. Esperança e saudade são as
duas faces com que se caminha em direção ao desfecho. Caminha e
contempla: as pessoas, as casas, os gestos, o mar, os olhares, as
montanhas, os rostos, as ravinas, os vales. Alegrias e tristezas. Sem
saber se terá valido a pena. Devia considerar que se não se expusesse
agora a temporada passaria, o trabalho passaria, talvez a vida passasse,
e ele iria continuar em busca de sentidos e amores, em relacionamentos
com pessoas que desejavam mais da sua companhia que, por temores
inexplicáveis, ele recusava. Já não fora assim em sua cidade natal e na
metrópole anterior, não andara pelas noites, sob as janelas, sussurrando
algum nome em devaneios, tímido? Tímido e inseguro. O amor que
agora nutre pela mulher da praia é um voto de castidade mais que uma
fuga. Quando Michele o chamara, minutos antes, não hesitou em se
aproximar mas agora, com a presença de outras meninas, que anunciou
a de rapazes, sentiu-se desconfortável. Juventude plena estampada em
todos. O casal tem uma malemolência desleixada e confiante.

Aproxima-se do grupo.

Pena que o mar tava tão pequeno e claudiado. E Michele, ia pegar


onda depois do almoço? Tava pensando em ir sim, lá no Lagar. Oi,
Fantarello! E ae? Grande Michele! Como ela se sentia com dezesseis?
Mais velha. Estava linda, disse Keshia. Michele sorriu e, virando-se,
cumprimentou o recém-chegado. Oi, Richard. Oi. Beijinhos. Feliz
aniversário. E aí, muita onda? Para uma bodyboarder como ela sempre
tem. Vocês é que são felizes, bodyboardes, diz Fantarello; mas
felicidade não é uma onda, e se permite relancear os olhos pelo decote
da menina. Felicidade é morar em Celba. O quê? Sarah estava brincando
naturalmente. Gargalhadas. Um movimento redondo move o saiote para
os lados e Gerard desviou o olhar, como que surpreendido. A mão boba
toca-a, encosta e se recolhe.

O que estou fazendo aqui? pensa Gerard. Seu tempo passara.


Resumo de tudo. Michele sabia que Delano era igual a todos. Se é
assim, devia fantasiar. Perder essa energia só com alguém que valha a
pena. Gerard talvez. Apenas talvez. Ali está ele. Ela nem se preocupa em
disfarçar, pensa Keshia. Meninos e meninas. Adão e Eva. E se à praia se
segue o monte do alto uma visão inversa mantém a metamorfose das
perspectivas. Queria estar lá um dia, pensa Gerard ao entrar à noite na
pousada. O gerente, olhando para todos os lados, de passagem
recomenda que aquele problema com o terceiro terminal seja logo
resolvido. Não se preocupe, senhor, é caso para cinco minutos, erro 210, é
só uma tecla presa. Mas o que me importa o que seja, conserte, não é tão
simples assim pois não há teclado de reserva no almoxarifado. Ah mas
darei um jeito. Ele não precisa saber. Se não me engano, vi teclados sem
uso numa estante da casa de Michele. Delano a havia presenteado na
época em que a idéia era cativa-la de qualquer forma. O babaca. Todo
homem é igual. Inclusive o pai dela. Keshia pensa o mesmo mas jamais
diria isso na cara. Tinha medo. De perder a amiga, de perder as
perspectivas das tardes no casarão, até mesmo de ser injusta. Sente o
toque da mão de Fantarelo. Claro que pode ter sido casual. E quem
acreditaria se eu dissesse, eu a gordinha? Se ainda fosse por desejo
sincero de mim. Mas não daquele jeito. Ah, se Sarah afrouxasse a pressão
com que mantém homens e meninos presos a seu redor… Quando se fará
a luz? Eu quase vejo o amanhecer lá do alto, e isso parece mais que um
efeito. Quer que a vila, que a vida se mantenha a seus olhos. Pudesse a
senhora Lens pintá-lo lá de cima sem precisar ir da maneira mesma como
é capaz de amar sem tocá-lo. Ele sabe. A noite se aproxima, o ruído da
cidade retém a todos num amálgama de consciências que na noite uma
se tornam, como a partilha dos mares à direita e à esquerda das braçadas
como um lado e outro da arvore que o ultimo toque de tinta definiu, é o
meu tema, viver é o sentido da vida, ele escuta e quer escutar mais, mas
o barulho desconcentra, esse mesmo que une, a vida é assim,
desmesurada nas limitações de seu tamanho real, eterna nos motivos
mais prosaicos de cada um. É preciso que exista aqui um sacrifício do qual
independa a moral da história, é preciso um bom uso do que de bom se
inventou, é preciso que algo que não deu certo promova a saga perfeita.
Uma eternidade que só se constrói no efêmero, como esse quadro, pensa
a senhora Lens, como esse amor, como a ave ardendo até se extinguir e
renascer. Como o dia de uma rosa.

Michele diz Ainda bem que vou estudar em São Braico no ano que
vem.

É que ela tinha ficado muito sofisticada para uma vila de


pescadores, replica alguém.

Gerard se viu no pai dela. Não deveria ser tão mais velho.
Compartilharia decerto certas vivências. Quem sabe gostasse de xadrez.
Pensava a respeito quando a viu...

Ao caminhar por aquele pequeno trecho, arrebatou mundos para


que lhe servissem de passarela. Estremeceram. A respiração em
suspenso, como se suas próprias vidas o estivessem. Oi, senhora Lens!
O cumprimento de Keshia repercutiu em Gerard. Poder da noite, das
cigarras e morcegos com o alívio da angústia que se dissipa sem que se
perceba. As linhas dos muros são alvíssimas da luz que o meio-dia
anunciava. Toca e toca o beija-flor seu bebedouro vermelho. Ele lhe
lança um olhar extinto. Grossura de lábios laboriosamente rubra de
zínias. Agora. Vai falar. Ele quase tonteia. Oi, meninas! Silenciosos os
passos leves mal tocam o passeio sinuoso. Sol a pino e a seminua
divindade ao longo de sonhos que se confundem com a grama e o mar
além. O que ainda esperar do amor? Pernas fortes, cintura fina, quadris
largos, agora quase seus. O olhar de Gerard não contém dúvida. O que
mais esperar do amor? Contudo, era casada. Oh, ainda nem começara a
fazer o almoço. Michele não tenta esconder o aborrecimento com a
negligência da mãe. Mas ele a perdoa, ele a compreende. Perdoaria
sempre, sempre a compreenderia. Que pensamentos são esses que não
busco, mas coleciono agora como quem compara artista com artista
para encontrar um tom para a própria arte? O pai de Michele, de novo.
Não era mais o parceiro de xadrez. Se fosse vivo, era o rival. O tecido da
cadeira torna-se áspero sob ele. A janela e o sol. Quem sabe fosse viúva,
talvez divorciada.

– Meu pai chegou. Está uma fera com você, e com razão.

A senhora Lens tomava as próprias decisões, a filha teria de se


acostumar com isso. Seu problema, Michele, é que você fica tempo
demais sem fazer nada. Ocupar-se é tudo. A coxa da mulher lampeja
neste momento. Quando se está ocioso há para cuidar da vida dos
outros. Mas a senhora Lens era a mãe dela, não outros. De repente, se
lembrava. Quem dera se lembrasse todo o tempo, quem dera a
respeitasse. Era a mãe. Mais uma razão para Michele não falar desse
jeito, sobretudo na frente dos amigos. Era ele um amigo dela? Mas
como? Não faz sentido. Parecia tão sóbrio, centrado, respeitador,
generoso... Keshia interrompe: Senhora Lens, esse é o Gerard. É claro
que era ele. Não poderia estar enganada. A postura ereta, luminosidade,
santo no deserto. Um amigo das meninas então? Um pervertido? Há
tanto desse tipo hoje em dia, homens feitos que só andam com
adolescentes. Aí dizem que amam uma dentre elas, quando o inevitável
acontece. Ou é que Michele, mesmo tão nova, é bem mais madura que
moças da idade deles. Ora, sabe-se a maturidade que querem... Não, ele
não. Não com aquele olhar gentil e tímido sem subserviência. Onde
terminará esse rio volumoso senão em você, ainda que seja em meus
quadros? Desconhecia esse poder sensual, o de capacitar. O aperto da
mão da mulher permaneceu na mão de Gerard, sino que continua
vibrando, confessa o que não deveria ser confessado, demonstra a
perplexidade com a coincidência, as consciências arrebatadas, as
musicas lentas que deixariam de dançar, o banho de mar a dois, as
viagens, a emoção erótica, o carinho e a amizade – tudo estava ai, no
contato das mãos e após. A arte é o motivo. Se amor, platônico. Um dia,
não saberia a senhora Lens dizer quando, haveria de buscar sua
presença ao lado da filha. Afortunada pelo privilégio de ser jovem,
solteira, por tê-lo a seu lado, pelas infinitas possibilidades de futuro.

Ele a perdoará por tê-lo usado assim, por fugir do atrevimento dos
impulsos, negando-se exceto para a contemplação, não lhe concedendo
o cumprimento da promessa – negando-lhe o regaço por restringi-lo à
imaginação e recusar um prazer mais pleno que aquele contato casto.
Um dia se lembrará de um rapaz que amou sem esperanças e
justamente por essa impossibilidade amou como jamais. Gerard era
naquele tempo um rapaz cuja timidez com as mulheres só era menor
que o desejo delas, amar estava além de sua capacidade. Só conseguia
amar o que não conhecia, como o fundo do mar ou a Patagônia. Era
assim uma forma de se manter só e viver o que acreditava ser a
verdadeira vida, de alguma forma estranha ligada aos computadores. O
meu amor equilibra-se sobre minhas fraquezas, sofre as vaidades,
torna-se virtuoso – não exatamente mas ao menos não egocêntrico em
demasia. As grandes revelações da vida, poucas, vinham em
retrospecto. Tanto amava a evocação quanto a perspectiva, mais que a
experiência. Um solitário. Enfim, as coisas mudaram. O que deveria
fazer? Entregar-se a alguém daquela forma? Entregar-se ao amor que
nascia, proibido pela sentença de Michele, Meu pai já chegou? A senhora
Lens permite-se um olhar de esguelha. É um homem bonito, nem tanto,
mas muito simpático, vestindo jeans e uma blusa azul clara de malha.
Ninguém ali ainda sabe mas ele não costuma usar outro tipo de roupa.
Há uma sombra sob seus olhos e luz em seu sorriso.

O meio-dia não é mais opressor porque recebe as suaves luzes


crepusculares que agora habitam o mundo interior de Gerard. Na janela,
a vegetação às margens do rio provocam um efeito quente de saturação
que as vivifica, como costumava acontecer nos quadros da senhora
Lens. Olá, muito prazer – diz ela, como quem diz uma coisa qualquer a
qualquer pessoa. Você é daqui de Celba? Gerard sente-se desnudado.
Entregar-se seria descer aos tristes abismos do adultério, que jamais o
atraíram; semelhante culto não só ao vício mas à estupidez, era coisa de
literatura – o que em nada seria alterado pela consumação ou não dessa
vontade proibida. O sentimento de Gerard está agora mais que nunca
ligado à sua própria solidão do que a alguma possibilidade de ficarem
juntos, ou mesmo estarem juntos por um único momento. E ao saber
que a mulher estava tão próxima, apegada à sua nova vida em Celba,
passou a pensar como superaria aquela situação real, pois se preparara
para viver uma fantasia. A grama que antecedia a cerca era rala e a
garoa pouco a beneficia. Ali pisara a senhora Lens antes de entrar. Sabe
ela que a espera a exigência de uma satisfação mas está feliz por sua
falha como esposa e mãe ao se atrasar. Mas o que é isso? Agora o vê.
Recorda–se de como ficou paralisada e por uma eternidade esteve com
a respiração suspensa. É assim a proximidade da morte, algo assim a
morte ela mesma. O que é isso? Que tipo de êxtase? E vontade de
dançar. Tocada, tocada por esse sentimento. Será passageiro? E se
permanecer? Foi um momento de angústia ainda que angústia em meio
aquele transporte não seja uma boa definição. Agora o vê. Ao longe
ronca a tempestade. No trovão uma palavra pesada. Prazer. E agora?
Muito prazer. George Lens pergunta onde a senhora Lens estava, se é
que não a incomoda em perguntar, e ela responde que o melhor lugar
para se estar num dia lindo como aquele era naturalmente a praia e
não, pensou, sentado aí como você, nesse sofá encardido sempre atrás
de jornais que citem seu nome. Ele bem precisava ir também de vez em
quando, diz ela olhando na foto da primeira página um homem que não
conheceu quando o conheceu, nem estava com ela quando se casou. O
cachimbo recende por toda a sala. A senhora Lens tossiu. É um rosto
maléfico, o de George, e o do rapaz tão bondoso. Mas talvez estivesse
querendo se convencer da coisa suavemente insinuada; suavemente
demais, talvez. Não há de ser que todo rapaz dessa idade mantenha um
olhar assim? Simplesmente se esquecera de como era George naquela
idade. Da cozinha, a voz que ainda ouvia perturbou a senhora Lens. E o
almoço de Michele? Ela caminhou até a pia. Michele não sentirá fome
tão cedo, está entretida com as amigas. Mas o próprio George estava
com fome. Ah. Perturbou-se porque não era a voz de um inimigo, era
como se sua alma tivesse voado, muito, longe, onde estou? George
havia desaparecido e surgiu aquele jovem e promissor crítico literário,
seu primeiro namorado realmente a sério, que acendeu de modo tal a
sensualidade dela, a ponto de cometer aquela loucura, e a voz se tornou
um sussurro de amor que a penetrava, assim, como na noite da
embaixada, de uma forma que não gostaria jamais de experimentar
outra vez. Quem é esse George Lens? Mais certamente que um
profissional competente e um cidadão respeitado. E ela, quem? Mais
naturalmente que a jovem não muito bonita mas que, gostosa,
enlouquece os homens e por eles se deixa seduzir tão facilmente.
Acorda, ela o observa. Ali, nos azulejos em frente a pia onde estava
apoiada, as mãos na quina úmida. A primeira vez que George teve
oportunidade, quando no Natal ficaram a sós na cozinha, ele tomou-a,
as mãos entrando por debaixo da camiseta. Não que fosse nenhuma
carícia enlouquecedora, mas Rose permitiu. Talvez aquele rapaz
inteligente e independente logo a levasse e ela enfim não teria mais de
dar satisfações de tudo aos pais. Quem sabe se estabelecesse por si
mesma mais facilmente com a pintura. Se viessem a existir problemas
conjugais, teria como sair do casamento com a certeza da subsistência
sem depender de pensão, já reconhecida nacionalmente como artista.
Ao toque dos lábios de George, porém, deixou de pensar em qualquer
coisa, entregou-se, sentia-se segura com os pais na sala. Se tiveram de
parar naquela noite, fora entretanto um primeiro contato, quase um
contrato de libidos quanto a uma noite futura. A senhora Lens passa as
batatas que acabara de descascar para um tigela, junta duas colheres
de margarina, uma de fermento e um punhado de farinha de trigo.
Havia sido avidamente despida e agora era deitava sobre a cama. A
rigidez no meio dela. Obteve a brandura desejada da massa depois de
passar de uma para a outra mão e com as duas para o prato. Não tem
jeito. Não consegue fazer o refogado como a mãe. Com George está
agora não apenas livre mas de fato apaixonada, claro que isso é um
estado que muda do dia para a noite nas mulheres e será assim. Há
reflexos inacreditáveis nas azeitonas e a cor da salsa está viva. A
senhora Lens seca as mãos no pano de prato em que jamais terminou
aquele bordado, gritando de dor e de prazer. George vira para o canto e
dorme.

Deixando a comida em repouso, vai para o chuveiro. Relaxante.


Quem pode subsistir com esses nervos? Quando se despiu há dois
minutos, a alma estava em suspenso. A calcinha sai como se não
quisesse mas se rendendo passa pelos mundos fúlgidos de tons e
semitons. Gerard estremece e engole em seco. Queria deixar para lá.
Era mulher casada e mãe de uma amiga. Mas não podia. Vida sem
arbítrio.

Deixando a comida em repouso, entra no banheiro. A luz chega


filtrada pelo basculante. Som de pássaros, tão perto. Estão tristes, por
que alguém usa uma atiradeira? O corpo do pardal jazia ontem no chão
de terra batida, agora está enterrado. A senhora está mesmo louca,
dissera Michele. Fazer velório pra bicho. A voz da filha some na ducha
quente. Olha, diz Michele segurando o CD. Conhece este? Ele olha a
capa, ouve os primeiros acordes, e os gritos do banheiro. Quem, por
Deus, pôs Yesterday? A voz da senhora Lens ecoa num tom
desconhecido dos convidados. Já disse que não colocassem esse disco!
No banho, ameaça levar a mão mas recua. Não sabe o que fazer com
essa lembrança de que os Beatles eram agentes. A festa de final de ano,
o apagão, as escadas. Diga que estava bêbada se isso a conforta.
Poderia ter sido diferente. Ter ao menos um nome para lembrar, um
telefone para não precisar apenas lembrar, quando se separasse de
George. A mão está ali mas não para delícia e sim se proteger. Diz que
não. Por favor pare. Mas agora não tem volta. Entra numa região
estranha de sombras e prazer. As pernas tremem sob a água. Linda.
Gerard a imagina ouvindo de muito longe o chuveiro com ouvidos de
tuberculoso. Gotas impetuosas, grossas, uma ducha excelente. Tinha de
admitir que para esse tipo de coisa George era eficiente. A água escorre
pelas suas costas, pelas suas coxas. Gerard gostaria de ser essas gotas.
Envolto na saudade que não tem um destinatário, volta-se então para o
Deus de sua infância antes do catecismo.

Quando era bem jovem, esse tempo passou, Gerard costumava ser
arredio a festas. Uma ou outra em tempos que não se podiam mais dizer
recentes nem que geraram boas recordações, mesmo quando havia
alguma satisfação aparente. Agora se deixa levar pelo encantamento
desses rituais de olvido. Nada de que deva se jactar quando partir e à
sua cabeceira alguém perguntar o que fez de sua vida. Se não era mais
assim tão jovem, adquirira a contrapartida de acreditar e sofrer sem
revolta. Há uma sombra em redor dele, embora ali o zéfiro de seriedade,
fidelidade, a aura de um ser digno de confiança. Sim, os ouvidos
escutavam mais que o chuveiro, discerniam o futuro, como um átimo de
crepúsculo que não se repetirá. Ereto ele olha o céu, seus braços
pendem sem porquê, braços mortos pois não podem abraçá-la. Que
coisa piegas, pensa. Portanto não deveria se sentir bem, portanto
deveria retomar seus modos, ser sóbrio, controlar esses sentimentos
patéticos; fora afinal contemplado com a nova vida, por que poria tudo a
perder? Na varanda, um maiô branco estendido ao lado do vestidinho
com que a senhora Lens entrara. A voz de Keshia. Puxa, olha as glicínias
que sua mãe plantou! Parecem sinos purpúreos, milagres. Aquelas
mesmas mãos geraram semelhante vida de um vermelho tão vivo, sim,
como o sangue. Não, não era alguma coisa nova. Mulheres ocupavam
uma parte determinante de seus pensamentos. Entretanto agora, no
silêncio súbito trêmulo como as roupas do varal, exultante como as
gloxínias, folga em formar os novos homens que dentro dele nasceriam
pelo resto de sua vida à sombra da mãe de Michele, ornados de risinhos
que se perpetuariam como despedidas, como os últimos acordes de
cada movimento das sinfonias.

Que maravilha era viver sem vícios, pensou Gerard ouvindo as


meninas. A flebite fora um aviso. Ainda no hospital decidiu deixar o
trabalho e a cidade grande. Não mais lhe interessava a distância entre o
que se diz e o que se é. Invejou os jovens que sequer tiveram tempo de
se viciar. Quanto às meninas, eram normais. Espertas, alegres. Toques
de ingenuidade que sabem explorar como elas só. Apesar de toda
informação, ainda sem malícia; uma tristeza miúda, salpicada da
limpidez de olhar que se esquecerá. Carentes de afeto, o que é
proclamado pela atitude de criança que escapa de quando em quando.
Keshia paira em incertezas quanto ao que poderia esperar de um
relacionamento com alguém tão mais velho como Gerard. E como ficará
sua história com Eduardo? Michele aguarda os acontecimentos. Não
dependia tanto da fantasia com o universo masculino. Ainda assim,
gostava de Gerard, não queria perdê-lo para a amiga. Iria trabalhar
aquela perda como um trauma. Odiava gente neurótica. Michele possuía
uma beleza calma; sua mãe ao contrário vivia cansada e isso estava
escrito em suas feições.

Quando Gerard entrou, a aura da senhora Lens acrescia ao ambiente


o verão em seu ser, ofuscando de luz a primavera das meninas pela sala.
Seu toque diário em cada objeto, o contato de ser corpo no sofá, na
cadeira, seus olhos sobre os quadros na parede, seus dedos no CD – a
existência da senhora Lens na casa depunha nos móveis os fragmentos
perfumados de sua alma. Bem-aventurança! Gerard sorriu, privilegiado.
Mas por que, pensou o senhor Lens, esse idiota está com essa cara
abobalhada?

Em seu quarto, Michele trocava o vestido de viscose por uma


javanesa. Verifica o caimento no espelho. Keshia amarra os cadarços de
seu tênis bege. Diz que tem medo. Medo do quê, Keshia? Não saberia
dizer. Não sabia o que se passava. Medo do mundo. Quando era pequena,
tinha um amigo invisível. Jamais teve alguém tão amigo. Michele a olha
com pena e pergunta se nem o Eduardo. Eduardo era um bobo. Mas
gostava de Keshia. Sei, diz ela, do que ele gosta em mim. Normal. Aquele
Gerard, ele é um cara de quem Keshia poderia ser amiga e até mais. Sério
mas com senso de humor. Não pensava só em sexo. Elas mal o
conheciam, lembrou-lhe Michele. E é muito velho para elas. Estamos
crescendo, Michele. Os pais dela já haviam notado? Michele se aproxima
da janela e olha o céu, E pais notam alguma coisa?, que céu lindo esse de
Celba; mas não o bastante para me prender aqui. Uma nuvem passa e
tapa o sol. Michele diz que seu avô notaria. Keshia lembrou e percebeu
que também sentia falta do avô de Michele, ele era uma gracinha, uma
fofura. O avô de Keshia também, e com esse talento especial, mas iria a
qualquer momento, enfim, droga, como todo mundo. Olha, Michele. É pra
você. Ah não precisava! Tudo o que Keshia lhe dava era de coração,
Michele jamais saberia o quanto. Pára de chorar, vai. Keshia enxuga as
lágrimas. Lembra o dia em que a gente se conheceu? Eu te admirei tanto,
você era tão forte. Michele apenas murmurou. As vezes. Brincavam e se
divertiam. Lembra? Era tempo de brincar e se divertir. A gente cresce.
Keshia acabara de falar, agora tenta lembrar as próprias palavras, o que
sentia ao dizê-las, e concluiu que a gente não precisa crescer por dentro.
Ou seria mesmo contra a natureza não crescer também por dentro como
Michele está dizendo? A natureza... Michele já?...

– A Sarah ficou sozinha com os meninos, Keshia, precisamos descer.

Ao chegar à porta da sala para pedir à filha que arrumasse a mesa,


não a viu, meio coberta que estava junto à cortina sob o bandeau à
esquerda ao lado de Gerard cujas costas levaram-na a sonhos de onde
emergiu a voz de Keshia. A senhora quer ajuda? Ela respondeu que, Ah,
se ela pudesse achar Michele para pôr a mesa, ficaria grata. Keshia disse
Ah, não, senhora Lens. Era aniversario de Michele. Deixa ela conversando
com Gerard, eu arrumo a mesa pra senhora. Era muito gentil a Keshia.
Alguns instantes depois, quando entrou, a majestade do caminhar da
mulher anunciou a proximidade que trêmulo Gerard esperava. A filha não
percebeu, preocupada que estava com uma reaproximação entre Keshia e
Gerard. O sol estava próximo do zênite. O que é zênite? O ponto mais alto
que o sol alcança, eu acho. Eu acho, Fantarello, que você só está
querendo é se mostrar com essa novidade de ficar dizendo palavras
difíceis. Ele não queria se mostrar, as vezes o que parece pedante é a
forma mais simples de alguém se expressar.

A vila estava impregnada de alvura, a cordilheira limpa das nuvens


que ali se haviam agrupado pela manhã.

Antes de entrar, Gerard imaginara que quadros veria nas paredes,


pintados pela mãe de Michele. Pensava-os sempre com um céu de névoa.
Foi esse véu que viu, não os quadros que efetivamente ali se alinhavam.
Mas ela própria, Rose, num plano inexistente exceto pelo amor de Gerard,
mantinha a postura onírica, silenciosa no olhar de promessas, longe de si
mesma, a Mulher diante de Gerard. A tarde calma na vila se mostra cada
vez que ele desvia dela o olhar. Ela mantinha seus olhos baixos quando
não estava cumprimentando alguém. O sonho e a realidade do amor de
Gerard se chocariam como espectros de perspectivas que embora nunca
se cumpram tampouco chegam a desvanecer.

Victor era um homem simples e tranqüilo. Cumpria seus deveres e


pouco esperava da vida, possivelmente por isso encontrando a paz em
tudo. As pessoas confiavam nele até a manipulação sem
constrangimento. Não se importava. Precisava de um mínimo para a
subsistência, menos ainda se prestava a mágoas. Um homem de
confiança portanto. O grafite para longe o transportou. Mesmo esse
detalhe, o risco do que ainda não chegara a ser ruma rachadura do muro
da casa, termina na cor de um abandono. Que luz fantástica a de Celba ao
meio-dia! Respirou fundo de pé ante o portão, ouvindo latidos que
ecoavam como se um fio os ligasse e fizesse vibrar em sua alma uma
estranha liberdade. Olá Victor, disse a senhora Lens quando ele entrou
com Fantarello. Como vai a Cati? Ela não vem? Não, Cati não viria; mas
mandara cumprimentos. Ninguém notou o brilho malévolo no olhar de
George, pensa Gerard e se põe desde então mais atento ao marido de sua
amada. O olhar de Victor não se alterou em sua pureza. Michele. Muitas
felicidades e toda paz. Gerard se distraiu com as revistas que folheava.
Crise desmorona Wall Street. A queda do outro muro. Em algum momento
alguém irá fazer a comparação. Claro. A crise de 29. Não sabe o que se
passa. Desde a viagem não tem mais paciência com a leitura, nem
mesmo de jornais. Numa outra página, o que é preciso fazer para
enfrentar as turbulências externas da economia. Definitivamente, está
cansado de ler, não consegue mais. Haverá aqui algum tipo de relação
com a mulher? Ah, vou parar com isso. Não dá pra me levar tão a sério.

Almoçaram. Quando Fantarello pegou o violão talvez estivesse


movido tanto pelo filé e pela sávia quanto pela produção de hormônios.
Olhou para Sarah, dedilhando. Coração, músculos, impulso. Viu a si
mesmo diante dela num futuro aparentemente próximo, bela como
sempre, receptiva. Quieta e irritada com os acordes e a voz incerta que a
louvava. Era a mais velha do grupo de amigas, olhar perdido e lábios
impudentes. Comera pouco, rainha neutra. Pelo menos uma música
dançante, quem a irá tirar? Esse rapaz talvez? O pai? Súbito o futuro se
fez junto a um estonteante desejo de se dar. Ela. Tão linda. Ricardo se
perde em pensamentos. Ainda será minha ruína.

A senhora Lens soube que Gerard seria o chefe da manutenção dos


computadores da pousada de Celba durante a dança. Acrescenta à sua
graça o exibicionismo. Seus cabelos reluzem. Tons mais e menos e
escuros desenham as metades de seu rosto. As pregas do vestido
induzem como as notas que flutuam e ela flutuava ao se aproximar de
Gerard. Ele a tomará? Sim. Os dedos se tocam, e as palmas. Tão perto e
nada de que se envergonhar no ritmo seguro da transitoriedade. O sopro
a envolve num abraço menos formal, duradouro, amparado mais pela
memória do que pela esperança. Claro, tinha sido feliz por algum tempo.
George é um sujeito atraente, sem sonhos, como ela acreditava o homem
ideal. Cheio de projetos. Mais hoje mais amanhã irá levá-la para a cama.
Em que momento deixara de levá-la para dançar? Gerard tem uma quebra
muito mais suave nos quadris, resolvia o segundo seguinte em passos
imprevistos. Não é mais o violão, mas um CD. O baixo, os pássaros, a
chaleira na cozinha, alguém se aventurou a fazer café. Música em tudo.
Vozes soltas, frases inteligíveis já não há, mas uma uniformidade
repousante. Um casal qualquer deve ter ido para junto do fícus, é
inevitável, ah como ela gostaria. Mas não é preciso. Então ele era o novo
chefe de manutenção da pousada, disse, e ele respondeu que agora, fora
da temporada, era pouco mais que um caseiro. No fundo, nem tinha
vocação para administrar; e qual era a sua vocação? Ah, sem dúvida lidar
com computadores, há anos que eu, oh não, não parecia ter idade para,
mas sim, verdade, vi o marco dessa história, a compatibilidade no
primeiro micro de arquitetura aberta, agora, em plena revolução do chips
duplo e da web 2.0, o que dizer?, tem a ver com velocidade, baixo
consumo de energia, mas no fundo sou só um curioso, apenas faço as
coisas, acho que dá mais certo em qualquer aspecto da vida. Que
verdade. Ainda bem que não estava morta como costumava desejar.
Estivera, não mais. Agora há esperança, disse a harmônica num acorde
longo e denso; a bateria concordou, junto ao chão estremecendo a tarde;
e o corpo desprezado, do qual tinha ela desistido, fluiu para dentro da
presença que a cercava em vagas. O remoto mar não termina. Gerard,
não o conhecera sempre? Seja como for, não é preciso conhecer mas
dançar a música que está tocando.

Todo mundo na festa parecia conhecido, mas nem eram, as meninas


em seus corpos implacáveis, aquele cheiro tanto poderia ser primavera ou
fruta madura demais; e os meninos, bem, acerca deles não sabia tanto,
mas era evidente que suas vozes estavam mudando, que se
masturbavam o tempo todo e talvez até pensando nela, enfim, e George,
miseravelmente conhecido, e Gerard, ah, olhe as ondas... A senhora sabe
que quando saltou do ônibus parecia ele estar voltando para casa? Assim
lhe parece. De fato, sempre vivera ali. O homem sem rosto dos sonhos
dela. Ah, mas a temporada estava às portas, disse ela, Gerard teria logo
muito trabalho. A temporada é uma longa época de solidão, pensou.
Devia mesmo ser trabalhoso manter um lugar assim grande limpo e em
perene eflorescência, um lugar tão freqüentado sempre com a estrutura
funcionando adequadamente. Os hospedes decerto, pensou ele, dão
muito mais trabalho que o mato, as arvores, o gás e a eletricidade, as
contas em comparação são simples de fechar, disse, com pequena
diferença de tempo em relação ao pensamento. Não se sentia bem com
gente? Confesso que nem eu. Bem, respondeu ele, tenho internet. Na
verdade não usava a rede tanto assim para comunicação, mais para
informação e trabalho, pesquisa, essas coisas. No caso da pousada, parte
financeira, projeções, eventos culturais. Para correspondência ainda
preferia o velho e bom correio. Cancelara os cadastros do orkut e do
twitter. Os casos de tráfico, pedofilia, enlouquecidos ciúmes ou simples
maledicência haviam saído de controle. E a forma como as empresas se
apropriaram também dos sites de relacionamento lembra o que o
Estabelecido faz com as revoluções. A internet é boa. Para cada caso
hediondo há um contraponto benigno. A internet é um reflexo da vida,
como dizem, para o bem e para o mal. Há coisas úteis no mundo, como a
faca e a escada, que mal utilizadas podem matar. Há coisas inúteis que
matam também. O orkut serve para encontrar e reencontrar pessoas mas
havia tempo que ninguém o usava assim, cristalizara-se no mal, no inútil.
Certa vez ficara sem micro e desde então passou a ver isso com mais
clareza. Em lanhouses e cybercafés é preciso ter maior controle do tempo
para que não fique caro demais. Hoje isso de internet em geral é um
assalto ao tempo das pessoas, esse bem mais precioso. Ao olhar pela
janela conduzida pelos tons da janela em constante mutação a senhora
Lens perguntou se Gerard saberia dizer se ela estava nos planos da
prefeitura. A voz de Gerard chegou ao vidro que a refletia. De que falava,
exposições? Hesitou, como de resto se sentia inseguro e exposto com a
inesperada manifestação de sua fantasia. Ele sabia sobre a programação.
Não estava definida. Dependia de verbas, como sempre. Mas não sabia
como conduzir a situação no dobrar do sino. O que Gerard sabe é que
haverá uma exposição permanente na Casa de Cultura. Estão contatando
artistas de toda a província e eu sairei então, pensou ela, num panfleto
turístico. Não era o que queria, não tinha nada a ver. Gerard participaria
de algum modo da seleção dos eventos? Como se fosse uma confissão,
ele respondeu. De certa forma. Estavam a sós pela primeira vez. Deveria
ser a ultima?

Cada signo exterior da senhora Lens, sua continência no beber, sua


elegância com os talheres, os decoros com que se ajeitava na poltrona, os
adendos gestuais às frases, tudo adquirira para Gerard a exuberância de
uma planta que podada se refaz. O que a maltrata assim? Era como
suspirar num sonho, perguntar ao ser de um sonho que não se define, não
parece bom nem um pesadelo, uma quietude que não permitirá os ruídos
exteriores, as conversas, a atmosfera frívola das festas, o tilintar de
xícaras e copos, os carros passando na rua de terra ao lado, sacudindo –
nada tirava o universo do olhar da senhora Lens. Pouco depois, ao deixar
a casa, não retendo detalhes prosaicos mas apenas a sublimidade etérea,
Gerard mantinha as condições ideais para a existência da saudade.

Após comerem, na sala de estar impregnada de luz pela opção do


sol da tarde na procura de uma casa, esperando que Keshia trouxesse
sorvete e café, Gerard levantou-se e colocou o blusão no espaldar da
cadeira em que a senhora Lens sentara durante o almoço, ato que de
todos, inclusive de si mesmo, passou despercebido – mas não dela
própria. Ele pergunta de que tratam suas pinturas. Nos hálitos, gosto forte
de café. Ela diz que tratam de sua própria alma. Fala com a naturalidade
com que não nos importamos de especificar os assuntos em que a
resposta genérica será tanto quanto precisa para nós mesmos como para
os outros ou óbvia ou obscura. A tarde garantia a luz contra a
aproximação do por do sol. As meninas ainda tomavam sorvete, rindo
muito. Esplendor amarelo quebrado nos vultos por sombras esverdeadas.
George saíra. Uma reunião inadiável. A sombra da senhora Lens se
encontra na parede com os dedos levados à quina do quadro. Não sei o
que fazer de minhas mãos. Sua palma direita se apóia na parte mais alta
do sofá, sombras se interligam pela sala. Em alguns pontos da parede, o
amarelo brilha tanto que é quase branco. Keshia se refugiará no banheiro
para chorar por Michele e Gerard, de lá escuta a onda que quebra e os
últimos pássaros do dia.

A casa dos pais de Sarah está vazia, o telefone toca ecoando a


impaciência de quem liga. Ela abriu a porta, entrou, a janela enquadra a
intensíssima luz. Alo? Ele chega por trás, a camiseta fina e canelada não
lhe proíbe os seios que toma nas mãos . Não era seu estilo, ser tão direto,
talvez fosse a primavera. A risada se misturou à aragem que dava vida às
cortinas brancas, ondas, como as lá de fora incessantes. Era um homem
de mais idade, o interlocutor. Eduardo pressente a voz no tecido da saia
crepe, macia, gostosa, gostosa, sente-a nos dedos da mão direita. Sarah.
A mais velha entre as meninas. Ajoelhada no sofá. O telefone a imobiliza
quanto a uma improvável resistência. Sente o elástico correndo mas era
como se nada sentisse. A voz não ouvida faz recomendações. As coxas se
acomodam aos movimentos. Alguém se aproxima da água, mergulha. Não
escuta nada e agora nada além do brilho etéreo das pálpebras
avermelhadas. Sim, papai, estou escutando, pode ficar tranqüilo. Era algo
engraçado de se ouvir, pensa o homem, mas no fundo gosta de ser avô,
mesmo naquelas condições, a filha solteira. Era antes culpa da
temporada, do turismo, da política local, da economia nacional. Era uma
boa menina no fundo. Não se preocupe, papai, diz sem saber direito o que
diz. Eduardo se apressa. Os culotes são os da senhora Lens, a nuca é de
Michele. Com Keshia será diferente, não um momento fugidio que se
esgote. O bebê dorme tranqüilo no quarto. Coisas da temporada. Onde
estará a tal babá? Os culotes são realmente os da senhora Lens, ela é tão
leve ao dançar, deveria ser quente na cama. O fone cai depois que a
ligação é interrompida. O terceiro jato entende que não era lícito embora
todas as coisas sejam. Ele ainda lhe sente a lisura e já lamenta, pensando
em Keshia. E a senhora Lens jamais esteve ali. E Michele, é estranho
perder tanto tempo e gastar tantos pensamentos com uma menina que
nem é o seu tipo. Os dois escutam os passos e quando a porta dos fundos
se abre estão conversando no sofá. A babá é filha da vizinha. Oi, Brenda.

No período em que sozinhos Gerard e a senhora Lens se calaram,


podia-se ouvir as andorinhas distantes agitadas com a aproximação de
pessoas à entrada de seus ninhos. Uma palpitação pairava entre as auras,
com a existência independente dos dois nutrindo-se de sexo, misticismo e
arte. Não se enfraquecia pela falta de uma sensibilidade explicita, antes
fundamental, ente que era livre do sofrimento, estava fora do tempo,
imune às preocupações humanas. Ser que amava Gerard e senhora Lens,
proveniente de Gerard e da senhora Lens, era o mesmo que ao chamado
da orla de luz crescendo nas luzes se tornava corpóreo com a precisão
dos horários do sol e dos vapores condensados segundo o humor celestial
– assim eles pulsavam e se sabiam através da mútua dimensão.
Com o transcurso dos meses, quanto mais decidido a não declarar o
seu amor (o que de resto fazia parte de uma pressentida recíproca), mais
esse amor, à força da impossibilidade, crescia inelutável. Gerard se
lembraria sempre da senhora Lens movimentando-se em torno da mesa
com as travessas, como a luz que circundava o telhado. O talhe
sombreado das coxas, ao supor a atenção de Gerard, se abandonava
abaixo no assoalho onde os dedos de unhas retas e fundas saíam das
sandálias baixas de finíssimas tiras lilases. A maré enchendo arfa de
vagas elevações e afluxos e as nuances de sua superfície fazem com que
se adivinhe as profundezas.

O senhor Lens entra no prédio de Joana.

Quem a podia socorrer, em quem podia esperar, a quem poderia


amar? Jogada na vida, ela soube o que não queria saber e esqueceu o que
desejava preservar. O tempo se escoava em sua sórdida sobrevivência e
agora, agora que a injustiça do mundo corrompera seu corpo e sua alma,
o presente se resumia em lembrar o futuro que poderia ter sido. A
linguagem das paredes. Devia talvez, mas não estava preparada. Suas
secreções internas inutilmente se rebelam. Suspira, olha para ele, está
tão cansada. Os filamentos da lâmpada, uma visão embaçada. É noite e
não há indícios de que aquela noite seria diferente, o que deveria ser
interpretado como um momento de repulsa pelo qual a senhora Lens teria
de passar, segundo julgava, não sabia por que, ou sabia mas não queria
admitir, tinha medo, medo do futuro, de não ter a segurança material a
que se afeiçoara, as comodidades (sobretudo em relação à pintura), e em
ultima análise do próprio George, homem forte e violento, ela era apenas
uma mulher, a rigor uma dona-de-casa, uma dona de casa como qualquer
outra, fiel e dependente, dependente e livre, na medida suficiente. A
aparição do marido transtornará a disposição dos móveis e o céu à janela.
Como não sabe a quem recorrer e que não tem esperança, irá entregar-
se. Agora. Não há como fugir. Que seja rápido. Quando ele se aproxima, o
hálito impregnado pelos resquícios da festinha da filha acrescido da
aguardente barata da zona vermelha, a mulher não pode recusar com, por
exemplo, a enxaqueca reduzida a pretexto. Dor fortíssima na cabeça de
Joana. Agora o senhor Lens sai. Rose tenta sentir no contato daquelas
mãos o contato de outras. Nada que fosse imperceptível, mas George
estava por demais bêbado e concentrado em si mesmo. Ela observa os
dedos curtos e abertos. Sob essa carne repulsiva, proveniente de
inimagináveis tempos de terror, na perda de sonhos que se gastaram, a
senhora Lens emerge e retorna, tenta, mas realmente está perto do
impossível o sonhar ao ser tocada daquela forma que abominava,
abominava desde o namoro. E logo terá de levantar, há tanta coisa para
fazer, quer ter ainda o tempo livre para recomeçar o projeto, e como
levantar?, como olhar o amanhecer pela janela?, as belas casas daquele
trecho de Celba se tornaram insuportáveis – como fui casar com esse
homem? De resto, não podia competir com as prostitutas da zona
vermelha, nem que quisesse lutar pela exclusividade do marido – seus
seios começavam a cair, sentia-se cair inteira, as carnes amoleciam como
uma flor que se aproxima do momento em que, em vez de deslumbrar os
passantes, irá ser o piso antes que passe a varredura. E quando
imaginava ter encontrado o verdadeiro amor, já não tem corpo para vive-
lo. Lutando contra a realidade, deixa que Gerard a beije no pescoço, com
delicadeza. O cálido cumprimento desceu, rodeou-a, voltou. Beijos flanam
ora com um leve estalo de lábios ora com toques de língua. Era ainda
Gerard a quem a senhora Lens desgrenhava os cabelos. A janela aberta. O
sol. Um pouco à esquerda, o Giuventu. Mas Gerard estava com as
meninas. Não fez amizade justo com elas no seu primeiro dia? Deixe
disso. George tirara o restante da roupa da mulher com volúpia,
pressionando-a para que caísse na cama. Se apoiou sobre um dos joelhos.
Uma vela acesa não teria provocado tanta dor. Mas desse contato nasceu
calor, a luz, e comunicou prazer. Basta para suportar o que simplesmente
não é prazer mas sofrimento e humilhação. Para isso Gerard estava ali. E
foi uma outra virilidade que a senhora Lens viu diante de si e devia sofrê-
la para dar prazer a quem amava. Fechou os olhos. Sentara-se nas pernas
de Gerard latejando dentro dela. Ajudada pelas mãos que a erguiam,
movimentava-se como aqueles que caminham na direção da tempestade.

Você está tremendo, disse Silvia. A abstinência é cruel. Há quanto


tempo? Estava tentando largar. A amiga lhe pede o braço. Momentos
depois Rose murmura. Que coisa boa. Um sorriso triste. Silvia e suas
soluções para tudo. Para os outros, não para si mesma. Tudo tão difícil,
tão difícil. Se abraçaram. A senhora Lens quebra o silencio. Conheci um
rapaz, um homem jovem, enfim. Havia um som no fim do silêncio, anterior
às palavras. Lá no finzinho, possivelmente uma cigarra. Uns seis, sete
anos mais moço. A expressão dele é tão pura, transmite tanta compaixão.
Estavam falando de religião? Olha que é quase, diz Rose. Um casal passa
em frente à janela, vultos na noite quente de Celba. Me sufoca refazer
nosso caminho de sexo e não mais de sexo, de discos e livros, plantas e
prantos; mas ali está você, conversando com Silvia recém-chegada,
falando de mim, que honra. Silvia também se aproximara de um rapaz,
também um homem mais jovem. Sim, você começou a falar no telefone. E
aí? E aí é aquela coisa: pelo computador a gente diz o que pessoalmente
não diria e escuta o que quer. Até que um dia ouve enfim o que não quer:
ele está apaixonado por outra. A gargalhada de Silvia nem soa irônica. Os
dedos ainda massageiam em torno do pulso de Rose, sobem com pressão
acentuada do polegar ao longo de um feixe nervoso. Quanto a Rose quase
nem fala com seu rapaz. Se o gume está afiado, é preciso menos força.
Mas o vejo diariamente. Saber que passará por aquele trecho de praia é
reconfortante. Gerard fizera do passeio matinal um ritual sagrado, via a
senhora Lens e lançava seu melhor olhar, como se estivesse se
apaixonando. Rose suspirou o hálito de um saudade. Talvez já estivesse
apaixonado. Se fosse o que ela pensava, não seria atraído por uma
mulher como eu. Silvia repreendeu a amiga, disse-lhe que não dissesse
bobagens. Era cruel consigo mesma. Adianta levar uma vida saudável,
caminhar, nadar, alimentação natural, quando a pessoa é amarga e vive
se diminuindo? Quando você acha que todas as pessoas tem razoes para
serem como são, menos você? Um tipo de raça. É apenas um murmúrio:
sou mulher casada… Recosta o rosto nas mãos fechadas, os cotovelos na
janela. Separar-se? Tinha medo. De apanhar, de morrer, da pobreza, da
velhice. As coisas são assim? Bem, podem perfeitamente ser. Rose se
apavora em ter de descobrir. Nesse caso, por Deus, a separação não é
mais uma alternativa, é pura sobrevivência, você parou para pensar que
George é louco? Rose não pensara nisso, não pensara nisso e estava
pagando. Pagar. Culpar-se, condenar-se. Pagar nada. Só teve azar e foi
um tanto acomodada. A senhora Lens deu uma risadinha.

Ao chegar com seu jeito descontraído (que entretanto escondia


também tanta amargura) e sua aparente objetividade, Silvia levou Rose a
confissões cada vez mais detalhadas; e, como era de se esperar, não
demorou a perceber a coincidência, que quando falavam de um rapaz por
quem se sentiam atraídas estavam falando do mesmo Gerard. Passou
então a entremeter-se na amizade das duas um ranço de ressentimento,
superado quando Silvia viu o tremor nas mãos da amiga. E tornou
também a seus próprios estados depressivos anteriores. Que na casa
contrastava com a grande exuberância das meninas em vésperas de
viagem. É que Michele partiria, com Silvia, assim que passassem as
festas. Como despedida, se alternavam em raves e cinemas, barzinhos e
paqueras, muito Orkut e MSN. A figura melancólica de Gerard, já afetada
pelas chegadas seguidas de turistas, não resistiu na cabeça das meninas
quando apareceram os belos e ricos primos de segundo grau para
passarem as ferias na casa de Keshia. Um sax toca na noite quando
Michele e Keshia voltam de uma reunião no clube. Silvia fala com Rose na
varanda. Conheço teu estranho – disse.

– Conheço Gerard.

A casa da senhora Lens adormeceu quando ela apagou as duas


janelas frontais. Luz da lâmpada do poste da rua sobre o telhado, como
um anjo. Gerard parou diante do oceano na madrugada fria. Horizonte
indistinguível, o mar era estrelado e o céu noturno lançava ondas à praia.
Ah se todas as evocações rebentassem antes que aparecesse nele
manifesto seu erro a queimar a pureza do habitual passeio no recanto
deserto, em oração por seu afeto maior que se não fosse realizável
haveria de ser ao menos útil em sua impossibilidade, levando-o a se
reaproximar de Deus. Agora que a pousada despedira os empregados
temporários, se dedicaria a freelas de informática e claro se nutriria da
ausência de seu amor.

Mas ao amanhecer, sob o sol deitada de bruços na areia úmida da


maré vazante, o corpo de mulher.

Difícil saber como essas coisas acontecem. Gerard saiu um dia sem
nada na mente além da rotina de seus passeios matinais. Alguém escuta
os nossos pensamentos? Podem ser modificados exteriormente ao longo
da ação planejada? É quase científico: mantenham o dia igual e irei me
adaptando. Acrescentava idéias a suas reflexões naturais a cada passo da
caminhada. Todavia como imaginar? A solução. Respirar fundo, se
endireitar. Há novas turistas nesse trecho da praia e mais além as jovens
de sempre. Basta para que passe para haver sinais no calção. Hoje
especificamente há uma certa estabilidade nessa beleza. Longe ainda,
num ângulo lateral, Gerard se faz perguntas. Quem seria ela? Conforme
se aproxima verifica pelo suor que está cerca de meia hora de exposição.
Monumento estirado. Esse sorriso é de alívio. Com que então não estou.
Como nos velhos tempos. Não pode se mexer agora mas tem de dar um
jeito de se ajeitar. Gostoso e constrangedor. Olhou o céu, o sol, o reflexo
nas águas. Um espairecimento banal que deve aliviar, pelo menos
momentaneamente. Seria trágico, ou irônico, justo agora ter de desviar o
foco. Querer a ação ou a contemplação, nada de meio-termo? Nossa, dá
para acreditar na lisa grossura dessas coxas? A velha vida se apossa dele
como jamais. O que é isso? Boas pessoas, pessoas normais não pensam
assim. Nunca será duro demais consigo mesmo, o pervertido.

A senhora Lens se espantara ao dar com o quarto ainda vazio. Mas


sei como ela se sente. Ou talvez não soubesse. A luz do sol não mais será
a mesma após reencontrar a filha. Portanto a senhora Lens se espantara,
sustentando os seios para cima, ao ver que Michele saíra de casa logo
cedo após a chegada. Dois anos estudando em São Braico sem vir visitá-
la, apenas cartas lacônicas, deixara a casa de Silvia, nada pessoal, só
queria independência, morar sozinha, estava trabalhando e merecia
privacidade. A senhora Lens se espantara, essa menina não deveria estar
cansada da viagem e só acordar lá pelo meio-dia? Apenas amanhecera.
Falou com o vizinho como se nada de extraordinário. O de sempre, que
calor, talvez chova mais tarde. É que ela não sabia, mas esperava.

Espelhos brônzeos se separam de súbito. Não é possível. O amanhã


desmentirá o hoje. É esse o fruto fecundado desse dia e dessa praia, dos
lugares desertos? Mal respirando hesita entre passar e parar, sente o
mundo para o qual é necessário todo um livro de páginas molhadas,
deseja nascer de um vento novo que junte virtude a virtude – mas foge.
Quando você quiser, quando achar apropriado, quando estiver pronto,
quando acordar. A mulher que não morrera mas dormia, a virgem
entregue ao herói que não sou mas me foi. Gozo e idéia caminham juntos
no ritual pelos labirintos do olhar que se move de baixo para cima, do
chão aos céus. Sela-se o reencontro, a estranha não era uma mulher mas
Michele.

A mãe pensa como a filha viverá com aquele novo corpo em uma
cidade como Celba. Sentara-se à mesa envidraçada da sala de jantar para
fazer umas contas, após apanhar números e máquina de calcular no
aparador, em liberdades de musselina e sandálias. Acende-se com o
clique da lâmpada. Sente paz. Capaz de transmiti-la. Gerard, que se
mostrava tão eficiente em computação e por meio dela em projeções e
custos, almoxarifado e planilhas, apresentações, não podia ajudá-la,
trabalhar com ela? Morde a maça que acabara de pegar.

O som de Michele rompeu o laço que o prendia à sua solidão,


levando-o à inesperada companhia. Ela porém não falara, sonhava.
Durante as eternidades que precederam seu despertar, habitou soberana
a existência de Gerard. Ele postou trêmulo a própria sombra sobre o rosto
dela para precipitar o encontro e reduzir os tormentos. Mas pousada a
face esquerda na areia ela apenas sorri de olhos fechados. Dormiria de
fato? Deus... Tornara-se uma mulher, uma mulher belíssima!... No
semblante, ai, a mãe... Poderá essa imagem se tornar vicária? Junto à
qual alguém que amasse a senhora Lens poderia viver, subsistindo da
semelhança o amor? O sorriso onírico é substituído por um relaxamento
dos lábios. A expressão misteriosa não é interrogação, vergonha ou susto.
Súbito os olhos se abriram. Difícil saber como essas coisas acontecem. A
partir de agora, nunca mais sonhará com a senhora Lens e por toda a vida
estará a seu lado. A seu lado. O que é isso? Imagina? Esse ar imaculado
de uma Celba invisível, partilhado. Amanhece. Passos na rua. Galos, sinos.

Gostaria de poder fugir do lugar comum, mas não podia. Iria dizer os
adjetivos cabíveis, mas disse apenas: Quando ela chegara? O lapso que
liberou por fração de segundos o seu olhar, ela usou-o para certificar-se
do desejo desencadeado. Michele – e Gerard ainda estava por sofrer tudo
o que a isso estava ligado – mantinha-se senhora da situação nos mínimos
detalhes, senhora inclusive o próprio desejo que a queimava.

Se não há palavras, o que será esse beijo? Beije-me, disse ela, e a


língua disse mais. Só então houve palavras e mesmo assim, e mesmo
assim, e gaivotas rasantes, e carros algures, e o fluxo estava muito forte,
disse Michele. Mas tinham alternativa. E enquanto falava soltou os
cabelos de Gerard passando a invadir o zíper de sua calça. Ela se virou e
se pôs à espera. Como assim? Precisa do que para me comer por trás,
babaca? Entretanto o respeita por esse escrúpulo. Esquecera quem era
aquele homem. Não mais. Seria recuperado a cada violação. Põe agora.
Todos com mais ou menos jeito o faziam. Com mais ou menos dor.
Quando souber que ele é quem sentiu dor, primeiro achará graça. Mas
depois algo irá permanecer. Um respeito inútil pois continuará querendo a
violação por trás e o silêncio. Desse jeito, tampouco ela vê o rosto, mas é
ergonômico, menina e menino. Esse Gerard. Mas como sempre onde ele e
George competiam a tendência era que os dois desaparecessem.

Essas coisas. A idéia que ela teve, sair e dormir na praia. Ele ter
alongado a caminhada além do limite que se impusera. Limite que aliás,
pensou, ninguém impõe. É como se ela estivesse esperando. Se vou
chamar isso seja lá do que for, ainda assim terá sido desse jeitinho. Como
tia Silvia dizia, o que tem de acontecer acontece. E aí, para sempre a
coincidência agira num sentido inverso. Olha Gerard eu não sou virgem.
Olha Gerard sou dona do meu nariz. Que bobagem. É mesmo uma
menina. Não sabe nada. De qualquer modo, um dia saberá. Quem sabe
entenda então as entranhas dessa dor que encaminha. Dor que
encaminha? Aí ela dirá que Gerard além de tão estranho é muito
dramático; que assim acabará enlouquecendo.

Acabarei.

Ela realmente o acha intolerável ou pensará que sim na maior parte


do tempo. Porque se achasse todo o tempo perderia aquela parte que
sem querer admitir precisava mais e mais e que a podia livrar de sua
obsessão.

Mais, ela quer mais, do mesmo modo que ele quer. Mal sabia.
Querer, querer de verdade, jamais ele quis. Estão no mesmo movimento,
perseguindo um gozo que se afasta quando julgam alcançá-lo (não é esse
o segredo?). Se Gerard as vezes parece mais perto, Michele o ultrapassará
e aí chegará antes. O caminho percorrido não deixa duvidas. Isso é
felicidade? Insistem na corrida frenética. Felicidade. Como se dissesse Eu
sei que você ama minha mãe e eu amo o meu pai, isso nos faz iguais, nos
dá esse direito de tentar. E se ele dissesse Michele não é certo, seria uma
grande hipocrisia. Então o que nos impede de gozar? Estão quase. Depois
poderemos se for o caso nos culpar.

Se você ultrapassar determinada porta, talvez encontre o que


procura, um quarto limpo e colorido, com alguém ou ninguém,
dependendo de sua disposição, um quarto limpo, colorido e cheio de luz.

Chegara da capital à capital da província, São Braico, com dezesseis


anos. Era menina estudiosa, cheia de planos de realização pessoal, pouco
ligada em companhia masculina. Durante algum tempo se dividiu,
achando que pudesse ter algum problema. Num processo de auto-
correção se entregou ao primeiro rapaz com quem privou de intimidade.
Aquilo não era seu mundo. Ao menos ainda não. Num segundo momento
descobriu não ser capaz de abandonar aquele mundo, que passou a
devorá-la. Vivia apenas pelo presente que satisfazia seus desejos.
Esqueceu a vida passada, que perdera sentido a partir do momento em
que deixou de existir futuro além da hora em que dormiria. Feita mulher,
jamais se desfez desse estado. Mesmo quando os meninos a levaram para
trás da escola, ou quando nadavam com roupas de baixo, estavam
basicamente brincando. Mas pouca graça achava nas brincadeiras dos
meninos e quis estar com um homem de verdade, a um tempo proteção e
dependência. Queria achar esse homem, decerto para abandoná-lo. Ele
serão vários, lambendo o chão até sua cama. Michele muda. Desdenha os
planos de realização profissional. Despreza os tempos antes acalentados.
Senhora do mundo e escrava de si mesma, era essa agora a referencia de
seus dias, o olhar libidinoso com que contemplava a vítima. A vida perder
sentido não era a mesma coisa que perder a vida, deixar de vivê-la no que
tem de verdadeiro. Qual a relevância de um sentido para a vida diante do
fato de que viver é simplesmente estar vivo, esse é o sentido maior,
único, simplesmente viver, como não se sabe para que serve uma flor
raríssima no meio de uma floresta inóspita. Mas toda essa consciência só
será alcançada com a proximidade da morte, com a idéia da morte e com
a morte ela mesma, nada determina tão drasticamente a vida como saber
que tem um mesmo final para todos.
Estava agora com dezoito anos, escorpiana de boa cepa como diriam
seus avós. Gerard não podia conciliar essa idade, que concluía de uma
conta simples, com seus ardores. É uma mulher experimentada, quase
vulgar. Um carro passou ao longe na estrada de terra, levantando poeira,
e enquanto o ruído do motor registrava a distância em que se perdia, ao
som, Michele ainda olhava Gerard. Quando se fez silencio novamente,
ajoelhara-se, agarrando-o pelos cabelos, num impulso para trás. Subiu, já
depositando a língua nos lábios dele, vencido por uma hipnose que não
impedia os lampejos do depois. A mão direita entrou pela camiseta branca
de Gerard, buscando os cabelos do seu peito, que puxou, e ele deveria ter
dito que ela se enganara, duplamente, não a desejava e se desejasse não
deveria ser assim. Teria dito se tivesse tido tempo, se sua própria mão já
não a buscasse. Teve porém de deter-se no barbante. Não mais podia
voltar a si mesmo antes de percorrer aquele caminho que desvendava
embora hesitasse diante do bloqueio.

Eram jovens, sadios, solteiros. Por que deveriam se sentir culpados,


perguntou a Gerard a letra queimada do letreiro de néon da pousada,
readquirindo função com a nuvem que escureceu a manhã.

Precisava consertar aquele A.

Isso era liberdade, ao contrário de sua avó, cujo casamento fora


combinado pelas famílias. Se mostrava-se absolutamente feliz com a
escolha deles, bem, tudo pode acontecer, mas não era a forma devida, as
mulheres precisavam se libertar mais e mais. Morreu feliz – Michele
morreria? Conquanto o sol subisse e trouxesse a perspectiva de visitantes
àquela região da praia, em nada afetava sua determinação. Porque
haveria também com a aproximação do meio-dia a mudança da luz que
invariavelmente determina transformações interiores. Esse Gerard é
aquele mesmo, desejoso sem dúvida da paz de um lar, e ela imaginou se
seria capaz de tal partilha.

Deveria ele se absolver, estranhar sim só se fosse diferente, se


diante da fogosidade de Michele se mantivesse controlado. Vem, disse ela
arfando, súplice e autoritária. Além do mais é bom treinarmos, serve
como anticoncepcional. Quando ele primeiramente não quis, por alguma
razão a rejeição doeu como a lembrança da mãe. Detestava-a, odiava seu
espaço na cama, queria que morresse. Que Gerard é esse que evoca
essas flores de um passado para lá de extinto? Que paixão é essa que
desperta nela, é ele ou a vida em que ele surgiu? Se fechasse os olhos
agora, saberia. Mas a luz por demais intensa faz com que as pálpebras
projetem estações e eras dentro dos olhos.

A vida da senhora Lens era para Michele uma sentença. Usava o


silencio como uma cor. Repudiava a maledicência. Não se irava nem se
ensoberbecia. Tratava a todos de maneira igual, odiava a injustiça e a
leviandade. Não julgava, perdoava. Assim reinava a senhora Lens naquela
casa e nas órbitas, pela simplicidade de hábitos inacreditável para alguém
de sua posição social, em Celba como em São Braico, de uma forma que
praticamente criava a beleza a seu redor, com seus modos contidos
elegantes, seu olhar poético e sua arte feminina transportando-se à sua
própria vida, falando de vida e arte ou simplesmente comentando o prato
que serviu no jantar, ah, Michele não suportava mais aquilo, batatas nas
têmporas, imagine, o ser humano não pode recusar a dor e o
desconforto. Como uma mulher como a sua mãe podia chamar a atenção
dos homens mais que a própria Michele quando estavam juntas?

Chegara de São Braico numa calça de gabardine cintura alta,


grudenta de aperto e suor, a camiseta curta também molhada e ao abrir a
porta havia remorsos não mencionados na musica do CD e deparou-se
com Eduardo, a quem telefonara para informar a hora de sua chegada
(mas só quando estivesse próxima, para que chegasse sem ser
praticamente esperada) – ali estava ele, Eduardo, não o seu mensageiro,
absurdo, o canalha, como pôde traí-la?

Eduardo pede perdão. Diz que não sabe o que deu nele. Posso
compreende-lo, diz a senhora Lens. Apenas gostaria que isso não se
repetisse mais. Não, é claro. Ele dá a palavra. “Só queria dizer que”, a
senhora Lens espera que ele complete, A senhora é atraente demais, mas
ele diz A Michele chega por volta de onze e meia”. Frustrada a senhora
Lens agradeceu e o despediu.

Quando saiu, antes que Michele entrasse, a senhora Lens pensou na


filha. Uma mulher decerto. De fato. Uma mulher com Gerard na praia.

E pior, a terrível beleza de seu sorriso triste. Rose, a rosa, uma rosa
sarcológica como diria o professor Delano (com quem Michele se
encontrou duas vezes em São Braico) porque se tratava de uma mulher
de tecidos musculares e partes esponjosas, mas era como se tratasse de
uma cálice de tolerância, corola de ternuras, uma flor até no nome. Sem
contar – pensou Gerard com as mãos nas anquinhas de Michele – as
carnes fartas, prontas para serem classificadas pelo toque do amor de um
homem, o amor de Gerard.

A senhora Lens era um exemplo. E esse era o seu exemplo: a sua


probidade apesar das fraquezas, seu jeito de lidar sem hipocrisia. Era
abrigo para os filhos dos pescadores e sua sombra aliviava a terra seca
pelo vento perene – um arroio, adorado pelos meninos, no qual iam se
refrescar das tristezas de miseráveis pequeninos. Seu amor era um amor
que não se apregoava. Essas coisas incomodavam Michele que não podia
diante da mãe fazer sua lascívia passar por sabedoria liberal, nem seu
desenfreio como autenticidade, nem seu insensato coração, diante da
mãe, podia discorrer dos novos tempos de conquistas das mulheres, como
se o direito à promiscuidade fosse uma.

Michele enfim se apagava diante da senhora Lens. Diante da


simplicidade de seus olhos e da grandiosidade que viam e transportava
para suas tela e comportamento.

Se não era perfeita, a luz de sua perfeita sinceridade e vontade


estava refletida em seus olhos. E Michele odiava-os, sim, quem dera se
apagassem – havia uma faca que desferia mais um e outro golpe e mais
outro até a morte, ah, ah, ah – A quarenta dias de se tornar a senhora
Lange, Michele, queimando e sangrando, morria.

Os sonhos de poder, tônica de suas fantasias, onde mais que uma


mulher desejada era invejada, tendo palavra de vida e morte sobre os
homens, aquele psicólogo da escola frustrou-os, diagnosticando não
ambição, nem mesmo vaidade, mas atração pelo pai, de intensidade
mórbida. Como punição o doutor, de seus trinta e oito anos, acabou
seduzido pela aluna e paciente, perdeu o emprego e viu seu casamento
destruído. Com isso Michele pensou ter encerrado o caso. Estava
obviamente equivocado ou não se teria deixado seduzir e destruir tão
facilmente. Mas fora um dia tenebroso para ele, um dia para esquecer,
acordou com uma briga doméstica, depois a reprovação da filha, o filho
batendo a porta, menosprezando seu emprego e salário, e a pressão
normal da clínica, a hipocrisia dos colegas, enfim, e à noite a vitória de
Michele, tendo-o em seus braços. E quem quando explode a conseqüência
desastrosa se dá ao trabalho de imaginar alguma causa atenuante? Pelo
contrário, na mesma noite o vídeo mais acessado do Youtube era o de um
professor que jogava ao chão o celular que uma aluna insistia em o não
desligar. Agora junto ao ardor fulgura na mente de Michele seu primeiro e
verdadeiro amor no desejo de nada ver ou ouvir.

Resfolegando entre o gozo e o pavor, Michele urrou. Ele vai lhe


perguntar se a está machucando, ela começa a ouvir a voz e lhe tapa a
boca em ginástica precisa. Abre-se mais e come areia em seus
transportes. Puxa os cabelos dele e com a outra mão dita-lhe o ritmo.

Até aqui existe fascínio, a transgressão de uma rotina sob o amor da


senhora Lens. Até aqui. Em torno deles, o mar, as montanhas; as casas
distantes na névoa. A vida arrebatada pelo erro de se acreditar na retidão
de todos os caminhos, na nobreza dos gestos nobres, na justificação e na
exaltação. Pela muita necessidade de homens e mulheres sentirem que
são normais, o que significa ser bom. Mentira. Falta básica a auto-
indulgência pressionada pelo desejo carnal e pela vaidade e seja o que for
que exista de poder e submissão nesse desejo. Assim nem o amor nem a
consciência estavam no vaivém de Gerard em Michele, pensará ele
quando distante da magia que transformava a menina em mulher. Quem
sabe confiou tanto no velho amigo que não se furtou àquela confidência
de sangue em meio ao incômodo de algodão, refletirá ela um dia. Levado
agora por uma onda. Ai. Mais tarde dirão que as águas límpidas de Celba
não são limpas. Michele se entrega assim, mesmo assim, submissa no seu
degrau de poder – o que diante de outro seria humilhante perante o
amigo mais velho era a confiança renovada. Talvez em seu descuido
Gerard imaginasse algo assim da satisfação duvidosa de um desejo
legítimo. De qualquer modo, o que se pensa é efêmero, o que permanece
é o que se faz do que se pensou. E pouco a pouco, num grito aqui, numa
contração que ali quase o lança fora dela, Gerard assumiu o risco vago de
uma criança cujo rosto estimulou a idéia que poderia (por que não?)
transformar-se em amor e resgatá-lo de seu amor proibido. Está cansado
agora. Mas depois.
Sentiu uma felicidade que não sentia, não nos montes em Michele,
mas no vale materno abençoado pela madurez de que Michele carecia,
fartura sofrida de mãe, sombras da responsabilidade de mãe, contraponto
de rigidez de pouca coisa na filha. Ah, a elegância da senhora Lens em
uma situação íntima!... Sensual, sensual sem sombra de vulgaridade.
Natureza e arte. A profundidade desse mar que todas as luas conhece,
nas costuras das roupas da mãe de Michele, os caminhos da linha
desdenham pássaros voando para muito longe – mas exatamente para
onde? Sim, fugiria. Mas não é possível agora outra coisa além da justa
tensão entre dilatação e intumescência. Que horas serão? Caso fossem
vistos, que constrangimento... Culpa e vergonha. Porque a fuga termina
sempre levando a um outro perseguidor adiante. O que haverá além é
alguma face do que houve outrora. Não pode evitar esse fogo, essa dor no
peito, essa respiração entrecortada. Afasta-se bruscamente e lança à
nuca um olhar como se ela visse. Estremece e ainda treme quando fala.
Sim, disse ela, como se o olhasse. Aquele a quem aprendera a julgar não
ser nada perante seus valores e paixões, de repente ganha a importância
de toda uma vida. Sim, é claro que ela se casaria.

Quem sabe uma cidade intermediária, nem metrópole nem vila, com
vantagens de ambas. Abre essa esperança. Um dia de tamanha claridade.
O sol nas ruas de uma cidade grande estaria filtrado por árvores e
portanto não seria tão opressor. O sol no quintal de uma casinha num
arrabalde simpático. Está nesse quintal. Os passos nas folhas secas. O
reflexo das folhas verdes. Uma brisa no mato. Deixei-a em casa dormindo
e vou comprar pão assim cedinho. O trânsito dessa cidade não é caótico
mas deve-se ter cuidado ao atravessar a rua. Cheiro de pão. Estalidos do
papel de pão. Eis a vida de um lugar assim, o amanhecer em um lugar
assim, fazendo esvoaçarem os sentidos, serenando aquela que dorme em
casa enquanto saio de mansinho oculto pela penumbra de um prédio nem
alto nem baixo, pelo corredor nem estreito nem largo e então a entrada
do prédio, a entrada de um prédio nem luxuoso nem simples demais.
Talvez assim tivesse uma vida, uma vida de verdade e não a que os
sonhos me permitem apenas no recôndito deles, se ela quiser, e quer, e
fica o pensado por não pensado, um mês e meio depois estavam casados
e Gerard para o resto da vida oficialmente ligado à senhora Lens, livre
para aproximar-se e vê-la se aproximar sem fazê-la adúltera, porque
agora pode beber nas fontes da cidade de Deus sem sujá-las e tem a
impressão que agora todas as coisas estão em paz.

Louco...

A partir de agora, nunca mais sonhará com a senhora Lens e por


toda a vida estará a seu lado. A seu lado. O que é isso? Imagine. Esse ar
imaculado de uma Celba invisível, partilhado. Gerard se levanta, se
levanta decidido. Galos, passos, sinos. Agora há silêncio na sala do senhor
Lens. A jovem acaba em casamento de ser pedida.

Em meio tempestade de verão que marcava o ultimo dia do mês com


o rebentar dos raios, a energia elétrica em piques em piques mal
perceptíveis mas suficientes para desregular o relógio digital e reiniciar o
computador, Michele andou e apressou o passo até chegar na manhã de
sua noite de núpcias no quintal, os músculos do braço de Gerard vibrando
a cada golpe da enxada. Precisa mesmo fazer isso agora? Preparava um
jardim, será ali, ia descrever onde iriam os tipos de flor mas se deteve
interrompido pela língua áspera de tabaco, desde quando ela fumava e
por que escondida? Mas ela seguiu adiante beijando sem se importar com
o sabor que emanava ou com o jardim futuro nem com o que Gerard
estava pensando. O homem que nasceria daquela época, antes nada mais
que conjecturas de uma menina, a quem ela medira conforme seus
próprios inacabados valores, agora é esse que a acolhe, madurado por
uma desconhecida bondade, para quem o amor e o sexo jamais seriam
rotina,

Gerard conhecera um ex-militar, dono de imóveis em Celba, um


senhor já de certa idade, que ofereceu uma boa casa defronte à lagoa por
um preço simbólico. Homem de princípios firmes como sua voz alta e
clara, sua probidade Gerard reverenciava, embora divergissem com
relação a quase tudo. Durante uns dois anos viveu ali, ainda solteiro e
depois de casado, e honraram ambos um compromisso verbal, os
pagamentos do aluguel rigorosamente em dia e os melhoramentos.

As janelas serviam de tela para que as nuvens ao se interporem ao


sol inventassem jogos. A casa, a calma; num momento inesperado, a
lembrança. Se não pode haver mais culpa, então por quê? O silêncio, a
ausência de vizinhos. E esta solidão. Agora e antes e possivelmente
depois do casamento. Sim, agora, depois do casamento. E a espera
renovada e sem sentido. E o solo coberto de folhas. No começo da
primavera, a caesalpinia floria por uma ou duas semanas e a florescência
independia do olhar de Gerard.

Eis a bauínia. Sarita saberá e mandará recado, que tome muito chá.
O perfume das acácias será igualmente terapêutico um dia. E aqui um
movimento não muito diferente de qualquer movimento cotidiano. As
portas da casa, como você vê, nunca estão fechadas. Tem seus
inconvenientes – a entrada de mariposas, mosquitos e morcegos, por
exemplo – mas quem se importa? tudo tem seu preço e naturalmente a
liberdade. Essa porta de cerejeira escurecida com retângulos verticais e
um no centro, na horizontal, trabalhados com esmero que a senhora Lens
admirou longamente na primeira visita na qualidade de sogra. Que
surpresa boa, entre, vou chamar Michele. Nesse dia ela se adiantou no
limiar com uma graça menos espontânea que a corriqueira; mas eram
discerníveis como sempre a simplicidade e o decoro. Então, mãe, o que a
senhora achou? nem parece aquela casa não é? Fiz o capucino que você
gosta, vamos para a mesa. Michele apresentará a disposição dos
aposentos na casa e dos móveis nos aposentos e das coisas nos móveis –
a senhora Lens se impressionou com a televisão enorme pois nunca vira
uma TV de tela plana. Também olhou com quase espanto para o fogão de
acendendor elétrico, autolimpante. Tudo bem que não é nenhuma
novidade pra você, filha, mas pra mim é como se tivesse sido inventado
ontem. Então Michele se lembrou com quem estava falando. É que a
senhora sempre teve empregada, e nós tão cedo não. Tão cedo. Quando
Gerard estiver sem emprego e morarem na casa da senhora Lens, a
velha empregada os servirá. Obrigado, Sarita. Era um prazer.

Muita novidade deve passar despercebida perante o anfitrião amado


mas impossível não notar a funcionalidade da sala iluminada por
lâmpadas frias. Paredes bege. Estantes, os livros, CDs e DVDs. A mesa do
computador atrás da qual caía a cortina transparente antes da persiana e
em cujo lado esquerdo um movelzinho guardava jornais e revistas. Mas
decerto ele não escuta música em aparelho de som; e livros, lerá? Talvez
sim, se mantenha informado, nada mais. Seja como for, George lê tanto,
se mantém por dentro de tudo (a música não é chegado), e daí? Noutra
parede, a do sofá branco, com almofadas compradas à mãe de Maria das
Dores, costureira que trabalhava para a pousada. O rapaz é tão bonito e
simpático, acho que vai se dar mal metendo-se com aquela família. E na
entrada um cabideiro ao lado do visitante. Um cheiro bom de lar, enfim foi
a filha quem conseguiu, um aroma bom, vindo provavelmente, não,
sobretudo do carpete felpudo onde Michele tomaria gosto de se estender
para ouvir Beatles, devaneando, como se fosse uma coisa hereditária.
Cada uma dessas paredes abrigava (sem culpa para Gerard, afinal estava
só prestigiando a sogra), um quadro da senhora Lens, que se sentia
vaidosa e esperançosa pela deferência cada vez que os via.

Quando a praia estava cheia, costumava ele nadar no lago. Estimava


que tinha uns quatro a cinco metros de profundidade. Águas claras e
mornas. Ao redor da casa, os montes culminam na cordilheira geralmente
enevoada. São oito horas da noite. O primeiro dia de sol do verão de
2008. Não foi difícil encontrar a casa com todas aquelas referências. Que
linda, melhor impossível. Silêncio. O ranger dessa porta. O sussurro do
vento. O silêncio, o vento e a porta são tua voz. Gerard perguntou a si
mesmo por quanto tempo suportaria tanta ir irrealidade. A senhora Lens
respondeu que um sonho é feito da mesma substância de que a realidade
se nutre. Não acorde, disse numa lufada quente; não acorde. Certa noite,
ao regressar à casa, escutou as vozes de um adulto que orientava o filho.
Porque aqui não é São Braico. Não sei sobre o que está falando, pensou,
mas era decerto uma frase precisa. Todavia dúbia, o que de tão diferente?
Que virtudes as da cidade pequena afinal? Tinha sido um longo dia. Ali
está o carteiro. Uma hora dessas. Vou lhe perguntar. Quem são? Eram de
fato pai e filho. O primeiro dia do verão, não há duvida. Começou a
temporada. Entende porque preferiu se manter solteiro até Michele,
lembra-se do menino que corria atrás das coleguinhas, mas não é capaz
de compreender o homem que fez tal opção, casar-ser com a filha da
mulher que ama. Porque a compreensão da loucura em determinado
momento acabará se tornando a própria loucura.

Na janela da sala, vendo o fluxo luminoso subindo a rodovia, Gerard


se lembra do dia em que chegou. São Braico. Não é tão diferente. Mas foi
diferente, muito diferente. E seria mais se a senhora Lens não fosse
casada. Casados. Que vida os teria esperado, se perguntava, mas nunca
deixou de manter os pés no chão. É possível que o amor continuasse. Mas
sabe hoje o quão diferente são. Pensa. Ninguém compreende uma pessoa
como eu sou, tão recolhida em si mesmo, avessa a festas, eventos, tanto
quanto ama a proximidade de pessoas. Se as pessoas se contentassem
em ser próximas... E a senhora Lens sempre tão atarefada até quando
sentada suas pernas inquietas balançam. Pensa com as mãos, indaga com
os pés já a caminho. É que sempre fui sozinha, pensa Rose quase como
uma resposta, é que sempre fui sozinha e tive desde pequena de resolver
as coisas por mim mesma.

Três meses depois da manhã em que reencontrou Michele, Gerard


descobriu que, pronto, era isso, se não estava feliz se devia basicamente
à força da atenção que dava à opinião das pessoas. Decidiu que se
declararia, não importava quem dissesse o que – de resto, ninguém
precisava saber. Só quer ter paz, pensa enquanto se aproxima da casa.
Sarita passou por ele em sentido contrário, quem pensa estar
enganando?, cortejar uma mulher casada, devia dizer a ele o quanto ela é
decente e boa, diria Olha, esquece isso, deixe-a em paz. Mas no fundo
experimentava certa simpatia pelo sentimento de Gerard; estava apenas
tentando ser fiel ao senhor George que a tirou da rua.

Se ao menos Michele o amasse... Ele poderia entregar sim a parte de


seu sentimento que a senhora Lens não abarcou, a energia sensual crua
como um céu infinito à espera que anoiteça. E se a senhora Lens amasse
o marido e o marido a amasse... mas não a amava. Não. Eis ali o calhorda
no dia anterior. Espera a garota de programa de outra cidade, de quem os
serviços contratara. A vadia da Joana agora vive doente. Gerard o olha; a
senhora Lens é nisso humilhada; maldito; mas nada fará contra ele, e
sabe que não.
Joana fora a um médico em São Braico. A ausência tornou-a
desejável novamente e George tinha coisas novas na cabeça. Não sabe
que não a verá mais. Enquanto imagina que sim, experimenta parte das
taras com sua mulher, a senhora Lens, a quem Gerard amava. Por que
então não enfrentar o mundo em nome do amor em vez de enfeitá-lo com
a beleza enganosa da renúncia? Até porque não estava mais dando
certo, pensou a senhora Lens, deixara de ser um período produtivo. Tudo
está agora nas mãos do acaso. Se pudesse ele discretamente sussurrar-
lhe as palavras. Declarar-se-á e se saberá enfim correspondido. Da janela,
num calafrio, Rose percebe que Gerard se aproxima.

Ele nada tem em comum com George, não sabe portanto a


motivação de seu impulso. Pergunta ao homem como chegar e ao longo
do caminho pensará em como não ficou constrangido em fazer isso, em
perguntar, em perguntar tanto quanto ir. Incuravelmente romântica, Joana
era recorrente no erro contra o qual suas colegas a viviam prevenindo,
apaixonar-se pelos clientes, o que podia fazer? Viu em algum lugar de
seus olhos o que ninguém via. Claro que poderia amar um homem assim,
se fizera tudo o que fizera por ela. Que fosse agora uma boa lembrança.
Está nas mãos do amor. A voz de Gerard é desde o primeiro momento
adorada. Ela sonha de novo mas seus sonhos são como árvores de uma
floresta condenada – infectada, agora só pode mesmo sonhar. Dir-se-ia
que com Gerard o amor assumiu ares de missão, de sacrifício. Sentarão
na noite clara, silenciosa, na bela noite de primavera, na hora
desesperada, as almas unidas nos ares em que esvoaçam mariposas
pelos campos das propriedades fora de Celba, onde nascerão as estrelas
na penumbra, na suave obscuridade da noite boa, ela adivinhou que seria
sim uma noite muito bonita, tem coisas que não dá pra esconder de uma
mulher.
Ele chegou com passos tensos, ela se olhava no espelho. Os detalhes
da decadência. Olá. Entre George e Gerard, havia desenvolvido os
sintomas. Embora a janela esteja fechada, pode sentir a vida dos
animaizinhos da noite. Vela agora o sono dele. Uma mulher de sorte é o
que é essa mulher, amada assim por este e tendo naquele o provedor. E
se a George relevava a violência, em Gerard condenou a demasiada
ternura. E o que a senhora Lens dizia? Ela não sabe. Joana olha um o fio
que corre da cortina antes de responder. Ah, sabe sim, é claro que ela
sabe. Meu pobre amigo.

Amanhece e o cheiro de pão é o cheiro de Celba. Joana trouxe três.


Gerard não consegue se levantar, não tem motivos, ah deixe de
bobagem, de onde vem essa música? O corpo anda pelo quarto, mas não
se falou em dinheiro, como poderia e como poderia ela? Gerard não sabia
que ela tinha irmãos menores. Gerard não sabia que ela precisava fugir do
mais velho que não dormia, que raramente dormia. Ela tampouco imagina
as agruras de ser filho único. Então ofereceu o colo para que Gerard
dormisse.

A possibilidade de estar infectado inexistia para George, apesar de


saber o estado de Joana. Passou a encontrar amantes da capital. Melhor.
São de nível superior. Uma delas decide seduzir o idealizador do pólo
editorial. Ele não tem culpa de ser como é. Não pediu para existir. Então
que história é essa, pensou Cati, de perverso, de único a ser odiado?
Victor não estranhava o desejo dela de acompanhá-lo sempre quando ia
de sua cidade para Celba levar manuscritos. Você trabalha demais, Victor.
Podemos pegar uma praia depois. Podemos ver o pôr-do-sol. George fora
certa época um escritor prolixo e de qualidade, como Victor: a época em
que conheceu Rose. A senhora Lens acha que o empreendedor matou sua
criatividade. Ou, como Cati acredita, ele precisa de uma nova musa.

George vende muito bem seus livros na Europa, não o bastante; o


primeiro nos “mais vendidos” era um conterrâneo, como chegara ao topo
antes, o idiota? Esse homem, um tal Pedro Carneiro, não lhe fazia frente
em termos de literatura mas certamente sim no aspecto comercial. O
sucesso do rival incita-o à idéia do tal pólo, Cati logo percebeu, mas isso
em nada afetou sua admiração pelo amante, antes ao contrário, as
pessoas precisam ter ambições, precisam se motivar. Motivação é o
segredo de tudo. Mas o que se faz depois de alcançar aquilo pelo que se
motivou? George pela primeira se percebeu cansado, infeliz.

Nunca na verdade pensava muito a respeito de tais coisas. Mas


agora é levado pelos olhos de Cati, pela sua boca, pelo seu pescoço, pelo
início de seus seios. É levado. Pensa a respeito meio sem se dar conta. É o
som da voz dela, os movimentos de seus lábios e da língua fugidia, há em
Cati um pouco do que há na chuva que caiu na noite anterior, na lama
que deixou pelas ruas da vila, sobretudo para os lados dos pescadores,
dos hotéis baratos, mas a quem ele está procurando em meio ao cheiro
de peixe que ao de esgoto se misturava, e no tilintar vindo do bar? Se
perguntou e não soube a resposta, e ficou ali, súbito parado perto do mar
batendo nas pedras sem ter a menor idéia do que faria se quisesse ter
uma vida decente. Porque de todos os produtos do pólo de literatura os
únicos fadados ao sucesso foram os do próprio George os que ele assinou
após ler enredos recebidos de livros jamais publicados – sou cúmplice
dele, meu Deus, sou pusilânime e fraca, sou cúmplice. Mas a mãe de
Michele jamais fazia nada além de se culpar.

Qual é o sentido deste quarto, parte de mim, desse teto, céu


universal de um mundo, céu de um mundo, o que quero dizer? – uma
coisa é o sentir, o contemplar, outra muito diferente colocar em prática o
que se acredita, e é de resto preciso ter esse aval constante do
comportamento? – isso é tão desgastante, estou tão cansada, mas caso
não seja, se a compreensão se basta, se basta o arrependimento, a bíblica
metanoia, a mudança de pensar, a mudança de pensar que salva, então
enfim está justificado esse teto cinza, esse limbo entre a ação e a
contemplação, esse querer sem força, esse sentimento apático. Deitada,
portas batem repetidas vezes, George está saindo, naturalmente para
encontrar essa moça doente, que relacionamento o deles não posso mais
entender. Antes foi decerto Michele, entrou saltitante e saiu, saiu ao pai,
melhor para ela. Tenho medo de pensar se Gerard está em casa. Me
conforta que esteja. Meu coração. Assim sobressaltado. Terrores
tamanhos. É a vida. O mundo desabando sobre mim, uma interrogação, a
pergunta que exalou dos braços quentes de Gerard quando me
cumprimentou, um aniversário sem festa e todavia – O quarto está
girando. Essas questões são as mesmas de que Silvia sempre falava, mas
agora é de outro jeito, agora são vividas, por mim mesma, vividas, não
formuladas de alguma outra forma. Quarenta e seis anos. O universo se
move sobre minha cabeça.

Estava porém para se libertar.

Na pintura absorta, amando Gerard, de algum modo preparava o


caminho para dias felizes. Agradecia então a Michele por não ser fiel.

Naquele dia, Fantarello aproximou-se de uma forma diferente, disse


a Michele que havia muito mais coisas envolvidas do que apenas sexo,
enfim, que ela fazia parte da vida dele de um modo essencial. Por detrás
deles, na janela, as luzes se amontoavam e perseguiam como óleo num
vidro de água, e as nuvens se refletiam nos olhos da senhora Lens.
Michele disse Bobagem, eles não tinham esse tipo de profundidade, o
máximo que alcançam é mesmo um tipo de sentimento superficial que
procura apenas satisfações imediatas, jamais o zênite das coisas. Ele riu e
o riso não raro tem essa irreversível propriedade de aproximar duas
pessoas e leva-las a uma intimidade maior. Seu melhor amigo desde que
se entendera por gente, durante muito tempo ainda se encontraram
nessas condições, que não se desfizeram de modo abrupto, antes eles
demoraram no status de confidentes e ela apenas queria lhe estender a
mão amiga quando ali se tocaram, como um trem parado no meio das
montanhas.

Quando a saia azul marinho imitou as luzes era como se fosse a


primeira vez, como se eles tivessem encontrado enfim a felicidade
universal pela qual deveriam trocar a individual concupiscência. Ele
olhava os seios por um prima de novidade e as coxas de um ângulo
inédito, e via essa certeza de eram mais que amantes, quando seu corpo
roliço ajeitou-se sobre ele. Perguntou-lhe se ela também estava sentindo
daquela forma. Michele, rindo, disse que não era capaz de sentir nada
além do cavalo sob ela. Acredite, disse ela, você é o que trago em mim
mais próximo de um amor; mas sabia que essa proximidade era apenas
relativa, que todos sempre estariam comparativamente distantes de seu
primeiro e único amor. Inclinada sobre ele, cavalgou a única certeza de
sua vida, a de que se alguma coisa não acontecesse imediatamente, ela
deveria sobreviver de um objetivo inatingível pelo resto de seus dias e
compreendeu que a vontade de ficar com as pessoas existia apenas na
medida em que, embora precisasse tanto, não suportaria mais ficar
sozinha.
Havia aquele desejo em Cati, de futuro, de estar bem de vida, não
nasceu para ser pobre, nasceu para mandar. Havia dentro dela a
tendência por tudo o que não se esgote, por coisas que por mais
consumidas não se esgotem. De onde tirou que havia sombras de tal
atributo em Victor, daí mesmo passou a traí-lo com George. Esse George.
O marido, o homem de cujos lucros a senhora Lens participava. Graças
aos quais está agora na tarde de terça, a campainha, esses dois lado a
lado, em quadro emoldurado pela porta da senhora Lens, um anjo dos
céus. Não serei ignorada.

Eduardo queria o endereço de Michele, Oi, é que ganhara um


computador do pai para fazer os trabalhos da escola, apesar de não ser
de imaginar que se interessasse por algo além de surfe, mas sim, e além
do computador a senhora Lens guardou e não devolveu aquele olhar, não
mais de olhos estranhos ou da novidade de olhos claros, antes um olhar
simples conhecido e reconhecido num outro, e não, nunca mesmo, ainda
mais interessado por estudos, mas agora estava super a fim, adorando.
Como assim, estava? – Não está mais? – duas apanhadeiras de conchas
passam e olham para os rapazes e murmuram entre si – Como é possível?
Ela não se enxerga? – Todos de súbito imersos pela sombra da nuvem que
passou no céu movendo a cena entre atos subentendido, assim, como se
estivessem sendo contados em uma mesma história.

Foi aí que Eduardo falou sobre os travamentos e como apagou


aquele CD, fazendo gestos e se exaltando, como se a coisa estivesse
acontecendo ali mesmo. Disse que tinha perdido tudo, trabalhos de um
semestre, que provavelmente fariam falta na faculdade, etc.
Conversavam assim, dois homens jovens, interessantes, ambos
interessados nela, ora, precisava rever aquela idéia de que estava ficando
velha. Em torno deles as ondas se faziam presentes no ar e o mar se
misturava no vento e mesmo o horizonte se deixava compreender pela
linha do muro de contenção enquanto Eduardo fala e espera que a
senhora Lens esteja olhando para ele. Continua. Gerard o interrompe com
entonação de quem sabe o que está falando. Eduardo se tranqüiliza, o
alívio estampado em seu rosto, mas não, ela não está olhando para mim,
está olhando para ele, em todo caso é claro que dava para recuperar e
claro ele podia ficar tranqüilo, esse novo sistema operacional tem dessas
coisas. Vou lá à sua casa mais tarde se você não for sair, e a gente vê.

Perfeito.

Agora a senhora Lens estava entendendo o significado de


manutenção de computadores da pousada, ela, que nada entendia de
computadores, e precisava entender, isso de internet se tornara essencial.
Descobriu então que podia convidar Gerard para trabalhar com ela, por
que não? Útil e agradável. Mas sabe que continuará sozinha. Estavam
sobre pedrinhas que passaram de um momento para o outro a brilhar e
refletir o futuro. A revista é entregue. Tem uma bela reportagem sobre
Morandi e sua minúcia na natureza morta. Mas eu queria vida. Queria
essa natureza viva, tua mão mais que a revista que passou à minha. Dá
uma olhada na matéria, disse, com um meio sorriso cheio de significados.
De repente agradece, obrigado Gerard, você é um amor, mas ambos
entenderam Você é o meu amor. Por essa comunhão Gerard desistiu da
confissão, da declaração aquele dia. Para quê? Ambos sabem. A
pedrinhas se apagam. Ruídos de passos sobre pedrinhas. Vamos. Tchau,
Eduardo. Obrigado de novo, Gerard. Uma delicadeza ter se lembrado.
Mas ela sabe que continuará sozinha. E nunca se acostumará com as
comodidades dos tempos modernos.

E os dias passarão enquanto o coração dela estiver se entregando à


tarefa de ser, ainda jovem e sedutora em sua blusa sem mangas e shorts
azuis, como se fosse serena, acenando. Tchau, Eduardo! Tchau, Gerard.
Tchau, senhora Lens! E os dias passarão sobre aquela voz, até tornar a
encontrá-la em outra porta. Até logo, senhora. Gerard nunca dizia adeus
para a senhora Lens.

Deitada a sós, a senhora Lens estava comovida. Gerard era


realmente gentil e atencioso, prestativo. Por que afinal Michele não
usufruía do amor de um marido assim? será que desconfiava de alguma
coisa? Não. Teria vindo agredi-la à menor suspeita. Gerard não era muito
simpático, não o tipo de simpatia que se costuma cultuar em sociedade,
sinônimo em geral de hipocrisia. Falava pouco, o necessário, e não tinha
boca para falar mal de ninguém. Sobretudo, estava sempre disponível
apesar de todas as suas ocupações. O que mais se poderia esperar de
alguém? Um jovem difuso, cheio de silêncios – dos quais grande parte lhe
era consagrada.

Acredito que esteja se aproximando o momento. Depois que as luzes


da casa se apagaram, pude ver claramente. Vou acreditar. Essas coisas
acontecem. Amor à primeira vista, premonição, coincidência. A questão é
quase outra. Quando acontecer, estaremos preparados? Quanto o amor
sobreviverá à nossa união? Por algum tempo sem idéia das horas, a
senhora Lens gradativamente mergulhou nas profundezas da escuridão.
Eduardo e Keshia. George e Cati. Gerard. Aquele era o tipo de noite em
que ela costumava se levantar tateando e buscava o interruptor do abajur
da sala, ligava para Silvia ou recebia ligação dela. Se fosse hoje, de que
falariam? Silvia e Victor. Não chegara a haver tempo de conversarem ou
simplesmente a amiga escondeu dela o seu caso? Esses casos fortuitos
fadados à eternidade. Ela e o rapaz da festa. Em noites como aquela,
conseguia se lembrar. As luzes, as pessoas engalanadas, o apagar das
luzes, as imagens atualizadas de um ficar inesperado, jamais antes fizera
nem jamais depois se permitirá – mas era um menino tão gentil, tratou-a
como uma igual, ela, já entrada nos trinta e tantos, agora essa escada
na penumbra de um mundo indiscernível, e nesse mundo a jovem que se
pensa velha para um ardor assim, associado a arroubos que nem em
adolescente. Rose, e esse rosto familiar de um estranho logo dissolvido
nos gemidos ajustados ao evento atemporal, sem uma única palavra, não
que se lembre, sem um único movimento de real repúdio ou conivência,
saudosa do que não viveu, sente os dedos másculos e a própria
masculinidade agora, o que é isso, sou noiva, era noiva de fato mas
George jamais fez qualquer menção que a fizesse recordar que um dia
fora reanimada por semelhante sonho, do qual jamais acordará.

Não sei o que há comigo, apaixonada? deixando-me levar assim por


esses caminhos evidentemente perigosos a que esse Victor me arrasta –
não sei e não quero saber pois só me importa estar numa praia como essa
sentir uma chuva assim, e por essas vielas passar em meio a pescadores
e catadoras de conchas, como se não mais pudesse viver sem esse cheiro
nauseante, depois que as sandálias delas somem você praticamente é
obrigada a imaginar para onde as levam, se voltam para casa ou se ao
contrário fogem sabe Deus para onde, como eu costumava fazer quando
meu pai me repreendia com descaso – esta Celba onde pretendia vir ver a
questão do voluntariado quando cheguei e agora é apenas cenário por
onde é levada minha alma insensata, inconstante, ou talvez eu saiba o
que há. Quero ir para a cama e não estar sozinha quando acordar.
Ela sabe que não há consolo. Soube de todo quando conheceu
Gerard. Mas se Victor amava Cati, Silvia nem isso, sofrera apenas por
desejar a dor. Aquele a quem ama a sua melhor amiga. Inquiriu desse
amor a Gerard, que não o confessou. Os comentários dela aos posts que
ele publicava tinham essa direção, sempre. Internet como ferramenta de
aperfeiçoamento do ciúme. Essa merde de ciúme. Insiste no propósito de
ouvir a confissão que jamais veio, que sem saber Gerard guarda para a
própria senhora Lens. A conversa no messenger batia sempre nessa tecla,
cheia de carinhas maldosas. Mesmo depois de conhece-lo pessoalmente,
Gerard era ainda um contato do orkut, um nome entre tantos no MSN, não
era, como ela disse uma vez a Rose, exatamente uma pessoa. Decidiu-se
assim por verdades em potencial e ficar com a que lhe pareceu mais
atraente, sobre Cati e George. Assim se insinuou na trama (pois isso era a
vida). Esperou dar com a justificação da tragédia um sentido para a vida,
como se a vida precisasse disso, precisasse de algo além de ser
realmente vivida, de uma forma ou de outra.

Do outro lado da rua, próximos ao lago, dois passantes observam o


vulto. Percebem logo que é um homem e imaginam que é uma pessoa
solitária. Michele ressona. Ressona ou ronca mesmo. Nesse caso pelo
menos estou realmente só. Mas se fosse a senhora Lens, ah que
bobagem, seria só de todo jeito. Logo ia estar cansado da companhia
dela, como de todas. É sempre escura a noite quando nos damos conta. É
sempre paralisante o conhecimento nem que seja só no primeiro
momento, o que precederá o avanço, o desenvolvimento da idéia ou
simplesmente a paz. Uma vez naquela primeira semana, ele ligou o
computador e percebeu simultâneos os pássaros da manhã, pássaros são
próximos, pássaros estão disponíveis, não pode se imaginar com alguém
que não seja disponível, de quem para se estar junto é preciso adaptar
horários. Os pássaros da manhã são os mesmos da noite, mesmo se
diferentes. A trilha luminosa da sua janela, mais próximos que a senhora
Lens, mesmo na exuberância das fantasias, e naturalmente muito mais
próximos de Michele.

Estarei perto de Deus porque a Ele me dirijo, reflete Victor no


momento derradeiro, ou do inferno porque me dirijo com semelhante fim?
Andara se dizimando numa novela sobre seu relacionamento com Cati.
Ninguém dava a mínima e ela menos que todos. Mas enquanto estava
vivo – pensou a senhora Lens quando ouviu passos lá fora em horários em
que ele costumava chegar – mas passaram - , Victor deu provas de que,
se tivessem lhe dado chances, tornaria o pólo literário de Celba uma
realidade. É possível que fosse assim. Havia os meios. Assim, se entrega
Victor à empreitada, como a um amor. Se não houvesse dinheiro
envolvido. Se só dependesse de boa vontade e talento. Tem dias que se
sente tão cansado. George possuía uma energia inesgotável. Logo. Quem
sabe. Hoje. Agora. Diuturnamente os dois como criaturas invisíveis pairam
sobre os vales de suor e vertigens. Se Cati pode ficar com ambos, terá
algo de cada um deles, o melhor. É claro o melhor, que dúvida. Seus olhos
vasculham todas as possibilidades. Uma divindade animal que acolhe os
melhores pedaços em seu império e queima os restos. O que for. O jeito
com que você se veste caminha passo a passo com sua embriagues
desmesurada. Aqui aliás tudo é assim. Celba parece pequena, apenas
parece. Vai destruir a vida dele, Silvia. No primeiro encontro ele irá se
queixar, por que escolhemos sempre as pessoas erradas? Pelo menos,
encontrara em George um amigo. Não descobre. Longe disso. Apesar de
ser medíocre, Victor é uma ameaça, diz George com os seios de Cati nas
mãos, porque tem um estúpido estilo.
Transtornava George a idéia de que um dia, como Pedro Carneiro,
Victor estivesse num lugar mais elevado. E ele, o mais prolixo escritor do
mundo, sequer merecera uma resenha especial em algum suplemento
literário. Nunca entrara numa lista de mais vendidos. Que dirá a
Academia. Essas coisas incomodam mais do que os processos que há
contra ele. Aí Cati. O flerte depois o caso, a ligação suficiente que galga
esse nível, está agora acima de toda a hesitação do homem, ele está em
suas mãos, convenceu-o de uma vida anterior regrada, está perto de faze-
lo esquecer, com a doença de Joana, toda a miséria de depender de
prostituas para o que uma mulher de verdade pode suprir. O caso e
depois a cumplicidade, braços abertos cuja sombra na parede lembra
águia, abutre, e na escuridão a voz entre sussurros de gozo planeja o
futuro, a voz grave de George, acima dos provincianismos de Celba. Não
há dúvida de que ao lado de Cati realizará todas as suas ambições.

Há uma réstia da luz do dia, raios, por sobre o casario de onde se


destaca a casa branca com detalhes em tijolos vermelhos e agora Victor é
um ponto diante do portal confundindo-se com a sombra do muro. Tinha
ido discutir com George alguns títulos da nova coleção. Lembra que a vila
estava quase oculta na bruma, sente os pés doerem, é nisso que pensa:
imortalidade.

Era como se Victor projetasse toda a seqüência da vida futura, a


juventude, a meia-idade, espaço de entrega de um homem, e logo a
juventude novamente. Pernas pressionadas num beijo sob o fícus, qual o
encantamento desse lugar? e logo a treva oculta as partes ainda visíveis
do rosto dele. Bebemos muito talvez, e um só rosto úmido de orvalho, e
cabelos entrelaçados. Como vai, senhora?, perguntara ele ao entrar.
Muito bem, respondera ela, avaliando o seu sotaque, possivelmente da
região dos Bálcãs, quem irá se lembrar daquele horror daqui a vinte anos?
Obrigado, disse ele, era gentileza, Não, disse ela, era verdade. Ele é muito
talentoso. Uma nuvem passa enquanto Silvia pergunta se já tinha se
relacionado com uma mulher mais velha. Ele tem namorada. Ela sabe. E
sabe outras coisas sobre eles, sobre ele e Cati. O quê? Pergunte a seu
patrão. George? Existe outro? O que vocês sabem, sobre Cati? Homens
apaixonados são cegos. Estava insinuando? Afirmando. Se teria de ver
para crer, pois então. Oh não chore. Silvia não queria que ele se
magoasse mas não tinha escolha. Victor era um rapaz tão correto, não
podia permitir que continuassem a enganá-lo assim. Deixe-me consolar
você.

Que consolo para semelhante dor?

Outro amor, talvez. O cheiro dela, esse perfume. Não. A morte,


somente a morte. Mórbido. Cálida a mão que a toca, sabe das coisas, não
fale assim, não pense mais nisso. Silvia. A tessitura da pele, ruído de
tecido e peso do tempo, já escureceu a luz do poste é quebrada no alto do
muro, o que resta se diluiu entre as folhagens, aí está o centro do decote,
joelhos que sentem a terra fria, por que ela fazia isso?

Precisava de uma razão? Pois bem. Se estivesse certo queria morrer


com ele. Quero um consolo também, disse ela. Victor tenta afastá-la.
Deixe-me em paz. Não. Morreriam satisfeitos. Ela fala sério? A casa de
George tem um quê de tétrico. Então é realmente isso que quer? Michele
esteve olhando pela fresta da cortina até esse momento e viu quando
Silvia se abaixou. Cheiro forte que anuncia aparição.

Victor se rende. Pede que ela continue. Assim. Eles não mereciam,
George e Cati não mereciam a dor de Victor. Não pare.

É uma noite limpa, linda, é uma Celba de paz que eles vêm pela
janela da pousada. Poucos minutos desde a saída da casa dos Lens. Era
um desejo verdadeiro e turvo que compreendia a idéia de consolo mais
que de satisfação e dificilmente poderia portanto satisfazer. O que são
afinal um para o outro? Mas com o efeito do corpo dela é abrasador,
enganam mesmo aquelas roupas escuras que usa. O inferno espreitava
quando dentro da bruma suave um portão rangendo se abriu. Eram
dedos finos e hábeis, de quem digitava bem, de doutora competente. Na
madrugada sombria agora a língua fria como o mar de Celba. Ele, triste
ainda e pelas revelações extenuado, sentiu o bloco esquecido forçando o
bolso, enquanto gemia. Súbito um outro barulho, uma porta. Se assusta.
Ao discernir os vizinhos de quarto se pergunta por que está assim
alterado, são apenas alguns minutos ainda, não mais que alguns minutos.
Gerard fora receber o Fundo de Garantia, viu quando subiram. Não sabia
como se sentir a respeito. Maquinal, à porta do apartamento. Chegou a
encostar o nó do dedo na madeira. Não houve uma batida.

Fiquemos assim, fiquemos aqui. Parece um bom lugar para o


pernoite. E estamos indo logo cedo para aquele outro balneário não
estamos? Hóspedes são todos iguais. Michele passa em frente ao hall e
segue seu caminho.

Caso prestassem atenção, perceberiam que a cidade estava mais


quieta do que costume na temporada. Caso se desligassem dos próprios
pensamentos e tivessem acompanhado os noticiários. Houve enchentes
nas províncias vizinhas, uma catástrofe. A cidade isolada, a cidade sem
vida em si mesma, que vive das cidades ao redor. Mas os sons são os
sons de sempre, a música dos cafés e o ruído dos geradores, bombas d´
água, pessoas, televisão, o que realmente não há é o som de rua, pneus
sobre a rodovia, e os ecos residuais que os motores deixam. Caso
tivessem prestado atenção, teriam percebido. Victor porém estava
totalmente absorto e Silvia não estava ali, como nunca está em lugar
nenhum, se parecia livre era justamente por isso. Literatura de terceira,
pensa Vitor, e a vida não acontece sem um monitor na frente dela. Vida
de que Cati transbordava. A lembrança dói. Cati, por quê? Ele a amava
tanto, tinha feito tudo por ela. Cati e George juntos, a união de seus
fracassos, a consumação do perdedor em todas as áreas. Mas nada
impede que você mantenha os planos de George, escreva as novelas,
erga o pólo, Silvia daria uma força, casar com Cati não é nada no projeto.
Ele se livra das ultimas resistências com horror. Todos irão se lembrar de
que era novembro, nem todos saberão que a causadora foi Cati, ninguém
mais ouvirá falar dela dentro em pouco. A cada rosto de Silvia, Victor vê a
seqüência do futuro próximo, que jamais a assustou, mas agora teme.
Mãos trêmulas, língua áspera, odores fortes sobre seu o corpo.

Nada inerente à sua fantasia, o corpo simulou passagens de vida


que o afetavam tanto, de modo que já não seria exagero dizer que o
pensamento e o comportamento se haviam desligado um do outro e os
dois de Victor. Silvia não sabia que um escritor podia ser assim. E ao longo
da noite, por causa dos tempos condenados a não vir, Victor pediu que ela
sentasse e levantasse, levantou-lhe os braços e segurou-lhe os pés,
mandou-a se mexer e parar de se mexer, e agora por favor deite-se.
Então ela lembrou-se de que não gostava de obedecer. Pare. Parece
patológico, doutora? Deu com a lua e a mulher nua consistia na rima mais
pobre, óbvia. Ah Cati, como a teria feito feliz, pensou ao ouvir a outra voz.
Está me machucando. Silvia só queria de novo estar sozinha, ansiou
desesperadamente a consciência de prazeres anteriores, o estar em
sossego, sem perturbação além do barulhinho do messenger, mas é
tarde demais, está mesmo machucando e não, não é o que ela estava
querendo, não mesmo, que pensamento vulgar, nada mais tem a ver com
o outro Victor, o idealizado, talvez verdadeiro, quem pode saber?

Quieta. O corpo dele desenvolverá novos e horrorosos odores.


Michele vira o bastante em casa para prever aquelas coisas e mais
viu ao segui-los; mas não a preparação da corda na árvore, o brilho da
lâmina. a sombra do braço. Alguém ouve o grito, mas melhor fingir que
não. Silêncio agora. O ônibus de São Braico. O silencio de novo.

Foi tenebroso, horrendo, bem que papai sempre desconfiou que


eram loucos.

No enterro, Michele saiu de moto no começo do sermão. O que


Gerard sente agora é quase uma concupiscência, deseja saber onde
Michele irá e encontrar a quem, é a primeira vez que acontece, que tem
ciúme dela. Entretanto, todos os gestos de Rose, todos os seus
movimentos na cama, cada expressão de alegria ou gozo, continham
atributos os mais vastos de pura imaginação, com o que a filha não pode
rivalizar, porque toda sua agitação real é suada e geralmente fora de
hora. Ainda assim, esse lampejo de uma dor amorosa que não chegou a
experimentar podia estar acenando com um descanso de realidade para a
fatiga da interminável quimera.

O sino havia tocado. Joana se levantou da cama, olhou-se no


espelho. Estava magérrima. Pálida, perdera muito cabelo. A maconha
controlava a intensidade mórbida da quimioterapia. A vontade de vomitar
chegou, súbita. Seu fornecedor, um jovem de 20 anos, havia sido preso,
estuprado na cadeia, e suicidara. A irmã de Joana, surpreendida fumando,
assustou-se e tentando fugir foi baleada. Mas, pensou Joana lavando a
boca, os olhos encharcados e vermelhos, tanto alivio haveria em tão
somente livrar-se dos efeitos colaterais em síndrome, a própria
abstinência, e quanto de melhora a quimioterapia de fato proporcionava?
Do líquido lacrimal insistente brotaram lágrimas de verdade, ao evocar o
fruto de seu ventre.

Leva a mão à gaveta, apanha o permanganato e se perde na


contemplação do vidrinho.

Sarah vai deixar a cidade em definitivo. Não é uma surpresa mas


bem poderia ficar. Tinha ganho muito dinheiro sem nunca precisar de um
dia de trabalho. E sem se prostituir naturalmente. Se é o que você está
pensando. Teve namorados, meninos ricos da cidade e amou de verdade
nativos como Eduardo. Vamos, disse ao motorista, estou um pouco
atrasada. Todos viram o táxi partir, pegar a rodovia. E quem a poderá
acusar? Não decerto um único habitante de Celba. Enquanto não chegar,
enquanto estiver no caminho, poderá pensar em destino ou no poder da
necessidade. Não crê que em São Braico será tão diferente. Tem pelo
menos três endereços. Sentirá saudades?, pensa Eduardo ao ver o táxi
sumindo. Sentirá saudades?, pensa Sarah vendo Eduardo ficar mais e
mais pequenino. Que jamais volte, pensa Keshia. Queria ter sido como
ela, pensa a senhora Lens. Não, não queria. Que bunda, pensa George,
que peitinhos... Talvez jamais volte a comer uma menina tão gostosa.

Depois daquele dia, Michele sentiu uma mudança estranha dentro de


si. Poderia pensar que se devesse à partida da amiga, com quem tanto
aprendera, às iniciações que partilharam, mas de repente um céu rosado,
ou os detalhes assombrosos do amanhecer remetiam-na às descrições
sutis, refinadas, de cenas diárias de uma vila de pescadores nos poemas
de Silvia.

Lera a obra, a pequena obra, os três livros com edição do autor,


parece que há em Celba algo que incita à formação de escritores, bem,
nada que se compare a seu pai, e Silvia não era de Celba embora vez em
quando estivesse por lá. Mas amara verdadeiramente o que aquela
mulher tinha a dizer sobre um mundo de noite de núpcias que se
prolongam além do jardim. O pacto suicida havia impressionado. Temeu
ficar na capela onde eram velados os corpos.

Ainda fascinado (talvez não como no primeiro dia) por seja lá o que
fosse que cercava a senhora Lens, algo não puramente físico mas que
existia por causa do corpo dela, onde está agora que contempla não mais
o ideal proibido mas a deficiência do próprio ideal, não comovente como
antes? Se a inspiração depende do que é material, a inspiração, a mais
imaterial das coisas, tudo passa a ser questionado, num mundo ou no
outro. Você amou, é verdade, foi tocado daquela forma pela visão da
mulher, porque representava libertação da visão de mulheres – e agora o
que significa? Esse vazio. Vê com indiferença a graça (sim, ainda
perceptível) no olhar e nos modos da senhora Lens. Como se registrasse
essa beleza para um outro ser, que por acaso o habitasse; mas se desejos
do visível são carência de criatividade, o desejo do visível que buscava
Michele nos escritos de Silvia estão representados agora na própria
Michele, no desejo dela a que Gerard sucumbia.

Porque Gerard rendeu-se à realidade e agarrou-se a ela como numa


tábua de salvação. Para que sonhar como outrora, se não havia mais a
capacidade de sonhos de outrora, que compreendia a conformação com
deleites fictícios, ou reais apenas no ápice casual e sem verdade?
Penumbra matinal na casinha incensada, um bolo fumegante entre
céu e mar, manhã agradável que dá vontade de viver, de esquecer, de se
perder no peso frio do vento, viajar nas vozes dos vizinhos, esquecer estar
aqui, essa mão entre suas pernas, esse dedos, esse dedo, o lugar
desejado, o que há de diferente? Sim há alguma coisa diferente, o lugar
exato, quem diria pensava fosse um nerd, essa outra mão não deixa
duvida, é Michele convulsionada. Chega a ouvir o vento na superfície da
lagoa, como o epílogo de Bell Jarr.

O homem que foi bom com ela no princípio não haveria de ser
indiferente com o que se passava agora com Joana. Na verdade, achava
um pouco de exagero dela, pois sua aparência não estava tão má assim,
em noutra ocasião não a dispensaria assim, mas é melhor pagar logo esse
médico antes que se visse enredado numa situação constrangedora de
enfermidade. A julgar pela consulta, estava certo. Estranha terapia de
carícias e a ordem de um desnudamento incompreensível para leigos. Mal
sabe o doutor o quanto ela escolada em qualquer tipo de fantasia, porém
não assim, quando deposita o que resta de esperança de vida em mãos só
dispostas a usufruir de seu corpo como quaisquer outras.

George se afastou de Joana e Cati preparou sua investida definitiva.


Michele a odeia quando são apresentadas, ira-se contra o pai, traição, não
à sua mãe, que era nada, não à sua mãe, que tampouco se sentia traída.
Cada vez que trocava olhares com o genro, era como se conversassem
sobre o amor que sentiam mas também sente o arrefecimento, essa
nuvem estranha –a perda da sublimação entretanto está fazendo o
melhor, Rose retoma sua arte do ponto em que estagnara, aproveita a
tranqüilidade material, o conforto, não os desperdiça, é preciso fazer de
algo as violações. Ademais George é outro, a procura menos e não
signifique isso que aumente o numero o número de suas saídas em
direção à zona vermelha. Estão todos um pouco mudados. Esse desânimo
em Gerard, essa dispersão em Michele. O que ela está maquinando
agora? Mas sim sua arte ganhara espaço, conquista critica e público então
efetivamente sublimava Gerard. Ora, por outro lado, se foi o bastante
para a realização artística e profissional, não bastou para que, tendo
cumprido seu destino dentro da senhora Lens, perdesse ele aí uma
importância que pedia não menos que a própria vida.

George se afastou de Joana, mas depois de uma discussão com Cati


a procurou. Queria saber dela, como estavam as coisas, como ia o
tratamento.

A vila está luminosa depois de dois dias de chuva que não refreava o
entusiasmo dos turistas em final de temporada. A senhora Lens os escuta
indo para a praia, separados um grupo do outro por uma posição dos
ponteiros e um movimento de luz na janela. As cores nos quadros retém
novidade. O azul é mais frio, é aromático, o vermelho não tão quente faz
sonhar. O que se mostrou além da sonolência após o almoço não passou
de uma nuance mal desenvolvida (quando o amor parece repetir o enfado
dos desamores), não chega a supor um tempero especial na refeição que
com Gerard partilharia depois do sexo, a fantasia de tão real chega a doer
como doem os machucados quase curados em lugares do corpo
tendentes a batidas, e por isso jamais saram. Não podia evitar a visita da
filha com o marido e sonhar não é mais tão fácil e as vezes sequer
desejável. O que se mostrou além do estrépito noturno da rodovia recua
ante a noticia do bebê. Talvez traga, como a própria Michele um dia, um
pouco de alegria à sua existência silenciada. Quem sabe um neto
ajudasse também a suportar a tragédia de Silvia, em grande medida sua
tragédia também.

Celba como toda cidade turística não possuía um mercado de


trabalho relevante. Ele se desesperou. As ruas de Celba são até bem
iluminados. Deixar a vila. Entre os prédios como que planejado o vão para
a cordilheira. Andou sem rumo. Chega, bate, entra. Desabafou acerca do
desemprego com toda a volúpia da confissão que reprimia. Ela finalmente
fala. Não precisava se preocupar. Ela falaria com conhecidos. Enquanto
isso por que Gerard não trabalhava com ela, tipo um secretário? Era
exaustivo fazer as vezes de agente de si mesma. Está quase chorando.
Ficou resolvido assim.

Aquela Michele renovada, apaixonada, se desinteressa por ter visto


nele os reflexos da própria carência, seu amor por ele não vingara porque
percebe que ele precisa amar tanto quanto ser amado. Enfadou-se do
mundo porque de há muito se enfadara de si mesma. Preferia cenas
longínquas e superficiais. Que constrangimento. Gerard não tinha amor
próprio? Como poderia ela agora se excitar com alguém que trabalhava
para a sua mãe? Talvez de alguma forma já soubesse. Talvez previsse as
conseqüências daquela relação de trabalho. Quantas vezes ficariam
sozinhos sem nada ousarem? Talvez sentisse pena deles, ou inveja. Mas
não conhecia ou não admitia seus próprios sentimentos. A ultima vez que
o fizera teve de se confrontar com o pai.

No desejo dos olhos, Michele viu a rua. Já havia anoitecido. Dissera a


Gerard que iria à casa de Keshia. Ele sabia que não. O que não sabe é
que, como o tempo e o mar estivessem muito parecidos com o do dia em
que ali chegara, as ondas deslizavam direto para dentro das roupas dele,
com licença, por causa da noite, dos tempos, dos braços comuns às
poltronas, tudo se repetindo na janela de onde Keshia vê a amiga chegar,
e mais, os dedos que se insinuam agora são os dele, porque é ela agora
quem precisa de conforto, pois Eduardo foi atrás de Sarah, só pode ter
ido, e o sonho do estranho passou a ser tudo, mesmo quando não era
mais um estranho e dali não deveria advir mais nada. Com efeito, desde
sete horas o mar esteve trazendo de volta a parada de ônibus, e dedos
gentis de um rapaz bondoso e compassivo. A espuma na areia trazia
ainda em seus reflexos a realeza de ônibus, a música lenta que há tanto
tempo não é dançada, chocolates não mais comestíveis, o fim de uma era
de festinhas e o cancelamento de uma página do orkut. O que Michele
estava pretendendo ao dizer que vem para cá? Por que não veio mesmo?
Gerard continuava a brincar com o elástico e a respiração de ambos era
cada mais regozijante à medida em que as notas do piano da sala
aumentavam também.

Quando Keshia foi para o seu quarto e se sentou na cama, as


memórias que a esperavam na tela era de tal sorte poderosas que ela
precisou digitar quase 50 páginas em espaço dois de processador de
texto, como se outra coisa não fizesse que transcrever com rigor coisas
que lhe eram ditadas.

A alameda sombria parece sacudida pelo terral, esvoaçam os cabelos


de Michele. Seu ambiente. Aperta os olhos. Está escuro, não lembra dessa
árvore. A cidade está crescendo, são tantos prediozinhos em construção.
O barulho do mar. O mar. Crespo, marrom. E como não visse a luz,
indagou dela pela jovem de todos conhecida desde criança. Os que a
revêem, Oh como cresceu. Os amigos de George bebem e tocam os copos
num brinde à filha que acaba de passar. Aquela menina com quem os
sonhos passaram a ser constantes impregnava sua alma. Nada que uma
prostituta, por jovem que fosse, pudesse dar jeito. Casada, acabou. Então
por quê? Os postes se acendem no som surdo e a luz desenha as
anfractuosidades no shortinho. Ah mas com uma filha dessas, tinha
mesmo de ser... George. Sai do prédio do hotel. Michele. Sufocação e
espanto. Não podia estar ali. Mas como se ela sabia que ele freqüentava
aqueles lugares e mulheres? Não fora uma boa idéia mas já que
aconteceu, que está aqui, determinada entra por onde o pai saiu. Enfim
irá saber o que ele. Joana. Agora a verdade. E o que Michele esperava?
Que ele fosse fiel a uma mulher que ama outro homem?

Quando uma palavra cala dentro dela, Oh meu Deus, supôs que não
ia suportar, que péssima hora para passar mal, mas era um luxo a que
não podia se dar, ter um troço em tal momento, então deixa pra lá, pensa
no dinheiro que precisava tirar do caixa eletrônico. E soube enfim que,
quando a noite houvesse descido, estaria tudo terminado, ou quase. Não
parava de pensar na criança. Um filho, pensava; um filho. Alguém mais
para ignorar o sentido da vida, para buscar o inalcançável e perguntar
inutilmente. Pensou como se sentiria acerca de tudo aquilo quando na
manhã seguinte acordasse. Até porque perplexa esteve sentada na
cadeira do quarto em absoluto desconforto que agora cobrava seu preço
em câimbra. Gerard? O marido que não a incomodava. Então por isso.
Que amasse sua mãe, os homens são assim mesmo, ela o pode admitir,
argumentou consigo mesma. Mas sua mãe corresponder aquele
sentimento sujo, era impossível. E como Joana, uma puta vulgar, seria a
escolhida para a confissão? Nessas paredes sujas, nesse lugar infecto.
Viajou então pela profundeza de seus sentimentos e em todos viu sexo e
morte. De súbito a vida subiu a tona. Ei-la ali, mulher perante mulher,
refulge de vida enquanto a escuta. Jamais esteve entre semelhantes
segredos, nunca lhe pareceram atraentes. Eis a vida de que se nutre o
tempo. Eis a vida. Foi então que derramou a primeira lágrima.
O mar. As ilhas ao longe. Um barco. Pescadores que voltam, turistas
que deixam a praia. Ali nas pedras mais alguns. Batem fotos. Um tira fotos
do barco. Não vê a hora de fazer um álbum na internet. O movimento é
continuo mas ainda lento. Muitos comentam. Quando chegar a alta
temporada. É só um comentário, não uma profecia. Todavia há um certo
respeito religioso, um solene silêncio dos que escutam. Então pensam. O
quanto será bom, o quanto será revigorante, o quanto de sexo se poderá
ter para compensar um ano enfadonho. A pousada. Os sonhos ficam na
entrada, toda a vontade se reduz agora a um banho quente, tirar esse sal,
comer alguma coisa.

Num entardecer assim agradável Eduardo não costuma parar para


pensar com que roupa sairá, simplesmente pega as sandálias e veste uma
camisa colorida; mas estava atipicamente cuidadoso, demorou-se até
diante do espelho no penteado e algum efeito de fato foi provocado, pois
ouviu uma e outra moça comentar sobre seu porte na rua. Quem sabe
mais atento, apenas. Que bom se Keshia percebesse algo assim, uma
mudança, deu por si com semelhante desejo sequer ligado a sexo, porque
depois de um tempo amante de Sarah um rapaz precisa mesmo é de um
pouco de sossego. Melhor agora pensar de um modo prático, numa forma
de sustento, em não mais depender dos pais e antes poder sustentar uma
mulher. E que mulherzinha adorável Keshia daria. Por ela valeria a pena
deixar de lado a idéia de ir embora, valeria a pena voltar, terá ela sentido
sua falta?

Será isso uma decepção? Keshia descobrira essa coisa de amor da


pior forma. Não haveria uma outra? Quando a insistência da imagem de
Eduardo com Sarah passou a habitar seus dias e transformar noites em
insônia, pediu à mãe que a deixasse viajar para a casa da avó. O quarto
que a senhora mantinha ali para a neta, um lugar quase santo para as
duas, possuía paredes de pureza tal que acalmava e inspirava, como se
aquele efeito de água nas paredes matinais fosse de algum modo
entorpecente. E após três ou quatro dessas doses noturnas sentiu-se
refeita para voltar. Mas a vida não pode ser assim simplificada, estar-se
apto, não estar-se. Há toda uma simbiose entre sonhos e realidade de que
não se pode escapar pelo maniqueísmo compactado em uma só verdade.
Porque também é verdade que Celba não subsiste apenas da luz, mas ao
contrário, em muito da obscuridade.

Há um rosto à janela, e aqui está ele de novo. Seria fácil para as


pessoas a julgarem, hipócritas. Queria apenas oferecer um consolo que
está além dela. Sua agitação torna-se movimento. Nem se sente gordinha.
Gostaria de perguntar a Michele se ela acreditava em amor à primeira
vista, mas a Michele a quem poderia fazer tais questionamentos já não
existia para ela. Nas loucuras possíveis de se fazer por amor, nem
precisava perguntar, naturalmente a resposta da amiga seria sim, junto a
um sorriso ambíguo e uma rápida mudança de assunto. Esse Gerard é
uma gracinha e muito fofo. Sua letra não acompanha a idade, continua
infantil como ela própria. Deverá se desculpar com alguém por uma certa
dose de perversidade característica de tudo o que é infantil? Benditas as
criancinhas na malícia, mas seja maduro o modo de pensar. Por que Sarah
não deveria ser para Eduardo o que esse sonho fora para ela, o que
Gerard quase. Em que medida foram sonhos? Fecha o caderno e o coloca
sob a lista telefônica. Estranho não sentir qualquer emoção ao ver aquele
que fora a causa de tudo. Por que não me deixou guarda-lo intacto na
memória, bem como o que julguei fosse amor?

– Oi Eduardo. Entre. Mas não diga que esteve aqui na frente de Dona
Rose, ela pensa que Michele vai dormir aqui hoje.

Mas que ele por favor apenas esperasse um instantinho que ela ia se
trocar.
Eduardo sorriu imaginando coisas.

Dessa forma, quando estava com aquele vestido, Keshia regressava


a um sentimento que ignorava todas a sensatez. Quando dava por si,
sentia-se completamente feliz, sem o respaldo de qualquer das
circunstâncias de sua vida. Flor perfeita, perfeitamente efêmera. Se
imperfeição havia naquele momento era sua própria perfeição, a saber, o
fato de que toda perfeição e felicidade são transitórias. Não haverá
portanto um homem como Gerard, ou um rapaz como Eduardo, mas como
um sopro de vida, todas as coisas estarão restauradas e se estabelecerá a
paz do amor e da realização do sonho de um lar, aquecendo seu corpo
com uma luz inefável, sempre que ela estiver com aquele vestido azul.

Com súbita piedade, Joana encarou Michele. O vento levanta a


cortina e surgem as luzes e os efeitos das sombras. O anoitecer de
novembro em Celba. O sino da igreja. Sela sibilino a hora e o
desconhecido entretom na voz da prostituta. Mas por quê? O que as
distingue? Não sou melhor que ela.

Só então se deu conta de que o amor por George a transformara,


mais até do que a perspectiva da morte, porque essa é a verdadeira
causa de mudança no universo onde nada se cria – não a consciência da
morte mas a consciência da vida que se acrescerá eventualmente da
morte. Mudara, em proporção tão imensa quanto pequenos eram os
fatores que a mudaram, num processo análogo ao da ausência e
reencontro: o milagre só é espantoso para quem não o acompanhou por
meio da companhia cotidiana. Os olhares se sustentaram até Michele se
cansar e baixar o seu. Pois se mal se sustentava nas pernas... A amante
com Aids, o pai vindo atender o ultimo pedido, que cuidasse do filho
quando ela partisse. Mas o senhor Lens se recusou a crer que estivesse
mesmo grávida e, se estivesse, que era ele o pai. Enquanto você me
manteve, eu não tinha outros, insistira inutilmente. Por que teria?

Foi assim mesmo. Nem tentou chantagear meu pai.

Cheia de ímpetos de decoro e decência, Michele se ofereceu para


cuidar do irmãozinho. Poderia adota-lo, se Gerard assim o quisesse.
Cuidariam da pobre criança, condenada como sua mãe.

A senhora Lens deveria suspeitar...

Ela estacou, colocou os óculos e leu o bilhete da filha. O relógio em


seu pulso deu a hora cheia. Do rádio, a música enchia o ambiente entre as
paredes gelo de sua sala de estar cheirando a pinho. Era um momento
especial em sua vida. Quis que fosse. O sangue corria quente. A
pequenina Michele espera que a colher seja levada à sua boca.

Acorreu também a imagem de George, dez anos menos, segurança


financeira, sem defeitos graves... E no começo me excitava tanto... —
chora a senhora Lens no ombro de sua mãe, dias antes de a senhora
Ponce morrer. “A vida não é só sexo minha filha”. Agora ela sabia. Que o
amor não deve ser um lugar menos de sobressaltos eróticos, um lugar de
paz, porto seguro.

Quando George ainda subsistia de escrever estórias pornográficas,


era gentil no trato íntimo; depois de realizado financeiramente, tornou-se
pornográfico, perdeu qualquer resquício de sensibilidade. A senhora Lens
passou de si a lembrança. O calor da tarde percorria seu corpo. Pensou
em Gerard, na tolerância que tinha para com Michele, em sua gentileza,
na capacidade que tinha para ouvir, embora ele não a amasse, ou não a
amasse de modo especial, com o fervor com que amava a senhora Lens.
Onde estará Michele realmente?
Michele estava na praia. Era aonde sempre ia quando estava triste.

O crepúsculo introduz a noite e nova madrugada aos ventiladores se


propõe. A aragem vespertina desliza e ondula o tecido leve da blusa. Que
anda fazendo uma jovem tão doce, com esse estremecimento de
bondade, como uma criatura da grama que arde na canícula e sobre si
deixa que pise o infinito vermelho derramado sobre cinza, como o desejo
– um meio de expor as coisas, de dispor os pensamentos, estudo de coxas
sobre poética e extenuada forma. O desconhecido se dirigiu a Michele
com sussurros obscenos e súplicas ávidas. Em silêncio, Michele se deixa
apalpar. O estranho a leva para trás do parque de diversões e agora
mostrar-lhe-á, porque ela quer que ele mostre, pensará a ter forçado – o
destino do homem, a sina do macho, a satisfação de que precisam.

À idéia se juntou o elemento de sonho e um ingrediente de tema na


tela se arranjou. O rosto de Gerard, teimosamente oculto pelas nuances
de doze, como a indicar santidade, era o rosto da própria senhora Lens. O
caminho da arte mercantilizada, inutilmente o abominava, porque
necessitava de independência financeira tanto quanto se expressar. O
rosto da senhora Lens oculto no de Gerard alinhou então rugas de
expressão e um olhar desolado passeando pelos seus dilemas de menina.
As indagações que fazia Michele, também a senhora Lens as fazia, e —
como é mesmo que se costuma dizer? —

Onde errara?
De tudo o que poderia ser atribuído a Michele ninguém pensaria na
capacidade do gesto generoso após o qual saiu pela orla em final de
temporada andando contra o vento vespertino. À perda do amor de
Gerard que julgava uma posse análoga à sua casa, roupas e carro, seguiu-
se um despojamento estranho. Calor. Sofrem as plantas nos jardins,
definham como enfermos terminais. Suam as pessoas que não podem
estar na praia e todos reclamam assim como na época do frio se
queixariam igualmente. As bicicletas derrapam nos areais
sobrecarregando os rolamentos traseiros, que muitas vezes não resistem,
fazendo das oficinas lugares sempre cheios. Até porque o calor torna os
pneus muito mais sensíveis, explicou o mecânico à turista. Lembrou então
Michele de dias semelhantes de sua infância — aquele em especial
quando George bateu na senhora Lens enquanto as flores definhavam sob
o sol implacável e deslumbrante. Uma semana depois, chove depois de
meses e Michele presencia, como voltasse o pai de uns dias fora,
escondida, pela fresta da porta, as lágrimas de George, ajoelhado diante
da senhora Lens, pedindo que o perdoasse, que ele jamais faria aquilo
novamente. Chorou tanto que foi até consolado por sua vitima. O monte,
coberto pelas nuvens, deixara de reinar absoluto, como houvesse a
paisagem se despido O curso do rio retomou volume e corria pelo lado
leste da cordilheira.

Naquela noite, isso Michele não sabia com certeza mas podia
imaginar, George possuiu a senhora Lens e lhe disse palavras de amor,
prometeu mudar e ser um bom marido, fora a bebida, a maldita bebida...
A senhora Lens fez que acreditou e na verdade gostaria de acreditar, mas
a bebida não modifica a essência das pessoas.

Após ter sumido um tempo enorme, voltou a ser ouvido o barulho do


mar. Ao sul da foz, onde antigamente traficavam escravos, negocia-se
cocaína em casas humildes. Quando acorda pela manha, há silencio na
casa. Michele, menina de seus oito anos, saiu com seu cão pela praia,
esta mesma praia, mas não havia vento como agora, pois as manhas da
vila esqueciam-se no mar parado num espelho. A roupa ainda não tirada
dos varais tremulava, estalando como uma fogueira. Não pudera a
senhora Lens figurar de sublimação todo seu sentimento por Gerard. Tal a
limitação da vontade diante do destino básico. Malgrado suas teorias,
seus sonhos de uma arte melhor, à medida em que era empurrada para a
vida do genro, da qual abdicara ele os prazeres, ela mais se entregava,
qual um afogado que não tem mais forças para lutar contra a correnteza.
Não podia mais e tomou-se de diferente animo, fez-se madura como no
físico. Sua luminescência é a daqueles que se santificam. Pela primeira
vez desde que conheceu Gerard, passa a se preocupar com ele, com sua
saúde, com seus sentimentos, gostaria de saber como ele superava
aquela situação. Falava muito em Deus; estava Deus o fortalecendo? Um
primeiro pretexto, iria visita-los e, quando Michele os deixasse a sós, diria
as palavras.

Naquela tarde, prolixa, antes de se entregar à inspiração de Chagal,


brotara dela um desejo premente de pintar qualquer coisa sugerida pelos
Gestos Sujeitar-se-ia a qualquer coisa, menos à experiência banal de um
outro dia sem a satisfação de seu amor – um desejo ardente de pintar o
gesto definitivo da vida, que seria a pintura de um gesto seu na direção
de Gerard para ao mesmo o toque eterno de um único beijo.

Após ouvir da arrumadeira o recado da filha, passava com as


sandálias nas mãos pela a ansiedade no frio contato com a terra das ruas
da vila que, posto o sol no horizonte, refrescam-se da viração noturna.
Essa sensação debaixo da saia é absolutamente incomum, parece tão
mais confortável e adequado apenas para hoje, harmonizada com o
desejo não mais reprimido e madurada no isolamento que foi muito além
de seu limite.
Batidas na porta. Gerard se aproximou, como se não soubesse do
que se tratava. Quase em contato físico e já nas notas de olores,
desfaleciam. Refeito da surpresa, ele precisará de um repertório de
expedientes. Não se deixou trair exceto pelo brilho em seus olhos; mas a
senhora Lens não o podia ver, ofuscada que estava elo brilho de seus
próprios olhos. Parecia que ia chover de novo... O dia reflete nosso
espírito. A senhora Lens podia acreditar. Chove e a chuva nos penetra. O
calor acalora os ânimos. Então Michele não vem mais hoje? Gerard
acreditava que não, ela costumava dormir na casa de Keshia quando ia lá
à noite. Espero que não seja mesmo nada, disse a senhora Lens. Não era
nada. Talvez ela quisesse mostrar o cachorro. O cachorro? É, Michele
comprara um filhote

– A senhora quer ver?

Ela responde. Diz que está com pressa, deixou muitas tintas
expostas. Mas se Michele deixou recado, é provável que tenha mudado de
idéia, que volte logo. Ele aproveita. Por que ela não espera um pouco?
Realmente estou com pressa... A desculpa morreu na boca da senhora
Lens quando sentiu o pingo da chuva. Concedeu. Entrando, agradeceu as
flores que ele enviara no seu aniversário. Foi só uma lembrancinha, ele
disse, e ela e arrematou sem pensar, por alguma estranha associação de
idéias: Lembra do dia em que chegou? Como poderia esquecer? Eu vi a
senhora pela janela do ônibus, confessou. Uma flor, pensou, olhando os
cachos pendentes da primavera, que luziam. Uma flor — deixou escapar,
constrangido e realizado.

— As flores estão destinadas ao sacrifício por alguns momentos de


beleza... O que sequer é meu caso — disse a senhora Lens, enrubescendo.
— É sim, com todo o respeito.

Ela era linda.

Segundos antes,era um entardecer como todos. Tornara-se um


marco. Difícil entender o destino. Desnecessário entender. O largo de
Beethoven transcorria ao fundo. A senhora Lens era um adágio.

Havia qualquer coisa em seu rosto, assim serena e triste. Ela mesma
o sabia mas nunca pôde nunca constatar. Mas constatava que acabara de
mudar. A paz intromete-se nos nervos sem memória. Embora amasse
tanto Gerard, esse amor – uma força trazida intacta desde que a gerara,
por sua muita renúncia – carregava a alegria incomparável do desapego.
O amor saía de si e voltava para si mesmo, para sua fonte e ali, no
coração da senhora Lens, dissiparam-se as nuvens e ela pela primeira vez
na vida conseguia ver. Por terem assim coincidido afeto e circunstância,
as feições de Gerard eram as feições mesmas da vida, da liberdade, e
assim ela se tornara o que era de fato, atingira o fundo de si mesma. E
era a calma, o adágio, a simplicidade, ansiando uma outra parte para
partilhar esses bens adquiridos. Gerard a olhava sem esperar resposta.

—Obrigado, mas não... não sou bonita e não se fala mais nisso.

Chovia que nem se ouvia tão fininha era a chuva. Um véu de


retículas ancestrais. Por trás da senhora Lens, pela janela, entrava a noite.
Amava-a tanto que doía. Como Sílvia costumava a lhe recomendar na
época da internet, depositara seu segredo num poema. O caderno está
aberto perante a senhora Lens. Por causa dela desfalecera. Mas também
por ela extasiava. Procurava-a ainda e a encontra mesmo longe: no mar,
no céu, no monte, nas estrelas, nas outras, nas crianças, nos pássaros,
até no cruel vento vespertino a soprar em seus ouvidos aquela ausência.
Hum... quem era a bem aventurada musa? — perguntou a senhora Lens,
rezando.

Desde a primeira vez ele soube. Por meios enviesados, é verdade.


Que seria ela a sua vida e também por outro lado não seria. Porque
estavam proibidos um ao outro – eis a causa da tristeza e do amor –
teriam um ao outro para sempre, daquele modo tal, inexorável.

Por que ainda a olhava assim? Não era mais preciso, ela se
entregaria. Ainda bem, pensou ela, escovara os dentes e fizera bochecho
antes de sair.

Mas o tapa no genro negou tudo quando, ela sentada no sofá, ele
aproximou os lábios dos seus,.

Seu joelho direito apóia-se no outro, proibindo qualquer contato. Ele


leva a mão à face ferida não mais que seu amor próprio. Com que então
se enganara todos esses anos... Porque essa foi a reação não de uma
mulher apaixonada. E nunca acontecera com ele. Subitamente deixa que
quebre as ondas por tanto tempo cheias e enchendo, ondas que não
passavam.

Ela se inclinava-se até o encosto lateral quando percebeu um Gerard


desconhecido erguer-lhe a camiseta e segurar-lhe os seios. Os olhos dela
piscam de agradecimento, as menina dos olhos saltitam. Ela permanece
séria, como se educadamente o reprovasse, não se advinha em sua face
qualquer resquício de prazer. Saíram do quarteirão em seus instrumentos,
por um caminho muito antigo. Não dá para saber quem vai à frente ou se
estão juntos; quem visse diria apenas que ele está beijando um mamilo
enquanto tortura o outro entre os dedos. Pára apenas para que os olhos
se cruzem por um momento necessário, nem longo nem rápido,
silencioso, até que tudo tenha sido esclarecido. Então prossegue. A língua
encontra a rigidez que esperava sua ocasião, dá para ver o orifício, como
Michele um dia viu, e o frisson fremido ao redor. Quem visse diria que a
mão direita está entrando pela rara saia, leve e xadrezada, e que ela está
escorregando de lado para o tapete, nunca abandonada.

Dali, ela se dobra contra o sofá e a mão procura sua face e uma
outra tentativa se faz, menos afoita, e dessa vez o beijo aceito são as
folhas ao vento lá fora, e de novo o mar, sempre, e agora o céu. O calor
dos universos estava no alento que descia pela garganta da senhora Lens.
Ela fechou os olhos e inclinou a cabeça. Mas conseguiu falar. Sou velha
pra você.

– Não conheço mulher mais jovem tão desejável.

– Pare... Sou mãe de...

– Não fale mais, senhora...

Eis o mundo, incline-se na mesa de centro para o alcançarmos. O


vidro reflete um rosto macio e impudico. O tecido da saia é tão leve, o
contato que a levanta pouco mais que um sopro. Um sax envolveu o
reflexo e um violão eterno substituiu o marulho. Joelhos firmes e coxas
retesadas. Gerard não imagina, prêmio imerecido, mais do paraíso nem
uma eternidade melhor. Tudo o que agora surge da calcinha lhe concede
lento e incessante ardor e o firmamento e as galáxias derramam-se em
sua boca em tépida polpa. À medida que ela se abaixa, aumenta a
devoção que a levou a se ajoelhar, face a face com a terra profunda a
absorver as nuvens sobre os montes para onde erguem seus olhos em
oração. Bruma e garoa sobre a árvore solitária.

Não importa o que faça ou como o faça, ela irá adorar e será aquilo
que ela desejou.

Boca e língua e mão, um puxãozinho que não pretende o que parece.


Confiados dedos passeiam ao redor dos tempos arrepiados, ali
encontrarão o necessário aconchego. Ecos de vozes imaculadas que se
repetem porque se aproximam derramam-se pela colina branca e
imensurável, lembram sons de uma esperança remota que ressurge e
insiste, atravessa os limites e procura, invade, feita perspicaz umidade
mais e mais arguta. Tão cedo, ela pressente, não deixarão de se fazer
ouvir. Ela está agradecendo a Deus. Mas por que não se conheceram
antes?

Quem sabe então fosse outra história, e nada do que sentir saudade
no final.

Pouco antes, quando vinha, subindo a ruela adorada, seus


pensamentos pairavam num jardim interdito. Olhe o recém-nascido. É
menina, linda, em sua batinha de algodão. Não espera que Michele não se
esqueça de lhe dar o seio na hora devida, confiança assim é própria
apenas das crianças. Caminhou pela trilha circular, agora entra por uma
porta natural de arbustos, aproxima-se com a intrepidez de um rio cheio
num mato denso, lugar de memórias e planos que atrevem a arrostar a
idade. A cada movimento do dedo o reflexo no vidro se transmuda como
se contempla-se o próprio prazer e a inesperada ventura, a cada roçar o
semblante imagina se os transportes provém de tecido, ou pele, ou lábio,
ou língua. Mas agora que Gerard se pôs adiante, os braços
inequivocamente a abraçam por trás, e ela silenciou por um átimo os
gemidos ao passarem à sua frente pessoas, postes e fios telegráficos,
como a visão da janela de um trem que começa a movimentar a
plataforma.

Os braços se erguem com o destino inevitável, os seios apontam a


direção, estava finalmente voltando para casa. Estamos assumindo nossa
sina, poderiam ter dito; dure enquanto dure, somos eternos.
Esse perfil do rosto quase mostra um sorriso, esse perfil do seio não
confessa a idade, o mamilo é a ponta de um de seus pincéis novos.
Corpos femininos são com facilidade conduzidos. Um aperto másculo, ela
não chegara a imaginar essa parte. Vira-se. Ah. Sobe insonháveis alturas;
o frio do vidro da mesa também é sensual; não sei que horas chegarei em
casa. Avisou Sarita? Gostaria de ver o rosto de Gerard agora. Ele precisa
abrir-lhe as pernas um pouco mais, precisa afastar só um tantinho dessa
renda, nem precisará usar as mãos. Ela gostou do tom desse esmalte. Ali
está uma parte de seu rosto. Amor... Ele parece realmente não ligar que a
calcinha não seja nova, na verdade é bem surrada. Mas ela se lembra
quando comprou, se está assim usada é justamente porque a adora. Sim,
um homem especial.

Está calma agora. Um vento de início de noite acaricia também o


corpo exausto. O amor físico se apropria gradualmente de todas as suas
forças, restam poucos espaços para o que não seja desejo. Gerard a
aproxima de si, aí está, inteiro, o seu rosto, não por muito tempo, pelo
menos agora, agora a desliza pela mesa como se fosse ela os dois
ponteiros de um relógio, dez para as quatro em relação ao sofá. Ergue-a
para si novamente de costas, junta os corpos, e assim a mão está livre
novamente para entrar, dessa vez por cima, e os dedos, ah, ah, amor,
onde você estava que não te conheci aos trinta anos? – porque ela se
casara com essa idade – e é possível beijar assim, sofregamente dessa
vez, não apenas o cumprimento, a permissão da vez anterior. Ah! Lá
estão eles, perdidos ou salvos (nesse momento não é possível saber),
usufruindo das velozes carícias, ajoelhados um em cada nível do mesmo
altar dos fluidos e fricções. Ah, amor, então não foi inútil toda dor e
desesperança, porque quando do chão você abre assim as minhas pernas,
uma de cada lado, e minhas costas recosta em teu peito, meu corpo
pousa no teu calor e os prados se estendem pela manhã que rapidamente
nasce, assim, em meio à algazarra dos pássaros e o cântico das cigarras,
como na noite em que te pressenti, em que de algum modo previ a
libertação e a paz final. Ah, amor, meu amor. Assim.

Nunca antes. E todavia familiar. A gatinha desce da mesa, não de


todo. Exposta aos olhos ávidos, ronrona, retém o calor da língua na
própria umidade, lugares desde a antiguidade sagrados. Então ele trocou
de instrumento e timbrou o badalo que há bem pouco silenciara, se na
escuridão nascida isso não são tentáculos, o quê? Ele segurou o pulso que
concedeu com uma agradável sensação de imobilidade sobre o sofá.
Gostoso. A lua jamais iluminará assim a escuridão de Celba novamente.

Uma das pedras no peito banhada pelo mar; do outro lado, o monte
coberto pelas nuvens ralas – ondas que se agitam em malha.

As unhas dela estão pintadas de um rosa escuro quase frutífero; o


espaço entre o pescoço e o ombro descai à passagem do olhar. Depressa
será um detalhe esquecido, substituído por outros sinais. É belo porém
nesse átimo, como parte da composição de uma vida que se entrega,
para a qual é possível crer que se está predestinado. Os beijos correm ao
longo do colo. Descem um antigo caminho e todavia parece um caminho
novo, como costumam ser as coisas cíclicas. O desejo é a sina dos seres
humanos, é como a chuva, que a terra só por um pouco de tempo
absorve. Não há maneira de discernir paixão e amor, exceto depois que a
paixão houver sido satisfeita; como nunca se chega nesse ponto, importa
que a perna esquerda da senhora Lens se deixe cair no tapete, abrindo-a
mais a essa perfeita erosão de qualquer vontade contrária à mão
arraigada entre os densos pentelhos e o tênue tecido. Ela está rindo ou
chorando?

Que palavras são essas? Deixe que ele as entenda com sua boca e
interprete com sua língua. Quatro dedos dentro e o polegar por fora da
calcinha. Ele precisa antes que ela, e não ele. Sente-se mais que amada,
idolatrada quase. É quase impossível imaginar como quem pode desfrutar
da rigidez de Michele se interessaria por sua mãe de modo tal. Mais tarde
ele contará de seu ciúme de George e definitivamente ela não poderá
entender. A primeira vez que Michele, recém nascida, buscara o seio da
mãe, encontrou dificuldades. Era de manhã e, olhando a menina, pensou
que era feliz. Seus cabelos eram como fogo na colina. Ah se ele não se
demorasse tanto assim... Todavia, a idéia era precisamente essa.

Agora quer que ela levante? Que ponha a perna sobre a mesa? Que
grite assim e se transtorne a esse ponto? Não, nunca poderia imaginar, o
amor é um tipo de profecia. Dedos entrelaçados na textura azul, profunda
e terrível, e o oceano e os caminhos incendiados de pôr-do-sol e o
tamarindeiro bem na frente da pousada, ali por onde outros adolescentes
usam todos os artifícios para serem notados e suas inquietações
acalmadas por um período curto e irritado e – ah – agora ele quase a pega
no colo pelo instante da mudança, ela ajuda com as palmas na serenidade
do carpete, e sim ela levantou e pôs a perna direita sobre o vidro da
mesa, ele pára um pouco como se estivesse diante da decisão mais
importante de um grande projeto. É noite. Ela permite, cora, evita olhar
para ele, porque tanto prazer tem de ser algo errado. Ele prefere não
passar ainda pelo portão e olhar ainda antes da mureta o pátio do recreio
e da morte.

Agora os cabelos pendem e balançam ao ritmo da respiração, o


perigo definitivamente passou, não importa o quanto seu gemido reclame
e queira ainda dizer que não, na verdade está agora apaziguada mesmo
antes, sente-se enfim à vontade no abismo.

Era uma saia nova, de tira elástica e ganchinho. Ao soltá-lo, romperá


o ultimo liame que os prende à vida anterior. O caminho havia se fechado
para trás. Então o desejo soprou mais forte, e tiveram de encará-lo,
desejo, sem mais sublimações. Sem mais representá-lo, como se faz
também com a dor. Alguém que durante toda a vida sofreu de enxaqueca
e sabe que não é o alarme de algo mais grave, quando ouve o diagnóstico
de tumor no cérebro surpreende-se ao reconhecer a mesma e banal dor
que outrora era apenas um sintoma nervoso. Agora não, a modelagem
alta no cós que antes disfarçava a silhueta que se avantaja, valorizando
os culotes, torna-se nada, sem função na cintura perdida, sem muito
sentido como as fibras muito brancas e finas abaixo, acima do corpo que
se deitara, do rosto alimentado.

Gerard a tudo reconhecia e era grato. A senhora Lens apóia-se,


ainda alcançada, bem no centro do sopro que alivia a ferida e atiça o fogo.
A mesa e os papéis, o caderno, o computador, tudo gira ao redor. Ela já
recostou-se e facilitou o que lhe foi possível para a língua incansável. Do
olimpo onde Gerard a colocara, ainda consegue surpreender. Tanta
sensualidade não deve conter o anjo. Crescem ainda as ondas. A lua
aparece por entre as nuvens. Fizeram o necessário, agora vem a melhor
parte — por que às vezes não chega, por que não pode durar? Tão
sobremodo simples! Mas o destino traçado pode ter modificações de
percurso, como esse entre as suas coxas, buscando-a nas partes sombrias
que a expõem tanto, mas não importa mais. O braço esquerdo atua como
gentil alavanca numa mulher submissa porque ainda insatisfeita. Segurou-
o pelo pescoço, comandando. Ditou o ritmo das coisas que devem
perdurar até o preciso momento. Mas não pode mais, e se solta. O sofá
oscila.

Começa a ser rompido o último liame.

Com tamanha bondade, puxando como quem entoa um canto. Essas


vozes acompanharão a música, essas mesmas que já gritaram e ainda
murmuram. Foi assim, as mãos que retiram o primeiro empecilho brincam
durante o trabalho, e isso se dará até o que estiver escondido, ardendo,
se revelar. A sala ampla está amplamente iluminada, a lâmpada é um sol
talvez num momento outrora impiedoso, não agora. A luz delineia
caminhos, as ladeiras que sobem e as que descem, as trilhas de terra
batida em arco. Essa subida em especial se beneficia de tanta luz, depois
uma descida próxima. Há alguém que ouça os sons da noite, os chilreios,
as pedras e as folhas? Essas moças que passam são nativas, esse carro é
o carro do dono da padaria. A rua está mais escura do que de costume.

Assim retorna um corpo ao nascimento, ela porém sequer imagina


ser criança de novo. Mas não faz a menor diferença porque está
perfeitamente acomodada a essa nova nudez. Talvez as coisas sejam um
pouco mais rudes do que poderia supor, a gentileza convive em Gerard
com uma determinação quase bruta ao levantar as pernas dela pelos
tornozelos. Que seja. Não irá agora tentar adaptar à realidade à sua
imaginação. Se é assim, então que ela assim seja, plenamente. A casa e
as horas se tornam referência, não pode mais mudar as coisas, como por
mais que batam as ondas não desfaçam as falésias, embora Gerard
acredite num poder assim, talvez o esteja comprovando ao agarrar as
solas dela, quase nos calcanhares, nas partes onde a pele é mais grossa e
a partir desse ângulo especificando o objetivo de que se trata.

Ela está falando entre os gemidos, e de resto seu olhar há algum


tempo se comunica, mas ele continuará a responder com essas ações que
trazem à vida um réptil adormecido, assim minha deusa, venha, recoste-
se em mim e tão somente usufrua. Os contornos são fugidios, as paredes
eternas, o assoalho de quando em vez estremece, ou não será talvez o
assoalho. Aqui há imagens interligadas de um filme desconexo e difícil
será conferir uma unidade porque o que marca não é a cronologia mas o
fragmento, não a idéia absoluta mas algum tipo de aproximação, como a
do rosto feminino abafado contra o revestimento do espaldar; e talvez não
seja mais possível dizer que um deles, gerados por aquela sala naqueles
momentos, seja possível ao outro outra vez.

Seja como for, partilham a terra que ser humano algum enfrenta de
peito aberto; passeiam pelos jardins com as suas histórias, sob o mesmo
céu com sonhos diferentes, caminham por semelhantes praias como se
estivessem expulsando todas as demais do vasto mundo. Ele de bocas,
tato, arte e orientações; ela junto à gavinha que, em suspenso, recolhe
ventos e chuva mas espera ainda a estação. Ele de conexões velozes
transportando as informações sem palavra, embora “amor, amor” esteja
gritando; ela dos elos, do balouçar das ramas submersas, das grandes
auréolas, da ponta túmida – sim, retiram do mundo todo excesso.

É agora a mesa onde seu amado come, é o arco do triunfo e do


domínio, do sabor e da vitória. É o perfeito instrumento e também a
música que ele toca. Os louros onde se deitam os vitoriosos e seu
merecido sono. Sou uma mulher perdida, encontrada agora. Tenho o
direito desse toque, desse beijo, tenho o direito desse joelho apoiado, da
palma fundamentada, desse quatro, da subversão de todas as coisas.

A senhora Lens ouviu o pássaro da noite quando se lembrou de


Gerard no dia do almoço do aniversário de Michele. Se eram dois pontos;
se o rosto que ela via agora, hesitando entre dizer algo e não dizer, esse
ultimo Gerard nascera do primeiro — o estranho do hotel e o amigo da
filha–, então, o ciclo perfeito se fechara. Num recuo, ele viu as mãos dela.
Deveria ter sabido que não se brinca com essas coisas impunemente.
Talvez pensasse nisso, se pensasse.

Ele beija o segredo manifesto e desfila os sentidos nos sítios de pele


assombrada. É ela, não a outra. Mas será justo? Rose, motivo de tudo, de
um amor, de uma arte, de um romance. Quanto a George, seria a
passagem necessária ou ainda era uma pessoa, um ser a quem se devia
respeito? Ou o contrário será usar de suas armas e lutar em sua guerra.
Mas estão ali, isso não é mais passível de ser repensado. Ali. Ah, pensou
ela, a vida poderia ser mais simples... Eis as mãos de uma dona-de-casa,
jamais deixou de ser – mesmo agora, tocada desse modo; casa que era,
de tão sua, seu prolongamento: sua habitação, seus sonhos, seu ser, tudo
passara pelas paredes de sua casa. Era do lar. Teria sido, ainda que não
fosse artista. Gostava de trabalhar, odiava não ter o que fazer. Ninguém
poderá agora dizer que foi por isso, por causa do ócio. Tudo começou
antes, por causa do trabalho. Ela precisa demais de seu trabalho, não
saberia viver de outra maneira. Quase estava se apaixonando por si
própria quando se apaixonou por Gerard.

E ele, sensível, faz com que ela própria, com a própria mão,
mantenha o mundo preparado, enquanto finalmente se despe de qualquer
ardil. Ela entende. Deixara-se cair nesse inesquecível carpete, sentada,
agora se ajoelha e não vacila, não se detém por falso ou verdadeiro
pudor. Chega afinal o seu momento. Ele merece. Merecemos. E
naturalmente se faltava algo para que o mar crescesse mais, ali está à
janela, cheio, pleno e de luares transpassado.

Deus meu, a senhora Lens realmente possui uma elegância secreta,


que solenidade empresta ao ato de sentar e apanhar alguma coisa!... O
rosto de Gerard agora é outro, na serenidade de apenas contemplar. Não
saberia dizer se foi destino ou a vontade que dobra o destino. Fantasiaram
a tal ponto, com a solenidade da terra em sua órbita? Imaginaram que se
amavam tanto? Para sempre lembrará que foi assim, depois de tamanha
espera, sentada assim sobre ele no sofá, abraçada assim, e dessa forma
enfim cravada em sua estrela e razão maior de despertar dia após dia
após aquele dia, apanhada nos quadris de sua extemporânea ousadia,
penetrada, acariciada e lambida, e lançada para o alto, e assim descia até
tombar como uma ponte que, atravessada e queimada, não deixará
caminho pára trás.

Braços dobrados e balanço uberoso, se inclina ela mais e treme e


parece chorar. É de alegria, ele acredita, não com a convicção que
deveria, mas com essa do próprio corpo, do vaivém persuadido, das mãos
convencidas que orlam de fogo os incansáveis quadris. Coberta, dizem na
roça, bem se lembra das férias de infância – coberta, aquecida, alagada,
luzente, derramando-se fora de si mesma, no ajustamento perfeito entre
dia e noite, entre treva e luz, derramando-se, como a manhã amanhã no
horizonte de que esse grito é prenúncio.

Depois de outro meandro de pernas e mais um giro de dorso,


seguido do beijo mais longo, agora é questão de tempo, do máximo de
tempo possível, ela espera.

No silencio refeito em marulho, resfolegando se santifica o mundo.


Um pelo outro sim, mas os ápices são sempre solitários.

Ao longo da rua reina a perfeita adequação de tudo. As casas, com


os vidros batidos e escuros e um recorte de janelas qual o de igrejas, cada
qual tem seu poste e relógio de energia. Uma sedã estacionado em frente.
Um pouco ao lado, o pedreiro logo montará em sua bicicleta por todo o
dia encostada na alvenaria mal-acabada. Irá descansar em frente à tv. O
vidro do relógio de luz no poste de Gerard gira com a velocidade de uma
geladeira esquecida aberta. Meu amor. O que será de nós?

O mar passou às longas ondas amanteigadas a quebrar miudinho na


areia com barulho semelhante ao murmúrio no diálogo de homens
educados, pausando entre as frases e silenciando à espera das replicas,
as vezes esticadas numa explicação, outras detidas em monossílabos. O
mundo aos olhos deles renasce. Desse orgasmo.
Assim estavam presentes na nuvem que passou com o frescor de
sua sombra sobre a casa seguindo para as ruas e agora que alcançou os
montes fez-se bruma numa face única em que não há juízo, nem vontade,
num plano em que pouco existe além do desejo vago de estar vivo.
Portanto todo o esquema de cores se transformou num momento suave e
sombrio, pensamentos humanos em aposentos humanos. Agora vou usar
essa nuança com mais freqüência, misturando o vermelho e o lilás talvez,
e agora Gerard ia ser mais comedido em seu julgamento das coisas não
estavam ali – os dois assim anoitecidos, não estava criada a situação que
pensavam impossível?

A senhora Lens, entre o constrangimento e a satisfação, pediu


licença e foi ao banheiro. Ouvia o vozerio dos pedreiros indo para as
tavernas e os pescadores saindo para o mar. Diante do espelho recompôs-
se para se adequar ao novo papel de sogra e amante. O sutiã não será
mais necessário, pois fazia parte de um milagre a que Gerard não era
sensível, porque para ele a senhora Lens ao natural era um prodígio maior
e mais generoso.

Quisera que dali ela não se movesse mais, a mais bela imagem que
se congela. O olhar distante encontra o alivio que alguns chamam
felicidade. Merkur Bay. O navio atracara no dia anterior. Quando um outro
navio atracar terá se consumado a esperança? Imerso no verde dos olhos,
Gerard batiza-se. O pijama possui um quê pictórico; fica melhor assim,
emprestado. Perderia no decorrer da vida aquele deslumbramento? O
coração dentro do peito batia bendito. De volta, sentada na beira da
cama, o pé esquerdo apóia-se sobre o assoalho. A senhora Lens se
permitiu espreguiçar. Vidros batidos, escuros. Um recorte de janelas qual
o de igrejas. Cada casa com seu poste e cada poste com seu relógio de
luz. Então conheceu a solidão, quando soube que jamais estaria só de
novo, o quanto fora sozinha.

Gerard viu-se de novo nos olhos da senhora Lens. Quase chorou ao


se ver.

A fantasia acabara. Tinha de ser assim. Ela se achava uma tonta,


nada significava para ele. Ele a achava uma santa, estaria sempre a seus
pés para adorar. Não seja tão teatral, disse ela.

O romance de Aleksander Tess parecia destinado a perturbar apenas


aquele número restrito de leitores que já se reconheciam na obra do
ancião; porém ele próprio sabia que isso nada era além da capacidade
desses mesmos leitores de imprimirem no texto um reflexão pessoal,
influenciada pelas entrelinhas da vida nos momentos da leitura. E se
alguém perguntava de onde tirou a idéia daquela protagonista, ele dizia
não saber responder, porque tudo o que conhecia da vida daquela a quem
chamara “senhora Lens” era o que ela própria se permitia contar nos
raros encontros entre eles. Mas Yuan Tess, cuja natureza menos discreta o
levou a se imiscuir em detalhes da vida de sua conhecida de Celba,
naqueles tempos após a morte de George, pôs em música grandes
trechos do livro (composições que terminaram por fazer o sucesso que o
romance jamais experimentou), imaginando que o amigo baseara sua
obra na mulher. Não é verdade, disse Aleksander, e não creio que esses
boatos tenham sequer um fundo de verdade. Mas o músico acreditava
que ele mentia para proteger sua Rose. E realmente muitas vezes os
comentários que o escritor fazia sobre determinado quadro da senhora
Lens deixavam-na exposta como se ele houvesse efetivamente
descoberto seus mais íntimos segredos.

O rumor no escritório de George Lens entrou pelos ouvidos de


Michele. Um estremecimento escrupuloso a sacudiu, seu coração
disparou. O que se deve pensar num momento assim? De repente, a
necessidade de fazer a coisa certa, que jamais a orientou. Estremeceu
novamente e ninguém a isso agora chamaria de escrúpulo. Esses
sentidos. Essa moral. Essa sinceridade. A auto incriminação de seu corpo
como que se servindo dela para um cerimonial punitivo cada vez mais
doloroso sempre que pensava no pai e agora mais que nunca,
eternamente. Se jamais seria de se negar a verdade, deixar de goza-la ou
se poupar dela, não seria agora. O que é isso, esse prazer súbito e
profético quanto ao arrependimento de si mesmo? Michele, a implacável.

Olhou na mesa a garrafa de uísque e um copo pela metade. Oi,


minha linda filhinha. Foi nesse olhar que percebeu a vida inteira mudada.
O que faz por aqui? Pediria testemunho médico. O próprio George pedira
a morte. Se a ética impediu o profissional, não a abnegação da filha.
Encarou-o. Aquele homem não merecia morte de mártir. Se imaginou órfã.
Difícil até de imaginar. Porque é fácil para a mãe de Keshia arrancar sons
tão melodiosos das teclas e fácil para sua mãe construir tão grandiosas
efígies, é antes aí que a naturalidade e a emoção vibram, não nos passos
naturais de uma filha que se aproxima da mesa de trabalho do pai. Rígida
dos pés à cabeça, abriu a gaveta. Pegou a arma sem uma palavra diante
do pai atônito.

Disparos.

Abraçados, Gerard e a senhora Lens sentiam o coração um do outro.

Dois dias depois, sob as orações do pastor, o corpo de George Lens


baixava à sepultura. O mar esticava-se em ondas amanteigadas a quebrar
miudinho na areia, diálogo de homens educados pausando entre as frases
e silenciando à espera da réplica, às vezes esticada numa explicação,
outras monossilábicas. Olhando um ao outro fixamente, deram-se as
mãos. A senhora Lens colocou a sua, pequenina, unhas cortadas rente,
nas palmas que Gerard em concha lhe oferecia. Assim veriam sua obra as
gerações futuras – a amante apaziguada. Pelos olhares e pelas mãos,
comunicavam-se as almas, faziam-se uma alma só. A senhora Lens dava a
Gerard toda a vida pelos olhos, para que ele a possuísse inteira e para
sempre, quando se soltassem. Gerard, disse a senhora Lens, onde estará
a minha filha?

Michele passou a noite sozinha, sentada perante o oceano. O reflexo


do sol na maré a surpreende. Entrará no carro e partirá sem destino. Na
estrada da vila, a letreiro de néon sem falhas ainda estava acesso,
embora já fosse manhã. As pessoas iam de lá para cá, andando pela
extensão da praia.

No aposento solitário a antemanhã prevê o que Keshia pode esperar


do dia. Está inteira naquele azul. Não fosse isso, para que haveria de se
levantar? A um tempo há a esperança que habitou o sonho e o
desencanto que desqualifica qualquer nova promessa. Como será então
esse dia? O que terá realmente mudado com todos os acontecimentos
recentes na cidadezinha? Então é assim azul o arrebol e não menos o
tecido que agora ela exibe ao mundo, ou a seu mundo. Seu avô sempre
dizia que era preciso referências, dedicar-se ao bem sem grandes
demonstrações exteriores, em silêncio, quando muito na eloqüência de
palavras escritas bem vividas, fosse com os animais domésticos, os mais
velhos, e sobretudo a parte mais difícil, com seus pares, no caso dela as
meninas e meninos de sua faixa etária. Levou a sério em azul o conselho.

Porque a noite no ônibus não fora a primeira assim, nem a


caracterização dos protagonistas. Tomara parte, uma parte relevante, no
entardecer daquele trem. Menina com problemas com a balança,
desprezada ou simplesmente ignorada pelos homens, de nada lhe valia a
inteligência, o interesse dos pais em faze-la aprender francês e espanhol,
se tudo era razão para que se enfurnasse em casa e não tivesse razões
para se levantar no dia seguinte. Vinha do médico, talvez fossem os
únicos momentos de auto-estima, porque embora com os motivos mais
torpes, a maioria dele acabava fazendo-a sentir-se bem, desejada. Foi
com esse intuito que vestiu naquele dia pela primeira vez o vestido azul.
Chega a rir ao se olhar no espelho. Seu avô descobrirá naquela noite os
medicamentos para emagrecer, ficará preocupado, chamará Keshia para
uma conversa séria a respeito de drogas, tentará leva-la a crer que pode
ser amada sem necessidade daquilo, mas ela já saberá que sim, não era
mais uma menina, chamou a atenção dos dois rapazes, claro que devia
ter algo de especial, e aqueles remédios sequer haviam sido tocados
naquele dia, nem mais seriam com regularidade, e foi a última caixa, por
causa do entardecer no trem, e se andara falhando na sua força de
vontade e na sua fé, encontrar o rapaz na noite do ônibus foi essencial
para que ela retomasse a vida de onde parou, daquela saída para o
médico.

Ele lembrará que era pura criancice no começo, num outro dia que
ela nem está sabendo. Ela parecia esgotada e foi isso que a princípio lhe
chamou a atenção. Era aquela menina, a amiga de Michele. Decerto a
melhor amiga, para que Michele não se sinta ameaçada. Mas agora,
dormindo ali na poltrona logo à frente, ela até tem seus atrativos. Sim,
como haveria de ser algo além de coisa idiota de criança? Chegar perto e
libertar o peitinho. Tão criança que ele nem conhecia um mamilo assim
tão de perto, e a proeminência desejável desse bico. Brincou ali e ele
cresceu mas ela realmente dormia. Sonhava também mas esse sonho
haveria se de perder no decorrer do dia seguinte. Soube isso, desenhar
uma outra liberdade, deixar à mostra os dois peitos, mas só para ele
mesmo, pois era um horário e percurso vazio. Seu corpo e seu sonho
responderam, mas ela própria só deu pela situação quando a voz
anunciou a estação. Foi rápida, mas já se introduzira nos momentos
anteriores num imaginário que depois ele próprio terá como pervertido. E
foram muitas viagens comuns, muitas referências, dias, horários. Mas
jamais deveria contar a ninguém. E Fantarelo não era nenhum primor de
discrição e boas idéias. Com outro envolvido ele perdera a pureza do
plano e quase a grandeza do gozo imaginado. Agora era tarde.

Ela já percebe com a mão que se encosta à parte de trás do vestido,


à parte mais constrangedora de sua anatomia, percebe que está viva, o
que sua própria mão, ao tentar uma defesa sem sentido, por alívio de
consciência, parece dizer que ela está triste, que não está acalorada, que
ouve as aves mesmo em meio ao ribombar ritmado dos trilhos, que
escuta até mesmo, enfim, seu próprio coração. Segurou a mão atrevida, é
certo, apenas para ter a noção da pele lisa nos dedos ágeis, olhou aquele
rosto com um algoritmo de terror na face, de um terror que até deveria,
mas de modo algum sentia. Uma após outra as casas passam à janela do
vagão, sua própria mão agora se apóia no vidro e subitamente ama
aqueles dedos encorpados. A mão que percorre o tecido não pára,
encontra no meio dela um local esperado, e desequilibrada, sabe Deus
por que razão, sua outra mão ainda a tenta expulsar, inutilmente, é claro,
ainda bem, inutilmente. Quem disse que ela estava ficando tão gorda?

As dobras do vestido justo se acrescentam e se sobrepõem, o sulco


demonstra sinais de umidade tão desconhecida quanto sua alegria. Sim,
sente esse perfume, parece reconhecível, e seja como for é amigo. Era
cetim, ou seria cambraia? seja o que for é confortável quando se amassa
e multiplica para exibi-la mais. Um momento que talvez nem esperasse,
sabe agora que precisaria haver. O volume encosta, se desenha na saia,
se aplica na calcinha, cresce com o movimento do vagão, consciente de
que se entranha nos murmúrios inaudíveis e na aura que ela jamais
esquecerá. É assim que o rosto de aproxima mais e dá pleno significado
aos movimentos da mão, quase a imortalidade.

Ela sabia que a ausência de um sutiã fora uma escolha ousada por
causa do médico, jamais imaginaria que seria tão funcional por causa do
deus. Com ele acompanha as horas que introduzirão os dedos no decote
que obediente apresentará o mamilo. Momentos autoritários, instantes
que vertem orgulho e se há vergonha é a de não ter precipitado algo
assim. Regozijar haveria de ser doído? Olhe essa paisagem, que ricto é
esse alheio à vontade de seus lábios? Por que endireitei o decote se eu
mesma também apertava a massa disforme e acolchoada do seio?

O ar que se respira nesse mundo é denso como o mistério mais


crepuscular. Qualquer desejo de vida será satisfeito porque jamais
retornará a apatia. Ele está perguntando alguma coisa nesse sussurro? E
o que responde esse meu meneio invernal de cabeça? Inverno gelado no
meneio, verão insuspeito no sussurro, dedos que vencem a gravidade,
coxas premidas pelo tempo, algures o castiçal pétreo, resistência ainda,
tola e histórica, gritos sufocados. Os olhos dele tem um quê inexorável
de bondade. Parece que vai falar, mas não, nem precisa. Resume-me
muito bem às mãos e aos olhos. Sim, naturalmente ele vai querer falar
com você, numa outra hora. Agora está ocupado, precisa erguer o
vestido, enfiar a mão por dentro da calcinha ante de abaixa-la. Que coxas
maravilhosas, terá pensado. Que bundinha perfeita. Mas para ir além aqui
não é adequado. Ele a guiou apenas ou a forçou a ir para o banheiro? (que
de resto tem também o ambiente básico que subitamente passara a
amar, a saber, o ritmo do trem). E ainda não tocara no segredo supremo,
ainda não chegara lá, mas nesse ritmo rapidamente chegará, e aqui há
privacidade para tanto, ainda que sem o alívio feliz e o feliz terror da
possibilidade de aparecer alguém, de estarem sendo observados! Mas
não eram visíveis antes e aqui não podem mais ser. Não há morte para os
mortos e a vida dos vivos é inelutável.

Meu Deus, porque insiste em resistir, em afastar os movimentos


paradisíacos, nem tanto pelo prazer físico, mas pela certeza de atração
que representavam... Bom que são assim insistentes, de qualquer modo
ela não terá como resistir por muito tempo e nem quer pensar em como
se pode dar algo assim num lugar público, porque o toalete não pode ficar
eternamente ocupado, e era da eternidade que precisava. As dobras de
seu vestido se acumulam não há mais o que subir. Tristezas despontam
em seu semblante falsificador que bem identifica a mudança de posição
que permite agora a mão por baixo e a língua por cima onde o decote
sucumbiu. |Ali ficaria eternamente, a cada minuto que passa sente mais
confiança no estranho, como se cada carícia fosse uma confidência, uma
palavra de ternura, a compreensão das sérias dores de uma
supostamente frívola preocupação coma a obesidade.

A cumplicidade num canto do vagão trocada pelo lavatório do


corredor, talvez ela no futuro mal se lembrasse da mudança, se de súbito
não surgisse o componente estranho em outras mãos que sucederam a
abertura da porta e a tomaram por detrás, nos mesmos seios burilados
pela língua divina junto à parede trêmula e tiquetaqueante. Temeu. Deixa
de haver beleza, deixa de haver intimidade. Quatro mãos que eram muito
menos que duas. Não há qualquer coisa lícita por mais que ela seja pura,
não há intuito além. Tudo se torna agora, esse tempo tão pavoroso. Aos
poucos o primeiro rapaz levanta e ela não tem tempo de saber para onde
foi, se saiu ou está num canto observando, e finalmente a finalidade é
tudo e por ser tudo o objetivo pleno se ausenta. Não há mais espaço para
sonho naquele cubículo onde tem de sentar e receber o rapaz
miseravelmente aparecido numa boca que regozijava em se preparar para
beijos apaixonados e a troca imaginada de fluidos do amor se transmuda
num átimo num torpe receptáculo do pérfido leite que não se esgota
como em seu desespero ela chega a imaginar. Ao contrário do deus
primeiro, esse demônio move sua cabeça com violência, não tem vestígio
de delicadeza. O primeiro gozo não interfere, como Michele algumas
vezes a ensinou. Há agora um volume torpe entre seus seios que força
para alto como se normalmente agasalhado estivesse, e apressando-se
loucamente verte uma segunda vez. Agora acabará, ela imagina, mas ele
orienta sua mão para que não pare nem permita. E a pedra ainda é dura e
a água mole e inútil. Ela desiste e continua, e retoma o nojo na boca, até
que mais uma vez sabe o preço de frutos fora da estação.

Saindo do banheiro, está livre, pensou. Terá muito que refletir


quando chegar em casa. Muito e mais do que agora, pois o primeiro rapaz
surge de novo e sem permitir que ela se componha a faz entrar na
primeira cabine. A tarde cai nos vales que correm à janela, as gotas
devem estar pingando das árvores no crepúsculo cheio desse sereno
leitoso que transborda. Ele já está com as calças abaixadas, não haverá
tempo para Keshia senão continuar com a troca com que há poucos
momentos seria uma agraciada, mas qual o quê, todos são rigorosamente
iguais. Pelo menos ainda permanece virgem, seja lá o valor que isso
tenha. Mas por Deus nem isso? É um sinal para que vire na poltrona, nem
voz para essa exigência deus tem mais? A serenidade de não ter mais
nada. Anda, vire, assim, sua idiota, quem manda ser romântica num
mundo desses, quem manda ser gorda? Fica de quatro, sua vaca, atenda
seu amo. Eia, vamos.

E assim se despede de uma vida, será isso ou a pálida e constante


depressão, assim a esperança em segundos se transtorna, se transforma
na existência que jamais deixou de ter – a esperança, esse eco de eras
remotas ou a lembrança de um sonho jamais sonhado de que se lembra
quando o dia está por demais alto e o sono é tudo o que somos. Mosquito,
tenha misericórdia... Mas se a morte traria o descanso esperado, consigo
está um bônus que não pedimos a esse provedor. Então, ela entrega de
novo todas as coisas ao vestido azul amarrotado.

Pequenos gestos são também feitos de sonhos, são também


esperança cuja substância não é a fuga. Conquanto não fosse
propriamente uma redenção, ela renasce quando ele lhe dá o lenço, a
vida se renova quando ele enfim fala e pede desculpas, não deveria ser
assim, mas esquecera o preservativo. Claro, ela não podia se enganar de
todo, de modo tão estúpido. Nem poderia dizer que ele simplesmente
mandara-a ficar de quatro. Não. Era normal. Estava se sentindo tão pronto
pela atuação de sua boca (e com isso ela podia até justificar a tripla
rudeza anterior, foi com que assim rápido aprendeu), tão pronto que fez
esse pedido, para gáudio dos dois.

No futuro, sua relação com Eduardo estaria sempre ligada àquele


dia, e de alguma forma toda sua vida e valores, e gostaria de pensar que
até mesmo Gerard e a senhora Lens tivessem se acertado por alguma
inspiração semelhante, decorrente da noite no ônibus quando ele
chegava. Pois após um dia marcante em nossas vidas, pensou, há sempre
uma bruma que não se dissipa com o correr dos dias, e ao longo deles irá
refazer o mundo dentro de nós e a nós mesmos dentro dele. Não é assim?
O que marca nossa vida não passa a ser um conceito universal do que é
marcante na vida das pessoas? E o que apenas foi marcante, sem maiores
desdobramentos, não se desdobra interminavelmente por toda a
humanidade?

Não voltou a ter alguém em sua vida. Se não estava sossegada,


pensando por exemplo em Michele, necessitava apenas ligar o
computador e escrever. De felicidade que se bastava assim, podia passar
muito tempo sem pensar nas coisas em que qualquer mulher costuma
pensar, e quando acontecia era como se saísse de si. Sua memória era
seu existir, dali desfiava e tecia, porque esse prazer não é negado a ser
humano algum, o dos recônditos. Tardes sem fim ali debaixo do pé de
tamarindo, envolvida nos cheiros de alusão da passagem de existências.
Depois a noite suave, repetida, banhada pelo rumor do mar. Agora o
universo chegava grácil, entrava em sua alma simples como uma
predisposição.

E então, para ter certeza de que valia a pena estar viva e consciente,
ponderando cada compreensão e cada vontade, procurava abstrair-se de
um efeito prático de suas conclusões. Eduardo, Michele, Gerard, de acordo
com os intuitos do momento, tanto quanto precisasse, entregavam-se ao
instante desejado com uma perfeita doação a que ela atendia protegida
por cortinas de névoa, no tempo adequado, sem se iludir. A realidade
pouco importava. Existia. Se ela demorasse mais ou menos sob a árvore,
se o tempo estivesse chuvoso, se houvesse o desejo de ver um filme no
dvd noturno ou um livro à lâmpada insone, então, aqueles seres de sua
memória se transformariam, sempre para bem, mesmo quando havia um
mal aparente. Os lugares e as pessoas à sua eternidade pessoal estavam
destinados. Keshia era criança, adolescente, idosa, era neta e avó, mais
raro filha, era boa e muito má, tudo com muita alegria e devoção, que de
nenhum habitante de Celba passavam despercebidas, embora não
soubessem a que atribuir. E foi assim recusando as oportunidades que se
apresentaram – que não a ousassem julgar – sabendo que um dia ou outro
não teria mais que se preocupar com sustento, o que infelizmente
aconteceu com aquela morte inevitável de seu avô e mãe e pai, que
simplesmente nunca cogitou. Agora vive só, de resto sempre. Quase
chegou à velhice real, não viu ninguém morrer mas em algum momento
soube da morte de todos. O que sabe é o que lembra e tudo lembra como
quer. Ainda vê a orla de Celba quando abre as páginas de seu diário. Está
enterrado aqui. 1906-2004. A única cronologia de que não se desligava.
Ele a escutou. Que havia mais de querer?

Epílogo

Quando põe o CD, ouve nitidamente os pardais. A música se


sobrepõe. O efeito é belo; causa estranhamento. Provoca um sorriso.
Estamos em março. Celba torna a se esvaziar.

A mulher está estendida sobre o sofá, muito magra, pálida, podia ver
o caminho das veias azuis. Abeirando-se da cama, Gerard sentou-se.
Murmurou o nome dele com o fio de voz que lhe restava. Por que o amor
deve morrer?

O dele jamais morrerá.

Deus, ela não consegue entender...

O quê?

– Seu amor.

Por que não a abandonou quando soube que ela...

Porque a amava com a mesma intensidade do primeiro dia, do


mesmo jeito que a amaria para sempre.

Como uma mulher pode ser amada assim e morrer? Eu não quero
morrer, diz. Quer estar para sempre com Gerard... Pediu que ele lhe
prometesse...

O que ela quiser.

Que à meia noite dos dias 31, quando estiverem festejando o ano
novo, à beira mar ele levante o pensamento para ela no momento da
passagem, mesmo que esteja com outra. Oh não, não é justo. Ele não
pode ter outra...

Com ou sem o contágio, já lhe dissera, ele não lhe sobreviverá muito
tempo.

É por demais piegas. Keshia realmente acha que sim e diz isso ao
avô. É irreal, disse mais, uma coisa assim, quero dizer, esse tipo de
declaração e de pacto. Fazia anos que esperava por aquele dia, quando
por fim recebeu o recado e foi visitá-lo. O senhor Aleksander olhou-a
compassivamente. As coisas tinham de ser desse modo. Só essa solene
intensidade de vida e de arte que os dias de hoje tornaram piegas,
inconcebível, permitiam não enlouquecer. Na verdade, ele nem precisaria
ter dito isso para a neta.

Ela estremece, quase chora. Que prazer! Não importam as mágoas e


as frustrações, pensou, os reveses da vida desaparecem aqui. Como vovô
captou o espírito de tudo... Não esquecerá jamais esse momento. É como
se subitamente abstraísse ela da própria vida, concentrando-a em vidas
que não chegara a viver exceto em seus pensamentos. Resta-lhe esperar
que esse fulgor de felicidade afete a superfície de suas tediosas águas
cotidianas. Porque também habitava a contragosto esse tempo, ela
deveria lhe sobreviver.

As feições de Gerard são de absoluta pureza, iluminam esse túnel


tenebroso, são o rosto de seu amor, a razão de sua vida, por que não se
conheceram antes?

Não teria sido maior o amor nem a felicidade que viveram.

A felicidade...

Ela pede que ele não a olhe dessa maneira. Que parta.

— Deixe-me numa clínica, com pessoas como eu.

— Ficarei.

Ah sim —diz ela — Fique...

Apertou-lhe as mãos.

Onde estavam?
Em casa.

As petúnias floriram?

No Natal. Estavam lindas. Brancas e lilases. O açafate lembra


estrelas violáceas.

Uma lástima que houvesse descoberto tão tarde que um jardim é tão
eficiente terapia.

Tarde. Nada significa. Lástima? Tampouco.

E os beijinhos?

No mesmo canteiro em que estão as boas-noites. Parecem uma


mesma espécie de flor.

Seria o “beijo de boa-noite”, a flor favorita de Proust...

Porque as flores comuns, pertencentes mais ao tempo do que ao


espaço, que as guarda apenas no piscar da florescência, são impressões
humanas sempre perfectíveis ao longo da fragilidade da vida que o amor,
a glória e o prazer registram em ávidos fulgores necessariamente
efêmeros, o que hoje dá alegria – e também o que a retira – se reduz a
uma vaga esperança de que se pode gloriar quem a consegue reter,
mesmo na raridade de uma flor. Gerard sorri.

E a caliópis?

É a bordadura amarela do quintal.

—Nossa casa...

—Nossa casa.

A senhora Rose Ponce fechou os olhos.

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