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~NESSENCIA,: ~ DA MATURIDADE © 4KRISHNAMURTI ICK A ESSENCIA DA MATURIDADE No mundo contemporéneo, observase que 0 homem, onde quer que se encontte, parece dominado pelo instinto do mal, pela sanha da violéncia. Dir- ~se-ia jd no existir amor no coracio humano, pois, nos dias de hoje, normalmente, o que nele predomi. na € 0 egofsmo ¢ o impulso & crueldade, Em regra, Jevam as criaturas uma vida superficial, vazia, gera- dora de desejos e anseios contraditérios, de cons- tante busca de sensacdes, ¢ isso: s6 acarreta ilusées, amarguras, conflitos, Evidentemente, a causa desse confuso e brutal estado em que vive a humanidade é ignorarem as pessoas sua propria indole, é por no haver autocompreensio. Tais consideragbes ocorrem-nos em face da pre- sente obra, tradugio das palestras proferidas por Jiddu Krishnamurti ‘na Europa no ano de 1967 ¢ que agora & oferecida ao piiblico ledor. _ Segundo esse psicélogo e pensador, a libertagio interior é para nés de grande relevancia ¢ constitui mesmo o maior problema do homem. E que, resol vido esse problema, todos os mais, procedentes dele, se tornatio de fécil solucio.’ Depois, a libertagio nos abre o amplo caminho da cordialidade e do amor, isso porque sé essa intima liberdade nos mostra o que, efetivamente, significa “amar”. Entio, atuando como seres livres, @ paz e a harmonia prevalecerio dentro de nés, e néo a solidio, 0 descontentamento, o tédio ou o temor, sentimentos que nos fazem ‘agressivos, invejosos, cheios de hostilidade. Daf porque salienta Krishnamurti, mais uma vez, a necessidade de uma radical transformacao na mentalidade de cada ser, na psique, de ordindtio condicionada, dado ser esse’ condicionamento 0 prin- cipal causador de nossos erros, frustragées ¢ des- venturas, A ESSENCIA DA MATURIDADE, tftulo des- te livro, consiste justamente na iluminagio mental, no conhecimento préprio. E autoconhecimento, por certo, encerra sabedoria. Porque é compreendendo a nds mesmos, tais como realmente somos ¢ nao como julgamos ser, que nos habilitamos a ver as coisas sem desfiguré-las, isto é, com simplicidade, sem preconceitos, com total isengio. Essa direta visio, essa percepcio imparcial ¢ objetiva de quanto se nos depara e nos rodeia, implica maturidade, discernimento, ¢ estes raros ‘atributos sio os que melhor nos orientam nas conjunturas da vida, po- dendo, conseguintemente, ttazer-nos a paz e 2 alme- jada: felicidade, A ESSENCIA DA MATURIDADE NUMEROSAS OBRAS DE JIDDU KRISHNAMURTI JA FORAM EDITADAS PELA LCK., E ENTRE ELAS AS SEGUINTES: A Limertagio pos ConpICctoNAMENTOS O Novo Ente Humano’ © Voo pa Acura Onve Esth a BumM-AvENTURANCA Como Viver Neste Munpo A Questio po Inpossiver A Luz que Nio sz Apaca A Ourra MarceM po CAMINHO ENcoNTRO coM 0 ETERNO O DesperTar pA SENSIBILIDADE Quer Esramos Buscanpo? Novo Aczsso A Vina Da Insatisragio A FELIctpaDE Ausrrdtia 2 Hotanpa — 1955 ‘A Busca (VvERs0S LivRES) ‘A Cancfo. va Viva (vERs0s LIVRES) . PELA EDITORA CULTRIX FORAM TAMBEM PUBLICADOS, POR INCUMBENCIA DA LCK., ENTRE OUTROS, OS LIVROS DE KRISHNAMURTI ABAIXO. MENCIONADOS: A Epucacio £ o Sicniricano pa Vina O Homem Livre A Moracio InTERIOR © DescopriMENto po AMOR Fora pa VIOLENCIA O Passo Dzcisivo A Suprema Rearizacio A Primera £ Uztima Liserpane Reruexdes Sopre a VIDA Comenrénios Sore 0 VIVER JIDDU KRISHNAMURTI A ESSENCIA DA MATURIDADE Tradugio de Huco Vetoso INSTITUICAO. CULTURAL KRISHNAMURTI Av. Pres. Vargas, 418, sala 1109 Rio. de Janeiro — Estado do Rio de Janeiro Tel. 253.6123 SUMARIO Violéncia ¢ Sofrimento A Ordem Interior Trés Problemas Fundamentais O Estar. $6 Mente Livre O Medo Compreensio Do Pensamento Porque Buscamos Novas Experiéncias O Descobrimento da Verdade O Problema da Libertagio A Arte de Observar Compreender o Inconsciente O Significado da Paz Autoconhecimento A Mudanga Indispensdvel 20 30 39 50 61 ray 88 99 110 125 137 147 158 169 179 CINCO PALESTRAS EM. PARIS VIOLENCIA E SOFRIMENTO (Paris — I) P exso que existem realmente dois problemas fun- damentais: a violéncia'e-o sofrimento, Se nao os resolvermos e transcendermos, todos os nossos esforgos, nossas constantes ba- talhas, ‘muito pouco significarao, Parecemos passar a maior parte da vida no campo das ideologias, das férmulas, dos conceitos, e por esse meio tentamos resolver estes dois problemas essen- ciais —.a violéncia e o sofrimento. Toda forma de conflito é violéncia — nfo s6 ‘0 conflito psicolégico, interior, mas também o conflito exterior, nas nossas relages com outros entes humanos, com a sociedade, .O sofri- mento parece-me constituir um dos mais ‘complexos e dificeis problemas; e”essa complexidade, justamente, requer que o con- sideremos de’ uma maneira muito simples. Todo problema com- plexo, principalmente um problema humano — e temos tantos deles! — deve, por certo, ser considerado com muita clareza e simplicidade, sem nenhum fundo ideolégico. De outro modo, traduzimos 0 que vemos em conformidade com nosso condicio- namento pessoal e peculiares idiossincrasias e intenges. Para_compreendermos estes dois problemas —- a violéncia e o sofrimento — to profundamente arraigados em nossa esséncia, nao devemos consider4-los de maneira puramente ver- bal ou intelectual. .O. intelecto_n3o_resolve_problema_nenhum. Poder explanar problemas — e qualquer pessoa inteligente € capaz disso — mas a explicacio, por mais erudita, por mais sutil que. seja,, nao representa _a realidade. De nada serve expli- car a um homem faminto as espléndidas iguarias existentes; isso para ele nfo vale nada. Mas,-se apreciarmos estas ques- t6es no intelectualmente, porém real ¢ totalmente, com elas 9 nos empenharmos a fundo e desenredarmos estes dois terriveis problemas que nos esto destruindo a mente, talvez entZo pos- samos passar além. Nés, entes humanos, aceitamos a violéncia e o sofrimento como norma da vida e, j4 que os aceitamos, tratamos de tirar deles o melhor proveito possivel. Rendemos_culto ao. sofrimento, idealizamo-lo e com ele vamos vivendo — como se faz no mundo cristéo. No mundo oriental traduzem-no de outras ma- neiras, sem tampouco encontrar-Ihe a solug’o. Como tenho dito, essa_violéncia, nés_a_herdamos do anima]: nossa agressi- vidade, nosso espirito de dominio, desejo de poder, ansia de preenchimento. Nossa estrutura cerebral, herdada do animal, é também produto da evolug&o e tem n&o s6 a fungo de pro- teger, mas também a de ser agressiva, violenta, de dominar, de pensar em termos de posigao, prestigio; disso bem sabeis. O sofrimento, a autocompaixdo, que também faz parte do sofrimento, a solidao, a total inexpressividade da vida, o tédio, a rotina, despojam a vida de toda finalidadee, por isso, tra- tamos de inventar uma finalidade; os inteléctuais criam uma -finalidade_ideolégica, de acordo com a qual procuramos viver. E, na impossibilidade de resolvermos esses problemas, reverte- mos ao passado; volvemos A juventude ou A cultura tradicional, conforme a raca, o pais, etc. Quanto mais urgente se torna o problema, tanto mais tratamos de fugir para uma certa expli- cacao ideolégica, relativa ao futuro; e nessa armadilha fica- mos aprisionados. Tanto no Oriente como no. Ocidente, obser- va-se a fuga para toda espécie de entretenimento — a igreja, o ‘futebol, o cinema, etc. A necessidade de ‘entretenimento assume todas as formas possiveis: visitar museus, conversar interminavelmente sobre musica, sobre os tltimos livros publi- cados, ou escrever sobre coisas passadas e mortas e enterradas, sem valor de espécie alguma. Ao que parece, s6 ha muito pouca gente verdadeiramente séria. Pela palavra “‘sério” entendo ter a capacidade de exami- nar _um_ problema_ati i vé-lo. Resolvé-lo, nao con- forme as inclinagdes pessoais ou o temperamento de cada um, ou sob ‘pressio do ambiente, porém deixando tudo isso de parte e,inyestigando até o fim a verdade relativa a uma dada ques- ldo. Essa seriedade parece um tanto rara. Para que possam ser resolvidos esses dois problemas fundamentais, a. violéncia e 0 sofrimento, temos de ser’ sérios é possuir também uma certa capacidade de_percebimento, de atenca0, porquanto ninguém 10 pode resolvé-los para nés, Evidentemente, nem as velhas reli- gides, nem organizacées bem planejadas e aperfeigoadas por uma certa autoridade ou sacerdote — nada, nem ninguém dessa categoria pode ajudar-nos; so coisas obviamente sem significa g&o alguma. Pode-se observar em todo o mundo que a chamada nova geraco est4 ‘atirando aos ventos todas essas futilidades. — igrejas, deuses, templos, rituais. Para o homem sério as autoridades perderam toda a importancia. & claro que nao tem sentido dependermos de qualquer espécie de autoridade quando. © mundo se acha em tal estado de confusdo e de aflicéo; prin- cipalmente da autoridade’ organizada num plano religioso, com as respectivas sangdes. No se pode confiar em ninguém, nem em Salvadores, nem em Mestres — em ninguém, inclusive este orador. E; apés termos rejeitado totalmente todos os livros, filosofias, santos, anarquistas, vémo-nos frente a frente com nés mesmos, tais como somos. Isto é um tanto assustador e desanimador: o nos vermos tais como somos realmente. Nao hf. filosofia, litera- a, .do ituais, capazes_de_pér fim a violéncia'e ao_s frimento, Precisamos reconhecer isso, antes de passarmos adiante. Quanto mais séria a pessoa e quanto mais urgente o problema, essa propria urgéncia recusa a autoridade que tao facilmente. aceitamos. Outro problema &: como examinar, como observar ‘a vio- léncia e o sofrimento, tais como em nés existem. Como dissemos, os entes humanos, individualmente, sio o produto da sociedade, da cultura em que vivem, e essa sociedade e cultura foram. construidas por cada um de nés. A sociedade é o produto dos entes humanos, e nés fazemos parte desse produto; eis a nossa situagdo. Estamos aprisionados na armadilha de nossas_incli- nagies, tend@ncias.e_prazeres pessoais, sendo. que tudo isso cons- titui_a estrutura social. Tendemos a considerar 0 individuo e a sociedade como duas coisas diferentes e, por conseguinte, per- guntar-se-4: Que valor tem um ente humano que se transfor- mou, em relagao A estrutura total da sociedade? Tal pergunta me parece absurda. Nao estamos considerando um dado individuo ou uma dada sociedade — francesa, inglesa ou outra — porém o problema humano geral. Nao estamos considerando o individuo em rela- Gao com a sociedade, nem a relagio da sociedade, do “coletivo”, com o individuo; estamos tratando da totalidade e nao de uma dada particularidade. 11 m08. le isa qu: vemos total- .Mente, quando vemos toda a sua estrutura e a respectiva signi- ' ficagio. Nao podemos perceber 0 padrao total da vida, o movi- mento total da vida, se apenas tomamos uma parte dela e nessa particularidade nos absorvemos. S6 quando vemos o mapa inteiro podemos saber onde estamos e escolher o caminho certo. SNés~estamos, pois, interessados na salvagio ou libertagfo indi- vidual (ou outra coisa que o individuo esteja procurando), porém, sim, estamos interessados no movimento total da vida, em compreender, em. seu todo, a corrente da existéncia; entao talvez possamos considerar de maneira completamente diferente os problemas individuais. f dificil em extremo ver ¢.compreen- der a totalidade; isso requer atengio. Nada se pode compreender intelectualmente; poderemos ouvir palavras, dar explicagées, descobrir causas, mas isso nado é compreensio. Na observagio de nés mesmos, a compreensio s6 pode verificar-se quando a mente, que inclui o cérebro, est4_totalmenhte_atenta.. Mas, uma pessoa _nfo est atenta, quando est4 a interpretar e a traduzir o que. vé em conformidade com: seu préprio fundo (background). J& deveis ter notado (sem déivida a maioria j& 0 notou) que, quando.a mente se acha de todo quieta — sem reclamar nada, sem fazer barulho, sem fragmentar o problema — quando est4 perfeitamente tranqiiila diante do problema. — j& deveis_ter_notado_que hd, ent3o, compreensiio, " Essa_mesnia compreensao_é a ago, a forca ou energia que nos. liberta do ema, Estamos, pois, empregando a palavra “compreen- nesse’ sentido, e nao no sentido de compreensfio intelectual _ ou_emocional. Essa compreens4o é propriamente uma negac’o do positive — pois “positivo” € 9 compreender_um problema um motivo: o propésito de fazer alguma coisa em relagao Dek. Ear seal, quando temos um problema, tendemos a preocupar-nos com ele, a fragmentd-lo, analisd-lo, achar uma férmula’ para resolvé-lo. E_o_pensamento, como se pode obser- var, 6 sempre reacio do “velho”; portanto, nunca é novo-e o problema, entretante, é sempre novo. Traduzimos_o novo, 9... __Problema, em _termos de pensamento, mas o pensamento é velho e, por conseguinte, positivo, no sentido de fazer alguma coisa em relagio ao problema. Q_pensamento_é a _reacio do_passado;. é meméria, expe- _atiéncia, conhecimento acumulado; ¢é “velho eos desafios sao: sempre novos —— se sao desafios. Desse fundo.de conhecimento, experiéncia, meméria, procede a reagio, na forma de pensa- mento; 0 pensamento vem sempre do passado e, tradiiz o desafio 12 ou_o problema nos _termos desse passadg. E o pensamento, ‘como se pode observar, produz, em relagao ao problema, uma reagdo positiva, ditada pelo passado.. 7 Esta visto, pois, que o pensamento nao representa a solu- go; mas isso no significa que nos devemos tornar “nebulosos”, vagos, distraidos ou mais. neuréticos.do que j& somos. Pelo contrério, quanto mais ateng’o prestamos — .atencio com: pleta_— a uma coisa, qualquer que ela seja, vé-se que nessa “Gtengao nfo h4 pensamento algum, no h4 pensar; no’ b4 nenhum centro a funcionar como pensamento. A compreensio fo tvacho, que ¢ a mesma coisa) se verifica sem a reagao do fundo de pensamento. Compreensio é agio imediata. Est4 mais ou menos claro isso, ou parece-vos abstrato de- mais? Espero no estejais interpretando 0 que se est4 dizendo como algum absurdo mistico.—- oriental! Vede! — se_desejo compreender uma crianga, tenho de observa-la, de prestar aten- G0 a ela. Observa-la, quando brinca, quando chora, quando se. comporta nial, quando faz qualquer coisa; observa-la, sim- plesmente, sem corrigi-la. Preciso compreendé-la; portanto, nao tenho preconceitos, nao tenho_padrdes_de_pensamento, relativos ao que é “bom” ¢ ao que é “mau”. Observo-a, somente; e nessa atengao vigilante, comego a compreender a natureza de sua atividade. & relativamente facil observar. dessa maneira a natu- reza, uma flor, por exemplo; a natureza no exige muito de nés. Observar uma coisa objetiva é bastante simples. Mas, observar 0 que se est4 passando interiormente, em nés, observar nossa’ violéncia, nosso sofrimento, com clara ateng%o, j4 nao téo simples. Tal atengdo, tal observacao, nega totalmente qual- quer espécie de inclinagio ou tendéncia pessoal ou de compul- séo por parte da sociedade; é como observar'o movimento de um rio. Sentado na margem do rio, podeis observar o seu fluir, tudo ver. Mas vés, que estais sentado na margem, e 0 movi- mento do rig, sois duas coisas diferentes; vés sois e 0 movimento do rio é a_coisa observada, Mas, quando estais dentro d’4gua — e nao sentado.na margem — fazeis parte desse' movimento -e nao hé observador -nenhum, Do mesmo modo, observai a violéncia e o sofrimento, nao como observador a observar uma coisa, porém sem espaco entre observador_¢ coisa_observada. Isso faz parte da investigagéo total, da me- ditag&o sobre a vida. ‘Como. j4 disse, nés entes humanos: somos violentos, e essa violéncia, herdada do animal, nés nunca a investigamos real- 13 mente porque temos o conceito da nfo violéncia; interessa-nos © conceito, a ideologia da nao violéncia — o que _deveria ser, © nfo o fato, o que realmente &. Permiti-me sugerir-vos ¢ que nao vos limiteis a ouvir palavras; palavras so palavras e no encer- ram muita significagio. Semanticamente, pode-se penetrar o significado das palavras, mas a palavra nao é a coisa, a_expli- caclo nfo é'0 fato — o_que é. Qualquer um estd sujeito.a cair na armadilha das palavras, a ficar, infinitamente, escutando 56 palavras. Palavras so cinzas, no tém significagio profunda. Mas, se vos observardes através da palavra, se vos observardes como realmente sois — nao agora, enquanto aqui estais, a ouvir uma palestra, porém “l4 fora”; se vos observardes, néo ego- centricamente, introspectiva ou analiticamente, porém vendo, simplesmente, 0 que estd. de fate ocorrendo, descobrireis ent&o, por vés mesmos, nao sé a violéncia superficial a célera, o “desejo de posiczo, etc. — mas também a violéncia de profundas raizes, Quando se faz esse descobrimento, o conceito da n&o violéncia perde toda a validade; valido é o fato — a violéncia. Observe-se 0 fato da violéncia no Oriente: na india sem- pre se falou, se pregou, se praticou a nfo violéncia, mas, no momento em que se apresenta qualquer desafio, a nao violéncia desaparece ¢ todos se tornam violentos.: Aqui também se fala interminavelmente de paz; em todas as igrejas se fala de amor, de bondade, de amar o préximo; entretanto, tivestes as guerras mais terriveis —_quinze mil guerras, ao todo, nos tltimos cinco mil anos! E & preciso observar como est4 profundamente arrai- gada em nés essa violéncia —- em nossa exigéncia de preenchi- mento, no competir e no constante comparar-nos com outros, no imitar, no obedecer, no seguir alguém,-no ajustar-nos a um padrao; tudo isso sao formas de violéncia. Nossa libertagio dessa violéncia exige muita atengZo e zelo;'se nao ficamos livres dela, no vejo.como possa haver paz no mundo. Poderé haver uma suposta paz entre duas guerras, entre dois conflitos, mas essa nao é a paz real, intima; profunda, nfo contaminada por qualquer ideologia, qualquer pensamento, nao organizada por alguma filosofia sem valor e significagao. Se nao temos essa paz, como: podemos ter amor, afeicao, zelo? Ou, se nao hd paz, como se pode criar alguma coisa? Podemos pintar quadros, compor poemas, escrever livros sobre o passado, etc., mas tal atividade leva ao -conflito, 4 escurid’o. P4ra conquis- tarmos. a liberdade, ficarmos livres da violéncia — totalmente e no apenas parcialmerite, fragmentariamente —. precisamos examinar muito profundamente este problema, 14 Temos de compreender a natureza do prazer; a violéncia _ se nos observamos, vemos que toda_a nossa_psicologia se_baseia, _.Ro_prazer (ndo importa o que dizem os psicélogos e os analistas; nao é necessdrio ler um’ monte de livros para se perceber isso) —— nfo s6 nos prazeres sensoridis, sexo, etc, mas também no prazer de realizar alguma coisa, no prazer de alcancar. sucesso, de’ preencher-se, de conquistar posicio, prestigio, poder, Mais ‘uma vez, tudo isso se encontra no animal. Numa fazenda onde se criam aves, pode-se observar esse mesmo fenémeno. Ha prazer tanto no divertir-se como no insultar. Buscar_o deleite, a_posicao, o prestigio, a fama, é uma forma de violéncia, pois tem-se_de ser agressivo, Neste mundo, se uma pessoa nao é agressiva, ser espezinhada pelos outros, empurrada para.o lado: Assim,” importa perguntar: “Posso viver sem agressividade’ ¢ ao-mesmo tempo viver no meio social?” & provavel que ‘nao; mas, porque viver na sociedade, isto é, na -estrutura psicolégica da sociedade? Cada um tem de viver na estrutura externa da sociedade — exercer emprego, vestir-se, ter casa, etc., mas que obrigagio tem de viver na estrutura psicolégica da sociedade? Porque aceitar a norma da sociedade, que requer que o indi- viduo se torne escritor famoso, homem notdvel, etc.? Tudo isso_faz_ parte do “principio do_prazer”, que se traduz em vio- et Na igreja diz-se: “Ama o préximo” — e nos negécios Ihe cortais.o pescoco. A norma social nao tem sentido. ‘Toda a estrutura militar, toda estrutura baseada rio principio hierérqui- co, na autoridade, significa, mais uma vez, dominio ¢ prazer que, a seu turno, faz parte da violéncia — da violéncia basica: A compreensio de tudo isso exige muita observaciio; nfo é questZio de capacidade: comeca-sé a compreender pelo observar. Vi Sagi, — £ o prazer que estamos buscando, a todas as horas. Queé- remos prazer cada vez maior, e o prazer supremo naturalmente 0 de alcancar Deus. Na busca do prazer encontra-se o.medo transportamos durante a vida essa. lugubre carga do med Medo, aflicio, pensamento, violéncia, agressio — todos esto relacionados entre si. Por conseguinte, ao compreenderdes' cla~ ramente uma dessas coisas, compreendereis as demais. Podemos concéder-nos’ tempo para analisar toda-a estru- tura emocional e intelectual de nosso ser; analis4-la, passo a passo, como o fazem os analistas, na esperanga de estabelecer uma relagio normal’ entre o individuo e a sociedade; ou um 15 de nés pode ver que é violento e compreender diretamente a causa dessa violéncia. Sabemos qual éessa causa. Mas, o ver todas e cada uma das formas de violéncia exige tempo; destrin- cara violéncia, completamente, em todas as suas formas, é um trabalho de meses, anos. Tal manéira de proceder me parece absurda. & um homem ser violento e tentar ser nao violento e, enquanto o estd tentando, continuar a semear os germes da violéncia. A questo, pois, é se sois capaz de ver imediatamente a coisa em seu todo, e imediatamente resolvé-la. E disso que se trata realmente, e nao de proceder pouco a pouco, dia apés dia, més apés més. Essa é uma tarefa terrivel, desanimadora, infinita, exigindo’ uma mente meticuldsa, analitica, capaz de dissecar, de enxergar cada aspecto e nao perder uma s6 particularidade — pois, se se perde alguma particularidade, 0 quadro sai todo errado. Isso nfo 86 exige tempo, mas encerra também um _con- ceito que formastes sobre o que é “ser livre da violéncia”. Esse ‘Concelto, esse pensamento de que vos servis para tentar liber- tar-vos da violéncia, cria, com feito, violéncia; a_violéncia é criada pelo _pensamento, A questo, pois, é esta: E possivel perceber a coisa em seu todo, imediatamente? — no intelec- tualmente, porque se ela é formulada como um problema inte- lectual nao se encontra nenhuma solugio ¢ a pessoa acaba, suicidando-se, como o fazem muitos intelectuais — suicidando-se ‘de fato ou inventando uma teoria, uma crenga, um dogma, um conceito e a ele se escravizando — o que é também uma forma de suicidio; ou voltando as velhas religides, tornando-se catélico, protestante, hinduista, seguidor do Zen, etc. A_ questa is, é se ha sibilidade de ver a coisa em seu iodo imediaiamente, e com esse aio de ver porlke fim. ‘Vé-se de maneira total, quando o problema é suficiente-. mente ‘urgente, nao s6 para a prépria pessoa, mas também. para o mundo. Ha guerra, externamente, e h4 guerra internamente, dentro de cada um de nés; é possivel acabarmos com ela de imediato, voltarmos-Ihe as costas, psicologicamente? Ninguém pode responder a esta pergunta senio vés mesmo — isto 6, . quando a ela respondeis sem dependerdes de nenhuma autori- dade, de quaisquer conceitos intelectuais-ou emocionais, quaisquer férmulas ou ideologias, Mas, como. dissemos, isso exige muita seriedade e séria observagao — observagéo, quando estais sen- tado num énibus, de tudo o que vos cerca; observacao daquilo que esté diante de vés mesmo, a mover-se, a transformar-se; observac4o, sem _ motivo algum, de todas as coisas tais como sao. 16 O que € tem muito mais importincia do que o que deveria ser. ‘Como “resultado desse zelo, dessa’ atengo, falvez venhamos a saber o que é amar. InrerRocanTE: Do que dizeis, devo ‘entender que temos de meditar, mas nossa mente é impedida de fazé-lo porque esta sempre passando automaticamente de um pensamento para outro, de modo que nao podemos observar o que se passa ao redor de nés? Significa isso que, em primeiro lugar, devemos observar 0 que se passa em nossa mente? KrisHnamurti; “Para observar, temos de meditar” — eu no disse’ isso. Qbservar_¢ meditacio, e isso nfo significa que para observar temos de meditar. Observar é uma das coisas mais diffceis que ha. Observar, por exemplo, uma Arvore, é dificflimo, porque temos idéias, imagens relativas & Arvore e essas idéias — conhecimentos botAnicos, etc. — nos impedem de olhar a Arvore. Observar vossa esposa ou marido é mais dificil ainda, porque também tendes uma imagem relativa a vossa esposa e ela tem uma imagem a vosso respeito, e a relacho existente é entre essas_duas imagens. £ o que em geral-se chama “rcla~ goes”: dois conjuntos de lembrangas, de imagens, em relagéo entre sii Vede quanto isto é absurdo. As relagdes que em geral temos sio uma coisa morta. Qbservar significa, com efeito, estar cénscio da interferéncia do pensamento; perceber como a ima- gem que tendes da arvore, da pessoa, do que quer que seja, interyém no_ato_de olhar. Observai como vos esqueceis do ‘objeto que estais olhando — a Arvore, a pessoa; e vede porque © pensamento interfere, porque tendes uma imagem de tal. pes- soa.” Porque tendes uma imagem de quem quer que seja? Aqui estamos, vés e eu, a olhar-nos — eu, o orador, e vs, os ouvintes. ‘Vés tendes uma imagem relativa ao orador, infelizmente; mas eu, porque ndo vos conheco, nenhuma imagem tenho de vés e, por conseguinte, posso olhar-vos. Mas nfo posso olhar-vos se digo de mim para comigo: vou servir-me destes ouvintes para alcangar poder, posicéo, para exploré-los, tornar-me um homem famoso — sabeis do resto — de todas as futilidades que os entes humanos cultivam. Assim, observar significa: observar sem a interferéncia_de nosso fundg. Entendeis? Todo o nosso_ser, uc est4 a olhar, ¢ o nosso fundo — cristo, francés, intelectual. Pela observacao, descobre-se esse fundo; ¢ observé-lo sem ne-,. __nhuma escolha, nenhuma inclinagdo, é uma disciplina tremenda —_nao_a_absurda disciplina de ajustamento, de_imitacfo. Essa observagao torna a mente sobremodo ativa, sohremodo sensivel. 17 Isso, em seu todo, é meditagao. Nao se entenda, pois, que “para observar é preciso meditar”, porém, antes, que é quando observamos, que todas essas coisas sucedem. Isso, em seu todo, é meditagio, e néo um certo método de controle do pengamento, assunto de que trataremos noutra ocasiao. InTERROGANTE: Podeis explicar, com precisio, como se rela- cionam o prazer e o medo? Krisunamurti: Medo — Ja estiveste alguma vez em con- tato.direto com o medo? Ja estiveste alguma vez, diretamente em_contato com alguma coisa, uma drvore, uma. flor, um: ente humano; diretamente, e nfo através da imagem? Quando olhais uma arvore, no parque, “hg sempre o observador e a coisa_obser- yada: vés estais a observar a Arvore, e_h4 um ee entre 9 Sbservador ¢ a coisa observada, Estar em contato to (podeis tocar a Arvore, mas isso n&o-é contato, ificar- com a 4rvore; nao se trata disso, que é uma outra espécie de gindstica mental) — estar. om, contgto—dirgia & coisa de todo diferente, é nao ter espago algum. £ o. que se verifica quando se tomam certas drogas. — L.S.D., etc, — o espago desaparece. Mas essa 6 uma experiéncia inteiramente diferente, pois aquele ,. espago volta, obrigando a. pessoa.a repetir a. droga, etc., € 0 résultado é que ela fica a deteriorar-se, a cansar-se’ cada vez mais da droga e a obter efeitos:cada vez-menores: Mas, quando a pessoa é capaz de_observar sem.o observador, quer dizer, sem o fundo, sem conceitos ideoigicos, sem a: meméria, 9. -Saparece entio totalmente, entre as pessoas, e nesse estado tal- ‘vez no. haja medo, porém uma coisa chamada (podemos. ser- vir-nos da palavra “verbalmente”) amor. ‘Teremos de consi- derar a questZo do medo noutra ocasiiio. InrerRocANTE: _ Parece-me que até a. nossa presenga aqui é uma espécie de paradoxo, porquanto significa que estamos insatisfeitos. Isto é, eu — insatisfeito com_a_vida, pois veio que nela hé vieléncia — desejando compreender essa coisa que me ” causa insatisfacao. ef KrisNamurtt: Nao, -senhor, nio_h4 entes humanos _ sepa- zados_da_violéncia. Quando sinto célera, nao é.uma certa coisa ou pessoa que est4 encolerizada dentro de mim; sou ew que ‘estou encolerizado, N&o ha nenhum “eu” separado da .célera. Perceber o fato real’ expresso por essa assergdo, isto é, que eu sou a violéncia; percebé-lo deveras e nao intelectual ou teori- 18 camente, é pér fim separagio entre mim ¢ a violéncia, a célera. Mas isso exige enorme atengio ¢ muito trabalho, Inrerrocante: Farfeis distingo entre prazer, édio e violéncia? Krisunamurti: Senhor, penso que a questo do prazer nao é t&o facil de compreender. Cumpre examinar o problema, e n&o simplesmente negar o prazer. Nao sentis prazer quando comeis ou quando dais um passeio, ou ao olhardes uma Arvore, uma bela mulher, um homem belo, ou o que quer que seja? f preciso examinar de maneira completa esta questéo do. prazer. A vida & complexa, nao? A vida é sumamente complexa, e 0 prazer é uma coisa complexa. Os chamados monges, os reli- giosos, tém dito que nao devemos ter prazer; abrem a, Biblia ou o Gita, ficam-a ler perpetuamente esse livro e nunca olham a vida. Mas, para compreender o prazer, temnos de compreen- der o desejo, o deleite, a meméria-— a conservagao das expe- ri€ncias que proporcionaram prazer, tanto no nivel consciente como no chamado subconsciente.: Como’ disse, a vida é um probletna comiplexo, e n&o po- demos esquecer a sua complexidade dizendo: “Nao quero olh4- -la." Temos de olhd-la pela maneira mais simples, sem nenhuma férmula, nenhuma ‘ideologia, nenhuma. escolha — s6 simples observagao, Esta é.provavelmente a primeira vez que alguns de vés esto ouvindo estas palestras, e o que se est4 dizendo poderd parecer-Ihes grego ou chinés, mas enquanto vamos considerando © examinando estas. questdes, comecaremos talvez a compreen- dé-las melhor, Importa fazer perguntas; nao s6 agora, porém sempre. E necess4rio duvidar, e nunca. aceitar coisa alguma. Releva fazer uma pergunta, e talvez mais ainda fazer a pergunta correta. Fazer a pergunta correta implica que a pessoa deve estar’ per- feitamente cénscia dos problemas da vida — nao em termos dé “gostar” e “nfo gostar”, porém o campo inteiro da vida. Fazer tal pergunta denota grande humildade, no a humildade da vaidade, mas.a_humildade daquele que deseja saber, Ao fazer- mos a nés mesmos a pergunta correta, como resultado de pro- funda e¢ inteligente investigagao, entSo, visto que é correta, a pergunta_contém sua prépria resposta, Nao précisamos pergun- tar a ninguém: ja temos a resposta: 16 de abril de 1967. 19 A-ORDEM INTERIOR (Paris — II) Dysssasos outro dia. que se faz necess4ria ‘uma _re- volugSo radical, nZo s6é na estrutura externa da sociedade, mas também psicologicamente. HA nécessidade de uma total mu- tag&o interior, de uma revolugao no ser psicolégico. Vemos a sociedade mergulhada: numa terrivel desordém, baseada que: esti na avidez, na inveja, no poder, na posigio, ete. .E nés, entés humanos, Componentes da sociedade vemno-nos também em desordem. Porque a. vida do ente humano em geral + a rotina didria, o didrio.tormento de ganhar o sustento — terrivel soliddo- tédio, intermin4vel repetiga0 — pouco significa. Para dar significado-e sentido A vida, inventaram os intelectuais, ém todo. o mundo, no: Ociderite-e’ no Oriente; filosofias e reli- gides; disseram: “Existe Deus; h4 um certo estado mental L que devemios :esforgar-nos por alcangar.” ‘Também um grande nime- ro'.de’ filésdfos' tém dito coisas sem nenhuma relagio com a vida.. Tem-se.tentado dar-lhe significado, porém, na realidade =~ no intelectual ou idealmente considerada — a vida, tal “como é, tal como a conhecemos-diariamente, é em verdade absolutamente ‘sem significagao. Sem significaclo, nfo s6 por- que nés, entes humanos, nos achamos num estado de desordem, mas porque nossa vida é toda de repetico, Passamos anos iniei- ros num escritério — quarenta ou cingiienta — a executar incessantemente coisas desinteressantes e, é bem de ver, interior- mente a desordem. é ‘cada vez maior.. Exteriormente, tem-se tenitado estabelecer a ordem mediante. a legislacdio, mediante a ditadura sob, varias formas, mediante o controle da mente e do comportamento’ humano —. criando-se, no exterior, politica- 20 mente, economicamente, um simulacro de ordem, enquanto inte- riormente nenhuma ordem existe. A_ordem implica — nao 6 verdade? — um estado mental inteiramente livre de conflito; um estado mental licido, livre de toda rotina; um estado men- tal no condicionado por inclinagdes ou tendéncias pessoais ou compelido por influéncias externas, ambientes. E essa ordem — assim me parece — deve nascer gem esforco algum de nossa parte; ela nfo pode ser produzida pela vontade, pelo empenho, no terreno dos conceitos e das idéias, Em nossa mente confusa, em nossa aflicio, em nossa infinita soliddo e conflito, tal esforgo no pode, de modo nenhum, criar a ordem, porém, to-s6, au- mentar a confusio, Que fazer?. Que deve fazer um ente humano, ao. com- preender que esté confuso, incerto, vivendo uma vida de rotina, de imitacg&o, de ajustamento a um padrao estabelecido pela so- ciedade de que faz parte, e percebendo a um s6 tempo a neces- sidade de ordem dentro de si mesmo? Se nao ha ordem interior, por maior que seja a ordem exterior, a desordem interior supe- rar4 o simulacro de ordem externa. Isso me parece bastante claro. Assim, como estabelecer a ordem em nds mesmos? Ordem significa um. estado mental em que nao h4 contra- digo ¢, portanto, nenhum conflito. Isso nao. implica estagna- sao ou declinio. A-ordem _que_obedece_a_uma. formula, alum 1 ‘ito_é, simplesmente, desordem. Se um ente hu- mano se ajusta a um padrao de pensamento — uma certa coisa ideal que ele deveria ser —- nesse_caso est4 meramente a imitar, a ajustar-se, a disciplinar-se, a forcar-se, a fim de adaptar-se_a desejais_achar? Essa é uma esta, tido_o proceso, reconbecimento; isto é quando achais qualquer coisa que estejais buscando, deveis ser capazes de reconhecé-la, senéo a 53 busca nZo tem sentido nenhum. Por favor, continuai a prestar atengao. Uma pessoa busca uma certa coisa, na esperanga de achd-la e, ao achd-la, de reconhecé-la. Mas o reconhecimento & agdo da meméria e, por conseguinte, supde que j4 conltecteis a coisa, que ela j4 fora vislumbrada por vés; ou, tendo sido to condicionado pela intensa propaganda das religiées organizadas, vés vos hipnotizais para vos pordes naquele estado (estado de reconhecimento). Assim, quando estais buscando, j4 tendes um conceito, uma idéia relativa A coisa buscadg; e quando a achais, isso significa que j4 a conhecfeis, senZo n&o poderieis reconhe- céla; portanto, ela nao é verdadeira, em absoluto. Por con- seguinte, devemos alcangar aquele estado mental realmente livre de toda busca, de toda crenga — sem. nos tornarmos pessi- mistas, sem nos estagnarmos. Pois tendemos a pensar que, se nao buscamos, se nZo nos esforgamos, se nao lutamos, se nao buscamos incessantemente, definharemos, E nado sei porque nao devemos definhar — como se j4 nao estivéssemos a defi- nhar.., A gente definha quando morre, quando envelhece, quando o organismo fisico perece. Nossa vida 6 0 “proceso” do definhar, porque, nela, na vida diéria, nés imitamos, copia- mos, seguimos, obedecemos, nos ajustamos; tudo isso sio formas de definhamento. Assim, a mente que j4 nfo est4 presa a nenhuma forma de crenga, a nenhuma crenca por ela propria criada, que j& nfo est4 a buscar coisa alguma — embora isso possa ser um pouco mais sifel — est{ sumamente ativa. A uma coisa que _£omo..a..irtude, como, a. Beleza, gla. alo "que tem continuidade é produto do tempo, € 0 tempo é pensa- mento, o tempo é sofrimento, o tempo é... Vendo o que o homem fez a si préprio, quanto se torturou, quanto se embruteceu — tornando-se nacionalista, absorvendo-se: num certo entretenimento, como a literatura ou isto ou aquilo — vendo todo esse padrao de vida, perguntamos a nés mesmo: “B necessério passar por tudo isso?” Entendeis esta. pergunta? Tem um ente humano necessidade de passar por todo esse Pprocesso, passo a passo: rejeitar a crenga (se estd de fato vigi- lante), rejeitar a busca de qualquer espécie, rejeitar a tortura da mente, rejeitar a satisfacio dos apetites? Vendo o que o homem fez a si proprio, no intuito de encontrar aquilo a que chama Realidade, perguntamos (perguntai-o a vés mesmo e nao a mim) se existe um meio, um “estado de explosio” que tudo rejeita repentinamente — pois o tempo nZo é o meio adequado. 4 A busca supde o tempo — achar no fim de certo tempo (daqui a dez anos ou mais), ou na préxima encarnacéo (em que cré toda a Asia). Tudo isto implica tempo: livrar-nos gradualmente de todos esses conflitos e problemas; tornar-nos pouco a pouco mais judiciosos, mais hdbeis, mais sabedores; descondicionar a mente lenta e gradualmente. E£ isso 0 que o tempo encerra. O tempo, evidentemente, nao constitui o meio adequado, e também n&o o constitui-a crenga, nem as disci- plinas artificiais,. impostas por um sistema, por um guru, por um instrutor, por um filésofo, por um sacerdote. Tudo isso é infantilidade. Mas & possivel, sem termos de passar por tudo isso, encontrar aquela coisa inefavel? Pois ela nao pode ser chamada. Por. favor, compreendei este fato tio simples: cla nfo pode ser chamada e n&o pode ser buscada, Nossa mente é tho estipida e limitada, nossas emogdes tio vulgares, nossas maneiras de vida. té0 confusas, que aquela imensidao nao pode ser convidada a entrar em nossa pequenina casa, num pequeno aposento, ainda que asseado e bem arrumado. Nao podemos “convida-la”; para convidd-la, precisamos conhecé-la, e nds nfio podemos conhecé-la.(ndo importa quem diga que pode- mos), porque, no momento em que digo “conhego-a”, nfo a conhego. No momento em que digo que a achei, ndo a achei. Se digo que a “experimentei”, nunca a experimentei. Tudo isso sio maneiras astuciosas de explorar outro hornem — amigo ou inimigo. ‘Ao perceberdes isso, nfo intelectualmente, porém na vida digria, em vossas atividades cotidianas (quando escreveis, quan- do falais, quando safs de carro ou passeais a s6s numa floresta) — ao perceberdes isso, num relance (nao precisais de ler vo- lumes para o perceberdes), compreendereis toda a estrutura. E s6 podeis compreendé-la como um todo, quando vos conhe- ceis; quando vos conheceis simplesmente, tal como sois, como um resultado de toda a humanidade, quer sejais hindufsta, mu- gulmano, cristo, quer sejais qualquer outra coisa. Quando vos conheceis como sois, compreendeis toda a estrutura do esforco humano — embustes, hipocrisias, brutalidades, busca. E, pergunta-se: B possivel encontrar essa coisa sem a cha- mar, sem a esperar, sem a buscar, sem explorar? I possivel ela aparecer, “acontecer”’, como a brisa que entra pela janela aberta? Nao se pode chamar a brisa, mas temos de deixar aberta a janela. Isso nfo significa ficar num estado de: espera, que € uma outra maneira de enganar a n6és mesmos; ndo signi- 55 fica que devamos abrir-nos, para recebé-la, pois isso é outra forma de pensamento. Mas, se_nos interrogamos sem buscar, sem.crer, ent4o, nesse _proprio_interrogar, achamos. Mas nés nunca nos interrogamos. Queremos ser informados, queremos tudo corroborado, confir- mado; fundamentalmente, nunca estamos livres da autoridade interior e exterior, em todas as formas.. Esta é uma das mais curiosas peculiaridades da estrutura de nossa psique. Queremos que nos digam as coisas. Samos o resultado.do.que nos ¢ dito, O que se nos diz é propaganda milenar. Temos a autoridade do livro antigo, a autoridade do lider atual, ou de um orador. Mas se, fundamentalmente, realmente, rejeitamos toda e qual- quer autoridade, isso significa que ficamos isentos de temores. _Ser_sem medo é olhar o medo, pois; como acontece em relagio ao prazer, nunca entramos diretamente em contato com o medo. Nunca entramos em contato real com o medo, assim como entra- ios em contato com uma porta, uma m4o, um rosto, uma 4rvore, quando os tocamos; s6 entramos em contato com o medo através da imagem do medo.que criamos para nés mesmos. $6 conhecemos © prazer pela metade. Nunca estamos diretamente em contato com coisa alguma. Nao sei se j& observastes, ao tocardes uma 4rvore (como o fazeis, quando passeais na floresta), se de fato a tocais, Ou existe uma cortina entre vés e a 4rvore, embora a estejais tocando? Para se entrar diretamente em contato com _o medo, nZo deve haver imagem alguma, quer dizer, nao deve “haver nenhuma lembranga do medo de ontem. Sé entio é pos- sivel entrar em contato real com o medo real de hoje. Entao, se nfo h4 Iembranga do medo de ontem, tendes a energia ne- cessdria para enfrentar o medo presente; e necessita-se de uma tremenda energia para enfrentar o presente. Dissipamos essa energia vital — que todos nés temos — por causa dessa ima- gem, dessa formula, dessa autoridade; e 0 mesmo acontece quando se esté buscando o prazer. A busca do prazer é para nés sumamente importante. O prazer supremo é Deus — 0 Deus que supomos existir — mas ele pode ser a coisa mais aterradora que se possa conhecer; mas nés o imaginamos — o Supremo — e por isso nunca o encontramos. Mais uma vez, o fato é que — assim como reconhecemos um prazer como _um prazer_que ontem experimentamos — nunca estamos realmente ‘em contato com a experiéncia real, com um estado real. A meméria de ontem esté sempre a cobrir, a velar o presente. ‘Assim, em vista de tudo isso, podemos ficar sem fazer nada, sem lutar, sem buscar — ficar totalmente “negativos”, total- 56 ~fazer_o que quiserdes —~ porque haverd amor! mente vazios, inativos —- uma vez que toda ag&o é resultado da “ideagio”? Se j& vos observastes quando. agis, tereis visto que isso acontece por causa de uma idéia prévia, um conceito prévio, uma prévia lembranga. Hé separac&o entre a idéia e a agio — um intervalo, ainda que muito pequeno, diminuto. Por causa dessa separacao, hA conflito, Pode a mente ficar comple- tamente quieta, sem pensar, sem ‘ter medo e, por conseguinte, sobremodo viva, ativa? Conheceis a palavra “paixio”; esta palavra significa, mui- tas vezes, “sofrimento”(!). Os cristios tém-na empregado para simbolizar certas formas de sofrimento. Nao é nesse sentido que estamos empregando a palavra “paixio”. No completo estado de negag%o encontra-se a mais elevada forma da paixio; essa paixio implica o “total abandono de si préprio” (self-abandon- ment).. Para esse total “auto-abandono” necessita-se de auste- ridade em alto. grau; austeridade que nao seja a rudeza do sacerdote para com os que 0 cercam; que nio seja a austeri- dade dos santos, que a si préprios torturam e que se tornaram ‘austeros por terém embrutecido a prépria mente. Austeridade _& com efeito, simplicidade, no mais alto grau — nao simplici- dade: no vestir, no comer, porém simplicidade interior. Essa austeridade, essa paixao, é a negagao total, a negago na forma mais clevada, EntXo, se tiverdes sorte (sorte! —- isso nao é questo de sorte: a coisa vem sem ser chamada!) que deixais de lutar, de forcejar em busca de alguma coisa. Podeis_entZo Sem essa mente religiosa, nao é possivel criar uma verda- deira sociedade. Temos de criar uma nova sociedade em que haja muito pouco ensejo para as terriveis atividades ditadas pelo égoismo (self-interest). Sé:com a mente religiosa pode haver paz — exterior e interiormente. Hé4 mais alguma coisa para considerar, jA que é a filtima palestra, pelo menos deste ano? INTERROGANTE: Experimentar e expressar. (0 resto da per- gunia nao pode ser ouvido) KrisHNaMuRTI: Que se entende por “expresso”, e que é qué estamos “expressando”? Sei que existe a idéia de que devemos expressar-nos; a “auto-expressao” (self-expression) se tornou su- mamente importante. Mas, que estamos expressando? Nossas (1) “Paixo” — do latim “passio” — do verbo pati: sofrer. (N. doT.) 37 cdpacidades? Se sois pintor, podeis expressar-vos numa tela (e depois ser explorado pelo proprietério da galeria). Ou, se sabeis manejar a pena, escreveis um livro. Que estamos expres- sando? Os mesmos e velhos padrées de ontem. # s6 isso que temos — rotina, em todos os sentidos? Bem; h4 necessidade de “expressar-nos”? Nao quero dizer que devemos ou nio devemos expressar-nos, mas, que é que esté implicado na “auto-expres- so”? Que se subentende ad empregar-se o termo “auto-ex- pressio”? O EU é sempre do passado; nZo é de modo nenhum uma coisa nova. Podeis express4-lo muito habilmente, de uma ma- neira nova, empregando palavras novas, uma nova técnica, uma nova terminologia; mas, ele permanece essencialmente 0 mesmo. Esse é um aspecto da questo. E, quando dizeis: “Preciso ‘ex- pressar-me”, que é que quereis “expressar”? Que é ese EU que esté constantemente a exigir “expresséo”, sexualmente ou por meio de livros? Evidentemente, o EU é um feixe de memé~ rias; infelizmente, nada mais do que isso! E, na “auto-expres- so”, encontra-se prazer, de modo que, quando falamos de “quto-expressio”, entendemos “prazer do eu” — do EU, que é meméria, coisa morta. Mas, existe uma expressio que n&o interessa ao EU, completamente independente do EU? Pois © EU, como bem sabemos, sio memérias, experiéncia acumulada, prazer, Tal “expressio” seria, ent&o, uma coisa completamente diferente. INTERROGANTE: .... sem motivo? Krisanamurti: “Expresso sem motivo”... A meméria das pessoas ‘alega que a expressdo é sem motivo, mas, ad mesmo tempo, séo suficientemente sagazes para perceber que “expres- sZo0 sem motivo” € uma coisa bastante duvidosa, Mas nés fazemos uma pergunta bem diferente: Existe uma expresséo livre de qualquer atividade do EU, no sentido de expressar-se? E-que ha para expressar? Quando amais, nfo falais de “auto- -expressio”. Mas, se o amor esté maculado pelo desejo, pelo prazer, entZo desejais “expressar-vos” sexualmente, ou por meio de livros; esse amor necessita de “expresso”. Mas, se nfo ha nenhuma atividade egocéntrica, nao hd necessidade de expres- sho: Estareis vivo, e o viver, em si, é expressio. 30.de abril de 1967. 58 CINCO PALESTRAS EM AMSTERDAM. I E O MEDO (Amsterdam — I) errs a respeito de fatos, informagées, é re- lativamente facil. Conversar acerca de teorias, idéias, dogmas € conceitos teolégicos, j4 é talvez um pouco mais dificil. Mas conversar, comungar, num nivel mais profundo — nfo no nivel das idéias e das palavras, porém no dos nossos problemas hu- manos — no centro de nossas complexidades, afligdes, agonias e de toda a confusio a que o homem est4 sujeito — requer atengo e cuidado; e também uma certa capacidade de escutar. Pode-se dizer que, em geral, nao escutamos; ouvimos uma grande quantidade de palavras, interpretando o que ouvimos com nossas proprias opiniées, rejeitando-o ou aceitando-o. Mas, por “escutar” eu entendo: escutar realmente, sem traducio, sem _—interpretacSo, sem opiniao; escutar realmente, sem espirito de condenago — o qué nio significa necessariamente “aceitagio”. Ao contrrio, quando escutamos atentamente, fazemo-lo, com efeito, com um sentimento de afei¢io ¢ amor; porque, sem aten- gao e interesse_ndo é possfvel escutar. coisa alguma. Se escutais musica ou qualquer coisa em que credes, deveis prestar atengio; e deveis ter também um enorme interesse em escutar o ciciar da brisa entre as folhas. Da mesma maneira, para escutar o que este orador vai dizer, necessita-se de muita atenco; mas nao _h4 possibilidade de ateng%o quando a mente est4 ocupada em _julgar, opinar, comparar, condenar ou justificar. O impor- tante é, realmente, escutar: A condenagdo ou a comparagaio s6 atua como distragHo e, por conséguinte, nao se: pode escutar. Primeiramente, & preciso compreender as palavras. O que se diz em palavras nao é o fato; a palavra nunca € 0 fato, a coisa. 61 Temos de ultrapassar a palavra, a fim_de compreendermos, a fim" de" podermos. comunicar-nos uns com os outros. E este (entre varios outros) vai ser o nosso problema: Como escutar, e, também, como ultrapassar a palavra. Ultrapassar a palavra & necessério, porque temos muitos problemas, nao s6_ fisicos, mas também os problemas psicolégicos, profundos. Temos enor- mes problemas, tanto individuais como coletivos, sociais. O individuo faz parte da estrutura social e essa estrutura foi cria~ da, em todo o mundo, por individuos. A estrutura social, externa, representa a estrutura psicolégica de nossas relagdes humanas. Para compreender esses problemas, precisamos ter a mente bem vigilante; nao uma mente turva, nem uma mente complexa, erudita, porém, antes, uma mente disposta_a ver com cli 4 examinar, a explorar, independentemente._ de suas idios ‘sas, inclinacées, temperamento, ‘as coisas como sho. . Para exami- jd-las, necessita-se de atengao, de zelo, Temos de investigar-nos profundamente, porquanto hé ne- cessidade de uma revolugéo — revolugio psicolégica. Nao nos referimos A -revolugio comunista, social ou econémica; estas néo mudaram fundamentalmente o homem. J4 houve muitas revolugdes e guerras, que s6 produziram efeitos superficiais, se- cundérios. Mas, basicamente, bem no fundo, nés entes humanos continuamos os mesmos que éramos h4 milhdes de anos. Tém-se feito progressos técnicos — do carro de bois ao avido a jato; mas, psicologicamente, interiormente, ndo mudamos em nada — ou sé um bocadinho, aqui e ali. Todavia, fundamentalmente, somos 0 que sempre fomos: vidos, invejosos, cheios de .anta- gonismo, de ansiedades, desesperos e, ocasionalmente, um claro de alegria e de afeigéo. Eis ‘a matéria que vamos considerar nestas cinco reunides. Nés somos entes humanos — nfo importa se vivemos na India, no Extremo Oriente, na América ou na Riissia; somos entes humanos, com nossos problemas, aflicdes, conflitos, deses- peros. Cada parte do mundo inventa uma filosofia, uma teoria, sem nenhuma -relag3o com o viver de cada dia, e é sé nesse diario ¢ intolerdvel viver de cada dia — de solidao, tédio, rotina, emprego, sexo, com sua fealdade e sua beleza, constante con- flito interior — é sé ai que temos de mudar. Observam-se, ‘no mundo inteiro, dois problemas fundamen- tais: a violéncia e o sofrimento. Essa violéncia e esse sofrimento nao se limitam ao Oriente e ao Ocidenie; fazem parte. da es- 62

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