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STAG ele A CANGAO DA VIDA “A percepeio da Verdade 6 uma experiéncia final e definitiva. Eu tor- nei a crlarme segundo a Verdade, Nao sou poeta. Apenas procurel tra: duzir em palavras 0 meu proceso de conhecimento intimo”. Fis o que adverte Krishnamurti no inicio deste poema. Sem davida, q mundo atual espera, ansioso, por uma nova luz. Gansada dos erros que cercam a religiao e a filosofla, as supersti¢des e crengas, a humanidade precisa ouvir a voz de um homem que reslize, com 0 exemplo individual, aquifo que ele mesmo en- sina, Esse homem 6 Krishnamurti. Nascido bramane, no sul da India, educado consoante a mais elevada cul- tura do Oriente e do Ocidente, dotado de rere penetracao espiritual, com seus sdbios conceitos, que esclarecem e solucionam os problemas da existén- cia moderna, j4 conseguiu Krishna- murti, no plano universal, elevada po- sigéo como psicdélogo e pensador. Nos outros dois livros de versos: A BUSCA e O AMIGO IMORTAL, des- creve ele como chegou a plena ¢ cons- clente uniéo com a prépria Vida. Nos seus diversos trabalhos em prosa de- monstra como podemos todos atingi mediante o autoconhecimento, a pere- ne bem-aventuranca. Esta téo inspiradora obra, pelo mui- to que nos oferece, 6 um testemunho vivo da grandiosa viséo do autor. J. KRISHNAMURTI A CANCAO DA VIDA 4! EDIGAO 1KADUGAO DE HUGO VELOSO INSTITUICAO CULTURAL KRISHNAMURTI Av. Pres. Vargas, 418, sala 1109 Rio de Janeiro - RJ. Brasil ADVERTENCIA A percepcao da Verdade é uma experién- « cia final e definitiva. Bu tomei a criar-me se- gundo a Verdade. Nao sou poeta. Apenas procurei traduzir em palavras o meu processo de conhecimento intimo. Krishnamurti Faze do teu desejo 0 desejo do mundo; Do teu amor 0 amor do mundo, Nos teus pensamentos considera 0 mundo; Nos teus aios possa 0 mundo contemplar a tua eternidade. Podes tirar muita dgua de um poco: ‘Mas nunca aplacards a sede dos teus desejos. Teu coragdo pode guardar a flor do seu amor; ‘Mas, com a vinda da morte, a flor emurchece. Teus pensamentos podem ascender a objetivos elevados, Mas estdo presos & ansiedade ¢ a dor. Qual flecha lancada por braco herciileo, Deixa que tua meta se aprofunde na eternidade. Como 0 riacho da montanha puro e célere, Deixa a tua mente correr ardorosa para a liberdade Minha voz, que desperta da profundeza do amor, E a voz da compreensao, Navcida do incessunte penur. Quem pode dizer se 0 teu coragao esté imaculado? Quem pode dizer se a tua mente esté pura? Quem pode satisjazer 0 teu desejo? Quem pode curar-te da ardente dor da saciedade? Haveré quem te dé compreensdo, Ou te mostre o caminho do amor? Poderds furtar-te ao temor daquilo que se chama morte? Poderds afastar de ti a dor da solidéo, Ou fugir ao clamor da ansiedade? Poderds ocultar-te nos dlacres sons da miisica? Ou entregar-te a alegres divertimentos? A sabedoria hd de nascer da compreensdo, Ela faz soar a sua voz No turbilhdo do extremo caos. Um homem viu as sombras a dancar, E saiu em busca da causa de tanta beleza. Pode a vida morrer? Olha nos olhos do teu préximo. O vale dorme, oculto, na escuridao de uma nuvem, Mas 0 cimo da montanha é sereno, No contemplar 0 céu aberto. Nas margens do sagrado rio, O peregrino repete um cintico sem parar, E, isolado em frio templo, Um homem, de joelhos, engolfa-se em sussurros devotos. Mas, escutal — sob a densa poeira do veraio Jaz uma verde folha, Quem te libertard da tua pristo? Ou rasgard 0 véu dos teus othos? Uma vereda sobe, vagarosa, a encosta da montanha, Mas, quem carregard a ti como fardo préprio? Eu vi um homem tropego que caminhava em direcao a mim, Derramei lagrimas de dolorosas lembrangas. Na imensa distancia Uma estrela solitéria impera no céu. O fim de todas as coisas esté no préprio comeco, Retido e oculto, 4 espera da libertagao Pelo ritmo da dor e do prazer. Cothido na agonta do Tempo, Imerso na angtistia intima de sua expansio, © Amado, O Ser, do qual tu és 0 todo, Procura 0 caminho do iluminado éxtase. Moldado na poesia do ritmo, Colhendo a riqueza da persecugéo da vida, © Amado, 0 Ser, do qual tu és 0 todo, Marcha para o centro de todas as coisas. No secreto santuério do desejo, Pelos recessos de um amor envolvente, © Amado, 0 Ser, do qual tu és 0 todo, Danga a cancéo da Eternidade, 10 Pela infinidade do visivel e invisivel, Na sucesso de nascimento € morte, 0 Amado, O Ser, do qual tu és 0 todo, Une o intervalo da separacéo. Confuso na fervente adoracao, Seduzido pelas vas pesquisas do pensamento, © Amado, . O Ser, do qual tu é5 a totalidade, Esté em fusiio para unir-se ao Incorruptivel. Como sempre, 0 Amado, O Ser & ainda 0 Todo. u Vv Escuta, 6 amigo, Eu te falarei do secreto perfume da Vida. A Vida néo rem filosofia, Nem sutis sistemas de pensamento. A Vida nao tem religiao, Nem adoracdo em intimos santudrios. A Vida nao tem deus, Nem 0 fardo de temerosos mistérios. A Vida nao tem morada, Nem a dolorosa angtistia do declinio. A Vida no encerra prazer nem dor, Nem a corrupgao do amor implacavel. A Vida nao € bou nem md, Nao é tenebrosa punigao de leviano pecado. 12 A Vida ndo dé consolagéio, Nem repousa no sacrério do esquecimento. A Vida nao é esptrito nem mutéria, Nela nao existe a cruel diviséo da acdo e da inércia, A Vida niio tem morte, Nem 0 vacuo da solidao na sombra do Tempo. Livre é 0 homem que vive no Eterno, Porque a Vida é. 13 Mil olhos com mil cendrios, Mil corugdes com mil amores, Eis 0 que ew sou. Assim como 0 mar recebe, indiferente, Os cristalinos e impuros rios, Assim sou eu. Profundo & 0 lago da montanha, Claras sto as dguas da fonte, Meu amor é a origem oculta de todas as coisas. Ah, vem, prova do meu amor. Entao, como o Idtus que nasce numa tarde fresca, Encontrarés 0 secreto anelo do teu coragéo. O perfume do jasmim enche o ar da noite; Da floresta profunda Vem o adeus do dia que more. A vida de meu amor nao carrega fardo; Atingi-la & encontrar, na plenitude, a liberdade. 14 vi O amor é sua prépria divindade, Se 0 seguires, Alijando 0 pesado fardo Da mente arditosa, Estards ‘entdo livre das apreensdes Do ansioso amor, * O amor nao esté confinado No espaco nem no tempo, ‘Nem nas coisas desalegres da mente. Psse amor deleita-se No coragao daquele que muito vagueou Pela confuso dos anseios do préprio amor. O Ser, 0 Amado, A oculta e integral beleza, £ a imortalidade do amor, Oh, porque procurar mais longe? Porque, amigo? No solo do amor inalterdvel Fstende-se a rota infinita da Vida, 15, Vil Ama a Vida. Nem o comeco, nem o fim Mostra de onde ela veic Porque a Vida ndo tem comego nem fim. A vida 6, Na plenitude da Vida ndo hd morte, Nem a dor da grande solidao. A voz da melodia, a voz do queixume, O riso € 0 grito de dor Sao a prépria Vida em sua marcha para a plenitude. Olha nos olhos do teu préximo E te encontrarés com a Vida, Ali esté a imortatidade, A Vida eterna, imutével. Para aquele que néo esté enamorado da Vida Existe 0 fardo angustiante da divide E 0 temor da solidao; Para ele sé existe morte. 16 Ama a Vida, E teu amor ndo conhecerd corrupedo. Ama a Vida, € teu discernimento te sustentard, Ama a Vida, € nao te desviards Da senda da compreensio. sito divididos, io na Vida, Assim como os campos da ter Assim o homem cria uma divis E, desta forma, gera o sofrer. Adora, néio os velhos deuses Com incensos ¢ flores, Mas a vida, com grande jibilo. Grita, num éxtase de alegria, Nao hé desordem na festa da Vida Dessa Vida, imortal e livre, Eu sou a eterna fonte. Kis a Vida que eu canto. 7 ‘Vill Néo procures 0 perfume de um coragio solitéi Nem demores no seu grato conforto. Porque Ié reside Temerosa solidéo. Eu chorei, Porque vi A solidéo de um amor insulado. Nas sombras que se agitam Jaz uma flor murcha. adorar a muitos num sb Conduz ao sofrer. Mas 0 amar a um sé em muitos E bem-aventuranga eterna. x Com que facitidade Turba-se a lagoa trangiiila Ao passar dos ventos! Néo, amigo! Nao procures a felicidade ‘Nas coisas transitorias, S6 existe um’ caminho; Fle esté em t mesmo, No teu préprio coragao. 19 Um sonho nasce de uma multidao de desejos. Quando a mente estiver tranqjiila, Nao atormentada pelo pensamento, Quando v curacao for casto, Cheio de wm amor purissimo, Entao, 6 amigo, Além da ilusao das palavras, Descobrirés um mundo. Ali esté a unidade de toda a Vida, Ali esté a silenciosa Fonte, Que nutre os vertiginosos mundos. Naquele mundo nao ha céu nem inferno, Nao hd passado, presente, nem futuro; Nao existem as ilusées do pensamento, Nao se ouvern os murmiirios do amor expirante. Oh, busca aquele mundo, Em cujo éxtase luminoso a morte néo se agita, Onde as manifestacées da Vida Sao como as sombras que 0 sereno lago reflete. Ele estd em ti. Sem ti, ele ndo existe. 20 XI Como do ventre profundo da montanha Nasce veloz riacho, Assim, da dolorosa profundeza de meu coragéio Brotou 0 amor risonho, O perjume do mundo. Através dos vales” ensolarados Precipitam-se as dguas, Pntrando de lago em lago, Sempre correndo, sem nunca parar; Assim também & 0 meu amor, Que se esvazia de coragao em coragao. Como as déguas rolam tristemente, Através de cavernoso e escuro vale, Assim meu amor se tornou sombrio, Obscurecido pelos facets impulsos do desejo. 21 Como as grandes drvores sto destruidas Pela forte correnteza das dguas Que thes nutriram as raizes profundas, Assim 0 meu amor arrebatou cruelmente De seu regozijo 0 meu coracao. Eu espedacei a rocha em que cresci. Como o largo rio que foge para 0 mar agitado, Cujas deuas nao conhecem escravidao, Assim & meu amor, na perfeigao de sua liberdade 22 xi Oh, alegra-tel Entre as montanhas reboam trovées, Sombras longas atravessam a verde superficie do vale, As chuvas fazem apontar Os verdes brotos Nos velhos tronco’ mortos. Lé, no alto, entre os rochedos, Uma dguia constréi 0 seu ninho, Com a Vida, tudo € belo e grandioso. O Amigo, A Vida preenche 0 mundo. Tu e eu estamos em eterna unio, A Vida é come as dguas Que mitigam, igualmente, a sede aos reis ¢ aos mendigos: O rei, com a taca de ouro, O mendigo, com a taga de barro, Que se quebra em pedacos junto a fonte, Cada um considera preciosa a sua taca. 23 Existe a solidao, Existe 0 temor da solidéo, Existe a dor do dia que morre, Existe @ tristeza da nuvem que passa. A Vida, desprovida de amor, Vai errando de casa em casa, Sem que ninguém proclame a sua beleza. Da rocha de granito Forma-se uma imagem esculpida Que os homens consideram sagrada, Mas eles pisam descuidadamente as pedras Do caminho que conduz ao templo. 0 Amigo, A Vida preenche 0 mundo! Tu @ eu estamos em eterna unido. 24 XI Pesquisa os secretos movimentos de teu desejo, Assim, ndo viverds na ilusdo. Que podes saber sobre a felicidade, Se nao caminhaste pelo vale do sofrimento? Que podes saber sobre a liberdade, Se néo te revoltaste’ contra a tua escravidéo? Que podes saber acerca do amor, Se néo pensaste ainda em te libertar Das complicagées do amor? Eu vi as flores que desabrochavam Nas horas escuras de uma noite serena. 25 xiv Quem sabe se 0 pingo de chuva Nao contém em si a torrente impetuosa? Quem sabe se 0 pingo de chuva, ele somente, Nao alimentaré a drvore solitdria da colina? Quem sabe se o pingo de chuva, na sua grande queda, Nao cria 0 ameno som de mutitas dguas? Quem sabe se o pingo de chuva, em sua pureza, Nao aplaca a torturante sede? Insensato é aquele que, na Vida, Persegue a sua prdpria sombra, A Vida the escapa, Porque anda perdido nos caminhos da escravidéo. Para que @ futa na solitude da desunidio? Na Vida nao existe “tu”, nem existe “ew”. 26 xv ’ Ew niio tenho. nome; Sou como a brisa fresca das montanhas. Nao tenho refigio; Sou como as dguas errantes. Nao tenho santudrio, como os deuses obscuros. Nao existo na sombra dos templos profundos. Nao tenho livros sagrados. Nao estou imbuldo de tradicdes. Nao estou no incenso Que sobe dos altares, Nem na pompa das ceriménias. Néo me encontro em imagens esculpidas, Nem no canto sonoro de uma voz melodiosa, Nao estou acorrentado por teorias, Nem corrompido por crencas. Nao me acho escravizado as religides, Nem a devota agonia dos seus sacerdotes. Nao estou iludido pelas filosofias Nem no poder das suas seitas. 27 Nao sou humilde nem glorioso, Sou o adorador ¢ 0 adorado, ‘Sow livre. Minha cancdo é a cancao do rio Que se projeta para 0 mar aberto, Correndo, correndo. 28 XVI Nao ames o formoso ramo da drvore, Nem abrigues no teu coragdo apenas a sua imagem. Ela morre. Ama a érvore toda. Entdo, amards 0 galho elegante, Amards a folha nova'e a folha murcha, © broto timido, a flor desabrochada, A pétala caida e 0 topo que se balanca, A sombra espléndida de um amor completo. Ah, ama a Vida em sua plenitude, A Vida que nao tem declinio. 29 Xvi sofrimento cedo se esquece, E o prazer tem por limite as ldgrimas. Somente aqueles que véem claro Se lembrario das feridas profundas, Dos seus passados suspiros. O penar & a sombra Que segue o prazer. No seu ansioso v6o é ardoroso o desejo; A celeridade de sua agdo Desvendard a fonte da alegria. 0 conflito da insatisjacao é sofrimento; O bom acolhimento ao penar £ 0 caminho da felicidade. A morada da Vida E 0 coracdo do homem. 30 XVII Oh, @ sinfonia daquela cangéio! intimo santuério Sufoca com o amor da rultidao, A chama se agita com seus muiltiplos pensamentos. perfume da canfora queimada enche 0 ar. Indiferente, 0 sacerdote entoa um céntico. 0 idolo refulge, parece mover-se, Farto daquela infindével adoracao. Um trangiiilo siléncio envolve o ar. * E, de stibito, Uma cangéo melodiosa de infinito amor Traz-me aos othos légrimas inefaveis. Uma mulher de brancas vestes Canta ao coracéio de seu amor Acerca da maternidade que jamais conheceu, Do riso de criancas ao seio aconchegadas, Do amor que cedo morreu, . Da desdita de wm lar infecundo, Da solidao na noite trangiiila, Da vida estéril em meio a terra florida, 31 Eu choro com ela. Fundem-se nossos coracdes. Ela deixa o refiigio do santudrio Ansiando pela alegria da préxima adoragao. Sigo-a pela eternidade. © ser adorado, Tu e eu percorreremos A estrada livre do verdadeiro amor. Tu e eu jamais nos apartaremos. 32 XIX Vivi o bem e 0 mal dos homens, E turyo se tornou 0 horizonte de meu amor. Conheci a moralidade ¢ a imoralidade dos homens, E cruel se fez 0 meu ansioso pensamento, Tive parte na piedade'e impiedade humana, P0 fardo da vida se me tornou pesado. Concorri com os ambiciosos, Fa gloria da vida me pareceu va, Mas agora eu penetrei a secreta intengdo do desejo. 33 XX Com a plenitude do tew coragdo Acothe 0 sofrimento, E terds abundante alegria, Como os rios crescem Depois das grandes chuvas E 0s seixos de novo se alegram No sussurro das dguas correntes, Assim, vagando ao longo dos caminhos, Encherds 0 vazio que cria temor. O sojrer desdobrard a tia da vida; 0 sofrer dard a forca da solidéo; O sofrer abriré para ti As portas cerradas do teu coragio. O grito do penar é a vor do preenchimento E a alegria que nele encontras Ea plenitude da vida. 34 XXI Nao recorro a ninguém sendo a Ti, © Amado, Tu ests em mim. E, otha, af Tenho o meu reftigio. Tenho lido sobre Ti em muitos livros. Eles me dizem que muitos semelham a Ti, Que muitos templos se constroem para Ti, Que hd diversos ritos Para Te invocarem. . Mas eu ndo tenho intima comunhdo com eles, Porque eles todos revestem apenas Os pensamentos dos homens. © amigo! Procura 0 Amado Nos secretos recessos do teu coracao. Morto esté 0 taberndculo Quando 0 coragao deixa de pulsar. 35 Nao recorro a ninguém sendo a Ti, © Amado! Tu ests em mim. E, otha, af Tenho o meu refigio. 36 XXII Meu irmao morreu. Nés éramos como duas estrelas num céu limpido. Ele era como eu, Queimado pelo sol ardente, Na terra das suaves brisas, Das palmeiras que se balancam, Dos refrescantes rios, Onde hé sombras inimeras, Papagaios coloridos, pdssaros canoros; Na terra em que a copa verde das drvores Balouca sob 0 sol brithante; Onde existem areais dourados E mares azul-verdes; Onde se vive sob a intensidade do sol, Que faz a terra tostar-se; Onde cintilam os verdes arrozais Que vicejam nas déguas todosas; Onde corpos nus, bronzeados, reluzem, Livres, na fulgurante luz; 37 A terra Da mée que, a beira da estrada, amamenta o jithinho: Do amoroso devoto Que oferece garridas flores; Do sacrério & margem do caminho, Da intenso siléncio, Da paz imensa. Ele morreu. Chorei na solidéo. Para onde quer que eu fosse, ouvia-lhe a vor E 0 riso feliz. Procurava 0 seu rosto Em cada passante, E a cada um perguntava se encontrara meu irmio, Mas nenhum deles péde consolar-me, Adorei, Recei. Mas os deuses guardaram siléncio. Jd no puede chorar, Nem tampouco sonhar. Procurei-o em todas as coisas, Em todos os climas. Ouvi 0 ciciar do arvoredo Chamando-me para sua morada. 38 E entéo, Em minha busca, Eu te contemplei, O Senhor de meu coracio; Em Ti somente Vi 0 rosto de meu irmio. Em Ti somente, O meu eterno Amor, Contemplo as faces De todos os vivos e de todos (os mortos. 39 XXIII Eu te digo Que a ortodoxia se estabelece Quando a mente e 0 coracéo decaem. Como os pocos trangitilos da floresta Dormem escondidos sob um manto verde, Assim a Vida esté coberta pelo actimulo De pensamentos outonais. Como a tenra jolha pejada da poeira Do tiltimo verao, Assim a Vida pesa Quando 0 amor agoniza. Se 0 pensamento ¢ o sentimento Se acham cerceados pelo temor da corrupeao, Entio, 6 amigo, Ficas cativo na escuridéo De wm dia em declinio. Uma folha tenra emurchece Na sombra de um grande vale. 40 XXIV Como a flor encerra o perfume, Assim eu te contenho, O mundo, Em meu coragao. Guarda-me dentro do teu coragéa, Porque eu sou a Libertacao, A felicidade infinita da Vida. Como a pedra preciosa Jaz no. seio profundo da terra, Assim eu estou escondido Na profundidade do teu coracao. Apesar de niio me conheceres, Eu te conheco muito bem, Embora nao penses em mim, O meu mundo esta cheio de ti. Conguanto ndo me ames, Es 0 meu inalterdvel amor. Embora tu me adores Em templos, igrejas e mesquitas, Eu sou para ti um estranho; Mas tu é meu eterno companheiro. a Como as montanhas protege O vale sereno, Assim eu te cubro, O mundo, Com a sombra de minha mado, Como as chuvas vem 4 terra ressequida, Assim, 6 mundo, Eu venho Com o perfume do meu amor Conserva 0 teu coracio Puro e simples, © mundo; Porque eu entito te serei benvindo, Sou 0 teu amor, O desejo do teu coragéo. Conserva a tua mente Trangitila e clara, © mundo; Pois nela esté a compreensio de ti mesmo. Fu sou o teu entendimento, A plenitude Da tua propria experiéncia. Estou sentado no templo Ou a margem do caminho, Observando as sombras que se movem De wm para outro lugar. 42 A razio é 0 tesouro da mente, O amor, o perfume do coracio. Ambos séo de uma s6 substéncia, Embora fundidos em diferentes moldes, Como a moeda de ouro Tem duas imagens, ‘ Separadas por ténue camada de metal, Assim, entre.o amor e a razio Encontra-se 0 equilibrio da compreensio, Essa compreensao Que é tanto da mente como do coracao. 0 Vida, O Amado, Sd em ti estd o perene amor, 56 em ti reside 0 eterno pensamento. 43 XXVI Como a fatsca Que dard calor Esta oculta entre as pardas cinzas, Assim, 6 amigo, 4 luz Que hé de guiar-te Esconde-se Sob 0 pé Da tua experiéncia, XXVIL © amigo, Tu nao podes limitar a Verdade. Ela é como 0 ar, Livre, sem limites, Indestruttvel, Imensurével. Nao tem morada, Nem templo, nem altar, A nenhum deus pertence, Por mais devoto que seja o seu adorador. Podes tu dizer De que simples flor, A abelha colhe 0 doce mel? 0 amigo, Deixa a heresia ao herege, A religiéo ao ortodoxo; Mas colhe a Verdade Do pé de tua experiéncia. 4s XXVIII Como o oleiro Para a alegria do seu coracio Modela 0 barro, Assim tu podes criar, Para a gléria do teu ser, O teu futuro. Como 0 homem da floresta Rasga uma trilha Na espessa mata, Assim podes abrir, No torvelinho da afticao, Um claro caminho Para libertar-te do sofrer, Para tua perene ventura. © amigo, Assim como momentaneamente As misteriosas montanhas Ficam ocultas no nevoeiro que passa, Assim tu estds perdido Na escuridio que tw mesmo criaste. 46 O fruto daquilo que semeias Hé de pesar sobre ti O amigo, O céu e€ o inferno Sao palavras Para te impelirem pelo temor as justas acdes; Mas céu e inferno nao éxistem Apenas as sementes de tuas préprias acdes Faréo nascer A flor dos teus ardentes desejos. Como o escultor de imagens Corta no granito a forma humana, Assim também, na rocha Da tua experiéncia, Talha a tua eterna felicidade. Tua vida é morte, A morte é renascimento, Feliz 0 homem Que esté além das garras De suas limitagées. 47 XXIX A montanha desce até as dguas revoltas, Mas o seu cume esconde-se em nuvem escura, No toco de um pinheiro morto Cresceu deticada flor. . A substincia de meu amor é Vida E no seu caminho nao hé morte. 48 XXX A diwvida é ungiiento precioso, Embora queime, cura milagrosamente. Eu te digo: Acothe a dtivida Quando estiveres na’ plenitude do desejo. Provoca a ditvida Sempre que a tua ambigiio Te leve a superar outrem em pensamento. Desperta a dtivida Quando 0 teu coragao exulta com um grande amor. 4 te digo: A davida jaz nascer 0 amor eterno, A diivida purifica a mente. Assim, a forca do teu viver issentaré na compreenséo. Para a plenitude do teu coracao, 1 para 0 60 da tua mente, Deixa a diivida romper os liames que te embaragam. 49 Como os frescos ventos das montanhas Despertam as sombras do vale, Assim deixa a divida Reavivar 0 declinante amor Da mente saciada, 2 Nao deixes a diivida enirar a furto no teu coragao. Eu te digo que a ditvida E ungitento precioso; Embora queime, cura milagrosamente, 50 XXXI Escuta-me, © anigo: Sejas tu um iogue, monge, sacerdote, Devoto cheio de amor a Deus, Peregrino a busca da felicidade, Banhando-se nos rios* sagrados, Visitando sagrados santudrios; Sejas tu o adorador eventual de um dia, Um ledor de muitos livros, Ou um construtor de templos, Meu amor pena por ti. Eu conheco 0 caminho do coragéo do Amado, Essa tuta va, Esse afa imenso, continuo penar, © inconstante prazer, Essa ditvida ardente, © fardo da vida, Tudo ‘sso cessaré, 6 amigo. Meu amor pena por ti. Eu conheco 0 caminko do coracéo do Amado. Terei peregrinado pela terra? Terei amado as imagens? Terei entoado ciinticos em éxtase? Terei vestido as sagradas vestes? Escutada as sinos dos templos? Ter-me-ei repletado de estudos? Terei pesquisado? Terei andado perdido? Sim, muito tenho experimentado. Meu amor pena por ti. Eu conheco a senda do coragéo do Amado. © amigo, Porque amas tantas imagens, Se podes ter a realidade? Atira para longe os teus sinos, os teus incensos, Os teus temores e os teus deuses, Poe de lado os teus credos, as tuas filosofias Vem! Afasta de ti tudo isso! Eu conhego 0 caminho do coragao do Amado. O amigo, A unio simples é a melhor. Esse € 0 caminho do coragéo do Amado. aD XXXII Através do véu da Forma, 0 Amado, Eu vejo a Ti, a mim mesmo, em manifestagao. Como sito inatingiveis para 0 vale As montanhas! Mas as montanhas Contém o vale! Como é misteriosa a escuridiio Que faz nascer as vigilantes estrelas; No entanto, a noite nasce do diat Estou enamorado da Vida. Como 0 lago da montanha Que recebe muitas correntes d'dgua E despede grandes rios, Mas conserva as suas misteriosas profundezas, Assim € 0 meu amor. Sereno e claro como as montanhas ao amanhecer E 0 meu pensamento, Nascido do amor. Feliz 0 homem que encontrou a harmonia da Vida, Porque, enti, ele cria na sombra da eternidade, 53

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